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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.228 Lisboa set. 2018

https://doi.org/10.31447/as00032573.2018228.16 

RECENSÕES

ALEXANDRE, Valentim

Contra o Vento: Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)

Lisboa, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2017, 839 pp.

ISBN 9789896444570

Diogo Ramada Curto*

*Departamento de Estudos Políticos, IPRI, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Av. de Berna, 26-C - 1069-061 Lisboa, Portugal,dcur@fcsh.unl.pt


 

Se analisar implica distância, começo por sugerir uma comparação.[1] Num pequeno livro de memórias, escrito com um humor inteligente, José Cutileiro (2017) falou acerca das duas principais transições por ele observadas, ao longo da sua carreira de embaixador político: de um lado, a dissolução da Jugoslávia, do outro, o fim do apartheid. Para ele, os dois processos estiveram ligados ao colapso da União Soviética que, por sua vez, determinara o fim das experiências bolcheviques inspiradas em Marx e Lenine, que começaram em 1917. Se, em ambos os casos, o colapso foi condição necessária para desencadear os referidos processos de transição, entre eles também se registaram algumas diferenças. Nos Balcãs Ocidentais, fizeram-se sentir tanto as continuidades de dois impérios bem distintos - o Otomano, muçulmano sunita e à sua maneira tolerante, e o Austro-Húngaro, cristão católico e intolerante -, bem como as do antigo nacionalismo sérvio, frustrado, apesar de vibrante. Enquanto, na África do Sul, os restos do colonialismo inglês e holandês, sem esquecer o toque huguenote francês que levou ao cultivo da vinha, sobrepuseram-se em relação às fortes tradições nacionais africanas. O apartheid manteve-se na contramão do que as elites do hemisfério Norte, sobretudo nos EUA e na URSS, procuraram impor ao longo da segunda metade do século XX. Ou seja, a África do Sul não tinha seguido o rumo progressista representado tanto pela declaração dos Direitos do Homem das Nações Unidas de 1948, como pelo discurso histórico sobre o “vento de mudança” pronunciado pelo primeiro-ministro britânico, Harold Macmillan, em fevereiro de 1960. Os sul-africanos brancos pouco ligaram a essa e a outras mensagens que lhes foram diretamente enviadas, tendo preferido o ostracismo a que foram votados internacionalmente, até ao momento em que o Partido Nacional libertou Mandela, para que não mais se voltasse atrás.

O novo livro de 839 páginas do historiador Valentim Alexandre, Contra o Vento: Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960), retoma alguns dos termos enunciados de forma muito sumária por Cutileiro. Primeiro, empreende uma larga investigação arquivística para reconstituir o modo como o Estado Novo, no período posterior à Segunda Guerra, definiu as suas políticas coloniais em função das relações externas, num panorama marcado pela Guerra Fria. Ou seja, Valentim Alexandre também procura situar o caso português entre as declarações da ONU, claramente viradas para a autodeterminação dos povos, e o referido discurso de Harold Macmillan, proferido no parlamento da África do Sul. Segundo ponto, num panorama internacional favorável à descolonização - a começar, logo em 1947, pela independência negociada da Índia - como é que foi possível ir “contra o vento”, para utilizar a expressão que consta do título do livro em causa? Aliás, não se trata apenas de querer saber como é que foi possível ao Estado colonial português de Salazar ir contra o vento, investindo numa forte dimensão descritiva, capaz de pôr a nu os mecanismos políticos, sobretudo os que dizem respeito aos processos de tomada de decisão centralizados em Salazar. O que o autor também procura identificar são as razões que levaram o Estado colonial português a preferir o isolamento ou o ostracismo, para voltar ao conceito utilizado por Cutileiro a respeito da África do Sul, na sua tentativa mais do que autoritária de prolongar até ao limite uma política de apartheid.

Claro que a escala da análise, a natureza dos objetos em causa e até os valores mais propriamente ideológicos dos dois autores em causa não permitem exagerar o exercício de aproximação - a comparação pela semelhança - entre as três páginas escritas por José Cutileiro e as mais de oitocentas escritas por Valentim Alexandre. Há, igualmente, diferenças de monta entre os dois autores que não podem ser escamoteadas. Antes de mais, Cutileiro fala das elites do hemisfério norte, colocando a União Soviética e os Estados Unidos, numa relação de paridade. Enquanto Valentim Alexandre, condicionado pela documentação arquivística, insiste, sobretudo, no peso das relações com os Estados Unidos. E, no único momento em que teria ocasião para referir o peso da União Soviética, com a sua evidente interferência na oposição às políticas coloniais de Salazar, não o faz. Refiro-me à análise, baseada numa consulta rigorosa ao jornal Avante, das posições do Partido Comunista Português. Este, desde a Conferência de Bandung de 1955, teria rompido com o consenso alargado que os meios da oposição - desde a campanha presidencial do General Norton de Matos - manifestaram em relação a uma política colonial. Há uma segunda diferença entre os dois autores com mais implicações na própria análise e no modo de conceber o colonialismo português e as suas políticas. É que, enquanto Cutileiro em relação à África do Sul se refere a uma espécie de sobreposição entre lógicas da dominação imperial e forças políticas locais, Valentim Alexandre põe de lado as segundas, centrando-se fundamentalmente nas relações externas e no papel das elites metropolitanas.

 Poderia prosseguir com a comparação entre os dois autores. O recurso a uma espécie muito subtil de “self-deprecatory humour” em Cutileiro não tem paralelo com o que acontece no livro de análise histórica de Valentim Alexandre, no qual, para além das outras obras do autor que são abundantemente citadas em nota, não há qualquer traço de individualismo, nem interferências do self. Esta ausência é, com certeza, um sinal de modéstia, porventura excessiva - dirão os mais afoitos ao culto das personalidades intelectuais e da ego-histoire. De qualquer modo, não pretendo prolongar este exercício de comparação entre autores, nem o exame dos estilos na arte de escrever história. Que não se diga, também, que me escondo atrás das comparações para fazer críticas veladas ao grande livro de Valentim Alexandre, com cuja leitura tanto aprendi. A academia portuguesa não tem sabido criar sempre as condições necessárias à discussão e à crítica. Universitários e intelectuais vivem demasiado obcecados com esse mesmo culto da personalidade - de que Valentim Alexandre exemplarmente se aparta - e com as pequenas lutas pelo reconhecimento e obtenção de honrarias ou sinais de prestígio. Sem conseguir criar, democraticamente, fora de preocupações hierárquicas, fundadas em títulos e outras bandeiras, o referido espírito aberto propício ao debate.

Por isso, longe de mim, vir agora dar uma lição de azedume, fazendo aquilo que a academia não tem conseguido fazer. Isso seria o mesmo que querer montar e desmontar um teatro de bonifrates, procurando criar uma espécie de simulacro fugaz de discussão. Mais: a grande lição que está por detrás deste exercício não me pertence, pois foi-me dada por Valentim Alexandre há cerca de um mês, quando me convidou para apresentar o seu livro. Explico-me. Sabendo que me iria oferecer um exemplar, pretendi retribuir e perguntei-lhe se já tinha lido a obra que publiquei no ano passado, em co-autoria com dois jovens politólogos, Bernardo Pinto da Cruz e Teresa Furtado, Políticas Coloniais em Tempo de Revoltas: Angola circa 1961 (Afrontamento, 2016). Disse-me que sim. Ou seja, a grandeza de Valentim Alexandre - resultado de uma sabedoria que vem com a idade e com o avolumar de uma obra vasta e de referência, também ela construída contra ventos e marés - está precisamente no facto de me ter dado a honra de apresentar um livro seu, quando estava ciente do quanto divirjo de muitas das suas interpretações. Embora, às diferenças, se possam acrescentar muitos pontos de convergência. Concretamente, partilho da agenda historiográfica de Valentim Alexandre em dois aspetos cruciais e, pelo que aprendi com a sua leitura, também me considero um seu discípulo. Primeiro, a história parte de problemas, considerados pertinentes, que nos esforçamos por compreender e explicar. Segundo, não existe história sem arquivos e documentos, o que implica investigações morosas e exigentes de muitos anos, tendo em vista reconstituir empiricamente configurações políticas e sociais concretas. Neste sentido, estamos a milhas de uma simples história das ideias (feita tantas vezes ao sabor de orientações que correspondem a filosofias políticas opostas) ou do recurso a bases de dados prontas a consumir (com as quais se pretende quase sempre responder a modelos pré-construídos, criando uma aparência de cientificidade). Nenhum desses modos de fazer história se podem, aliás, constituir em atalhos da investigação histórica rigorosa.

Quais os cinco grandes problemas que Valentim Alexandre identifica no colonialismo português entre 1945 e 1960 e como é que os trata, nas suas análises rigorosas, baseadas num exame atento dos arquivos?

Em primeiro lugar, o colonialismo português só pode ser entendido numa escala internacional, na qual o “factor essencial” é constituído pela Guerra Fria. A este respeito, conforme Valentim Alexandre esclarece na conclusão - em oposição ao que afirmara anteriormente acerca da NATO e da EFTA (p. 653) - as principais organizações internacionais em que Portugal participou e nas quais obteve um reconhecimento negociado, a par e passo, que lhe permitiram manter-se contra o vento, são a ONU e a OIT. Foi o que demonstraram as investigações, que cita, de Miguel Bandeira Jerónimo e José Pedro Monteiro. É a essas instituições que, de modo fluído, Portugal vai buscar, por diversas vezes, formas de legitimação internacional do império. Porém, cumpre notar, que tais instituições, a partir das quais Portugal pôde combater o isolamento ou o ostracismo, resultaram de uma miríade de atores, de mecanismos, de linguagens e de problemas: técnicos, sociais e económicos, não apenas políticos, no sentido de não serem passíveis de redução ao papel de meia dúzia de homens com poder. Será, pois, no exame de tais negociações e no papel assumido pelos representantes portugueses em tais instituições, incluindo homens aparentemente de segundo plano, com uma visão mais técnica, mas porventura mais eficaz, que a investigação pode agora avançar. Pondo de lado falsas questões, denunciadas e bem por Valentim Alexandre, como a da “inversão das alianças”, proposta por António José Telo, em que Portugal, na ausência de apoios dos EUA e do Reino Unido, se teria passado a aliar à França e à Alemanha (p. 652). E, sobretudo, recusando a proposta infundada e simplista de Bruno Cardoso Reis de que Portugal, a partir de 1956, teria passado a ser um Estado pária e indigno, que recusava normas e diretrizes internacionais, configurando um padrão comparável à Coreia do Norte dos nossos dias (p. 653).[2]

Em segundo lugar, a preocupação por visões de conjunto de Valentim Alexandre não se concretiza apenas no estudo do modo como as relações internacionais marcaram a evolução do colonialismo português. Ela é extensiva ao império português como um todo, ou seja, não se trata apenas de estudar uma única colónia, mesmo atendendo à vasta extensão de Angola ou de Moçambique, mas sim de incluir na mesma abordagem os casos da denominada Índia Portuguesa, de Macau e de Timor. É, aliás, esta capacidade demonstrada acerca de uma visão de conjunto do Império português que pode ser evocada para explicar a falta de atenção que é dada à escala local. Entendo, neste caso, por local tanto o funcionamento mais pormenorizado das instituições que estão na base de processos políticos de tomada de decisão, como o próprio funcionamento das sociedades que sofreram o impacto do colonialismo. Tal como se fosse possível pôr de pé uma estratégia de investigação em que, de um modo compensatório, aquilo que se ganha em extensão acaba por se perder em profundidade. Mais do que em relação às colónias de África, são as pequenas colónias asiáticas que mais revelam as consequências de um Estado colonial fraco, que ora depende dos apoios externos para a sua manutenção, ora se vê forçado a pactuar com a defesa dos interesses locais, com os quais negoceia e cede, a ponto de abandonar os seus próprios princípios. Foi o que sucedeu com o acolhimento dispensado ao grupo de homens de negócio chineses em Macau, cujo alinhamento com o regime comunista foi esquecido, a bem da continuidade da presença portuguesa. Ou, de uma outra maneira, com a reversibilidade do colonialismo dos fracos transformado em manifestação de exorbitância e de violência excecional no massacre de Timor de 1953. O que investigações futuras terão que procurar verificar - seguindo uma das muitas sugestões de Valentim Alexandre - é de que modo as debilidades de um Estado colonial fraco, do ponto de vista dos recursos e da presença, determinaram o recurso à violência exemplar e pontual - ao terror e aos massacres -, para se impor em situações de ameaça ou de perda de controlo.

Terceiro problema identificado no livro: há uma vulgata lusotropicalista que se inspira em leituras de Gilberto Freyre, centrada na interpretação excecional do colonialismo português, baseada na capacidade de os portugueses integrarem e serem integrados por via da assimilação com os povos colonizados. Esta mesma vulgata foi construída ao longo da década de 1950, em círculos como o da Junta de Investigações do Ultramar, ligada à antiga Escola Colonial. Nessa mesma construção, Adriano Moreira desempenhou um papel de relevo. Essa mesma vulgata penetrou os meios oficiais de tomada de decisão. Na retórica de Salazar, por exemplo, passou a conviver com elementos de um discurso mais tradicional de natureza racista, articulados com outros que permitiam justificar a tutela colonial com base na constatação da incapacidade de povos primitivos se poderem autogovernar ou mesmo sustentar sem ser através de formas de trabalho compulsivo (pp. 622 e 627). A respeito deste fundo discursivo e ideológico tido como mais tradicional, uma das melhores formulações encontra-se numa carta do ministro dos Negócios Estrangeiros, Marcello Mathias, em 1959, que temia simplesmente que bispos como D. Sebastião Resende estivessem a “açular a matilha primária e negroide” (p. 668). De qualquer forma, Valentim Alexandre argumenta que a referida vulgata lusotropicalista, com raízes em ideias de assimilação que recuavam ao século XIX, teria já influenciado a revisão constitucional de 1951, da qual veio a resultar a transformação das colónias em províncias ultramarinas (p. 769). Simultaneamente, que não haja dúvidas: a retórica assimilacionista, que fazia parte da mesma vulgata, teve pouca influência nas próprias colónias (pp. 748, 751-752).

Ao lado de uma tal vulgata - que Valentim Alexandre localiza nos círculos da Junta de Investigações do Ultramar e que se veio sobrepor a um discurso racista mais tradicional -, haveria que contar com um conjunto de mitos conformadores da identidade nacional, e seria ainda de considerar a ideologia reformista, cujos resultados concretos a consulta do Arquivo Salazar largamente confirma. Não que se trate de um programa sistemático de reformas, mas de tendências reformistas que se encontram disseminadas não só em relatórios da JIU, noutros de carácter militar, mas também em projetos provenientes dos ministérios do Ultramar e dos Negócios Estrangeiros (p. 772). Porém, em lugar de passar das tendências e dos projetos às reformas - as quais acabariam por pôr em causa o próprio Estado autoritário -, Salazar ter-se-ia deixado ficar pela manutenção dos interesses criados ou, mesmo, pela adoção de medidas de intransigência e de carácter repressivo, no estilo de intervenção da PIDE, e influenciadas por conselheiros como Jorge Jardim. Este último tido por Salazar como se fosse um conselheiro de peso em matérias coloniais. Neste sentido, a vulgata lusotropicalista, a par do trabalho de recolha de informações e das subsequentes tentativas de reforma lançadas pela JIU e outras instituições oficiais, teria contribuído para que o país vivesse na irrealidade política, mesmo nos meios dirigentes, segundo a fórmula de Malraux, repetida por Franco Nogueira (p. 770). Numa palavra, na ausência de reformismo, com uma expressão muito limitada nas colónias, surgiu, sobretudo em África, mais concretamente em Angola, entre 1959 e 1960, uma onda acrescida de repressão (p. 774).

Uma tese desta natureza articula a vulgata lusotropicalista (com uma cronologia discutível e que não partilhamos), com a informação produzida pelas missões da JIU a par dos projetos de reforma de vários ministérios, com os mecanismos de circulação restrita e de censura da informação sobre a realidade colonial, e, por último, com a defesa de interesses mantidos à custa da repressão. Mais concretamente, o que um argumento desta natureza sugere é que um centro político encimado por Salazar, vivendo na irrealidade e sem a capacidade para introduzir reformas nas suas colónias, apenas conseguiu mantê-las adotando medidas repressivas. Mas terá sido mesmo assim que as coisas se passaram? Será que estamos condenados a fazer suceder os momentos, para pensar que, na ausência de reformas, surgiu a repressão dos atos de insubordinação ou de revolta? Não será possível pensar que, no mesmo momento, coexistiram reformas e atos de repressão? E o que dizer dos que são reprimidos: não têm direito a voz, na história colonial, as suas formas de resistência não terão os seus próprios ritmos, distintos dos das elites dirigentes, que não correspondem nem de perto nem de longe à citada dialética que vai da ausência de reformas e irrealidade política à defesa dos interesses por via da repressão? Estas são algumas das questões a que futuras investigações, inspiradas na obra de Valentim Alexandre, terão de responder.

A razão pela qual coloco todas estas questões é porque não me parece que, ao longo da década de 1950, existam razões para considerar que o Estado Novo tivesse sido tomado por um qualquer efeito de irrealidade. Ou, para utilizar uma expressão cara ao fundador do Instituto de Ciências Sociais, Adérito Sedas Nunes, num depoimento publicado no número 100 da Análise Social, o regime tivesse deixado de acreditar em si mesmo, dando azo à criação de outras dinâmicas que levariam à sua destruição. Aliás, o que o conjunto do livro de Valentim Alexandre demonstra é a vitalidade desse regime, fazendo e executando reformas para se legitimar internacionalmente e, mais importante, para se munir de um efetivo Estado Colonial, dotado de um poder infraestrutural cada vez maior. Neste, competiria a umas instituições recolher informações e elaborar reformas, a outras preparar-se com os meios técnicos, militares e policiais para a intervenção armada, a outras ainda integrar melhor o aparelho eclesiástico, numa relação que permitisse disponibilizar alguns serviços de ensino e de saúde, tudo isto num acerto de contas com o Estado metropolitano que não tinha dinheiro para grandes fantasias e com uma preocupação pela balança de pagamentos de cada colónia. A este respeito, o livro de Valentim Alexandre identifica bem um quatro problema que diz respeito ao modo de operar, nos seus diferentes sectores, de um Estado colonial que com todas as suas debilidades tinha de corresponder a uma regime autoritário. E que, por isso, mesmo foi objeto de sucessivas reformas.

Quinto e último problema: o colonialismo de um país “pequeno e pobre” baseia-se, acima de tudo, na exploração do trabalho e, por isso mesmo, vê-se constantemente forçado a organizá-lo debaixo de diversos regimes jurídicos, para satisfazer, por um lado, as pressões de regulação internacional e, por outro, os interesses de colonos e de companhias. Claro que existem outras alternativas de modernização e de desenvolvimento que não deixaram de ser consideradas. Foi o que aconteceu com a criação de novos colonatos, convenientemente referidos, ou com o lançamento de políticas de desenvolvimento comunitário. Estas últimas quase ausentes no livro, talvez por terem tido maior expressão na década de 1960 e ficarem para volume posterior. O problema central que aqui se visa - o do controlo justificado da mão de obra, em regime jurídico que fosse considerado legítimo, em plantações como as do algodão - debatia-se com os fluxos migratórios de trabalhadores em busca de melhores oportunidades: na Tanganica ou na África do Sul, no caso de Moçambique; enquanto no caso de Angola se escapavam para a Rodésia e para o Congo, podendo também continuar a alimentar os fluxos para as roças de S. Tomé.[3] De qualquer modo, o que não se compreende é que no tratamento desta mesma questão nenhuma atenção tenha sido dada à questão do trabalho na Diamang, como bem viu Gilberto Freyre, e como tem sido estudado por Nuno Porto e Tobb Cleveland, não citados por Valentim Alexandre.

Seria aliás uma crítica fácil enumerar aqui uma lista de autores não citados no livro, cujos contributos se afiguram relevantes. De Marvin Harris a Penvenne ou a Harry West, sem esquecer os estudos sobre o algodão de Isaacman, no caso de Moçambique; de Margarido a Bender ou a Page, no caso de Angola. Mas não há livros perfeitos. Embora se possa imputar à editora, mais do que ao autor, a responsabilidade por apresentar um livro tão extenso com a falta de índices onomástico, geográfico e temático. No entanto, não é com estas notas que pretendo terminar. O que me parece que deve ser posto em relevo é que doravante, no estudo do colonialismo português posterior à Segunda Guerra, passámos a ter uma obra de referência. A partir de agora, todos temos a possibilidade de saltar para os ombros de um gigante como Valentim Alexandre - que nos habituou em todos os seus livros a pensar historicamente e em todas as suas dimensões o colonialismo português contemporâneo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PENVENNE, J. (1985), “A luta continua! Recent literature on Mozambique”. The International Journal of African Historical Studies, 18 (1), pp. 109-138.

 

[1]       Uma versão mais curta desta apresentação crítica foi inicialmente publicada no semanário Expresso (25-11-2017).

[2]       No entanto, nunca será de mais notar que, pelo menos nos anos iniciais da década de 1960, eram vários os círculos oficiais portugueses que consideravam alguns movimentos pró-independência de Angola, muito em particular Holden Roberto, uma correia de transmissão das tendências imperialistas norte-americanas, que tinham começado a esboçar políticas expansionistas há muito, ou seja, desde 1890. Cf. ANTT, SCCIA, liv. 110, fls. 91-96: Major Silva e Sousa, “Breve súmula sobre a atitude dos EUA em relação a Angola”, 23 de março de 1962.

[3]       Os fluxos migratórios de Moçambique têm sido os mais estudados: Katzenellenbogen (1982); Isaacman e Isaacman (1983, pp. 53-59); First (1983); Penvenne (1985, pp. 109-138, maxime pp. 132-137); Jeeves (1985, pp. 187-220); Moodie e Ndatshe (1994, sub voce “Mozambican labor migrants”); Harries (1994, pp. 132-140); Ishemo (1995, pp. 152-165); Allina (2012, pp. 139-157).

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