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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.229 Lisboa dez. 2018

https://doi.org/10.31447/as00032573.2018229.10 

RECENSÃO

SCHMIDT, Luísa

Portugal: Ambientes de Mudança. Erros, Mentiras e Conquistas,

ISBN 9789896444181

Carlos Fortuna*

* CES, Universidade de Coimbra, Colégio de S. Jerónimo, Apartado 3087 - 3000-995 Coimbra, Portugal, cfortuna@fe.uc.pt


 

Portugal: Ambientes de Mudança. Erros, Mentiras e Conquistas é um trabalho que reúne textos de natureza e de tempos diversos publicados anteriormente no formato de crónicas regulares do jornal Expresso. Textos preparados para contextos públicos amplos, reflexões destinadas a denunciar e a alertar-nos sobre a condição ambiental do país, com um registo ora local, ora nacional, ora internacional, por vezes mais virados para o Estado e a sua ação, inação e incongruências, outras vezes para a sociedade civil e as suas fraquezas e incoerências, sempre com um tom de apelo às nossas energias para a denúncia do mal que está o nosso ambiente, de um lado, e a nossa mobilização para a sua urgente melhoria, do outro. Os textos agora recolhidos em livro, uns mais longos do que outros, são, porém, inteligentemente comedidos na sua extensão.

É importante registar o trabalho de reedição deste material a que a autora se entrega. O efeito final é muito positivo e acaba por conferir a esta coletânea um estatuto que foge por completo à vulgar coleção em formato livro a que se dedicam alguns comentadores/cronistas, entregues a manifesto exercício hedonista. Este livro encontra-se num plano distinto e não se confunde com aquela banalização da crónica/opinião jornalística. Desde logo porque nestas 400 páginas se desenrola a história política e ambiental de um país inteiro. Atenção às escolas e às universidades… estamos perante um inusitado retrato, quase um manual, da questão ambiental portuguesa.

Na verdade, os textos deste Portugal: Ambientes de Mudança, recobrindo um largo período de 25 anos, surgem atualizados através de um duplo estratagema: por um lado, numa espécie de atualização heurística, os textos surgem aqui enquadrados numa temática ou secção determinada e ganham assim um sentido renovado; por outro lado, no que diria tratar-se de um palimpsesto narrativo, aquela agregação temática gera um diálogo diacrónico feito de tempos diferenciados da condição ambiental portuguesa, pós 1990. Desta dupla aproximação de textos resulta uma intertextualidade que amplia os contornos de cada uma das nove temáticas escolhidas e acaba por conferir a toda a obra uma densidade narrativa de elevadíssimo interesse. Ao lê-la percorremos a história contada em pequenos fascículos do que foi - e há-de ser - o futuro ambiental português.

Cada uma destas nove secções traz consigo uma oportuna introdução. Aí os leitores são advertidos contra o que de outro modo poderia ser o estranhamento de ver tempos desencontrados unidos por objetos ambientais diversos, mas na verdade comuns. A esta introdução de cada temática a autora junta também uma breve resenha a que chama “tendências”, na qual dá conta daquilo que melhorou, do que se mantém mais ou menos inalterado e do que piorou nestes anos. Assim, cada secção tem um passado, mas tem sobretudo uma determinada “tendência” à sua frente, quer dizer, à nossa frente, que a autora oferece para nossa inquietação política e intelectual. É muito rico o trajeto pelo qual a autora nos conduz. É um percurso feito de sínteses, de datas, de personagens, de (in)eficientes dispositivos regulatórios, de experiências pontuais e finalmente de balanços sobre a pobre portugalidade ambiental. Mas não é tudo! A quase todos os textos agora renascidos juntam-se umas 10 ou 20 linhas esclarecedoras do seu surgimento, a chamada “ficha de artigo”. Resulta desta (re)organização dos textos que este é como um belo livro de contos. Cada secção tem sempre um princípio, meio e fim, como fazem os bons e breves contos, que permite que sejam lidas sofregamente na sua autonomia própria. Chega-se sempre ao fim. Quer-se sempre passar ao texto seguinte.

Parece ser indiferente saber por onde começar a ler o Portugal: Ambientes de Mudança. A cada passo, a cada entrada, há sempre um aprazível e esclarecedor relato a percorrer, uma memória da nossa condição ambiental a recordar, um avanço a reconhecer, uma denúncia pública a fazer ou uma revolta interior e coletiva a acalentar. Se não tivermos, como sucede no meu caso pessoal, uma temática preferida definida à partida, podemos desobedecer livremente, irreverentes, à estrutura organizativa interna que nos é proposta. Sim, estamos autorizados, enquanto leitores/as, a seguir aquilo que Walter Benjamin aconselhava fazer-se com a sua própria obra: isto é, a descolecionar a coleção e a ler cada capítulo isoladamente e pela ordem que muito bem desejarmos. A ser assim, começar, por exemplo, pelo capítulo das alterações climáticas, pode desafiar-nos a prolongar a leitura com as questões do ordenamento territorial, ou a conservação da natureza e das florestas… não apenas as nossas, mas também as de outras latitudes. De igual modo, quem preferir começar pela questão da água, por certo vai desejar seguir para o desastre do nosso litoral, ou para o problema dos resíduos urbanos.

Ao referir-me a esta liberdade de escolha relembro uma pequena história sobre Marshall McLuhan, o proeminente estudioso da comunicação social moderna, mais conhecido pelo tratamento pioneiro da “aldeia global”. McLuhan confessou uma vez a um jornalista que sempre que buscava na livraria um novo livro e não dispunha de qualquer referência especial, fazia as suas escolhas depois de ler a página 69 dos possíveis livros a comprar. Porquê a página 69? Porque nessa altura, explicou McLuhan, já entrámos no enredo a sério e a narrativa encontra-se no seu auge. Os prolegómenos, as descrições iniciáticas, as apresentações das personagens ficaram já para trás. Dali em diante, só nos espera a trama verdadeira, o autêntico desenlace da história. Enfim, é a página 69 que decide se devemos ou não comprar aquele livro. Confesso que repetidas vezes dou comigo a exercitar esta experiência. Assim, mal abri o livro, como não podia deixar de ser, fui visitar a página 69. Deparei-me com uma daquelas páginas em papel cinzento que prenuncia leitura sombria. Nela, todavia, encontrei uma viva descrição da evolução da natureza dos nossos lixos urbanos e industriais e das técnicas da sua recolha. Tudo mudou, também entre nós, lê-se, fruto da concentração urbana e do desenfreado aumento do consumo, iniciados, uma e outro, na longínqua década de 60. Da lixeira de Beirolas, à beira de Lisboa, ou melhor à beira do martirizado rio Tejo, passando pelos trabalhos de preparação da Expo 98, ou da polémica da coincineração até à recente criação dos CIRVER (Centros Integrados de Recuperação, Valorização e Eliminação de Resíduos Perigosos) abre-se perante nós uma luminosa reflexão sobre o caminho português dos lixos e do seu tratamento. A página 69 que era cinzenta por fora revelava afinal um irresistível colorido por dentro, salpicado de memórias da nossa portuguesa meninice, já que a discussão não deixa de trazer à colação, como os sociólogos sabem fazer bem, os modos recuados de resolução do lixo lá de casa, entregue à diligência do “almeida”, de vassoura em riste, apostado em despejar o balde forrado a papel de jornal deixado à porta.

A descrição da autora fez-me reencontrar nesta página o lixo que a antropóloga Mary Douglas declarou um dia não passar de natureza fora do lugar (Purity and Danger), o que é o mesmo que afirmar que se trata de matéria eminentemente social. Como comprovam dezenas e dezenas de estudos sobre a dimensão socioambiental do lixo, sobretudo do lixo urbano, há vidas estruturadas e desigualdades sociais que se desenrolam em seu redor. Casos como os do entulho derramado na beira da estrada, a geladeira abandonada na mata, o colchão sub-repticiamente abandonado na esquina da cidade, ou, numa nota manifestamente localista, os carrinhos de supermercado que enxameiam o leito de tantos dos nossos rios, continuam infelizmente a assinalar um país sujo e uma mentalidade ambiental (ou será uma cidadania?) que carece de profunda limpeza e reciclagem. Tal como o drama das lixeiras a céu aberto não terminou como poderíamos julgar (vejam-se as perversas microlixeiras clandestinas), também a polémica da coincineração não foi totalmente estancada com o surgimento da política dos “3 Rs” (Reduzir, Reutilizar e Reciclar).

É no possível desencontro institucional dos reguladores e das empresas dedicadas à questão que reside, segundo a autora, o grande risco de que tudo possa ficar aquém do que uma cidadania ambiental deve significar.

O teste McLuhan não engana! Este livro tem de ser lido. O Portugal: Ambientes em Mudança, (Erros, Mentiras e Conquistas) faz-nos desejar que a mudança bata finalmente à porta da nossa cidadania.

Se alguém preferir canonicamente começar a lê-lo pelo princípio, depois de uma curta e muito clara introdução, depara-se com as nove secções temáticas. A primeira trata desse recurso estratégico e absolutamente crucial do nosso futuro coletivo - a água. A abordagem está associada à análise do sistema de esgotos e do seu tratamento. Entre os progressos alcançados nos últimos 25 anos, entremeados com muitas incúrias e incompetências gritantes, a autora deixa-nos um alerta para o risco de involução e retrocesso no panorama hidráulico nacional. Nada está seguro e consolidado neste domínio, como, de resto, sucede também em matéria tratada na segunda secção - os resíduos urbanos, industriais e hospitalares.

A secção 3 dedica-se à questão dos “ares, das poluições e da saúde pública”. Stadtluft macht frei - os ares da cidade libertam - gritavam os camponeses alemães do séc. XIV em busca de uma cidade livre de constrangimentos e que lhes garantisse uma vida decente. Foi um logro da história e, como se sabe, o anunciado desejo não chegou a concretizar-se. Tal como os camponeses de então, também nós temos de gritar, 700 anos depois, pelos mesmos desígnios de melhoria de qualidade dos “ares da cidade”. Nas cidades do Portugal de hoje, assevera-nos a autora, “o sistema de informação pública da qualidade do ar… perdeu qualidade por interrupção de medição e análise; algumas estações estão desativadas e inexplicavelmente, continuam a ser “secretos” os dados do autocontrolo das grandes indústrias”. Sem informação adequada não há cidadania (ambiental ou outra) que seja sustentável.

Na secção 4 - “Alterações climáticas: das emissões às políticas”… - não é necessário descrever mesmo que a traços muito grossos os contributos das restantes 6 secções do Portugal: Ambientes de Mudança. Sublinho apenas que elas nos presenteiam com uma série de temas inadiáveis: Energias: das clássicas às renováveis; Ordenamento do Território e Paisagem; Conservação da natureza, floresta e biodiversidade; O litoral e o mar… e a terminar, Cidadania, participação e informação.

Em síntese, este é um livro que traz consigo o entusiasmo de todos os livros sobre a coisa pública, pois, ao longo de um pouco mais de 400 páginas, tanto nos retrata e faz olhar para o nosso passado ambiental recente, como interpela o nosso presente e nos desafia e mobiliza para ajustarmos contas com o nosso futuro. As crónicas da Luísa Schmidt são um património tremendo de conhecimento e militância ambiental que fazem dela uma pessoa pública e agente interventor com décadas de ação determinada no cenário intelectual e cultural lusófono.

Resta uma palavra final sobre a alegria contida na escrita da autora. Não se trata de escrever bem. Trata-se de o saber fazer com inegável inteligência e perspicácia. Só quem sabe escrever assim usa a linguagem metafórica para aprofundar os assuntos, não para os aligeirar. Sabe bem ler-se que “nem água vai, nem água vem” para tratar da hidráulica portuguesa. É bom saber que “Cá se fazem cá se lixam” (p. 71) a enunciar uma ajustada retórica sobre os resíduos urbanos deste país. Ou como não nos apraz saber que “mais vale prevenir do que apagar” (p. 272) para referir a imperiosa necessidade de antecipar a solução e pôr termo à tormenta dos devastadores incêndios florestais que, como o livro mostra, já se anunciavam há muito para os anos próximos que haviam de vir.

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