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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.238 Lisboa mar. 2021  Epub 30-Mar-2021

https://doi.org/10.31447/as00032573.2021238.10 

Recensão

Recensão: Aliyah. Estado e Subjetividades entre Judeus Brasileiros em Israel/Palestina,

Maria Cardeira da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-7300-9482

1 Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA-NOVA FCSH) Universidade Nova de Lisboa. Avenida de Berna, 26-C, 1069-061 Lisboa, Portugal, m.cardeira@fcsh.unl.pt

Almeida, Miguel Vale de. ., Aliyah. Estado e Subjetividades entre Judeus Brasileiros em Israel/Palestina. ,, Lisboa: ,, Imprensa de Ciências Sociais, ,, 2019. ,, 194p. pp. ISBN, ISBN: 9789726715597.


Este é um livro de Antropologia, de uma antropologia contemporânea que dá voz aos seus interlocutores, não para os representar e assim continuar a outrificar e subalternizar, mas contando a, e com a, sua agência, de forma concertada, para dar inteligibilidade às suas próprias realidades culturais e políticas.

Mas Miguel Vale de Almeida sabe bem que nesse exercício difícil de construção de um olhar neutro espreita sempre a suspeição de escamoteamento do enviesamento político por detrás de um alegado alheamento. Ainda mais quando se trata de um universo tão saturado politicamente como é o de Israel e/ou do judaísmo.

O autor antecipa a suspeita, ao construir um livro (rebelde, resultado de um projeto sem financiamento e alheio a agenda) em duas partes: a primeira, mais analítica, sobre sionismo, identidade judaica e fundação do Estado de Israel; outra, mais etnográfica, em interação com interlocutores brasileiros que fizeram a Aliyah. Dá assim aos leitores a escolha de ouvirem de modo mais sonante a sua própria voz (na primeira parte), ou de preferirem a dos seus entrevistados (na segunda), ou de juntarem ambas lendo o livro todo, o que, na verdade, cumpre melhor a sua função anunciada: a de tomar o Estado de Israel como um laboratório para pensar toda a série de narrativas da modernidade tabeladas pelo secularismo, o liberalismo, e o nacionalismo (podíamos acrescentar ainda o colonialismo). Israel é aqui entendido como um Estado ventríloquo dos oxímoros dessas narrativas. Isso porque é um Estado a funcionar demasiado e em pleno.

Entre as páginas 16 e 17 diz: “Em vez de deixar o leitor em suspense, ou salivando na procura de uma posição escondida na trama do texto - ou entrevista na facticidade deste livro - eis a minha posição”. Mas aqui não digo eu qual é essa posição, respeitando a vontade do autor de deixar em aberto a possibilidade de os leitores não a quererem conhecer, pelo menos antes de lerem o resto.

Um desses paradoxos da modernidade, de que Vale de Almeida fala na introdução, está logo encapsulado na ideia de Aliyah que dá título ao livro. A palavra é hebraica e significa «ascensão». Isso eleva-nos a uma dimensão metafísica, que nos remete para o círculo religioso do judaísmo. Contudo, o termo é moderno, secular e, acima de tudo, nacionalista, já que resume o movimento e processo de aquisição da cidadania israelita. A contradição evidencia-se mais quando sabemos que essa ambição é apenas concedida a judeus, por um Estado alegadamente secular. Apresentando-se como uma democracia liberal, Israel é um Estado dos e para os judeus (embora isso só tenha sido formalizado em 2018), que exclui do privilégio da cidadania, antes de outros, os próprios palestinianos diasporizados pela Naqba, a catástrofe - como a designam os palestinianos - que deu início à guerra Israel-Palestina.

Para além disso, se é o Estado que define quem são os seus cidadãos - coisa que foi gerindo ao longo do tempo de acordo com as suas próprias necessidades de pressão demográfica, acentuando critérios fuzzy, ora o critério étnico, ora o critério religioso, e gerindo hierarquias culturalizadas como as dos azquenazitas (europeus, “ocidentais”) vs. mizhraitas (árabes/ “orientais”) - é também o Estado que os configura. E fá-lo logo a partir do poder pastoral de configuração dogmática e performativa das subjetividades que integram a Aliyah (através da aprendizagem do hebraico e princípios e normas culturais para a “absorção” no país).

A dimensão laboratorial do Estado de Israel exponencia-se, por isso, para a análise das tecnologias pedagógicas do Estado, na medida em que os requerentes da Aliyah fazem-no enquanto adultos, solicitando a sua cidadania por escolha própria e não a adquirindo automaticamente, por exemplo, por jus soli. Os sujeitos sujeitam-se à configuração de uma nova subjetividade por parte do Estado (pleonasmos assumidos). E é isso que Miguel Vale de Almeida vai explorar na segunda parte do livro, e que justifica o subtítulo Estado e Subjetividades entre Judeus e Brasileiros em Israel /Palestina.

A escolha de interlocutores brasileiros, que fizeram aliot (pl. de Alyah) banais, é desarmante pela exoticização que isso opera no terreno israelita, globalmente mediatizado através do par em conflito judeu/árabe. Esta escolha abre o campo para outras leituras mais límpidas, levando a suspender, heuristicamente e por um momento, o habitual turvamento político apriorístico.

A partir da recolha de visões subjetivas - que faltam para este contexto, mesmo na academia, e que não implicam a sua despolitização, mas antes a complexificam -, o autor tenta exibir as motivações de homens e mulheres brasileiras que fizeram a sua Aliyah em diferentes momentos históricos e políticos de Israel, e o modo como lidam com as ilusões e desilusões das suas escolhas e do seu dia--a-dia.

A diversidade do grupo é, na verdade, mais de idade do que social - todos são de classe média ou média-alta - e ainda assim a faixa etária é estreita, o que faz com que a maior parte dos interlocutores tenha seguido as migrações juvenis que idealizaram os kibutzes nos anos 60 e 70 e/ou as migrações cosmopolíticas mais contemporâneas de vaivém. A nacionalidade de origem exclui-os a todos, também, da subalternidade dos judeus resgatados nos países do Médio Oriente (ou mesmo dos sefarditas - de origem ibérica - a que muitos genealogicamente pertencem). Mas, ainda mais pela sua relativa homogeneidade, a amostra (que, em qualquer caso, nunca pretendeu ser representativa) é eloquente porque permite colocar estes homens e mulheres no quadro de “normalidade” das expectâncias e/ou desilusões de todos aqueles que emigram para uma qualquer parte do mundo por uma vida melhor, e onde amiúde se encontram mescladas motivações religiosas, económicas, políticas e/ou biográficas: a busca do socialismo numa época de ditadura no Brasil, a necessidade económica ou de segurança, o trauma, um desgosto amoroso ou, pura e simplesmente, a ausência de outro qualquer projeto de vida.

Essas motivações e configurações subjetivas prévias não foram, em muitos casos, mitigadas e condicionam as subjetividades e agência em Israel: reivindicando o sionismo pós-nacionalista, aderindo aos Combatentes para a Paz ou à causa palestiniana, assumindo o “ser de cá, não gostando”, vivendo na “bolha” hedonista de Telavive ou aderindo a partidos de direita e legitimando a ocupação: em todos os casos vivendo a vida normal que é, ali, a de uma hipernormalidade estridente, de uma aparente normalidade de um estilo de vida ocidental, que tem como pano de fundo uma hiperanormalidade silenciada: um conflito agonizante e a anormalidade da discriminação da ocupação e dos períodos de violência.

Encetada tão eloquentemente, seria interessante prosseguir esta hipérbole da modernidade em Israel/Palestina acompanhando as subjetividades dos brasileiros que voltam à Palestina, ou que transitam entre ela e o Brasil. Isso para além desse outro livro por escrever - sobre judeus da e na diáspora cosmopolita em trânsito entre o Brasil e Portugal - que Miguel Vale de Almeida anuncia nas últimas páginas, e que esperamos com o entusiasmo que a leitura deste nos instigou.

Referências bibliográficas

Almeida, Miguel Vale de 2019 Aliyah. Estado e Subjetividades entre Judeus Brasileiros em Israel/Palestina, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, , 194 pp. ISBN 9789726715597 [ Links ]

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