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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.238 Lisboa mar. 2021  Epub 31-Mar-2021

https://doi.org/10.31447/as00032573.2021238.13 

Recensão

Recensão: Authoritarianism and corporatism in Europe and Latin America. Crossing Borders, de A. Costa Pinto e F. Finchelstein, and Intellectuals in the Latin Space during the Era of Fascism. Crossing Borders, de V. Galimi e A. Gori.

João Fábio Bertonha1 
http://orcid.org/0000-0002-5194-5632

1 Universidade Estadual de Maringá. Av. Colombo, 5790 - Zona 7 - CEP 87020-900 Maringá, PR, Brasil, fabiobertonha@hotmail.com

Costa Pinto, António; Finchelstein, Federico. ., Authoritarianism and Corporatism in Europe and Latin America. Crossing Borders. ,, Londres e Nova Iorque: ,, Routledge, ,, 2020. ,, 313p. pp. ISBN, ISBN: 9781138303591.
Galimi, Valeria; Gori, Annarita. ., Intellectuals in the Latin Space during the Era of Fascism. Crossing Borders. ,, Londres e Nova Iorque: ,, Routledge, ,, 2020. ,, 217p. pp. ISBN, ISBN: 9781138303591.


Os estudos a respeito do fascismo (e do autoritarismo em geral) têm sofrido uma profunda renovação nas últimas décadas. Algumas questões clássicas (como a própria definição do que é o fascismo, suas bases sociais e sua ideologia) ­continuam a ser discutidas, mas o campo tem sido renovado a partir de novas perspectivas teóricas. Entre elas, destacam-se a ampliação temporal e geográfica dos estudos, a abordagem comparativa e transnacional e a ressignificação dos anos entre as guerras mundiais: não mais a era dos fascismos, mas a dos autoritarismos em geral.

A expansão temporal significa, essencialmente, expandir os estudos para além do seu momento clássico, ou seja, os anos entre as duas guerras mundiais. Tradicionalmente, sempre havia um espaço, nos livros sobre o fascismo, para as chamadas “origens”, ou seja, entender a genealogia da extrema direita desde o século XIX (e, na verdade, desde 1789) até chegar ao surgimento dos fascismos, nos anos 1920. Um esforço válido, mas que nos últimos anos foi redimensionado para indicar não apenas as relações genealógicas, mas também as apropriações, as discordâncias, os momentos de acúmulo de forças ou de rompimento entre os movimentos de extrema-direita do século XIX, os fascismos e outras formas de autoritarismo. Do mesmo modo, os historiadores atualmente estudam com mais cuidado, até para perceberem o atual momento político, os fascismos e as direitas radicais após 1945. Não apenas “restos” anacrónicos, a serem varridos pelo rio da História e estudados como uma quase curiosidade, mas como partes integrantes da cultura política ocidental e dos próprios ciclos do capitalismo.

A abordagem comparativa também se renovou. Ela sempre foi, na verdade, um instrumento comum para o estudo dos diferentes fascismos, mas o foco de comparação, quase sempre, era entre o fascismo italiano e o nazismo alemão ou entre um deles e um terceiro país. Afinal, a Itália e a Alemanha seriam os únicos casos de fascismo “verdadeiro” e todos os outros (mesmo os de suma importância, como os da França, Inglaterra ou Espanha) eram examinados apenas a partir das duas matrizes. Isso alterou--se e as comparações tornaram-se mais amplas e diversificadas, incluindo partes negligenciadas da Europa e regiões e continentes pouco estudados (como as Américas ou a Austrália), o que permitiu o aumento do nosso conhecimento sobre um fenómeno que se estendeu pelo mundo euro-atlântico e além.

A expansão cronológica e geográfica também evidencia como o século XX não foi a “era dos fascismos”, mas do autoritarismo. No período entre as duas guerras mundiais, os fascistas adquiriam uma posição de destaque (conquistando o poder em dois países centrais, a Itália e a Alemanha, e espalhando-se pelo mundo), mas foi o autoritarismo conservador que dominou o cenário em quase todo o continente europeu, na América Latina e na parte independente da Ásia. Nos momentos anteriores e posteriores, por sua vez, o fascismo foi minoritário frente aos grupos reacionários, conservadores, corporativistas e, no momento atual, populistas de direita. O foco no fascismo há de ser relativizado para compreendermos melhor a direita radical, nas suas múltiplas variações e combinações, no longo período desde 1789 até 2020.

Por fim, a abordagem transnacional tem sido fundamental para um entendimento mais preciso do que foi o fascismo. Se a história comparada “fotografa” dois (ou mais) movimentos ou grupos e os compara, a transnacional procura identificar os vínculos e conexões entre essas duas “­fotografias”, formando um “filme”. Passamos a entender melhor, dessa forma, como a circulação de pessoas, periódicos, livros, filmes e outras formas de produção cultural (assim como auxílios financeiros e solidariedades simbólicas) permitiram aos fascismos da Europa, das Américas e do resto do mundo formar uma rede de sociabilidades e uma cultura política particulares dentro do campo da direita, que continuou existindo mesmo após 1945. Ao mesmo tempo, essa rede dialogava com outras redes da extrema-direita (católicas, monárquicas, anticomunistas e outras), o que permitia o trânsito e o diálogo entre elas.

Os dois livros aqui analisados encaixam-se perfeitamente nesse novo momento de renovação dos estudos do fascismo e da direita radical como um todo. Eles rompem com os limites temporais tradicionais, recuando ou avançando no tempo para recuperar personagens e ideias fundamentais para o entendimento do autoritarismo nos últimos séculos e do fascismo no seu momento clássico, entre as guerras mundiais. Eles dão destaque a elementos importantes nos fascismos, mas que os transcendiam, como o corporativismo e o autoritarismo. Em termos geográficos, por sua vez, ambos relativizam o foco na Alemanha e na Itália e dão destaque a uma região importante na história da direita radical, mas tradicionalmente colocada em segundo plano: o mundo latino, ou seja, o sul da Europa e a América Latina.

Eu considerei, por anos, a possibilidade da criação de um conceito que pudesse reunir, analiticamente, as experiências fascistas do mundo latino: fascismo latino-americano, ibérico ou latino (Bertonha, 2011). O tema ainda está aberto ao debate, mas a minha tendência atual é considerar que, com a provável exceção da forte influência da Igreja Católica, os fascismos e autoritarismos da América Latina e da Europa mediterrânica não tiveram especificidades suficientes (especialmente na comparação com outras áreas fascistas “periféricas”, como a Europa Oriental e os países anglo-saxões) para sustentar uma conceptualização como essa (Bertonha, 2019).

Nos trabalhos ora redesenhados, contudo, o que se propõe é outra coisa, ou seja, a existência de uma área cultural específica (o espaço latino), na qual os diálogos, intercâmbios e trocas eram facilitados por uma cultura comum e por vínculos históricos, populacionais e, acima de tudo, linguísticos e culturais. Essa perceção é perfeitamente válida e nos ajuda a entender como se dava a circulação de ideias, pessoas e perspetivas dentro do campo da direita naqueles anos.

A base cultural comum era, obviamente, um elemento fundamental. A forte presença do catolicismo (e as redes financeiras, intelectuais e políticas da Igreja Católica) no mundo latino foi, nesse sentido, fundamental para a difusão de elementos, imagens e conceitos essenciais para a cultura de direita da época, como a crítica à democracia liberal, o anticomunismo e, especialmente, o corporativismo. As conceções ­católicas foram interpretadas, reorganizadas ou repensadas de forma diferente pelos movimentos reacionários, fascistas ou conservadores de cada país da Europa meridional e da América Latina, mas é impossível subestimar a sua importância. Como indicado acima, o catolicismo teve uma influência fundamental na formatação de outros fascismos e autoritarismos, especialmente na Baviera, na Áustria, ou em partes da Europa Oriental, mas só foi realmente hegemónico no espaço latino, fornecendo uma base comum para os debates dentro do campo da direita e, especialmente, da extrema--direita.

Também importante para o funcionamento prático desse espaço cultural foi a proximidade linguística, a qual facilitava a circulação de periódicos, livros e pessoas. Claro que havia fascistas na América Latina ou na Península Ibérica que liam alemão, inglês ou holandês e podiam ter acesso ao que circulava naqueles espaços. No entanto, a proximidade entre os idiomas francês, português, espanhol e italiano (para não mencionar o catalão, o galego ou o romeno) facilitava imensamente o diálogo. Pensarmos num espaço cultural latino, portanto, faz muito sentido e ambos os livros trabalham intensamente, com sucesso, nessa direção.

Até por isso, outro ponto forte dos dois trabalhos é o foco nos intelectuais, aqueles que tinham as condições linguísticas e mentais para se apropriarem da produção ideológica e cultural dos outros e a ressignificarem para as suas próprias realidades nacionais. Muitas vezes, como seria inevitável, havia polos mais difusores do que recetores (como a França e a Itália) e outros que centralmente absorviam o que vinha de fora, como a Península Ibérica e a América Latina. Nunca houve, contudo, uma relação cem por cento unilateral, o que apenas ressalta como a proposta de uma “área cultural” é esclarecedora.

Os inúmeros artigos presentes nos dois livros trabalham, dessa forma, com vários intelectuais-chave: Ramiro de Maeztu, Plínio Salgado, Oliveira Vianna, António Sardinha e tantos outros, os quais eram os mediadores que faziam a articulação do internacional com o nacional, que era onde a disputa política real se dava. Nesse contexto, dois intelectuais merecem destaque: Charles Maurras e Mihail Manolescu. O primeiro foi, provavelmente, o mais importante ideólogo da extrema-direita entre o final do século XIX e 1945. As suas posturas monárquicas e reacionárias foram aceites quase integralmente em alguns círculos e/ou adaptadas e relidas pelos fascistas e por outros grupos de extrema direita, mas sempre estiveram em grande destaque não só na França como em todo o mundo latino. Já Manolescu foi um autor essencial para a popularização do corporativismo e para a sua conversão (assim como a de Maurras e seus herdeiros) do conservadorismo para o fascismo indicam bem as idas e vindas da direita radical naqueles anos.

O tema da imprensa, veículo fundamental para a construção de um espaço cultural único, também é abordado com cuidado, mas o destaque, pela novidade, é o estudo de várias instituições que eram essenciais como centros de difusão das ideias, como os círculos maurrasianos, a agência La Presse Latine, etc. A existência dessas instituições deixa evidente como a circulação de ideias não era um mero efeito da proximidade cultural, física e ideológica dos vários atores, mas também refletia investimento financeiro pesado na mesma, através do financiamento privado ou estatal das atividades culturais.

Nesse sentido, a opção do livro de Gori e Galimi por excluir a Itália fascista talvez possa ser questionada. O objetivo, fica evidente, foi concentrar os estudos nos casos menos estudados e redimensionar o tradicional enfoque na Itália. Algo correto, mas que também dificultou a visualização da materialidade dessas redes, pois as instituições da Itália fascista - e o dinheiro do Estado italiano - foram fundamentais para alimentar e financiar boa parte desses “diálogos latinos” (Bertonha, 2020).

Outro ponto de destaque dos dois livros é que eles deixam claro como o conceito de “espaço cultural” não implica o desconhecimento de que havia inúmeros projetos ou subprojetos circulando dentro dele: a romanidade, o iberismo, o peninsularismo, as diferentes conceções de hispanidade, etc. A própria conceção de “mundo latino”, que apareceu em meados do século XIX, também estava sujeita a intensos debates: o que significava exatamente ser latino? E quem deveria liderar os países latinos? A França, a Itália fascista, a Espanha, a Península Ibérica? E, na América Latina, haveria países mais aptos a encarnarem os valores latinos - como o México, a Argentina ou o Brasil - do que outros? Ao mesmo tempo, outros projetos de identificação cultural comum estavam presentes, como o americanismo vindo dos EUA ou as conceções oriundas do Peru ou do México que valorizavam a herança indígena e as especificidades do continente americano. O conceito de espaço cultural compartilhado é uma inovação a ser explorada, mas não se deve subestimar a tensão inerente dentro dele, com projetos em conflito e disputas entre ideologias e Estados. Ambos os livros tomam o cuidado devido justamente para não cair nessa armadilha.

Em resumo, os dois livros aqui recenseados representam o melhor da nova fronteira nos estudos do fascismo e do autoritarismo, ou seja, a implosão dos seus limites cronológicos e geográficos e a exploração dos seus vínculos internacionais e transnacionais. A colaboração de dezenas de investigadores da Europa e das Américas foi muito bem sucedida e os dois livros dialogam intensamente entre si, formando um conjunto indispensável para os interessados num tema, infelizmente, cada vez mais atual.

Referências bibliográficas

BERTONHA, J. F. (2011), “Plínio Salgado, o integralismo brasileiro e as suas relações com Portugal (1932-1975), Análise Social, 46 (198), pp. 65-87. [ Links ]

BERTONHA, J. F. (2019), “¿Un fascismo ibérico o latino? Comparación y vínculos transnacionales en el universo político fascista entre América Latina y la Europa Mediterránea”. In U. Mücke, e F. Kolar. El pensamiento conservador y derechista en América Latina, España y Portugal. Siglos XIX y XX, Frankfurt, Madrid, Iberoamericana-Vervuert, pp. 257-288. [ Links ]

BERTONHA, J. F. (2020), “De Roma para o Atlântico. Jornais e jornalistas de língua italiana entre a Itália, a Europa e a América Latina durante o fascismo”, Diálogos (On-line), 24(1), pp. 498-512. [ Links ]

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