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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.234 Lisboa Mar. 2020

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2020234.02 

ARTIGOS

O mundo social do ruído: contributos para uma abordagem sociológica

The social world of noise: towards a sociological approach

Carlos Fortuna1
https://orcid.org/0000-0002-3102-3710

1Centro de Estudos Sociais, Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra. Colégio São Jerónimo, Apartado 3087 - 3000-995 Coimbra, Portugal. cjfortuna@gmail.com


 

RESUMO

Um socialmente curioso percurso fez do ruído o incontornável ambiente sonoro da moderna urbanidade. O texto analisa a história do “mundo social do ruído” e mostra como com o tempo o seu inicial estranhamento deu lugar a uma generalizada condescendência e à aceitação social deste “som indesejado” como lhe chama Murray Schafer. Depois de argumentar como alguns artistas, no campo da pintura, da música e da poesia contribuíram para a acomodação social do ruído, o artigo dá conta de duas célebres investidas históricas antirruído, destacando o papel do filósofo alemão Th. Lessing e da médica norte-americana Julia Rice. Hoje, os efeitos sociológicos mais importantes do ruído são a enunciação da presença do “outro” e o silenciamento da dissidência. O texto termina remetendo para o reconhecimento do ruído como território de continuadas disputas sociais que convidam a aturada investigação sociológica.

Palavras-chave: mundo do ruído; modernidade; aceitação social do ruído; ação antirruído.


 

ABSTRACT

A rather curious social trajectory turned noise into the unavoidable sound environment of modern urbanity. The text analyzes the history of the “social world of noise”, showing how over time its initial estrangement gave way to widespread indulgence and social acceptance of such “unwanted sound” in Murray Schafer’s words. After sustaining the way some artists, in painting, music, and poetry contributed to the social acceptance of noise, the article reports two historical anti-noise initiatives led by the German philosopher Th. Lessing and by the American doctor Julia Rice. Today, the most sensitive sociological effects of noise refer to the recognition of the “other” and the silencing of dissent. The article closes sustaining the way that noise turns into a territory of persistent social disputes calling for accurate socio-logical attention.

Keywords: noisy world; modernity; social acceptance of noise; anti-noise action.


 

During long periods of history, the mode of human sense perception changes with humanity’s entire mode of existence. The manner in which human sense perception is organized, the medium in which it is accomplished, is determined not only by nature but by historical circumstances as well.

Walter Benjamin [1992, p. 216][1]

Introdução

Este é um texto de reflexão[2] sobre o modo como nos relacionamos socialmente com o ruído urbano. Inspira-se em diversos contributos das ciências sociais e humanas sobre a matéria, ao mesmo tempo que regista a escassez relativa da produção académica sobre o som e o ruído urbanos nas agendas nacionais de investigação socio-antropológica.[3] Reconhecida a relação das paisagens sonoras com a natureza e a evolução socio-histórica e socio-antropológica das cidades (Fortuna, 1999; Erlmann, 2004; Augoyard e Torgue, 2005; Bijsterveld, 2008; Labelle, 2010; Goddard, Halligan e Hegarty, 2012), o texto detém-se sobre os modos como a moderna cultura urbana se adaptou gradualmente ao “convívio” com os ruídos e acabou por os naturalizar e tornar rotineiros. No seu histórico desenrolar, este processo resultou na conversão do estranhamento e incomodidade do ruído em traço inelutável da convivência humana e sobretudo citadina, pesem embora os malefícios que o ruído acarreta para a saúde pública e o bem-estar dos indivíduos.

A brusca insinuação do ruído nos ambientes urbanos da era da industrialização e contemporâneos foi, no princípio, objeto de severa contestação cívica e de denúncias públicas que, a seu tempo, serão devidamente referenciadas neste texto. Mas o ruído recolheu também simpatias e sinais de afável acolhimento entre diversos setores sociais, com destaque para o campo da produção artística. O argumento central deste texto trata precisamente de como este espírito de recetividade cultural do ruído se alimentou da intervenção mediadora de alguns artistas (pintores, músicos, poetas), sem a qual, quiçá, o ruído teria permanecido associado a uma forte carga de negatividade e intolerância no contexto urbano-industrial do ocidente.

O ruído urbano é uma forma particular de qualificação do som da cidade. Enunciado sob esta fórmula universal e agregada de sons, no entanto, o ruído distingue-se de numerosas outras sonoridades correntes no quotidiano que tendem a ser comumente tratadas como “paisagens” sonoras, ou ambientes acústicos de natureza diversa (Schafer, 1977, pp. 7-10), para ganhar uma especificação e individualidade própria, quando referidas à estridência ou dominação do seu “barulho” ou volume auditivo.

A clarificação do que constitui o ruído urbano moderno impõe uma referência à distinção socio-histórica dos sons dominantes na contemporaneidade urbana e aqueles que tipificaram os territórios e tempos medievais. Tal destrinça é matéria de ampla investigação e, sumariamente, diz respeito às fontes dos ruídos pré-industriais que, sendo fundamentalmente diurnos, se faziam pautar pela presença da voz humana, incluindo os “gestos sonoros” dos vendedores de rua e os ocasionais festejos e trupes passageiras de músicos e dançarinos (Nery, 2008). Ao seu lado, as ressonâncias localizadas dos ofícios, que então permitiam estabelecer uma identificação profissional determinada com a sua origem, ocupavam também um lugar de destaque neste cenário sonoro pré-industrial. O mesmo sucedia, por fim, com o repetido ressoar dos rodados das carroças e os célebres avisos dos sinos e campanários que sinalizavam e impunham a cadência de quase todos os rituais civis e religiosos das localidades e se tornariam motivo de acesas polémicas na França pós-revolucionária (Massin, 1993; Corbin, 1994 e 2016; Fortuna, 1999; Balaÿ, 2003; Nery, 2008; Schwartz, 2011; Magalhães, 2014).

A cidade da era industrial tornou-se, muito ao contrário, o espaço acústico por excelência dos sons metálicos e maquinais, gerados por instrumentos da indústria e motores de combustão que alteraram significativamente o anterior espectro sonoro. Nela amplificou-se também a intensidade acústica do novo ambiente, ao ponto de anular a antiga paisagem sonora e converter os significados dos antigos “barulhos” em marcas sonoras de um nostálgico passado (Casaleiro e Quintela, 2008). Com a entrada em cena de novos meios e agentes sonoros (fábricas, comboios, automóveis) opera-se uma verdadeira revolução sonora - algo semelhante ao que no campo da epistemologia se pode chamar de novo paradigma dos sons urbanos - em que se multiplicam, complexificam e intensificam as sonoridades quotidianas até ao ponto de se perder a cristalina identificação das fontes sonoras de outrora e a cadência da sua ocorrência.

É esta renovada paisagem sonora, marcada pela presença contínua e ativa de sons simultâneos, amalgamados e de alta intensidade acústica que confere legitimidade ao uso moderno do vocábulo “ruído”.[4] Este é também o contexto que autoriza a designação de “mundo social do ruído” para significar a omnipresença do ruído que dá ao globo uma tonalidade ambiental distinta, a que as sociedades modernas se adaptaram e com que passaram a conviver. Com o mundo social do ruído não se define apenas o contraste com o ambiente sonoro do passado, pois que reclama também algumas considerações sobre a dimensão ontológica do ruído.

Considerações ontológicas e sociais do ruído

Como se retira da brevíssima referência histórica anterior, o ruído não se restringe à intensidade sonora dos sons circulantes no quotidiano e está além dela. A esta intensidade junta-se a continuada e caótica presença e simultaneidade de estridentes sonoridades que constituem “ruído” mesmo em situações de baixa intensidade acústica. Exemplo desse aparente paradoxo é o simples bater da porta, ou o barulho da máquina de cozinha, ou o som da televisão ou a vozaria da rua e a conversa entre vizinhos que, combinados com os sons agudos e disformes do quotidiano representam uma possível agressão à audição humana, geradora de desconforto, irritação ou mesmo pânico.

No mesmo sentido, o ruído pode mesmo resultar da repetição continuada de sons fracos, como escutar o descer das escadas do prédio ou o ensaio musical do vizinho que, se rececionados de forma obsessiva, “permanecem no ouvido” mesmo depois da sua escuta real. Jean-François Augoyard e Henry Torgue designam esta disfuncionalidade auditiva de “remanência” e veem nela uma potencial causa de surdez seletiva que se sobrepõe e faz mesmo dissipar sonoridades mais ou menos banais (Augoyard e Torgue, 2005, p. 87). A receção doentia de sons, ainda que triviais e de moderada intensidade, como é por exemplo o acufeno, pode dar origem a uma colonização e apagamento de outros sons presentes no ambiente em redor que, por sua vez, se faz notar na redução das condições propícias à interação social dos sujeitos (Voegelin, 2010).

Retiram-se duas indicações sociológicas desta referência à exclusão ou silenciamento de uns sons por outros. A primeira diz respeito ao facto de o ruído ser subjetivado e, em consequência, não ser igualmente percecionado como tal, nem produzir os mesmos efeitos. O ruído não é um dado objetivo e diz sobretudo respeito às condições individuais da sua audição, o que obriga a reconhecer efeitos psicossociais desiguais provocados pela exposição dos indivíduos ao ruído urbano e pelos também díspares lugares e formas da sua receção.

A segunda indicação refere-se à inquietante escuta que “permanece no ouvido” separada da sua fonte geradora. O som revela-se deste modo virtualmente desvinculado do ato material da sua produção e o seu reconhecimento opera-se por via sensorial ou imaginativa dos sujeitos em busca da materialidade que possa justificar o desconforto emocional gerado por sons “independentes”, como são os sons sem causas identificáveis, ou provocados por causas ausentes que, não raro, são considerados “perigosos” (Hegarty, 2007; Keizer, 2010; Hendy, 2013). Estes “sons fora do lugar” (Goldsmith, 2015) têm sido abundantemente tratados por estudiosos das sonoridades e arrastam consigo curiosas representações sobre a perigosidade do ruído e o funcionamento do quotidiano urbano, e têm suscitado reflexões acerca do som gravado, que serão referidas mais adiante no texto.

Enquanto amálgama auditiva obsessiva ou descoordenada, o ruído qualifica a “bruma” sonora do quotidiano. Em regra, trata-se de uma classificação agressiva e, nesse sentido, negativa, por estimular diferentes sentimentos de mal-estar, repulsa ou perigosidade social. É esta ação de negatividade gerada pelos sons sobre o equilíbrio mental e psicológico dos indivíduos que leva Murray Schafer, no seu estudo seminal, a apontar o ruído como “som indesejado” (Schafer, 1977, pp. 182-183).

O que Schafer considera ser o som “indesejado” é objeto de várias interpretações e sentidos, como é o caso dos estudos de saúde pública e auditiva que tratam o ruído como ameaça patológica.[5] No que o presente texto pretende abordar, interessa sobretudo referir o facto de a perspetiva médica da perigosidade do ruído surgir associada a políticas públicas de ordenamento territorial. Neste particular, o ruído torna-se objeto de preocupação técnica sobre o ambiente, quando atinge o limiar dos 55 decibéis (dBs), como ocorre em diversas situações de exposição urbana continuada ou repetitiva (WHO, 2011; Babisch, 2002).

Em recente mapeamento da poluição sonora[6] - acima dos 50-55 dBs - em cidades europeias com mais de 100 mil habitantes, a circulação rodoviária destaca-se como sendo a principal fonte emissora de ruído. Segundo o mesmo da European Environment Agency, o ruído rodoviário atinge uma população urbana estimada de 125 milhões habitantes, claramente acima do impacto gerado, por ordem decrescente, pela sonoridade ferroviária, aérea e industrial (EEA, 2014, p. 18).[7] Nas proximidades dos aeroportos - a partir da avaliação do impacto sonoro do aeroporto de Varsóvia (idem, p. 21) - o referido estudo regista níveis situados entre os 70 e os 74 dBs, ainda que com incidência sobre um número mais limitado de habitantes. Do ponto de vista das políticas públicas e de combate ao ruído, tão elevado nível de ruído é considerado lesivo do bem-estar social, pelo que reclama a regular monotorização da saúde auditiva, sobretudo em edifícios sensíveis (escolas, universidades, hospitais, lares), em particular os localizados nas proximidades das grandes infraestruturas de transporte aéreo.

Sem pretender desviar-me do argumento central deste texto, é interessante fazer menção a duas outras notas genéricas respeitantes aos efeitos gerados pelo ruído na sociedade moderna e as respetivas áreas da investigação e da ação. Em primeiro lugar, refiro as dimensões relativas à relação do ruído e do som com a organização e a morfologia dos espaços urbanos. Esta questão tem sido matéria abordada na perspetiva dos arranjos espaciais e os tipos de construção de lugares de exposição de sons, como sejam os espaços públicos urbanos, auditórios, salas de espetáculos, etc. O assunto tem suscitado numerosas reflexões acerca das condicionantes arquitetónicas da audição que podem ser consultadas, entre outras, nos trabalhos de Rowland Atkinson e de Barry Blesser e Linda-Ruth Salter (Atkinson, 2007; Blesser e Salter, 2007).

A segunda vertente da abordagem do ruído que deixo assinalada é a dimensão jurídica e as medidas de controle administrativo das sonoridades excessivas. Abordaremos, en passant, esta questão mais adiante, fazendo referência breve ao panorama das reclamações individuais junto de tribunais ou outras instituições municipais encarregadas da regulação do ruído, como as provedorias municipais do ambiente.

Com a abordagem sociológica do ruído que se ensaia aqui, pretende-se descrever o longo percurso de normalização do ruído e o efeito colonizador exercido sobre as sonoridades triviais das paisagens sonoras espacialmente situadas nos espaços da urbanidade. A ideia central é a de registar o efeito de desgaste que o ruído representa para as sociabilidades urbanas, ao interferir sobre a inteligibilidade de conversações, discursividades e linguagens urbanas, com redução do sentido comunicativo interpessoal e perda da identidade vocal e sonora das comunidades e dos lugares. Resulta assim essencial conservar a destrinça entre as sonoridades que respeitam as regras convencionais da relação comunicativa entre emissor e recetor e o ruído moderno que as ameaça e leva a ter em conta que a alternativa ao ruído não reside na busca do silêncio, mas na comunicação sonora multivocal direta dos e entre os sujeitos.

Os primórdios do mundo social do ruído

Às 15:00 horas do dia 16 de março de 1972, iniciou-se a demolição do projeto residencial Pruitt-Igoe (St. Louis, Missouri, EUA), datado de 1956 e composto por 33 torres de 11 andares cada. Pouco depois, o arquiteto urbanista e historiador da arquitetura, Charles Jencks, declarou que naquele preciso instante começara a pós-modernidade e assinalava-se o fim da arquitetura modernista (Jencks, 1977, p. 9). É um desafio enorme procurar estipular o momento em que um dado movimento cultural, uma tendência ou uma moda se iniciou e instituiu, mesmo quando, simbolicamente, como faz Jencks, se pretende identificar um marco temporal que estabeleça divisórias analíticas e facilite a compreensão de processos sociais.

Adotando, por analogia, o “método Jencks” de demarcação simbólica de tendências arquitetónicas e na busca de um marcador significativo que estipule uma mudança marcante nas modalidades de estruturação das sonoridades globais, sugiro que o mundo social do ruído, terá tido início às 10:20 horas do dia 27 de agosto de 1883. Foi esse o instante da explosão da pequena ilha vulcânica de Krakatoa, localizada no que é hoje o arquipélago indonésio. O impacto sísmico foi devastador, como foi desmedida a libertação de energia gerada pela explosão e os arrasadores tsunamis sucessivos que se seguiram ao longo dos oceanos Pacífico e Índico. Por seu lado, o impacto sonoro terá sido colossal, a julgar pelos registos disponíveis que referem o facto de a erupção ter sido escutada nas Ilhas Maurícias, localizadas a mais de 4,000 quilómetros de distância (Winchester, 2004; Goldsmith, 2012, Cox, 2014).[8]

Tão memorável impacto natural - que não elimina a experiência anterior de ruídos - serve o intuito expositivo de demarcação temporal do início de uma era nova em que a presença regular do ruído no mundo moderno ganha destaque entre as múltiplas paisagens sonoras. Com o findar do século XIX, o globo foi ficando paulatinamente sujeito às mais diversas modalidades de produção de ruídos que o rudimentar capitalismo industrial de então se encarregava de gerar. Tal como Walter Benjamin sugere na epígrafe que encima o texto, ao impacto da natureza (erupção de Krakatoa) veio juntar-se a circunstância socio-histórica (o industrialismo capitalista de finais do século) que, conjugados, modificaram profundamente as condições de existência humana e os modos de perceção da realidade.

Em breve, as cidades começariam a multiplicar-se e a crescer aceleradamente, acompanhando o inusitado e desigual ritmo de desenvolvimento industrial, dos transportes e das tecnologias (Braun, 2000; Morton, 2004). Perante tão incontornável transformação socioeconómica do capitalismo, as sonoridades humanas, naturais e animais que antes marcavam a paisagem sonora do planeta assistiram a uma gradual redução do seu impacto social, fruto da crescente inexpressividade e da indiferença coletiva com que passaram a ser rececionadas. Sob a liderança euro-americana das grandiosas metrópoles industriais, dotadas de infernais máquinas geradoras de sons metálicos, dos motores e da maquinaria moderna, o mundo social do ruído dava os primeiros passos nesta sua nova trajetória civilizacional. A ação humana deu sequência à nova cultura pós-natural do ruído e, com ela, foram os próprios sujeitos que se modificaram, tratando de alterar os níveis de tolerância psico-sensorial com que acabariam por converter o ruído em cenário habitual e quase inexpressiva sonoridade ambiental.

Trazido pela expansão capitalista e o colonialismo, o novo ruidismo metálico alastrou a outras paragens mais a Sul e globalizou-se. Hoje, a globalização do ruído é um traço indelével do mundo marcado pela simbólica herança cultural de Krakatoa. A paisagem, sobretudo a paisagem sonora que nos ocupa aqui, ao contrário do fenómeno natural, não diz respeito à fisicalidade do planeta, por ser um modo de representação cultural do mundo e a sua incessante evolução. Desde os seus primórdios ruidosos, quantos decibéis foram e continuam a ser acrescentados à paisagem sonora global a cada ano que passa? A resposta tem um recorte técnico de medição quantitativa do volume do fenómeno sonoro e sua propagação, mas envolve sobretudo a dimensão fenomenológica, qualitativa, sociocultural e política dos agentes emissores (Goddard, Halligan e Hegarty, 2012; Hainge, 2013) que passamos a abordar.

A abordagem sociocultural do ruído

O ruído é cultural no sentido em que diferentes grupos sociais, com desiguais competências e capacidades auditivas o processam e reagem de forma diferenciada. São diversos os estudos que registam a dupla associação simbólica do ruído ao exercício do poder ou aos medos e inseguranças sociais. Os estrondos naturais, como o trovão, combinaram-se com os antigos atos de veneração sagrada como exemplos ilustrativos dessa associação em que, a um tempo, o clamor dos sinos a rebate e os sons da natureza eram a mais destacada fonte do temor (Schafer, 1977, p. 51 e 76; Bijsterveld, 2001, p. 45; Hendy, 2013, p. xiii). Modernamente, para alguns, tal registo passou a ser simbolicamente representado pelo som das sirenes e os estrondos da guerra (Buch, 2016).

Inversamente, note-se a pertinência cultural do ruído através da sua ausência. Sinal de recolhimento ascético, a ausência de ruído conserva um valor simbólico de quietude e disciplina comportamental que, como Norberto Elias salienta, requer aprendizagem e poder (Elias, 1989). Quando, em certas ocasiões de divertimento, os portugueses reclamam “Silêncio!” anunciando o início de uma auscultação artística ou ação pedagógica, esse silenciamento pulveriza e fragmenta as audiências, convertendo-as num aglomerado de ouvintes individualizados (Sterne, 2003, p. 160).

A inescapável e, por vezes também afável, omnipresença do ruído urbano e a sua perceção intimista autorizam pensar no desconforto que pode suscitar a sua ausência ou, por outras palavras, na aversão generalizada que o silêncio provoca. Em ambientes sonoros moderados, dir-se-ia, quase silenciosos, estranha-se a ausência do som e do ruído, como demonstra o prosaico ato de ligar o rádio ao entrar no próprio carro (Bijsterveld et al., 2014). Nas vivências urbanas de hoje, os “silêncios” do dia-a-dia estão para o equilíbrio emocional dos sujeitos como a avaria das máquinas está para o funcionamento de todo o sistema socioeconómico. De modo semelhante à máquina que para e se silencia repentinamente, também a ausência do ruído urbano pode induzir uma sensação de vazio e desconforto pessoal.

O ruído ganha uma dimensão social por envolver competências auditivas desiguais próprias da “disposição” dos sujeitos (habitus) para uma apreciação subjetiva condicionada pela ação prática da audição (Bourdieu, 2000). Se “sinto logo existo”, como admite o neurocientista António Damásio, também podemos aceitar que escutar é existir, o que converte o ato da escuta em “utensílio racional”. Tal hipótese de conversão, contudo, seria questionada por Georg Simmel que atribuiu ao sentido da audição um estatuto de menoridade ontológica e social por ser passivo e, contrariamente ao que sucede com a visão, não poder ser interrompido ou desviado de um campo ou espaço acústico para outro (Simmel, 1981). Simmel, portanto, pretende levar-nos a reconhecer que nada se pode fazer pelo ouvido, o que dispensaria a análise sociológica do ruído e convidaria a condescender com a incontornável cultura auditiva do quotidiano (Rodaway, 1994; Macnaghten e Urry, 1998).

A presença natural do som e do ruído interfere com a tecnicidade quotidiana do corpo (Mauss, 2005) e, ao fazê-lo, condiciona a própria “condição de existência” dos sujeitos na medida em que os “acontecimentos” sonoros, seguindo a sugestão do filósofo canadiano Brian Massumi, modelam por via sensorial a expressão dos sentimentos e dos afetos humanos (Massumi, 2013). Tal equivale a reconhecer que os ruídos urbanos se impõem com veemência aos indivíduos, em vez de serem estes que controlam os efeitos dos primeiros, o que deixa clara a natureza cultural das paisagens sonoras que envolvem e condicionam os comportamentos dos sujeitos.

Argumentar que o ruído é parte condicionante da “condição de existência” humana, implica que a sua história social é uma longa narrativa de contínuos ajustamentos auditivos às modernas condições de vida. Recorro ao exemplo que David Morley oferece da espreitadela (glance), como modo prevalecente de ver TV, em que é o som que organiza a visão (Morley, 1995). Em cafés, restaurantes, bares, ou shoppings, como também nos espaços domésticos, a TV permanece frequentemente ligada sem cativar o olhar das pessoas que apenas lhe concedem atenção (visual), de acordo com momentos marcantes da sonoridade emitida. A conversa entre clientes, tal como muitas das tarefas domésticas correntes, prosseguem sem interrupção para serem suspensas apenas quando algum “alarde” sonoro impele o olhar para o ecrã. Nestes casos, pode-se afirmar com Morley, que a TV é acima de tudo um objeto sonoro e não visual, o que remete para a regular imersão dos sujeitos no background da poluição sonora da cidade, sem interromper a atividade de cada um ou a sua interação com outros (idem).

O ruído tem uma história própria que não tem expressão isoladamente, mas apenas em contexto ou processo de relacionamento com outros sons e a intervenção humana. A história do ruído é, portanto, social e ganhou uma renovada dimensão na era da urbanidade moderna e industrial, quando o som das cidades modernas se combinou, substituiu e mesmo eliminou o conjunto dos velhos sons pré-industriais que são percebidos hoje como manifestações de “resistência” de sonoridades em agonia (Fortuna, 1999; Sterne, 2003; Bijsterveld et al., 2013; Corbin, 2016).[9] É neste cenário que se desenrola o que atrás designei por paradigma dos sons urbanos que retirou à natureza e à vocalidade humana a prerrogativa do ruído. Hoje é difícil encontrar espaços e urbanidades livres da presença dos sons e do ruído.

Em novembro de 2017, por exemplo, as londrinas Oxford Street e as estações de metropolitano de Oxford Circus e Bond Street foram palco de inusitado temor coletivo gerado pelo clamor atribuído a um presumido tiroteio ou rebentamento nunca confirmados. A dificuldade em identificar a causa do sonante estrépito - situação impensável na era das sonoridades arcaicas - pode suscitar representações de descontrole e perigo social, mesmo entre sujeitos, como os urbanitas londrinos, profunda e longamente imergidos em ambientes de presença constante de ruídos, o que fortalece a hipótese de ser através da audição do ruído ou, inversamente, pela sua paradoxal suspensão ou ausência, que o pânico se manifesta em primeira mão.

A impossibilidade já enunciada de identificar hic et nunc a fonte emissora do ruído urbano coloca a hipótese do desconforto gerado pela sua desterritorialização. Tal situação é o inverso da apropriação sonora dos espaços públicos conseguida através do débito sonoro de níveis elevados de decibéis. A geração desses ruídos é conseguida a partir de dispositivos fixos, como os altifalantes geralmente utilizados na publicidade comercial, ou das colunas de som portáteis, ostensivamente transportadas por transeuntes entregues a manifesta ampliação pública de si, exercitando, sob as mais diversas instâncias performativas, o chamado “imperialismo sonoro” (Schafer, 1977, p. 77). Ambas as situações - desterritorialização e apropriação sonora dos espaços - são geradoras de graus variáveis de isolamento e individuação dos sujeitos em espaços públicos, reiterando a modalidade mais elementar de estratificação social que existe entre produtores e recetores de ruído.

Uma abordagem “Regressivo-Progressiva” do ruído

Como sugerem as relações destas situações com a história e a cultura urbanas, a meu ver, a análise sociológica heuristicamente mais relevante dos efeitos sociais da bruma ruidosa da cidade encontra-se exposta em hipóteses discutidas por Henri Lefebvre a propósito da dimensão sensorial do espaço público. O espaço sensorial de Lefebvre envolve a mobilização inconsciente de capacidades cognitivas, incluindo a avaliação dos estímulos sensoriais com que os sujeitos avaliam e negoceiam comportamentos, imagens, discursividades, presenças e reflexos no espaço público (Lefebvre, 1991, pp. 210-212).

Assim, a integração da componente sonora no âmbito teórico do espaço sensorial lefebvriano conduz a admitir que os ruídos urbanos tanto geram empatia, consenso e aproximações sociais, como, dialeticamente, promovem distanciamentos, dissidências e conflitualidades. De igual modo, tal como o autor de A Produção do Espaço tornou claro no tratamento da ritmanálise, os sons e os ruídos urbanos constituem um dispositivo metodológico que, embora negligenciado, como fizera Simmel, se revela ser fundamental para a compreensão da própria dinâmica urbana e social (Lefebvre, 2004).

A teorização de Henri Lefebvre traduz um vigoroso contributo para reforçar a dimensão sensível da sociologia, ao converter a escuta sociológica em dispositivo de reconhecimento dos tempos e dos modos como indivíduos e grupos sociais demarcam e disputam a sua presença no domínio público: o que é um desconfortável ambiente ruidoso para uns, pode ser mera musicalidade ambiental e funcional para outros. Apesar de a obra de Lefebvre ser toda ela, principalmente, um exercício teórico e filosófico, não deixamos de registar alguns preceitos metodológicos que, sem fazer do autor um metodólogo, acompanham a sua proposta de desvendamento histórico-sociológico da realidade urbana (Fortuna, 1999). Estão neste caso as referidas reflexões sobre a metodologia ritmanalítica, assim como a defesa do método “regressivo-progressivo”.

O método “regressivo-progressivo” lefebvriano é largamente subsidiário do mecanismo de transdução que o autor considera ser um expediente lógico de construção de um objeto teórico possível, conseguida a partir de informações fragmentares e avulsas retiradas do real. Para o autor, o sentido regressivo deste exercício de construção teórica “supõe um feedback incessante entre o quadro conceptual utilizado e as observações empíricas” (Lefebvre, 2012, p. 111), pelo que fazer regredir diacronicamente a análise da atualidade é um procedimento básico para identificação dos traços essenciais da contemporaneidade e de como esta foi sendo estruturada historicamente.[10] Compreende-se assim a motivação para sustentar no método de Lefebvre, a busca de narrativas e registos sonoros do passado, como é o caso de grande parte das pesquisas atuais sobre a memória coletiva (Bijsterveld e van Dijck, 2009; Samuels et al., 2010; Drozdzewski e Birdsall, 2019).

Com base nesta pressuposição teórico-metodológica, recorre-se a uma tentativa de explicação do facto de o ruído urbano estar hoje totalmente naturalizado ao ponto de ser apreendido de modo inconsciente e só excecionalmente causar desconforto ou repulsa. É na historicidade evolutiva do ruído urbano e na gradual e correspondente disciplinação do comportamento humano, que reside a explicação para esta generalizada acomodação social ao ruído.

Como exercício de regressão histórica à atualidade sonora, coloca-se a hipótese de o consentimento moderno ruído urbano ter sido parcialmente fruto da ação mediadora das artes e dos artistas. Em paralelo às críticas sociais e políticas, a prática artística amenizou, em diversas circunstâncias, a negatividade do ruído e, pontualmente, foi mesmo expressão de exaltação vanguardista da modernidade.

Em paralelo, assinala-se também a dimensão política decorrente da universalização deste mundo social do ruído. Destaca-se neste plano, o processo de globalização das sonoridades enquanto efeito derivado da expansão do capitalismo industrial e do colonialismo e das suas modalidades de consumo. A invenção da música gravada, por exemplo, foi um dos ingredientes mais acutilantes da homogeneização sonora do globo, no sentido em que facilitou a propagação “sem fronteiras” de variados estilos musicais e da sua eventual fusão (Morton, 2004), circulando hoje com incomensurável destreza na internet e nas redes sociais. Dito isto, deve-se reconhecer que em regiões menos desenvolvidas dos Suis globais, a paisagem sonora hegemónica dos Nortes do globo, valendo-se do mercado globalizado, continua a limitar as “marcas musicais” locais e constitui um poderoso obstáculo à criação musical própria e à sua difusão internacional. Contudo, devemos reconhecer, como assinala Alex Ross, que foi precisamente a técnica da gravação musical que constituiu a grande oportunidade para “os músicos negros nas margens da cultura - nomeadamente aos cantores de blues do delta do Mississippi - se fazerem ouvir com apenas a sua voz e uma guitarra” (Ross, 2011, p. 60) e, alcançar assim, a ribalta musical do mundo, procedendo como outros ao que, apropriadamente, Michael Denning chamou um processo de “descolonização do ouvido” que em muitas situações “precedeu e alimentou a descolonização política” (Denning, 2015, p. 140). Nas últimas décadas, a internet, as redes sociais e a globalização do mercado fonográfico ampliaram esta oportunidade de reconhecimento de alteridades sonoras ao facilitarem a circulação dos produtos musicais, ainda que não tenham sido eliminadas em absoluto as barreiras entre suis e nortes musicais, pelo que continua a reproduzir-se o sistema de precárias condições de circulação global da música oriunda, das “margens da cultura”, como Alex Ross se expressa.

O que se aplica à música não tem equivalência a outras “marcas sonoras” de cidades e urbanidades do Sul global. Na verdade, são várias as geografias sociais periféricas onde permanecem ativas várias expressões de “resistência” sonora, como o riso, o humor, o murmúrio e o segredar em público. Em muitas urbanidades do Sul global, o recurso à cultura da oralidade acaba por adquirir uma centralidade apreciável nas interações face-a-face que contrasta com regressão sofrida nos ambientes urbanos do Norte global, onde a moderna tecnologia de comunicação tem vindo a silenciar os contatos pessoais diretos (Triulzi, 1999; Erlmann, 2004; Volcler, 2011; Turin, 2012).

Mediações artísticas do ruído

A ausência de denúncias organizadas do ruído urbano em algumas sociedades deve-se a uma espécie de convite e aceitação tácita dos efeitos ruidosos das manifestações e festividades civis, políticas e religiosas inseridas no ambiente que venho designando por mundo social do ruído. Por isso, o recurso à esfera das artes permite sustentar a hipótese do seu papel mediador no processo de aclamação e naturalização social do ruído. Sem comprovação empírica desta função mediadora das artes, o pressuposto adotado é o de que a pujança de muitas manifestações artísticas favoráveis ao ruído não deixou de confrontar posicionamentos adversos à sua ocorrência e propagação.

Uma primeira denúncia artística do caráter perturbador dos ruídos pré-industriais é o bem ilustrativo exemplo de The Enraged Musician (Figura 1), tela datada de 1741, da autoria do britânico William Hogarth (1997-1764). A mensagem de Hogarth é a da incompatibilidade manifesta entre a concentração requerida pela produção artística e o ruído gerado pela populaça na rua.

 

 

Além do músico enfurecido pela agitação ruidosa da rua, Hogarth convida-nos a observar mais de perto a composição social dos causadores da incomodidade do artista - a criança que chora ao colo da mãe, o menino tocando o seu barulhento tambor, o cão que ladra, o homem que faz soar a corneta - e que deixa atrás de si a marca do som indisciplinado, altamente perturbador da criatividade do artista. A celebração deste antagonismo que William Hogarth regista tem o traço da perturbação causada pela presença ruidosa de membros das classes populares junto ao ambiente requintado de uma casa da elite. Tal significa que, do ponto de vista sociológico, o quadro de Hogarth reitera o dictum popular que aponta ao “ruído dos outros” a verdadeira origem do mal estar emocional dos sujeitos (Attali, 2001, p. 195).[11] Registe-se, por fim, a ausência de quaisquer vestígios de máquinas ou motores, pelo que esta representação da paisagem ruidosa permanece profundamente medievalista, com origem direta na ação humana.

As primeiras décadas do século XIX, quando se acentuaram as novas sonoridades, foram os tempos em que académicos como Georg Simmel ou Theodor Lessing se associaram a este tipo de protesto e se insurgiram contra o risco de desequilíbrio psico-emocional vigente nas grandes cidades. Com a abordagem de Simmel abriu-se uma linha nova de reflexão sociológica, focada na centralidade do corpo e dos sentidos e na sua relação com o espaço da cidade, que seria desenvolvida por outros estudiosos da psico-sociologia.[12] Quando Simmel se entregou aos seus primeiros ensaios sobre a agitação da vida urbana estava precisamente a pensar na intensidade de estímulos sensoriais que desafiavam os moradores da cidade e que constituíam uma das “novidades” da sociabilidade metropolitana. Os estímulos sonoros dispersos eram parte da preocupação dos citadinos que buscavam refúgio na indiferença social e adotavam, por assim dizer, a surdez coletiva como dispositivo de relacionamento social em espaços públicos e antídoto contra a previsível perturbação psico-emocional (Simmel, 1997).[13]

O registo sociológico de Simmel desenrola-se em torno de uma problemática totalmente diversa da perspetiva que Max Weber virá a adotar e que faz derivar a sua leitura das sonoridades para o domínio de uma lógica da racionalidade, em tudo semelhante à que presidira ao desenvolvimento do capitalismo europeu analisado nos clássicos Economia e Sociedade e A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Ao contrário do que se verifica com Georg Simmel, para Weber, o ruído urbano é objeto de análise feita a partir da correlação existente entre a produção musical e artística e os meios técnicos e instrumentais de suporte.

No ensaio sobre a sociologia da música, escrito supostamente no ano de 1911 e editado postumamente em 1921, Max Weber adota uma aturada perspetiva comparatista entre experiências musicais modernas e ocidentais com outras antigas e extraeuropeias, que denota assinalável domínio da teoria e da história da música como também na etnomusicologia (Weber, 1995). O ensaio de Weber dá relevo, por um lado, ao encadeado de circunstâncias que permitem o surgimento da música “racionalizada” na Europa e, de outro lado, a uma detalhada história técnica, social e económica dos instrumentos musicais, nomeadamente dos instrumentos de cordas, e do esforço contínuo da sua melhoria (Pedler, 2016, pp. 80-85). Quanto aos fundamentos racionais e sociológicos da música, Weber atribui à materialidade técnica dos instrumentos um destaque que reduz o papel da volição e da capacidade artística dos compositores e o virtuosismo dos executantes. Para Weber, a sociologia empírica da música é reveladora da ação racional e dos fundamentos lógicos da produção material e da lógica da organização que se estende aos próprios meios e instrumentos musicais, o que autoriza falar do seu “materialismo musical” (Waizbort, 2008).

A atenção que Max Weber concede à sociologia empírica da música constitui uma valiosa pista interpretativa acerca da produção musical moderna. Não sendo matéria que pretenda desenvolver neste texto, limito-me a registar a inerente correlação, que Weber por certo reconheceria, entre a criação musical e alguns desenvolvimentos tecnológicos do último quartel do século XIX - em que sobressai o fonógrafo de Thomas Edison - e os posteriores avanços da indústria fonográfica, incluindo os aparelhos eletrónicos (Morton, 2004; Abreu, 2010; Katz, 2010; Goddard, Halligan e Hegarty, 2012). A música gravada, por exemplo, tornou manifesto o gap entre o som produzido, que só se torna audível com recurso a algum tipo de altifalante que o propague. Em resultado, o som passa a poder viajar, sendo que essa desterritorialização o desvincula do contexto de produção instrumental e socio-temporal de origem. Deslocalizado e desvinculado organicamente dos contextos e da materialidade empírica da sua produção, o som, mormente o som da música, impõe aos ouvintes um investimento emocional que os impele a (re)situarem-se no mundo e lhes oferece um novo sentido de coerência identitária (Nancy, 2007; Castanheira, 2012; Wisnik, 2014). É esta nova consciência situada de si, obtida por mediação musical e tecnológica, que se concretiza na “viagem” imaginada que a música empírica estimula.

O mundo dos sentidos ou da utopia para que o som e a música podem transportar os seus recetores é o mais amplo que se pode imaginar e depende de um leque variado de fantasias e de circunstâncias pessoais e estruturais. Para mencionar apenas um contributo específico nesse sentido, refiro o notável Ocean of Sound de David Toop que põe em evidência como o mundo cultural dos significados da música se plasma em ambiente sonoro especial, como o autor o designa. Este ambiente é o tempo e o espaço da reinterpretação disputada dos sentidos da música - e, acrescentaria, também do ruído - sejam eles divisões de género, linguagens étnicas, fraturas entre alta e baixa cultura, ou fusões de estilos musicais (Toop, 1995). Assim, quando dá conta da simpatia de Claude Debussy pelo gamelão balinês, David Toop põe em evidência o modo como esse ambiente sonoro exemplifica um criativo bricolage de livres sonoridades musicais e estilos culturais (idem, pp. 16-17).

Retoma-se com isto o ambiente sonoro das cidades de Simmel, para voltar a insistir no paradoxo da sua sociologia dos sentidos que menoriza a audição e privilegia a cultura visual na interpretação da realidade social, porventura em resultado do alheamento do autor face à dimensão empírica e material da produção musical (Simmel, 1981, p. 229). Com a marginalização da audição, Simmel contribuiu para suavizar os efeitos negativos dos ruídos sobre o sujeito humano. Desse ponto de vista, parece aceitável afirmar que, nos seus primórdios, a ciência social foi uma das vias eruditas que mais contribuiu para que o estranhamento inicial do ruído urbano-industrial tivesse sido gradualmente menorizado e in-corporado enquanto estímulo sensorial, supostamente descarregado da sua negatividade.

Entretanto, a visão sociopsicológica simmeliana que afasta o ruído do universo dos distúrbios perturbadores do bem-estar, seria contrariada por numerosos setores artísticos e culturais na Europa da época, com destaque para algumas ações criativas dos princípios do século XX. Para melhor entender a gradual acomodação à nova expressão ruidosa das cidades pode-se sugerir a equiparação desta ao estranhamento social causado pela presença física de desconhecidos, com que os citadinos tiveram de “negociar” e, mais apropriadamente, repartir a sua condição ontológica e social. Nesse exercício analógico, ao ruído urbano caberia a condição de um “outro” recém-chegado, tanto antropológico como político, cuja presença se revela estranha até que essa identidade “outra” seja objeto de total inclusão no mosaico urbano das diversidades socioculturais.

Vanguarda artística e acomodação ao ruído

Como ficou implícito antes, a ação de inclusão social do “outro” som urbano foi em grande parte facilitada pelo trabalho artístico. Neste domínio, é essencial a referência ao trabalho do italiano Luigi Russolo (1855-1947). Russolo foi um pintor futurista que se converteu à produção do que ele próprio chamou ruído musical que haveria de elogiar sem limites, no seu tão polémico quanto aplaudido manifesto, intitulado A Arte dos Ruídos (Russolo, 2013).

Luigi Russolo aclama o advento da cultura ruidosa da cidade e o potencial sonoro das máquinas, que faz sobrepor aos sons habituais da interação humana que, para ele, sinalizavam tão-só a presença do passado ruralista e arcaico. Para Russolo, o ruído musical constitui, em si, um sinal vigoroso de inovação e progresso, ao serviço do enriquecimento da composição musical e da sua indispensável adequação aos tempos modernos.

É assim que, em A Arte dos Ruídos, Russolo exorta a novidade trazida pelos novos mecanismos e instrumentos dos “anos vertiginosos” dos princípio do século XX (Blom, 2015, pp. 354-348), que banalizam o que antes não ia além de sonoridades rústicas, pouco elaboradas, corriqueiras e destituídas de qualquer dignidade estética e artística. Ao invés, Russolo, no melhor estilo futurista que ambiciona “revolucionar por completo a sensibilidade humana” (Marinetti, 1987, p. 35), declara que

a máquina cria hoje um tão grande número de ruídos variados que o som puro, pela sua pequenez e a sua monotonia, já não provoca emoção alguma [Russolo, 2013, pp. 8-9].

Ao lado dos sons dos motores, das máquinas das fábricas e dos aviões, automóveis e comboios, foi também a vivacidade da rua, frequentemente referida por “alma musical das multidões”, que veio dar corpo à noção de ruído musical que Russolo entendia ser um campo novo de satisfação e bem-estar dos sujeitos. A conversão do ruído ambiente em possível expressão musical era, para Russolo, a condição básica para alcançar a nova “poética” musical:

obtemos infinitamente mais prazer ao combinarmos idealmente os ruídos dos carros elétricos, dos automóveis, de veículos e de multidões ululantes do que ao escutarmos de novo, por exemplo, a “Heroica” ou a “Pastoral” [idem, p. 11].

Compreende-se assim que, apostado em revolucionar o ambiente sonoro e musical da época, Russolo, contando com a colaboração do seu amigo Ugo Piatti, se tenha dedicado, qual seguidor da sociologia musical de Max Weber, à fabricação de uma série de novos instrumentos, geradores de ruído (intonarumori), que deixam claro como, para Russolo, o ruído musical resulta essencialmente da multiplicação das sonoridades instrumentais.

Foi assim que surgiram algumas das suas polémicas criações musicais, entre as quais sobressai a célebre Risveglio di una città (“Acordar de uma cidade”).[14] Consta que aos primeiros acordes da première desta composição, ocorrida em 21 de Abril de 1914, no Teatro del Verme em Milão, a assistência se envolveu em enorme alvoroço e gritaria, tendo-se mesmo alguns adeptos mais ardorosos da “arte dos ruídos” - talentosos arruaceiros futuristas, dir-se-ia - envolvido em confrontos físicos com o público e forçado 11 pessoas a receber assistência hospitalar (Hainge, 2013, p. 40).[15]

A proposta de integração orgânica do ruído na “estrutura” musical constitui um poderoso argumento de negação do ruído, ou, como prefiro formular, da conversão deste em recurso musical, o que o torna artística e musicalmente aceitável. Reforça-se assim o argumento central do texto que convoca a criação artística para a função crucial de intermediação desempenhada no processo de aceitação sociocultural do ruído urbano.

Em Portugal, um pouco mais tarde, este ruídismo futurista viria a encontrar expressão na poesia de Álvaro de Campos, num exemplo eloquente de entusiasmo partilhado com os bem vindos barulhos das máquinas e motores da modernidade. Assim se lê na Ode Triunfal:

[…]

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!

Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!

Em fúria fora e dentro de mim,

Por todos os meus nervos dissecados fora,

Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!

Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,

De vos ouvir demasiadamente de perto,

E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso

De expressão de todas as minhas sensações,

Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

(…)

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!

Ser completo como uma máquina!

Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!

poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,

Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento

A todos os perfumes de óleos e calores e carvões

Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

[…]

[Álvaro de Campos, Ode Triunfal (excerto)]

Associada a Luigi Russolo e à sua extravagância musical, a poesia de Álvaro de Campos contribui para uma visão artística da in-corporação da exterioridade ruidosa dos diversos domínios de atividade e espaços públicos na própria sensibilidade dos sujeitos e dos lugares.[16]

Para vários estudiosos da questão sonora e musical, a intimidade dos sons exteriores com a produção musical, confere à música uma espécie de porosidade que torna difícil a destrinça entre ambientes musicais e sons não-musicais (Schafer, 1977). A questão suscitou acesas polémicas entre musicólogos. No meu limitado conhecimento da matéria, permito-me, todavia, deixar registado que a fusão da música com o ruído ambiental encontra a sua expressão mais radical na experiência de John Cage - 4’ 33’’ - que era um consabido crítico das ruidosas experiências de Russolo. No dizer de Murray Schafer, contudo, com a sua 4’ 33’, apresentada em Nova Iorque em 1952, John Cage estava paradoxalmente a “pagar um débito não reconhecido a Russolo” (Schafer, 1977, p. 111). Mais frontal reconhecimento a Russolo foi a criação musical de outros compositores com manifesta vontade de verter a influência do ruído exterior em música.[17]

Foi nesta porosidade musical que viria a fundar-se a chamada música concreta, criada pelo francês Pierre Schaeffer (LaBelle, 2006, pp. 24-27; Schaeffer, 2012)[18] e ilustrada eloquentemente pelo seu Étude aux chemins de fer, de 1948.[19] Como Greg Hainge argumenta, essa música concreta remete para uma noção de som enquanto objeto sonoro em si, isto é, autónomo e desligado de qualquer relação direta com o mundo e os contextos da sua produção, sendo produzido para ser rececionado e apreciado nas suas qualidades intrínsecas (Hainge, 2013, p. 163).

A música concreta de Schaeffer foi a antecâmara da música ambiente, originariamente designada por mobília musical (musique d’ameublement), atribuída a Eric Satie.[20] Satie expressou a ideia da nova expressão musical ter uma função fundamentalmente industrial e comercial, por servir de “lubrificante” para o normal decorrer das atividades fabris e de comércio (Lanza, 2004, p. 18). Com frequência, a música concreta surge tratada como a fonte da “musak”, expressão americana para significar a permanente moldura musical de espaços comerciais e de serviços, também referida pejorativamente como “música enlatada” (idem). Como pode ser constatado facilmente, são numerosos os espaços de consumo ou de serviços (pubs, shoppings, recintos desportivos, salas de espera) que procuram desenhar a sua própria linguagem musical com “música enlatada” selecionada de acordo com presumidas expectativas dos clientes, procurando criar uma agradabilidade ambiental, facilitadora da descontração e do negócio.[21]

Esta mobília musical viria a influenciar a composição 4’ 33’’ de John Cage, assim como os trabalhos de Brian Eno, autor de Ambient 1 - Music for Aeroports.[22] Eno considera que a vantagem da música ambiente reside em poder ser ignorada facilmente em virtude da sua não “intromissão” nas interações sociais e do seu “ajustamento” a vários níveis de atenção auditiva. Talvez o mais correto seja dizer “desajustamento” face aos diferentes níveis de audição, o que se compagina com a ideia da sua concretude e a remete para uma condição de objeto sonoro em si, independente do ambiente da sua produção que faz com que permaneça desligada da materialidade instrumental, o que se adequaria aos princípios do racionalismo musical de Max Weber.

Aos poucos, os sons das sirenes das fábricas, dos raters dos automóveis, dos apitos dos comboios, dos motores dos aviões foram sendo associados ao canto dos pássaros, ao rumorejar dos riachos, ou à brisa que sopra na folhagem das árvores. Assim se fundem musicalmente as ruidosas sonoridades das máquinas e motores e os sons humanos e naturais. É nesse sentido que argumento sobre a crescente naturalização do estranhamento que recobria os sons industriais e o ruído urbano no seu surgimento. As artes estiveram sempre na vanguarda dessa renovada habituação física e sensorial do corpo às novas expressões ambientais e às reações sensoriais da cognição urbana.

Veja-se um outro registo da domesticação dos ruídos urbanos. É essa a mensagem contida na célebre pintura da autoria de Umberto Boccioni (“A rua entra dentro da casa”), mostrada pela primeira vez em Paris, em 1912 (Figura 2). Boccioni retrata uma mulher de classe média à janela de sua casa, que, vista do interior, fica inevitavelmente exposta e envolvida num poderoso e agitado ruído exterior, representado pelo recurso ao colorido intenso e ao desordenado conjunto de formas.

 

 

A figura feminina da mulher à janela indicia a inexorável exposição dos sujeitos ao ritmo e à paisagem sonora policromática e desconcertante da rua. É, literalmente, a domesticação do informe concerto da rua que Boccioni está a celebrar com a sua pintura. Os sons da música tal como os ruídos, quando representados, tanto na pintura como na literatura ou na poesia, assumem a expressão ambígua de uma presença ausente (Leppert, 1993), sendo que, em Boccioni, tal presença se pressente de forma mais ousada do que na gravura de William Hogarth que vimos antes. A fonte geradora do ruído que em Hogarth, como vimos, é representado pela sonoridade de pessoas e animais, no caso da pintura futurista, encontra-se pictoricamente presumida na estridência colorida exterior das máquinas e dos motores. Dir-se-ia, no dizer poético de Álvaro de Campos, que a mulher de Boccioni, “abre-se completamente… a todos os perfumes de óleos e calores e carvões… desta flora estupenda” que é a ruidosa agitação da rua.

A atribuição do ruído às classes populares desaparece na tela de Boccioni que, seguindo os preceitos estéticos futuristas, elege os ruídos indefinidos da rua como fonte primordial da cena pública, a que o lar de classe média franqueia a entrada para poder conviver de perto com ele e, assim, ajustar-se aos novos tempos de mudança.

Para vários autores dos princípios do século XX, como o futurista Carlos Carrà, a pintura funciona como “equivalente plástico aos sons, ruídos e odores que se encontram nos teatros, nas salas de concerto, cinemas, bordéis e em estações ferroviárias, portos, garagens, hospitais, oficinas…” (Carrà, 1973, p. 114), devendo servir de motivo e inspiração a quem pretenda renovadas articulações da pintura com o som, a cor e as formas das coisas.[23] Este encargo supremo atribuído às artes plásticas contaminou a reflexão socio-filosófica sobre os sons e os ruídos urbanos dos primórdios do século XX. De novo, as ciências sociais e humanas, vieram assinalar a sua disponibilidade para remeter para as competências sensoriais dos sujeitos e grupos sociais a capacidade de captar a complexidade das vivências metropolitanas.

Evidentemente essas disciplinas académicas promoveram sobretudo a promessa de felicidade trazida pelas produções artísticas mais sofisticadas e mais valorizadas socialmente, como a produção musical, a dança e a pintura (Leppert, 1993, p. 86). Fizeram-no, contudo, sem deixar de suscitar o confronto e a negação funcionais do que seria a desorganização social e o caos que o ruído urbano representava. Dito isto, não se deve ignorar a atribuição de responsabilidades políticas e sociais que muitos académicos promoveram ao apontar as classes populares como as principais causadoras do caos ruidoso que agudiza a conflitualidade social entre classes.

Contra o ruidismo urbano

A responsabilidade social das classes trabalhadoras da produção de ruído seria destacada pela atividade política e filosófica de Theodor Lessing (1872-1933), intelectual judeu alemão que, com Simmel, foi um dos primeiros a trazer a questão para o seio da discussão académica e da cena pública alemã e europeia.[24] Com destacado envolvimento pessoal no ativismo associativo, Lessing fundou, em 1909, uma das poucas Associações europeias dedicadas à promoção e defesa de medidas públicas com vista à proteção dos efeitos sociopsicológicos provocados pelo ruído em contextos urbanos.[25] Do ponto de vista académico propriamente dito, Lessing personifica o que hoje conhecemos como um “intelectual público”, dada a sua participação direta em inúmeras palestras, debates e na produção regular de escritos sobre a matéria.

O barulho da cidade, em especial o barulho da rua, era para Lessing uma verdadeira patologia social, com origem na má gestão da cultura ocidental. Nessa denúncia, Lessing colocou-se ao lado do conhecimento científico sobre a realidade urbana e entregou-se ao inventário das origens dos ruídos da cidade. Tomando a moderadamente ruidosa cidade de Hannover do princípio do século como referência empírica[26], Lessing aponta os troleys, as locomotivas e os automóveis como principais agentes da perturbação sonora da cidade. Inclui ainda no seu rol de produtores de ruído o (clássico) tocar dos sinos das igrejas, os intermináveis ensaios de piano e o vasto instrumentalismo sonoro do quotidiano urbano, como os gramofones e o retenir dos telefones. Socialista por simpatia política, Lessing era adepto de maior controle público repressivo sobre os desregrados instintos humanos, que atribuía aos processos de industrialização, urbanização e individuação dos sujeitos. Foi nessa linha de pensamento que Lessing assumiu uma severa investida contra a classe operária e os trabalhadores urbanos indiferenciados que acusa de serem movidos por um egoísmo incontido que os impele à produção deliberada de barulho, como estratégia de afirmação identitária (Baron, 1982, p. 167) e sinal de indignação contra a sua condição de subordinação social (Goldsmith, 2012, p. 142).

No plano argumentativo, tal justificação equivale a fazer deslocar para o campo da teoria do ressentimento de Nietzsche, de quem Lessing foi um reconhecido discípulo e biógrafo, que sustentava que toda a ação humana contém uma aspiração ou vontade de poder, mais ou menos explícita[27]. Para Lessing, essa vontade de poder revelava-se no dia-a-dia em que,

o cocheiro que usa o sonante chicote sobre os animais, a criada que sacode a roupa da cama à janela, o músico que ensaia os tambores, entendem os sons que produzem como marca honesta da sua personalidade e existência, ampliando deste modo a esfera do seu poder pessoal. Uma vez que estas pessoas não têm outros meios para atrair a si a atenção do mundo e evitar que outros possam naturalmente não dar conta da sua presença, dedicam-se a dar provas da sua existência aos ouvidos dos seus concidadãos. [Theodor Lessing, apud Baron, 1982, p. 167]

A presença continuada destes sons estridentes e o incómodo social e moral que constituíam, eram, para Lessing, o efeito pernicioso que impedia o recato e a concentração necessários ao trabalho intelectual. O enervante impacto do chicote que os cocheiros faziam vibrar sem piedade sobre os animais era um dos motivos pelos quais Lessing recusava o refúgio na blasé indiferença simmeliana que invalidaria a perturbação psico-emocional e permitiria aceitar a condescendência que os seus concidadãos mostravam perante o ruído.

Lessing não distinguia, como outros, o ruído necessário (ligado à produção fabril), tido como inevitável preço a pagar pela modernização e, por isso, objeto de tolerância crescente, e os ruídos desnecessários (improdutivos) e, portanto, inaceitáveis e destinados a serem abolidos sem hesitação. A necessidade de enfrentar o ruído indiferenciado nas cidades e as suas consequências anti-intelectuais e antiartísticas poderão justificar o perfil marcadamente académico e elitista da agremiação antirruído que Lessing fundou e dirigiu entre 1909 e 1914. Incapaz de cativar quaisquer simpatias por parte de membros das classes trabalhadoras, a iniciativa de Lessing, como sugere Peter Payer, foi vítima da associação do ruído à condição de ingrediente simbólico de poder e riqueza material (Payer, 2007, p. 793).

A abordagem holística de Lessing tratava os efeitos sonoros do capitalismo industrial como um todo. Neste sentido, o filósofo entregou-se à crítica do que era novo e florescente, designadamente à crítica do novo ethos consumista das grandes cidades. Lessing era um crítico da devastação perniciosa de diversas áreas urbanas e da degradação da interação social que antes alimentava um espírito de tranquila convivialidade e boa vizinhança. O proprietário capitalista era, para Lessing, essencialmente, a personificação da generalizada atitude conspícua que, a coberto da lei e da indulgência estatal, se permitia atuar com plena autonomia nos domínios privados e mesmo gerar enorme poluição sonora.

Entretanto, não deixou de advogar, sem sucesso, adiante-se, a implementação de medidas regulatórias - horários de expediente do comércio, multas a prevaricadores, adoção de mecanismos de redução sonora, pavimentação de ruas, etc. - em constante reprovação da degeneração ambiental das cidades.

Como se depreende do depoimento de um acérrimo opositor de Lessing - Edmund Wengraf - a ação antirruído estava irremediavelmente comprometida por uma arreigada habituação social:

Sejamos francos: os moradores da cidade como nós já não conseguem viver sem este ruído das ruas. É o grande estímulo mental dos nossos dias e a música de embalar das nossas noites. Faz parte do ambiente que não conseguimos dispensar depois de nos termos afeiçoado a ele. Continua a fazer-se sentir nos nossos ouvidos, mesmo quando os guias ilustrados nos convidam ao refúgio no silêncio das montanhas e florestas. (…) Não tenhamos receio de reconhecer: Quando voltamos à cidade, damos-lhe as boas vindas como a um amigo de longa data. [Edmund Wengraf, “Das Recht auf Lärm”, cit. in Payer, 2007, p. 783]

A referência é sintomática da rotineira acomodação social ao ruído urbano. Tal adaptação regista-se também em outras urbanidades metropolitanas, como mostra a informação que Peter Bailey oferece acerca da oposição surgida em Londres na década de 1890 contra a silenciosa circulação da bicicleta (Bailey, 1966, p. 59). A reivindicação de um aviso sonoro como forma de advertir os transeuntes da circulação ciclista, reverbera a informação recente, embora não confirmada, segundo a qual vários fabricantes de automóveis elétricos estariam a considerar equipar os seus veículos com dispositivos sonoros que alertassem os peões para a sua presença[28], o que lhes permitiria adotar automatismos de avisada indiferença semelhantes aos implicados na condição blasé.

Segundo um destacado comentador da obra de Lessing, a sua argumentação contra o capitalismo predador do ambiente urbano constituía um vigoroso confronto com o desenrolar da moderna condição urbana, baseado (i) na denúncia de ações emotivas e não racionais dos decisores, (ii) na prevalência da tecnologia sobre a natureza, (iii) no individualismo contra o espírito comunitário, (iv) na concorrência acima da cooperação e, por fim, (v) na busca de poderio económico sem respeito pela moralidade (Poetzl, 1978).

Daí que o filósofo tivesse denunciado repetidamente o ruído urbano como sinal de um crescimento desregrado do capitalismo europeu, do consumismo irrestrito e da má gestão cultural que, no conjunto, degradavam as paisagens físicas e sonoras das cidades e hipotecavam a saudável convivência urbana de outrora. A esta leviandade cultural do moderno ocidente, Lessing fazia contrastar a disciplina dos comportamentos, a contemplação mística e o silêncio que entendia serem apanágio do classicismo e do romantismo de seu enorme apreço. Era no diálogo entre estes opostos princípios ordenadores da vida que Lessing idealizava a construção de uma sociedade “mista” que combinasse os avanços tecnológicos e instrumentais do Ocidente europeu com a sábia cultura de serviço coletivo e moralidade do Oriente asiático (idem).

Adepto fervoroso do motto então em voga, non clamor sed amor, que ao estilo pós-moderno leria “faz amor e não rumor”, Lessing cedo denunciou o ruído que “está em todo o lado” e lamentou, com inegável fervor ambientalista e comunitarista, que nem as aldeias nem as vilas pudessem escapar à voragem ruidosa da cidade moderna. Até os sons rudimentares dos instrumentos e atividades rurais da época, como o corte da lenha, ou o da presença dos animais, acabariam por dececionar o filósofo.

Na sua militância antirruído, Lessing não se opôs ao progresso tecnológico e industrial e dirigiu a crítica aos ruídos humanos com incidência nos músicos de rua. Não advogou nunca, por essa razão, qualquer paragem ou retrocesso do desenvolvimento tecnológico e entendia que a grande tarefa que os intelectuais e os políticos tinham pela frente era a da reorganização da sociedade e não a da redução do progresso industrial (Bijsterveld, 2008, p. 99). Para Lessing, todo o mal-estar que o ruído da cidade gerava, ainda que enunciasse a incoerência do modelo societal vigente, constituía também um desafio para a criação de regras novas de comportamento e convivência social. Como assinala Karin Bijsterveld, não admira que Lessing se tivesse virado decididamente para a educação pública, como estratégia redentora da nova sociedade e dispositivo central de contenção da degeneração ambiental e da vida mental (Bijsterveld, 2001, p. 48).

Ação concertada antirruído

Ações similares às de Lessing encontram-se um pouco por algumas cidades do Norte global de meados do século XX. Diga-se, en passant, que esse não é o caso português. As associações antirruído que se encontram em cidades europeias como Londres, Copenhaga, Paris ou Berlim, mas também em Nova Iorque (Bijsterveld, 2001; 2008), não têm correspondência conhecida entre nós, designadamente no que diz respeito à denúncia organizada, feita em grupo e protagonizada por movimentos cívicos, partidos políticos ou associações corporativas, que tenham gerado pressão sistemática contra os ruídos urbanos. É de crer que a ausência de contestação e denúncia concertada do ruído se deva à dispersa urbanização do território nacional e à débil implantação industrial na generalidade das cidades portuguesas.

Entre os exemplos internacionais mais aguerridos desta movimentação cívica antirruído conta-se a ação de Julia Barnett-Rice (1860-1929), médica e filantropa, casada com o influente editor Isaac Rice, residente no Riverside Drive, junto ao rio Hudson, em Manhattan. Alarmada com os constantes avisos sonoros (apitos e megafones) reguladores da travessia noturna do rio, Julia Rice convocou os estudantes de medicina da vizinha Columbia University que registaram quase 3,000 daquelas ocorrências sonoras numa só noite. Julia Rice esgrimiu então o argumento da perturbação gerada sobre os seus doentes, o que a levaria, em 1906, a organizar a contestação através da Society for the Supression of Unnecessary Noise (“Sociedade para a Eliminação dos Ruídos Desnecessários”), de curta duração. Mais tarde, em 1929, para dar resposta ao número crescente de reclamações sobre o excesso de ruído, a Câmara de Nova Iorque replicou a experiência de Julia Rice e instituiu a Noise Abatement Commission (“Comissão para a Redução do Ruído”), encarregada de classificar, medir e mapear os ruídos urbanos da cidade para os controlar e, eventualmente, eliminar (Thompson, 2004, p. 157).[29]

Num dos seus boletins regulares, a Comissão apresentou o inventário das principais fontes geradoras de ruídos urbanos, merecedores de ação reguladora (Figura 3) e que, pese embora o intervalo de tempo decorrido, apresenta ainda um perfil aproximado ao que configura o ambiente ruidoso das cidades de hoje.

 

 

O desiderato final da Comissão - eliminar os ruídos urbanos - foi enunciado numa época de acentuadas inovações técnicas com repercussões importantes na acentuação das paisagens ruidosas da cidade. Esse foi o caso da disseminação dos gramofones ou a instalação de passagens metálicas aéreas para a circulação dos comboios urbanos.

Em Portugal, como já se referiu, são muito escassas as referências a estudos sobre o ruído e a iniciativas de contestação social organizada como acabo de exemplificar. Merece destaque a análise abrangente de Carlos Alberto Augusto que, ao mesmo tempo que reitera o relativo défice de estudos sobre o ruído quando declara que “nenhum cientista português conduziu até agora um trabalho sério para verificar os efeitos reais” gerados pelos ruídos (Augusto, 2014, p. 31), põe em evidência que este é um campo de estudo aberto a continuadas pesquisas, designadamente no domínio das ciências sociais.

Existem também avaliações parcelares integradas em estudos e avaliações mais amplas sobre as representações e práticas ambientais dos portugueses (Schmidt, Valente e Pinheiro, 2000; Schmidt, Trüninger e Valente, 2004), assim como breves apontamentos de imprensa (por exemplo, Schmidt, 2000).[30] Apesar do ímpeto regulador e das melhorias trazidas pelo Regulamento Geral do Ruído de 1987 - Lei 11/87 de 7 de abril e DL 251/87 de 24 de junho -, como indica Carlos Alberto Augusto, o seu impacto no Portugal urbano terá sido limitado no que respeita ao controlo da poluição sonora (Augusto, 2014, pp. 33-37; Vaz, 2016, pp. 34-35), traduzindo-se na elaboração de mapas municipais de ruído de escassos resultados no planeamento das cidades, o que, porventura, terá conduzido à sua revogação pouco mais de uma década depois (DL 292/2000 de 14 de novembro).[31]

O quadro geral traçado pelos inquéritos às práticas e representações ambientais dos portugueses, promovidos pelo Programa Observa em 1997, remete para um entendimento do ruído ambiental como problema “grave” ou “muito grave”, situado logo após a saliência da “poluição automóvel” (Schmidt, Valente e Pinheiro, 2000, pp. 64-65), que é vista com tendência para piorar (Schmidt, Trüninger e Valente, 2004, p. 82).

Além disto, a reação cívica antirruído encontra-se subsumida na tendência mais proibitiva e penalizadora do que defensiva e preventiva dos portugueses (Schmidt, Valente e Pinheiro, 2000, p. 86), como mostra o recurso a queixas dirigidas à administração pública, ou a contestação individual junto dos tribunais, com vereditos em geral desfavoráveis aos denunciantes. Nem mesmo os movimentos ou associações ambientalistas nacionais - em que, de modo geral, a população portuguesa deposita níveis de confiança razoáveis (idem, pp. 82 e 98) - assumem o ruído entre as suas preocupações prioritárias, o que contribui para o atraso de Portugal no enfrentamento da questão, até no plano legislativo (Augusto, 2014, p. 37; Schmidt, 2000).

A informação disponível revela, no entanto, que o ruído urbano é o principal motivo das denúncias e reclamações apresentadas por cidadãos portugueses junto das Provedorias de Ambiente das Câmaras Municipais e dos seus departamentos especializados (Craveiro, 1994). Por outro lado, é sabido que a denúncia pública do ruído tende a cingir-se ao ruído noturno, sobretudo ao trânsito automóvel a desoras, à conversa notívaga de passantes saindo ou permanecendo nas proximidades de bares e discotecas, ou os exagerados decibéis debitados por lugares de consumo e diversão (idem). O ruído diurno em espaço público, ao contrário, é objeto de maior tolerância, quer jurídica quer social, o que, porventura, se deverá aos processos de gradual naturalização sociopsicológica dos seus efeitos, sem excluir um défice de exercício de cidadania, traduzível na passividade dos cidadãos perante o poder político.

Por isso, quase não se reclama hoje sobre o intenso barulho das ruas e avenidas, no que parece um endosso da declaração do opositor de Lessing que julgava o ruído como sendo “parte do ambiente que não conseguimos dispensar” de tão afeiçoados que lhe estamos. O mesmo sucede com a constante e repetitiva presença da música gravada em lojas e cafés, sendo que a indústria, por ter sido largamente “desurbanizada”, se encontra hoje praticamente ausente desta suave contestação antirruído nacional.[32] Em suma, em Portugal os cidadãos parecem estar mais disponíveis para comentar a qualidade da mobília musical de escritórios, salas de espera ou aeroportos do que para se precaver dos efeitos de distração, incomodidade ou irritação que tais ambientes podem causar.

Fim do ruído, princípio de quê?

Os ruídos urbanos são um dos principais efeitos colaterais a urbanização do mundo. Com eles tem também sido dada atenção às medidas políticas de minimização do mal-estar social e pessoal gerado pela crescente intensificação do enervante barulho na cidade. São conhecidos os obstáculos que o ruído urbano pode representar para a comunicação e a interação social na medida em que instala barreiras comunicacionais entre as pessoas (Hendy, 2013). Automóveis, camiões, autocarros, aviões, comboios e motociclos são, do lado dos transportes, os principais agentes geradores de ruído urbano. Mas também os trabalhos de construção, os compressores, as brocas e os berbequins têm a sua elevada quota-parte. Enfim, os aparelhos de ar condicionado e outros equipamentos elétricos contribuem para o ininterrupto quotidiano ruidoso das cidades.

O que se pode retirar desta moderna “aceitação” social do ruído é que existe um passado urbano em que, apesar de tudo, as sociedades se mostraram menos tolerantes perante a paisagem ruidosa do espaço público. Não obstante, registe-se que os primeiros analistas da urbanidade entenderam o ruído como um dos fatores mais marcantes da nova condição de vida urbana, perante o qual pouco haveria a fazer. Todavia, em contraposição a este sentimento de impotência generalizada, a história da modernidade urbana ocidental regista uma assinalável componente de denúncia, crítica e mobilização contra a nova paisagem sonora da cidade.

Muitas vezes, essa crítica assume tonalidades românticas, associadas a sinais de profunda nostalgia da vida rural e do ambiente bucólico da vida campestre. Na maioria das situações, quando a crítica sonora e ambiental surgiu, ela parece ter sido inteiramente assumida como crítica urbana, no sentido de não se estribar em passados de mais acentuada convivência harmoniosa de sons, mas resultar dos novos relacionamentos urbanos, pautados pela inelutável redução das sonoridades de origem humana e social. Por outro lado, sempre que a crítica social urbana dos ruídos assumiu uma modalidade ativa e organizada foi em situações em que se equacionavam objetivos cívicos e políticos de bem-estar coletivo. Essa crítica coletiva envolveu personalidades públicas, intelectuais e artistas em reação argumentativa, por vezes virulenta, contra a condescendência e inação regulatória de decisores, urbanistas e gestores empresariais (industriais e comerciantes).

Sociologicamente relevante parece ser também assinalar que o desígnio de eliminação do ruído, mesmo que apenas os ruídos desnecessários de que falava Julia Barnett-Rice, parece hoje exagerado e poderá não ir além do que Murray Schafer chama de esquizofonia para assinalar como a gravação dos sons permitiu o seu desligamento das fontes emissoras e possibilitou a sua reprodução em contextos espaciotemporais outros, o que geraria uma inegável mistura de sons (Schafer, 1977, pp. 90-91). Onde atuar então se se pretender combater a justaposição de sons geradora de ruído? Quando os sons de origens diversas se misturam e são rececionados num verdadeiro desconcerto auditivo, torna-se impossível tentar distinguir cada um deles. É assim que a esquizofonia remete para a perda da identidade das paisagens sonoras dos lugares - a oralidade, o folclore, as tradições ou as expressões artísticas e comunicativas locais - que ficam sujeitas à desestruturação sonora provocada pela amálgama ruidosa da cidade.

Enquanto a paisagem dos lugares remete para um sentido próprio da expressão sonora, isto é, confere identidade e sentido interativo próprio às manifestações sonoras locais, com a sua negatividade, o ruído elimina esse recurso identitário. Recorrendo de novo a Murray Schafer, aquela marca sonora - soundmark - “possui qualidades únicas que a tornam especialmente relevante e sensível para os membros de uma comunidade determinada” (idem, p. 10). Pode-se argumentar, portanto, que o combate aos sons excessivos e ao ruído não pode suprimir aquilo que constitui expressão singular das identidades comunitárias, o que seria um processo de irreversível expropriação sonora com graves efeitos sociais. As “marcas sonoras” das localidades são atributos particulares e não podem ser confundidas com o som metálico ou o ruído que as envolve e atrofia. Não são ruído e opõem-se a ele. São, ao invés, sons com sentido e significado próprios, digamos uma autenticidade peculiar, que deve ser reconhecida e preservada enquanto promesse de bonheur, de equilíbrio psico-emocional dos sujeitos e salvaguarda das comunidades, como a UNESCO procura protagonizar desde 1972, com a aprovação da “Convenção para a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural”.

O que sucede e deve merecer toda a atenção dos decisores e analistas é que, com a expansão colonial e a globalização, muitas destas “marcas sonoras” foram lateralizadas e tornadas residuais. A meu ver e em grande número de relatos disponíveis, elas revelam-se hoje como sons de resistência à colonização e à estandardização a que procedem os hegemónicos ruídos modernos que têm produzido profundas alterações nos padrões sociais de comportamento e interação.

Um exemplo é o estimulante relato sobre a colonização sonora do Sri Lanka que Nira Wickramasinghe oferece ao tratar da complexa mudança comportamental que a introdução de veículos automóveis impôs aos cidadãos e os forçou a adaptar o ouvido “ao zunido dos rodados das máquinas” (Wickramasinghe, 2014, p. 107). A investigadora mostra como a realidade colonial pôs ao seu serviço, desde a década de 1960, uma estratégia de ocidentalização sonora que produziu alterações substanciais no quotidiano local:

O gramofone foi provavelmente importado por pessoas abastadas da burguesia local que depois de visitar a Europa regressaram com uma nova marca de distinção (…) A chegada dos gravadores introduziu uma experiência completamente nova de som e música entre os povos do Sri Lanka. O som deixou de ser um fenómeno efémero, e passou a ser um objeto que podia ser analisado, lido, avaliado e usado com múltiplos propósitos, do comercial ao experimental. [idem, p. 88]

Nos termos que estão a ser usados neste texto[33], tal situação é equiparável à esquizofonia que, através da imposição de sonoridades separadas dos contextos de receção, designadamente a difusão de música europeia, alterou as condições locais de existência.

Apesar da crescente homogeneização dos sons por efeito da globalização da cultura, o registo da dissonância das paisagens sonoras existentes no Norte e no Sul globais permanece motivo de análise interpretativa da sociologia e outras ciências sociais. Em certas situações, essa homogeneização denuncia uma espécie de presunção de modernidade do Norte global que menospreza a sonoridade do Sul, cuja expressão quotidiana devolve uma imagem algo semelhante ao que terá sido o seu próprio passado sonoro.

Veja-se, neste sentido, como o exemplo trazido pela socióloga Fraya Frehse é esclarecedor. A autora refere-se ao testemunho de um ministro francês que, de passagem por São Paulo em 1907, afirma em estilo de reclamação pessoal:

Meu quarto de hotel se situa acima de uma rua pela qual circulam bondes que buzinam sem parar. Na frente da minha casa se encontra um vendedor de fonógrafos que, para atrair os clientes, deixa constantemente um de seus instrumentos tocar. Em baixo do meu quarto, a sobrinha do dono do hotel aprende o seu piano. Durante essas horas, é um barulho de deixar qualquer um louco. Eis o que é viver numa cidade ultramoderna… [Charles Wiener, cit. in Frehse, 2011, p. 298]

À parte a sobranceira ironia do relato, o trecho deixa transparecer a persistência de sons locais com forte participação personalista (o vendedor de gramofones e a sobrinha do hoteleiro) que, à época, teriam já desaparecido ou sido reduzidos a uma expressão mínima no cenário francês, submergidos em modernas e poderosas sonoridades urbanas. A situação revela também o já referido incómodo e a ameaça do “ruído dos outros” que as elites sempre denunciaram ao longo da história.

Numa escala mais ampla de análise, e por analogia com a situação relatada anteriormente, pode-se dizer que a presença humana e a verbalização oral da condição social subalternizada continuam na atualidade a ser modalidades de contestação da presença invasiva do poder nas periferias do Sul global, incluindo a resistência contra a ameaça de anulação das “marcas sonoras” locais.

Neste particular, refira-se que em texto publicado recentemente, Mark Turin analisa o risco anunciado pela UNESCO de desaparecimento de mais de 2,400 das 6,500 línguas faladas em todo o globo que está relacionado, mesmo se apenas indiretamente, com o efeito da colonização e o silenciamento que o ruído moderno provoca sobre a oralidade de inúmeras e frágeis comunidades humanas (Turin, 2012). Essas línguas, reduzidas a uma frágil expressão oral, enfrentam a ameaça dupla das suas próprias comunidades, colocadas à mercê do mundo social do ruído que impede a sua expressão sonora, mas também do poder político nacional que as marginaliza e exclui da cena pública.

Alessandro Triulzi expõe com clareza como a desinformação política que carateriza a cena cultural da cidade pós-colonial é combatida pela circulação informal das notícias, de autenticidade totalmente irrelevante, mas que no seu mais popularizado meio de difusão boca em boca - a “rádio ambulante” - desempenha um papel relevante como contraditório desestabilizador da informação governativa (Triulzi, 1999, p. 84). Estamos perante o recurso destacado e generalizado das “marcas sonoras” da oralidade informal dos “rumores, o vozear, o mexerico e a conversa de rua” cuja expressão sonora resiste ou subverte o poder da subordinação política que o ruído gerado pelas diversas agências de informação governamental ajuda a estabelecer.

Nesse sentido, o ruído que, como se disse, submete as sonoridades humanas à estridência de poderosos instrumentos de difusão sonora, está sujeito a modalidades de desconstrução e ser transformado e trazido de volta à condição de expressão identitária. A produção de ruído pode, em primeiro lugar, servir estratégias perversas de invisibilização identitária e anular presenças sociais, individuais ou coletivas, nos espaços públicos. Julien Volcler, que mostra como o ruído e outros sons urbanos são hoje dispositivos de controle político e policial[34], sugere uma estimulante reflexão a fazer acerca das tecnologias direcionais (sonómetros digitais) de mapeamento e controle da crítica social, da contestação urbana e da dissidência política (Volcler, 2011).

Bem ao invés deste uso policial e militar de controle, o recém-falecido músico e cantor português José Mário Branco garante que “a cantiga é uma arma”, com o que procede à desmontagem do ruído político descaracterizador das identidades coletivas e procura conferir expressão a oralidades contestatárias e sonoridades cívicas. Trata-se de atuar no sentido do reconhecimento da positividade dos sons e, no limite, enunciá-los como “marca sonora” de condições e escolhas políticas ou ideológicas alternativas.

Martha Mockus, na mesma linha, ao comentar a musicalidade da compositora e acordeonista americana Pauline Oliveros e as suas estratégias de escuta (Oliveros, 2005), sugere que a sua produção musical lésbica constitui uma “mensagem de criatividade, sentido comunitário, amor e sexualidade” que o ruído urbano inibe e não deixa captar, cerceando “um sério reequacionamento da presença lésbica na vida cultural” (Mockus, 2008, pp. 2 e 8). O ruído, como vimos antes, pode não ser um obstáculo ou o único obstáculo político para a afirmação da feminilidade musical, muito em particular no caso de Pauline Oliveros, que entende que “na música a mulher está sempre subjugada, enquanto os homens, com igual ou menor talento, alcançam um lugar mais facilmente” (Oliveros, 2016).[35]

No sentido semelhante, o rapper angolano Mc Kapa valoriza o hip-hop e a tradição africana da oralidade que, nas suas palavras, funcionam “como veículo para fazer ver, refletir e crescer” (Mc Kapa, 2007).[36] É um posicionamento político assente no valor identitário da voz audível e de como a música pode conduzir ao reconhecimento da presença de sujeitos, grupos, movimentos e discursividades tidos como virtualmente “lateralizados” e “fora do lugar”. Por via da sua vocalidade transfigurada em presença e visibilidade pública, os sujeitos e grupos alternativos experimentam um sentido de liberdade de expressão que fortalece o sentido de presença pública de um “outro” antropológico ou um “outro” sonoro e politicamente alternativo.

Conclusão

Termino com um apelo a escutar o que outros, oriundos de diversas territórios e tempos disciplinares, disseram e propuseram sobre a pertinência da compreensão sociológica dos ruídos. O texto sintetizou e ensaiou problematizar inúmeros contributos históricos e políticos, mas também culturais e artísticos dedicados aos sons e aos ruídos modernos. O que se deixa expresso é a gradual sujeição da experiência sonora de cada um, à intempestiva convivência com o barulho da engrenagem urbana. Esse é o “mundo social do ruído” que se instaurara simbolicamente com a agitação da natureza em Krakatoa (1883) e havia de prosseguir, por mão humana, até aos nossos dias. Em Portugal, tanto quanto se deixa registado, a avaliação médica sobre a perigosidade dos ruídos é inconsequente, excetuada a sua transposição para a regulamentação do ruído. As associações ambientalistas têm outras prioridades e os movimentos cívicos antirruído são praticamente inexistentes. As cidades continuam, assim, sonoramente ingovernáveis e, apesar do quadro regulatório e legislativo vigente, a contenção do ruído urbano encontra-se sobretudo sujeita à reação pontual de sujeitos ou grupos de moradores entregues à denúncia e condenação dos “ruídos dos outros”. Dizem os historiadores que sempre foi assim, na Europa e em Portugal também. Os sociólogos, por seu lado, sabem que essa é uma estratégia que amiúde envolve a estigmatização de grupos e profissões mais frágeis.

O entendimento do ruído urbano obriga a equacionar, hoje como ontem, as desiguais relações de poder. O estranhamento inicial que o ruído causou foi socialmente acomodado com grande liberalidade, sendo que as artes e os artistas da modernidade foram, em casos específicos, arautos da aceitação sociocultural dos ruídos. Com a ajuda da tecnologia, a música ensaiou fundir-se com o ambiente da rua, do mesmo modo que se popularizou a chamada esquizofonia. A expressão mais divulgada deste transtorno sonoro revela-se na desvinculação da música dos seus contextos de produção. Gravada, a música viaja hoje pelo mundo “sem fronteiras” e submete as diversas sonoridades a uma paisagem sonora globalizada, sem impedir, bem entendido, que as margens sonoras e musicais se expressem no centro do mercado fonográfico mundial. Tudo começou com a colonização das paisagens sonoras de uns e a imposição de outras paisagens por outros. Como o texto argumenta em forma de apelo a um maior escrutínio sociológico, o som, o ruído e a música podem ser instrumentos de poder, mas podem também estipular marcas de resistência e alteridade. Resistir ao mundo social do ruído não é procurar refúgio num qualquer pretenso silêncio, mas insistir na multivocalidade social de urbanidades lateralizadas, como as que são ameaçadas todos os dias de silenciamento e de não se poderem fazer escutar. As urbanidades de hoje estão a fazer-se ouvir. Quem estará a escutá-las?

O ruído como marca da presença pública do “outro” é uma demonstração potente de como, não raro, é o ouvido que comanda a visão e organiza a ação prática e política dos sujeitos e dos grupos sociais, como tentei demonstrar. Por isso, este texto é um convite para o envolvimento da sociologia e das ciências sociais no lado sensível das sonoridades urbanas. Sabemos pouco dos sons das nossas cidades, dos nossos ruídos e pretensos silêncios coletivos. A política dos decibéis, chamemos-lhe assim, é na verdade um campo vasto de interrogações para a sociologia. Também um campo de respostas? Com Georg Simmel, metaforicamente, a sociologia optou pela “surdez” ou indiferença blasé perante os ruídos. Com Max Weber, argumentou-se, a sociologia instrumentalizou o som e a música, anunciando o lado racional da sua materialidade. As metáforas comprometem, pelo que, com os mais diversos cenários à nossa frente, a sociologia não deve nem ignorar nem instrumentalizar o ruídismo do mundo social. Não se trata de um mero jogo de palavras. É antes uma vontade de registar trajetos possíveis para uma sociologia das sonoridades que recolha no passado sugestões para uma abordagem sociológica urgente da contemporaneidade sonora. O objeto é desafiador: trata-se de esclarecer como se revelam hoje, entre nós, as disputas públicas em torno das sonoridades e dos ruídos. Sociais, políticos e urbanos.

 

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Recebido a 08-03-2019. Aceite para publicação a 15-01-2020.

 

[1] “Durante longos períodos da história, o modo de perceção dos sentidos humanos altera-se com a mudança da própria existência humana. A maneira como a perceção sensorial das pessoas se organiza - o meio em que se assume - é determinada não só pela natureza, mas também pelas circunstâncias históricas”. (Tradução do autor).

[2] Versão revista e ampliada da comunicação apresentada ao X Congresso Português de Sociologia (Universidade da Beira Interior, Covilhã, 10-12 de julho de 2018). Agradeço os comentários anónimos dos referees que contribuíram para melhorar a clareza expositiva e a consistência argumentativa do texto.

[3] Entre os textos de feição marcadamente socio-histórica e socio-antropológica publicados em Portugal sobre ambientes sonoros registam-se designadamente os trabalhos de António Vitorino de Almeida (Almeida, 1987), João L. Craveiro (Craveiro, 1994), Luísa Schmidt (Schmidt, 2000), Ruy V. Nery (Nery, 2008), Paula Casaleiro e Pedro Quintela (Casaleiro e Quintela, 2008), Luciana Mendonça (Mendonça, 2009), Mário V. de Carvalho (Carvalho, 2014); Carlos Alberto Augusto (Augusto, 2014) e Vitor Rosão e outros (Rosão, Antunes, André e Oliveira, 2016).

[4] Ao longo do texto, atribuo ao conceito de “paisagem sonora” o sentido que o geógrafo Paul Rodaway lhe confere: “a paisagem sonora é o ambiente sonoro que envolve o sujeito. O ouvinte, aquele que escuta, encontra-se situado no seio da paisagem sonora. Trata-se de um contexto envolvente que, como regra, consiste em diversos sons vindos de diferentes direções e com caraterísticas diversas… As paisagens sonoras envolvem e desdobram-se em complexas sinfonias ou cacofonias…” (Rodaway, 1994, pp. 86-87).

[5] Na literatura médica, os malefícios decorrentes da exposição excessiva ao ruído são geradores de perturbações psicológicas e mentais (ansiedade, náuseas, stress, perturbações do sono), desequilíbrios cognitivos (perda de audição, acufenos, dificuldades de concentração e de aprendizagem em crianças) e doenças cardiovasculares (colesterol alto, hipertensão, enfarte do miocárdio) (WHO, 1999; EEA, 2014).

[6] Historicamente, a expressão “poluição sonora” surgiu associada à imagem das chaminés fumegantes das fábricas, cujo barulho se correlacionava à saída de fumo que, por ser visível, indiciava a agitação da laboração fabril, a qual, curiosamente, só o sibilino apito da fábrica fazia suspender.

[7] Os dados recolhidos no mesmo estudo referem-se a mapeamentos sonoros realizados em 2007 e 2012 em 21 países europeus. Bélgica, Bulgária e Luxemburgo registam as percentagens mais elevadas de população exposta ao ruído da circulação automóvel (75% da população), com níveis mínimos de 75 dBs. O estudo não fornece informações sobre Portugal.

[8] Uma testemunha, o Capitão Sampson, à época no comando do veleiro britânico “Norham Castle”, deixou registado no seu diário de bordo que “as explosões foram tão violentas que rebentaram os tímpano de mais de metade da minha tripulação. (…) Acho, diz a concluir, que chegou o dia do juízo final” (cit. in Cox, 2014, p. 196).

[9] Em Histoire du Silence, Alain Corbin retrata pormenorizadamente a natureza destas sonoridades pré-industriais e ilustra como a sua retração se acentuou com o advento do que seria o ruído maquinal trazido pela moderna urbanidade (Corbin, 2016). Olivier Balaÿ, por seu lado, oferece um detalhado retrato etnográfico dos pregões e da publicidade sonora usada por lojistas, comerciantes de rua e vendedores ambulantes (Balaÿ, 2003, p. 36). No caso português, alguns dos sinais típicos do advento da sonoridade moderna encontram-se registados por Paula Gomes Magalhães que descreve as lentas, ainda que significativas, transformações das paisagens sonoras da cidade: “A mecânica e os acessórios dos primeiros automóveis constituíam uma verdadeira dor de cabeça para os pioneiros da condição motorizada, obrigados a manobrar várias alavancas e a abrir uma série de válvulas. Mas a principal dor (mais de ouvidos do que de cabeça) era a dos que se viam obrigados a suportar o barulho infernal dos primeiros exemplares, ainda não equipados com panelas de escape ou silenciadores e dotados de buzinas que retumbavam a toda a hora sem aviso prévio.” A autora continua o relato, dando conta do vigoroso depoimento de João Pestana de Vasconcelos, em carta enviada ao Governador Civil de Lisboa, queixando-se de não conseguir dormir desde que se mudara para o centro da cidade por causa dos automóveis que passavam “a toda a hora, para baixo e para cima, subindo e descendo” que lhe causavam um terrível sobressalto “com o estrondo das rodas chapadas de ferro batendo castanholas nos paralelepípedos espaçados e duros da calçada, um barulho de ferro velho dos motores e engrenagens e com o som cavernoso das suas gaitinhas e trombetas” (Magalhães, 2014, p. 179).

[10] Assim se compreende o argumento de Les Back segundo o qual “a escuta sociológica é fundamental hoje para… dar um sentido de inclusão a tudo o que ‘está fora do lugar’ ” (Les Back, 2007, p. 22).

[11] Em Discord, Mike Goldsmith refere-se às iniciativas de Charles Babbage (1791-1871), um dos primeiros críticos do ruído oriundo das ruas de Londres. Babbage era um excêntrico matemático-inventor, autor de um panfleto sintomaticamente intitulado Chapter on Street Nuissances, em que identifica um conjunto de 165 fontes de ruídos perturbadores do trabalho científico, tendo mesmo chegado a calcular que cerca de 25% do seu trabalho teria sido prejudicado pela perturbação ruidosa da rua, em parte deliberada, que o forçava a frequentes interrupções (Trower, 2012, p. 110). Babbage considerava a luta antirruído uma obrigação dos intelectuais - justamente como sucederá com Theodor Lessing, como veremos adiante - e permitia-se acusar as “mentes desocupadas” de estimularem o barulho incessante. Entre outros, Babbage colocava na lista dos principais causadores de ruído os taberneiros, os músicos, os bares e pubs, os coffee-shops, as crianças, os empregados, os recém-chegados do campo, assim como as “senhoras de reputação duvidosa”. Em resposta, alguns dos sujeitos objeto das suas denúncias retaliaram e consta, como assinala Goldsmith, que se repetiam as situações da presença prolongada daqueles “barulhentos agitadores”, junto da residência do próprio Babbage (Goldsmith, 2012, pp. 112-114).

[12] Registo, neste particular, dada a curiosidade documental que constitui acerca do fator sonoro no quotidiano, o testemunho de Sigmund Freud sobre o som urbano como descritor do quotidiano de Roma. Em carta dirigida aos seus filhos, em 22 de setembro de 1907, Freud escreve “Todas as noites, centenas de pessoas juntam-se na Piazza Colonna, por trás da qual, como sabeis, estou a viver. O ar da noite é muito agradável e Roma quase não tem vento. Atrás da coluna, há um coreto onde, à noite, vem sempre tocar uma banda militar. (…) Há cadeiras de verga disponíveis ao pé da banda de música, mas os locais gostam de se sentar na balaustrada à volta do monumento. (…) Quando a música para, toda a gente bate palmas ruidosamente, mesmo quem não conseguiu ouvir coisa nenhuma. De vez em quando, escapam-se uns gritos estridentes do meio da multidão... (…) Esse alarido é provocado pelos jovens ardinas que (…) irrompem pela praça com os vespertinos do dia. (…) Daqui do meu quarto, oiço perfeitamente a música, mas obviamente não vejo o que se passa. Neste preciso momento, o público está outra vez a bater palmas. Saúdo-vos com afeto. O vosso Pai.” (Freud, 1975, pp. 261-263).

[13] O maestro Vitorino de Almeida refere-se a este processo de naturalização do ruído no espaço público urbano quando descreve uma momentânea perturbação causada por “um manto sonoro indiscritível” que o envolve, dizendo “… olhei o movediço panorama urbano de onde emergia a algazarra imensa e compreendi que esse tumulto tinha a sua razão de ser: era o som da cidade… (para concluir que) o bulício não afetou, de modo algum, a minha entrega ao trabalho mental da composição” (Almeida, 1987, p. 563).

[14] Cf. https://www.youtube.com/watch?v=IC3KMbSkYNI&t=12s. (Consultado em 01-07-2018).

[15] David Toop refere-se à circunstância de Igor Stravinsky ter apreciado a primeira apresentação pública dos intonarumori de Russolo e se ter mostrado deliciado por poder “escutar algo capaz de gerar maior agitação” do que o seu Le Sacre du Printemps - também objeto de críticas severas - tendo mesmo admitido vir a incorporar esse ruído musical no seu próprio trabalho (Toop, 1995, p. 79).

[16] Em 21 de junho de 2013, às 22:00 horas, Pedro Castanheira dirigiu a “Lisboa em si”, um concerto inédito feito de sons tradicionais da cidade (apitos de cacilheiro, sinos de igrejas, campainhas de elétricos). O acontecimento, que contou com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa, foi tratado pelo seu mentor como “evento cívico e político centrado no sonho”, que duraria 7 minutos, em alusão à duração do terramoto de 1755. (Disponível em https://video.search.yahoo.com/search/video?fr=mcafee_uninternational&p=Lisboa+em+si#id=4&vid=db8778354acb098c8ea9d1b6002e9aa7&action=view. (Consultado em 10-10-2018). A meu ver, tratou-se uma das mais criativas e impressionantes celebrações do ruído musical urbano em Portugal, com manifestas aproximações simbólicas à exaltação do ruido de Russolo e dos futuristas. É assinalável também a iniciativa de José Alberto Gomes com a produção dos sounds maps da cidade do Porto, que, em registo diferente, tem a intenção de registar a memória sonora da cidade (Disponível em https://www.publico.pt/2013/10/27/jornal/o-fluxo-de-som-da-cidade-do-porto-inspira-obras-de-arte-27301176. (Consultado em 10-10-2018).

[17] Estão neste caso, entre vários outros, Claude Debussy (Estampes - https://www.youtube.com/watch?v=JFBqsEOJw0Q, Igor Stravinsky, Igor Stravinsky (Le Sacre du Printemps - https://video.search.yahoo.com/search/video?fr=mcafee_uninternational&p=Stravinsky+Le+Sacre+du+Printemps#id=4&vid=34c6cd225f12251239dbdeb116b1225d&action=view), Darius Milhaud (Le Boeuf sur le Toit - https://video.search.yahoo.com/search/video?fr=mcafee_uninternational&p=Le+Boeuf+sur+le+Toit#id=3&vid=e4a8ebe39b1822b957ee369a202b2bff&action=click), Arthur Honnegger (Pacific 231 - https://video.search.yahoo.com/search/video?fr=mcafee_uninternational&p=Honnegger+%28Pacific+231#id=2&vid=737bec70bfc6f45daf34eec19c1a1b3d&action=click) ou Edgard Varèse (Poème électronique - https://www.youtube.com/watch?v=WQKyYmU2tPg).

[18] Como o próprio Pierre Shaeffer esclarece: “Chamei música concreta a esta vontade de utilizar materiais vindos de experiências sonoras “específicas” para enfatizar a passagem da nossa dependência de sonoridades abstratas preconcebidas para fragmentos da realidade, entendidos como objetos sonoros únicos e particulares, ainda que, e principalmente, quando não correspondem às definições convencionais da teoria da música” (Schaeffer, 2012, p. 14).

[19] Cf. https://www.youtube.com/watch?v=N9pOq8u6-bA&list=RDN9pOq8u6-bA&start_ra dio=1&t=55. (Consultado em 01-07-2018).

[20] De acordo com o relato de Jerrold Seigel (1999), corroborado por Joseph Lanza (2004), Eric Satie terá confessado a um amigo, o pintor Fernand Léger, que a mobília musical seria um expediente perfeito para suavizar os ruídos da rua ou o incomodativo cintilar dos talheres nos restaurantes, preenchendo, deste modo, os vazios das conversas e reduzindo o recurso a desnecessárias banalidades da intercomunicação (Seigel, 1999, p. 321).

[21] Entre as diversas críticas dirigidas à música ambiente contam-se os comentários de Jacques Attali, que vê nela um manifesto apelo ao consumismo (Attali, 2001), e de Siegfried Kracauer que lamentava que a “intromissão” constante da música em ambientes recatados (cafés, restaurantes ou igrejas) eliminasse a tentativa de concentração dos sujeitos e de afirmação da sua individualidade (Kracauer, 1995, p. 333).

[22] Cf. https://www.youtube.com/watch?v=ykJg-vE3k-E. (Consultado em 10-10-2018).

[23] Para uma brevíssima referência à relação dos futuristas italianos com a pintura (cor) e o ruído (som), vejam-se as referências de Emily Thompson a propósito do modo como vários dos seguidores de Fillipo Marinnetti expressam o seu entusiasmo com a capacidade das tecnologias para “revolucionar” a poesia, a pintura e a música (Thompson, 2004, pp. 134-139). Permito-me introduzir uma nota pessoal sobre esta matéria, dando testemunho do clamor gerado pelo pintor moçambicano Ngwenya Malangatana e o músico português Carlos Paredes quando, em Maputo em 1986, se entregaram a uma “instalação” única em que, cada um à sua vez, exercitava a sua arte num diálogo improvisado com o outro. Malangatana pintava os sons saídos da guitarra de Paredes e, de seguida, inversamente, era Paredes a tocar o colorido das pinceladas que Malangatana produzia sobre a tela, como quem, espontaneamente, dava expressão estética ao apelo futurista de fusão da pintura com a música.

[24] Recordem-se as referências feitas, em nota anterior, às denúncias de Charles Babbage sobre o ruído nas ruas de Londres. Recorro principalmente aos trabalhos de Poetzl (1978), Baron (1982) e Bijsterveld (2001 e 2008) como referências sobre os trabalhos de Theodor Lessing.

[25] Trata-se da fundação da Deutscher Lärmschutzverband - Associação Alemã de Proteção contra o Ruído. A Associação, publicou um boletim mensal - Der Antirüpel: Recht auf Stille (“Antirruído: O Direito ao Silêncio”) - até ao ano de 1914, quando o eclodir da guerra levou à sua dissolução (Bijsterveld, 2001, p. 101).

[26] Segundo Karin Bijsterveld, a cidade de Hannover teria, em 1907, menos de 1,500 automóveis a circular e toda a Alemanha era desse ponto de vista ainda muito moderada também. Existiriam nesses primeiros anos de 1900 uns 27 mil automóveis em toda a Alemanha, contrastando com os cerca de 2 milhões de cavalos e outros animais de tiro (Bijsterveld, 2001, p. 98).

[27] Para uma perspetiva sociológica das modalidades de habituação dos operários às novas condições auditivas da cidade e da indústria, veja-se a análise que David Hendy dedica ao estudo de narrativas da época da industrialização que vão no sentido de mostrar como “se estava a assistir à criação de uma nova espécie de humanidade” (Hendy, 2013, pp. 217-220).

[28] Informação disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/Electric_vehicle_warning_sounds. (Consultado em 10-10-2018).

[29] Para outras organizações antirruído no contexto europeu da época, vejam-se, entre outros, Bailey (1966), Bijsterveld (2001), Thompson (2004), Payer (2007) e Goldsmith (2012).

[30] Uma breve e assistemática recolha de registos de denúncias antirruído encontra títulos como os seguintes referentes a zonas particulares da cidade de Lisboa: “Carros e barulho ‘matam’ a Encarnação” (JN, 05-11-1993); “Rua Conde de Almoster: Moradores queixam-se do barulho e do lixo” (Público, 18-08-1997); “Lumiar exige barreiras anti-som” (Correio da Manhã, 15-07-2004); “Ruído menos agressivo no Restelo” (JN, 12-04-1999); “Quinta da Rosa perturba a paz da vizinhança” (JN, 03-03-2000); “Moradores do Bairro Alto não conseguem pregar olho” (JN, 22-01-1997).

[31] A Diretiva Europeia sobre o Ruído Ambiente (Diretiva 2202/49 CE) introduziu ajustamentos nesta matéria ao transpor as normas europeias de avaliação do ruído para a ordem jurídica interna. Tal não impediria, todavia, que, em 2016, uma estudiosa do ambiente nacional - Sofia Guedes Vaz - deixasse registada a falta de resposta do país no envio de dados em 2012, quando “quase todos os municípios estão atrasados na elaboração dos mapas estratégicos” que recolhem informação sobre poluição sonora (Vaz, 2016, p. 35).

[32] No caso do impacto direto da atividade industrial, em Portugal, são mais frequentes as denúncias referentes à poluição ambiental não sonora e às descargas desregradas de detritos poluentes (Schmidt, 2016).

[33] Não deixo de registar como esta estratégia constitui uma réplica do dispositivo de afirmação social usado pelos trabalhadores urbanos que Lessing assinalou, embora com a evidente alteração dos protagonistas que são agora membros das elites coloniais ocidentais em busca de distinção.

[34] Ao referir o controle político e policial do ruído, deixo registada a referência ao importante ensaio de Peter Szendy sobre o “ordálio sonoro” que comenta vários contributos jornalísticos e académicos sobre o perverso uso da música (no-touch torture) como instrumento de tortura utilizado em experiências recentes de Guantánamo e Abu Ghraib (Szendy, 2016).

[35] Veja-se, a este propósito, a ópera contemporânea sobre o libreto intimista (de Mark Campbell e Kimberly Reed) que a compositora americana Laura Kaminsky intitulou “As One”, com que expressa a transição identitária transgénica de uma pessoa, representada pela fusão de duas vozes, uma masculina e outra feminina (Kaminsky, 2014).

[36] Em uma das suas músicas mais conhecidas - “A técnika, as kausas e as konsekuências” - que denuncia a precaridade das estruturas urbanas de Luanda, o músico Mc Kapa faz-se ouvir afirmando: “Temos mais armas do que temos bibliotecas/ Temos mais armas que bonecas/ Menos universidades que discotecas/ Mais cantinas que bibliotecas…”.

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