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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.237 Lisboa Dec. 2020  Epub Dec 31, 2020

https://doi.org/10.31447/as00032573.2020237.09 

Ensaio bibliográfico

Amália Rodrigues e o século XX português

1Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9 - 1600-189 Lisboa, Portugal, nuno.domingos@ics.ulisboa.pt


Localizar politicamente Amália

A transladação, em 2001, do corpo da fadista Amália Rodrigues (1920-1999) para o Panteão Nacional concedeu uma honra inédita a um artista popular. No Panteão, Amália e o jogador de futebol moçambicano Eusébio da Silva Ferreira1 contrastam com as individualidades que partilham esta distinção do Estado, pela sua origem modesta e por serem ídolos da cultura popular moderna, por via da qual projetaram o nome de Portugal, ainda sob o governo do Estado Novo. As suas biografias são ainda narrativas em aberto, disputadas por interpretações e investigações que procuram desvendar com maior detalhe percursos individuais extraordinários, e mobilizá-los para analisar o século xx português.

O centenário do nascimento da fadista foi pretexto para várias edições, entre as quais se destacam Amália. Ditadura e Revolução, biografia política da autoria de Miguel Carvalho, grande repórter da revista Visão2, e Amália pelas suas Palavras, transcrição da longa entrevista concedida pela fadista, em 1973, ao escritor Manuel da Fonseca, e que seria a base da realização de uma biografia, jamais concretizada, encomendada pela editora Arcádia.3 Estas obras localizam com maior detalhe o percurso político de Amália, acrescentando informação a outras fontes, nomeadamente à biografia de Vítor Pavão dos ­Santos, Amália. Uma Biografia, publicada em 1987, reeditada em 2005, com o título Amália. A Biografia, e objeto de nova edição em 2020.

Realizado juntamente com a fadista, e narrado na primeira pessoa como se de uma autobiografia se tratasse, o livro de Pavão dos Santos converteu-se na narrativa oficial da vida de Amália. Nesta obra, ela descreve as suas origens, celebra a carreira, ajusta contas com o mundo artístico - contra os boatos e as mentiras, como refere - mas não se estende muito sobre questões políticas, nem sobre a vida privada - no prefácio, David Mourão Ferreira fala do “extremo pudor” do relato biográfico. Nos livros acabados de publicar, um novo acesso às palavras da fadista não supera totalmente o efeito deste pudor sobre a descrição da sua vida, mas permite aprofundar assuntos já focados no livro de Pavão dos Santos, sugerindo ainda caminhos de investigação diversos. Talvez o mais fecundo seja o que relaciona o percurso de Amália e o seu discurso memorialístico com a condição conquistada por si no campo artístico. Noutra dimensão, e dentro de certos limites, as palavras de Amália concedem uma singular porta de entrada para a análise das vivências populares durante o Estado Novo, e principalmente aos modos como o “povo” concebia e fazia política.

Na capa de Amália. Ditadura e Revolução anuncia-se a revelação de uma “história secreta”. Este segredo é a ajuda financeira de Amália à oposição durante a ditadura, nomeadamente a iniciativas e organizações que envolviam o Partido Comunista Português (PCP) - do MUD Juvenil à Comissão de Apoio aos Presos Políticos - quase sempre por intermédio de amigos próximos. Como conta o autor, os relatos sobre estas contribuições, partilhados em conversas particulares, foram apenas tornados públicos quando, em reação à morte de Amália - a 6 de outubro de 1999 - e à insistência dos jornalistas em vincular a imagem da cantora à propaganda do Estado Novo, o escritor José Saramago declarou à imprensa que “a realidade é sempre mais complexa do que parece”, referindo-se então a esta dimensão ignorada da vida da fadista. Esta biografia, relevante para o conhecimento da atividade da oposição ao Estado Novo, resulta de um trabalho de 20 anos, apoiado por dezenas de entrevistas, pela consulta de arquivos, de bibliografia diversa e da imprensa da época, portuguesa, mas também estrangeira; bem organizada, incluiu uma generosa transcrição das fontes, apesar da ausência de uma referenciação rigorosa - possivelmente uma exigência do editor, a braços com um provável best-seller.

A “história secreta” de Amália, confirmada tanto por quadros do PCP4 como por outras fontes orais, relativiza um perfil político conotado com a máquina de propaganda do Estado Novo.5 Os apoios à oposição, mas também outros aspetos menos conhecidos, como a ação política do marido, César Seabra, no apoio à candidatura de Humberto Delgado, reforçam a dimensão oposicionista de Amália, já modelada pelas relações próximas com amigos, músicos e poetas, como Alain Oulman, Ary dos Santos, David Mourão ­Ferreira ou ­Natália Correia, que se encontravam na boémia noturna da casa da fadista, na Rua de São Bento, em Lisboa.

Se o trabalho de Miguel Carvalho absolve Amália do estigma do colaboracionismo, não substitui a sua imagem enquanto cúmplice do regime. Rainha do fado em Portugal, embaixadora do país no estrangeiro, Amália desempenhou um papel relevante nas políticas de diplomacia cultural do Estado Novo, pela mão de instituições como o Secretariado de Propaganda Nacional e a Agência Geral do Ultramar. Presença comum em círculos da elite portuguesa, para quem cantou em inúmeras ocasiões, e de onde saíram algumas das suas relações mais íntimas, admiradora de Salazar, Amália percorreu um caminho não separável do poder e das suas intenções. Por isso, o pós-25 de Abril não foi um período fácil para a cantora. Devido a razões políticas e estéticas, o fado passara de moda, e Amália, optando por ficar em Portugal, sofreu particularmente com a politização em curso: acusada de ser fascista, foi insultada durante concertos e outros eventos públicos. Um conjunto de acontecimentos, publicitados pela propaganda do Estado Novo, contribuiu para a construção desta imagem de cumplicidade política6, não atenuada pela queda do regime, já que o currículo oposicionista da fadista se manteve encoberto, por vontade da própria e pelo silêncio das organizações que apoiou, apesar do auxílio prestado então por alguns dos seus militantes.7

A localização política de Amália, precisada no livro de Miguel Carvalho, sugere duas conclusões prévias. O seu currículo oposicionista, ao permanecer oculto, não prejudicou o controlo exercido pelo governo sobre o “registo público”, circunstância fundamental para definir o papel político da fadista.8 A descoberta do seu “currículo escondido” obriga, porém, a uma reconsideração das suas ações e intenções. Para este efeito, importa evitar interpretações que procuram definir uma biografia pela identificação de uma “posição política”, mas também análises, típicas das biografias de pessoas singularíssimas, que vinculam um itinerário ao plano das idiossincrasias individuais, ilustradas por um conjunto de estórias e acontecimentos.9 Se as peculiaridades e qualidades carismáticas de Amália (que os amigos designavam por “amaliazadas”) ajudam a descrever a sua individualidade, esta deve ser compreendida atendendo a outras mediações.10

Embora não o declarem, estes dois livros mais recentes, como em grande medida a biografia de Pavão dos Santos, evidenciam o papel desempenhando pelo universo artístico na modelação do individualismo de Amália e na forma como foi gerindo as suas ações políticas. Foi nesta esfera de relações que se moveu grande parte da sua vida, onde foi formada e onde conquistou um estatuto e um “sentido de si”.

O campo artístico e o Estado Novo

Amália nasceu em Lisboa, filha de pais que migraram da Beira Baixa para escapar à pobreza. Educada por uma avó rígida, cedo lhe morreram vários irmãos - de bexigas, tuberculose e com uma paralisia. Na capital, onde inúmeras vezes mudou de casa, viveu a fome, e a pobreza moldou-lhe a perspetiva e mesmo o corpo, em alguns aspetos premonitoriamente.11 Até ao momento em que alguém reparou na sua voz e a integrou no roteiro socialmente selecionado das casas de fado (em 1939, no Retiro da Severa), o seu percurso assemelhou--se ao das classes trabalhadoras lisboetas, marcado por uma passagem fugaz pela escola - de onde foi retirada, contra a sua vontade, pela avó, que achava que “para mulher até sabia demais” (Santos, 2020, p. 38) - e uma entrada precoce no mundo do trabalho, sempre em profissões desqualificadas - passou a ferro, trabalhou numa fábrica de bolos, vendeu fruta.

Quando o regime se apercebeu da sua existência, já a fadista era conhecida num circuito artístico que incluía tanto as casas de fado lisboetas como os espetáculos privados em “salões” burgueses e aristocratas. A sua rápida mobilidade profissional, acelerada pela ação de agentes e empresários, abriu--lhe o caminho para outros núcleos fundamentais da cultura popular urbana, nomeadamente as revistas do Parque Mayer, onde se estreou em 1941. Em 1946, quando chegou ao cinema no filme Capas Negras, Amália foi o chamariz para divulgar a cinematográfica nacional (Baptista, 2009). Como confessou a Pavão dos Santos, o cinema elevou substancialmente a sua notoriedade pública (Santos, 2020, p. 87). Com o estatuto de vedeta popular, Amália já não dependia dos espetáculos de salão promovidos pela elite social, onde observou, no início da sua carreira, como os guitarristas que a acompanhavam eram enviados depois dos espetáculos para as cozinhas, para o pé dos criados (como referiu na entrevista a Manuel da Fonseca: “faz-me mais impressão que mandem as pessoas para a cozinha, do que estar na cozinha, p. 268”). Sobre essa época referiu: “aos 23 anos estava divorciada, trabalhava, era independente, sentia-me bem em Lisboa. Era uma Lisboa extraordinária, divertida, bem-disposta. Pelo menos o que chegava a mim era uma festa contínua (Santos, 2020, p. 61). Esta ascensão social possuía, ainda assim, alguns limites: para os filhos da elite que a cortejavam, Amália podia ser uma distração boémia, mas não uma opção socialmente aceitável para constituir família.12 A sua carreira internacional iniciou-se em 1943, na sequência de um convite de Pedro Teotónio de Almeida, então embaixador em Espanha, que a levou a Madrid. Se o seu êxito nos eventos patrocinados pelo Estado suscitou o interesse dos agentes económicos que exploravam circuitos comerciais internacionais, a sua profissionalização precoce e a racionalidade económica do campo artístico abriram-lhe outras vias de internacionalização, no Brasil, no México, nos Estados Unidos, por onde passou a circular regularmente.13-

O repertório de Amália ajustou-se progressivamente a algumas das exigências comunicativas que caracterizavam as grandes salas de espetáculo. Em Lisboa, cedo rompeu com versões tradicionais do fado, consagrando o fado--canção, formato popular no teatro de revista, igualmente mais adaptado às convenções comerciais da indústria fonográfica e da rádio (Nery, 2010, p. 438). Saindo do espaço circunscrito da casa de fado para as grandes salas de espetáculo nacionais e internacionais, Amália apresentava alinhamentos diversificados, incluindo canções em língua estrangeira.

Como explicou:

O fado viaja muito mal, ninguém consegue ouvir durante duas horas fados pesadíssimos numa língua que não entende. A certa altura parecem todos iguais. Em França, como em qualquer país estrangeiro, canto um fado ligeiro, depois um fado mais fado, depois uma música mais viva, tipo Lisboa não Sejas Francesa, depois outro fado sério, depois uma espanholada, depois outro triste. E então, quando já tenho público na mão, posso cantar o que quiser, que ele já vem [Santos 2020, p. 125].

Exibida como grande representante do fado de Portugal, Amália habitava um circuito artístico típico de uma vedeta internacional, bem longe dos lugares que continuavam a animar os itinerários fadistas em Lisboa. Um dos objetivos explícitos da biografia de Pavão dos Santos era mostrar aos portugueses como Amália foi grande fora das fronteiras do país. Sucedem-se nesta biografia histórias de contratos com conhecidas salas de espetáculo, com os melhores casinos, boîtes e hotéis, lugares onde conheceu as maiores vedetas da época (Piaf, Sinatra, Bennet, Anthony Quinn, Ava Gardner, entre muitos outros).

O governo português beneficiou da popularidade de Amália, da qual dependia para realizar uma boa propaganda. Manuel da Fonseca e João ­Belchior ­Viegas14 asseguraram a Amália, durante a entrevista realizada em 1973, que ela era a única coisa boa que o regime podia mostrar “lá fora”, porque não havia mais ninguém (p. 241): “nem mil secretariados da propaganda, a trabalharem durante mil anos, arranjavam um produto que lhes foi parar às mãos, que é você” (Fonseca, 2020, p. 187). Com pertinência, insistiram que as instituições culturais do Estado Novo foram incapazes de produzir talentos, restando-lhe aproveitar o engenho e arte de figuras social e culturalmente subalternas, como a própria Amália e o futebolista Eusébio, o “rei do pontapé na bola”, como se lhe referiram com certo menosprezo, não partilhado pela cantora.

Ao desejar resgatar Amália à propaganda salazarista, Manuel da Fonseca parecia propor-se a escrever a biografia de uma heroína do povo português. Para efeitos da construção biográfica, a fadista devia reconhecer-se numa versão deste povo, que para o escritor neorrealista corresponderia à classe trabalhadora, definida pela exploração económica e pela repressão política que sofria. Por inúmeras vezes pediu a Amália para definir este povo. As ­respostas, no entanto, foram hesitantes e contraditórias: o povo era o mundo que a rodeava em Lisboa, do qual falou através do fado, mas também o povo das suas raízes na Beira Baixa, de que herdou a forma de cantar (“qualquer coisa que trazia no sangue”, p. 164), embora confesse noutro lugar que aprendeu a cantar ao ouvir nos cinemas de Alcântara os tangos de Carlos Gardel (Santos, 2020, p. 31); o povo era o povo dos pobres que sofriam, e noutras ocasiões o povo português; por vezes, porém, sentiu-se mais próximo das audiências estrangeiras, apesar de não compreenderem as letras das canções; o povo em Portugal foi também, como referiu, o povo que desde cedo a criticou, com inveja do seu sucesso e ascensão social. Em vários momentos definiu-se também como uma “cantora ibérica”, amante do flamenco e do modo de vida cigano (Santos, 2020, p. 66). Resistindo à insistência de Manuel da Fonseca, afirmou: “não tenho de romancear nada a respeito do povo” (p. 385). Quando descreveu numa entrevista, citada por Miguel Carvalho, o seu desencontro com Manuel da Fonseca, Amália afirmou: “ele queria que eu tivesse sido muito infeliz e que tivesse lutado muito para ser artista e eu não lutei nada. Nem fui muito infeliz, não tinha nada que comer, nem que vestir, mas não era infeliz, o que é eu hei-de fazer” (Carvalho, 2020, pp. 218-219).

Dececionando o escritor, as reflexões de Amália denunciavam os limites das descrições lineares do “povo”, politicamente mobilizadoras, mas restritas do ponto de vista analítico.15 A condição de artista levou ainda Amália a aproximar a definição do povo ao desenho do seu “público”, ao universo das pessoas que a compreendiam na comunhão da sala de espetáculo (“Acho que há entre mim e as pessoas que me ouvem, uma identificação”). Afinal, independentemente da origem dos públicos, foram os seus aplausos e o dinheiro que despenderam na compra de discos e nos bilhetes para os espetáculos musicais, de cinema e de teatro, que desde os anos de 1940 a engrandeceram, moldando a sua singularidade.16 Se o discurso de Amália sobre o fado reforça por vezes uma representação pré-moderna do género, assumido como uma expressão intuitiva e orgânica de um povo que tem o destino traçado - um povo que compartilha o mundo com a aristocracia, classe que o domina, mas também o compreende - foram as redes comerciais criadas pela burguesia e os meios de comunicação modernos que criaram o seu público de apreciadores, fundamentalmente urbano.

O percurso de Amália, compreensível no quadro das relações existentes no interior de um campo artístico em transformação, demonstra como é equívoco pensar que o Estado Novo escolheu o fado como instância fundamental de propaganda: diferentemente, foi a popularidade nacional e internacional de alguns dos seus principais intérpretes, e acima de todos de Amália Rodrigues, que tornou o género assimilável aos interesses do nacionalismo cultural do regime.17 No seu livro, Miguel Carvalho recorda o desprezo estético e classista dos responsáveis pela cultura e pela propaganda do Estado Novo pelo fado popular, e a desconfiança política suscitada pelos meios onde era vulgarizado: espaços urbanos criados pela desigualdade, menos controláveis, suscetíveis à infiltração política, como indicaram os próprios relatórios da pide.18 O fado popular foi um meio de comentário social e político; de modo mais determinante, era uma expressão artística singular, inseparável da partilha de uma condição social não-privilegiada, incrustada nas vivências de alguns bairros lisboetas. Para movimentos, à esquerda e à direita, que queriam galvanizar as massas para os seus projetos políticos, a sua faceta melancólica e resignada não era especialmente estimulante. Mas para um regime estabelecido, que rapidamente abdicou da retórica “modernista” e transformadora inicialmente adotada pelos fascismos, esta resignação pitoresca, veiculada e renovada pelos meios modernos de comunicação e pelas vedetas que estes criaram, era útil para vender lá fora uma versão comercializável do “ser português”.

O estatuto adquirido no campo artístico ofereceu a Amália uma estabilidade social, afastando-a dos itinerários dos que partilharam na origem uma posição de classe, e alguma flexibilidade política, que deveria ser gerida com cuidado. Amália manteve um estilo de vida pessoal e familiar longe dos ideais preconizados pelo regime, situação ainda mais evidente sendo ela mulher. Apesar da vigilância da pide, preservou amizades entre a oposição, e teve coragem de cantar poemas de anti-fascistas. Como detalhou Miguel ­Carvalho, por inúmeras vezes financiou a oposição organizada. Em determinadas circunstâncias, bastante raras, demonstrou publicamente um perfil oposicionista, como quando gravou em 1962 Abandono (também conhecido por Fado de Peniche), cuja história foi considerada um comentário à prisão de Álvaro Cunhal - embora Amália sempre justificasse estas escolhas pelo seu gosto pessoal.

O povo cantado

A qualidade de intérprete do fado, que Amália definia como o género que narrava o sofrimento dos pobres e o seu destino, ajudou-a a manter vivo o discurso sobre a sua origem popular, apesar da mobilidade social a ter afastado das vivências da infância e da juventude. Nestes três livros, as palavras de Amália são um exemplo reiterado dessa identificação popular. Evitando definir o “povo”, Amália, através da sua arte, descrevia de forma singular a condição existencial do povo, a manifestação sentimental de uma condição prática, as “estruturas de sentimento” e os horizontes de expectativas de indivíduos e grupos que partilhavam uma condição. Simultaneamente, a capacidade de exprimir estas vidas concedia credibilidade e autenticidade ao intérprete. Amália não apenas cantava fado: o género encontrava-se colado à sua carne, e o que pertencia ao corpo não era facilmente transmissível por palavras. Assim, o fado não era uma “técnica” que fosse possível apreender fora de um contexto existencial e social. Amália, aliás, desafia a construção do fado como artefacto cultural definível enquanto género musical. Assim, o que caracterizava o fado era uma condição humana: “Para mim o fado é muito mais antigo do que essas teorias que dizem que veio do Brasil. O que eu acho é que as pessoas se queixavam e daí nasceu o fado… o fado é saber que não se pode lutar contra aquilo que temos. É aquilo que não podemos mudar. É perguntar porquê e não saber porquê. É não deixar de perguntar e, ao mesmo tempo, saber que não tem resposta (Santos, 2020, pp. 180-181). Amália recordou que até iniciar a carreira, nunca fora “chamada a ter opinião para nada. Quer dizer, mandavam--me” (Fonseca, 2020, p. 64): vinha de um contexto em que “o irmão mais velho é que manda, o irmão mais velho é que bate, a rapariga não pode fazer nada” (Santos, 2020, p. 41).

Cantar a resignação e o sofrimento oferecia uma representação passiva das classes populares, mas não traía o que os seus poetas e cantores, e sobretudo o seu público, sentiam e experimentavam. Esta experiência, que descrevia igualmente o afastamento da política formal, esse mundo dos outros, não era captada por uma representação política do quotidiano tal como era subjetivada pelo trabalho propriamente político e pelos agentes que habitam um campo político, organizações formais, intelectuais e mesmo investigadores académicos, com as suas categorias formais. A resistência de Amália às classificações políticas - “embaixadora do regime”, “heroína do povo” - indiciava um não comprometimento estratégico de alguém que desejava preservar um estatuto conquistado no campo artístico. Mas revelava também como a interpretação do seu percurso requeria o acesso a outro tipo de conhecimento, mais próximo de sentimentos, princípios de ação e mundividências de um “povo” mais complexo e fragmentado. Nesse sentido, a sua voz, sobretudo no “combate” que travou com Manuel da Fonseca, parece exigir que as vivências desse povo não ficassem simplesmente reféns de uma história política, o que não significava, certamente, que o seu envolvimento na transformação das estruturas da ordem seja desvalorizado. Mas para ela, o mundo da política, como já referira por diversas vezes na biografia de Pavão dos Santos, era o mundo do privilégio: “Eu não fui dos privilegiados. Fui dos pobres, daqueles que não estudavam porque não os deixavam, que andavam preocupados em arranjar as batatas e que aceitavam, como eu aceitei, a condição de pobre. Era como se o mundo fosse a preto e branco, ricos e pobres” (Santos, 2020, p. 64). E noutra ocasião: “com certeza havia pessoas diferentes de nós, senão não se faziam revoluções. Mas nunca ouvi sequer falar dessas coisas. Os privilegiados é que falam dessas coisas, não são os pobres” (ibidem, p. 41).

Se a construção de Amália como cantora de fado exigia a autenticidade da experiência popular, requisito da própria performance, expressa num queixume existencial, a sua carreira provava como ela não esteve refém da sua origem. Para Amália isso devia-se a um dom - por vontade de Deus - e ao talento individual, que a fez sobressair da massa do povo. A história de Amália demonstra, no entanto, como este percurso se deveu substancialmente às possibilidades conferidas pelas estruturas do campo artístico, num tempo de globalização cultural, de transformação tecnológica e da criação de novos públicos e consumos, tanto em Portugal, como nos circuitos internacionais. Estas mudanças ecoavam igualmente no Portugal do Estado Novo, apesar das razões sociais, políticas e económicas que continuavam a justificar o lamento dos fadistas. O currículo político escondido de Amália é testemunho, noutro sentido, dos limites da sua resignação. Se, por um lado, como insistiu, o fado tinha “verdadeiramente o sentido da palavra, o fado destino” (Fonseca, 2020, p. 169), por outro, como acrescentou de seguida numa formulação mais complexa, ao fado cabia também cantar “a maneira como se sofre, a maneira como se aceitam as coisas, ou não se aceitam” (ibidem). A opções artísticas de Amália, desde logo aquilo que quis e não quis cantar, são a expressão desta tensão, consequência do seu percurso e talento singulares, mas igualmente da transformação do próprio género artístico, em resultado do seu ajustamento às regras que definiam um mercado do espetáculo cultural em evolução.

Referências bibliográficas

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1Transladado para o Panteão em 2015.

2Entre as obras de carácter histórico do autor destaca-se aquela que aborda a violência política em Portugal após o 25 de Abril de 1974 (Carvalho, 2017).

3Com uma introdução de Rui Vieira Nery e as extensas e úteis notas de Pedro Castanheira.

4Como Domingos Abrantes, Vítor Dias ou Ruben de Carvalho.

5Na entrada sobre Amália que escreveu na Enciclopédia da Música em Portugal no Século xx, Ruy Vieira Nery refere-se brevemente ao apoio de Amália a presos políticos (Nery, 2010, p. 1134).

6O mais relevante terá sido a participação em 1958 no espetáculo de comemoração da fundação do Sporting Clube de Portugal, que ocorreu no estádio de Alvalade. Organizado poucas semanas depois das eleições presidenciais e do pedido das oposições para o cancelamento de todos os espetáculos públicos após a fraude que prejudicou a candidatura de Humberto ­Delgado, a iniciativa converteu-se numa manifestação de apoio ao regime. Pressionada pelos dois lados em disputa, e aparentemente desesperada, Amália acabou por comparecer, escoltada pela polícia política (pide). Acrescentam-se a este acontecimento, os versos apologéticos que escreveu a Salazar, quando este ficou doente em 1966 - doença que conduziria à sua morte em 1968 - e o apoio aos soldados portugueses a combater nas colónias, para quem cantou por diversas vezes, participando também num disco promovido pelo Movimento Nacional Feminino, em 1971.

7De que o militante comunista José Manuel Osório terá sido o mais manifesto.

8No sentido de James C. Scott (1990), o “registo público” descreve as relações de poder na esfera pública e o “registo escondido” a crítica a este estado de relações que ocorre fora desta esfera pública.

9A biografia que mais notavelmente desconstruiu o registo biográfico do génio é o trabalho de Norbert Elias sobre Mozart (Elias, 1993).

10Sobre o uso do conceito de campo para estudar as relações artísticas ver Bourdieu (1996).

11Amália atribuía a compleição do seu pescoço, forte, atarracado e pouco estético, aos múltiplos percursos que realizou com uma lata à cabeça, para ir buscar água: “fiquei com o pescoço pequenino e grosso”, mas forte, como o maxilar e o nariz, “um nariz que venha para baixo já dificulta. Porque isto funciona como caixa de ressonância. E realmente a minha é uma voz com uma certa vibração. Porque o vibrato é justamente a caixa que funciona como instrumento.”

12Como revela o desfecho da sua relação secreta com Eduardo Pitta Ricciardi.

13Antes de Amália, o Secretariado de Propaganda Nacional já havia convidado Maria ­Albertina e Ercília Costa para atuarem, respetivamente, na Exposição Internacional de Paris (1937) e na de Nova Iorque, em 1939. Rui Vieira Nery é também enfático a negar que a carreira de Amália se tenha devido ao regime (Nery, 2010, p. 441). Foi invocando o profissionalismo de Amália que Alain Oulman a defendeu quando, após o 25 de Abril, promoveu a publicação de uma carta em sua defesa - assinada por poucos - insistindo que a relação de Amália com o Estado português durante o regime anterior foi a de uma profissional que aceitou contratos, como muitos outros fizeram.

14Amigo e agente da fadista, que interveio por vezes no diálogo com o escritor.

15Miguel Carvalho cita uma entrevista onde Amália fala do falhanço desta entrevista: “O Manuel da Fonseca, de quem gosto muito, queria que eu dissesse coisas que eu não queria… Por outro lado, não gostou daquilo que eu queria dizer” (Carvalho, 2020, p. 217).

16Amália chegou a dizer que o facto de ter cantado muito para os emigrantes portugueses em França lhe fez mal à carreira, afastando-a de salas mais nobres (Santos, 1987, p. 162).

17O mesmo argumento, aliás, é extensível ao caso do futebol.

18Como, por exemplo, o respeitante à “Organização comunista do fado” produzido em 1939, e onde o nome de Amália era referido marginalmente.

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