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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.219 Lisboa June 2016

 

RECENSÃO

LOBO ANTUNES, Maria José

Regressos Quase Perfeitos. Memórias da Guerra em Angola,

Lisboa, Tinta da China, 2015, 424 pp.

ISBN 9789896712754

 

Nuno Domingos*

*Universidade de Lisboa, ICS-UL, Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9 — 1600-189 Lisboa, Portugal. E.mail: nuno.domingos@ics.ulisboa.pt

 

Maria José Lobo Antunes propõe neste livro tratar a guerra colonial em Angola investigando o percurso dos militares pertencentes à Companhia de Artilharia 3313 do Batalhão de Artilharia 3835 que ali combateu entre 1971 e 1973. A autora conheceu estes homens, ou talvez seja mais correto afirmar que estes homens conheceram a autora, quando, recém-nascida, seguiu com a mãe para Marimba, no norte de Angola, para se juntar por um período de tempo ao seu pai, o alferes médico António Lobo Antunes, que poucos anos depois iniciaria um conhecido e aclamado percurso literário. Maria José já havia organizado com a sua irmã Joana o volume D’Este Viver Aqui Neste Papel Descripto. Cartas de Guerra (D. Quixote, 2005), onde se encontra compilada a correspondência de Lobo Antunes para a então esposa, durante o período em que serviu o exército português. Importante fonte histórica sobre a guerra em Angola, esta coleção de cartas permite aprofundar a influência do conflito na obra do escritor. Tema do seu primeiro romance (Cus de Judas, 1979), a guerra foi tratada por Lobo Antunes em textos literários, jornalísticos e em intervenções públicas. Recorrendo aos métodos da antropologia histórica e dialogando com a literatura académica, Maria José Lobo Antunes prossegue a análise desta ­experiência particular. Se o escritor havia deixado um testemunho epistolar e literário, a antropóloga realizou uma etnografia da memória que igualmente inscreve e descreve no papel as vidas destes militares.

As memórias que recolheu num conjunto de conversas, seletivas no modo como constroem uma visão do passado, são confrontadas nesta obra com os registos do escritor, mas também com a “história da unidade Bart 3835”, narrativa oficial do Batalhão, à guarda do Arquivo Histórico Militar. Na sua lógica técnica e instrumental, esta descrição oficial institui um regime de verdade que despersonaliza os indivíduos, destinando-os ao papel instrumental de representante da nação e do exército português. Os relatos destes homens, utilizados por Maria José Lobo com eficácia, rejeitam, completam e complexificam esta narrativa militar, construindo uma outra cronologia da guerra, humanizada e contraditória.

O desafio principal deste trabalho foi o de interpretar a constituição de uma comunidade de indivíduos unidos por um passado comum, por uma experiência tão determinante que António Lobo Antunes a resumiu num “somos o que fomos” (p. 21). Este coletivo, que parece sobrepor-se a todos os outros a que estes antigos militares se encontraram e encontram ligados, é descrito no final do livro como uma comunidade de “parentesco fictício” e “solidariedade fraternal”, fundada “na dependência mútua e na interacção social próxima sob condições extremas, uma ligação que criou a outra família (...) são eles – e não a anónima e imensa nação – que funcionam verdadeiramente como o povo escolhido”
(p. 361). Tomar esta comunidade de laços fortes como meio de explicação de um conjunto de comportamentos e veículo de organização de memórias possibilita a Maria José Lobo Antunes confrontar interpretações mais interessadas em conceber a guerra à luz de uma história política e diplomática das operações militares. Em muitos casos tais interpretações concebem a ação individual como um simples produto de motivações de caráter político-ideológico, enfim pelo que define as características dos grandes protagonistas de uma história que tende a marginalizar os “fracos” ou utilizá-los como figurantes de grandes narrativas. Tanto o escritor Lobo Antunes como a antropóloga Maria José, cada um à sua maneira, procuram resgatar estes indivíduos dos relatos que os reduzem e deformam. É verdade que no terreno existiam militares ­politizados e que essa ­politização, além de permitir uma racionalização específica da experiência, ligava esses sujeitos a outras dimensões comunitárias, observadas tanto no vínculo a uma direita nacionalista empenhada na defesa do império, como no campo da oposição, em que o Partido Comunista Português considerava a presença de militares não afetos ao regime em África um meio de o minar e mesmo depor, ao contrário de algumas forças mais à sua esquerda que apelavam à deserção enquanto meio de luta. Mas os exemplos desta consciencialização são marginais no livro aqui recenseado.

Maria José Lobo Antunes deteta nos soldados que entrevistou um nacionalismo difuso, mas presente, um sentimento de dever, a ideia de “reclamar o que é nosso”. Este sentimento resultava de uma banalização das representações de um Portugal imperial e justo, tão distinto daquele que predominava no terreno, violento, iníquo e explorador. Estas representações, incutidas pela escola e pela comunicação social, parecem manter-se hoje no discurso de alguns destes ex-combatentes, denunciando a persistência de uma versão da história que os estudos mais recentes parecem indicar encontrar-se bem disseminada (Sobral, 2010; Leal, 2010). Mais do que o resultado de uma escolha “racional”, um princípio tantas vezes mobilizado para interpretar a opção política, este dever patriótico expressava-se também por uma resignação e impotência face à inevitabilidade da defesa da nação e do império. Para a maior parte dos entrevistados nesta obra, o nacionalismo difuso que ajudava a racionalizar a presença em África parece dissolver-se na crua lógica da prática que caracterizava a vida no terreno de guerra, onde a força das circunstâncias germina a comunidade que então passa a prevalecer. A base de constituição prática desta comunidade, reagrupada muitos anos depois de terminado o conflito na comensalidade fraternal, explica, por exemplo, a proximidade dos seus membros com quem passou por uma experiência idêntica, o que inclui aqueles que “estavam do outro lado”, a quem chamavam “turras” e “terroristas”.

Este livro procura demonstrar a resiliência deste coletivo, fundado numa prática singular, nas memórias destes indivíduos, face às pertenças que os vinculam a outros coletivos, nomeadamente aqueles cantados pelas grandes narrativas políticas, nacionais e imperiais. É provável, no entanto, que esta construção memorial, que relativiza em parte as narrativas da memória oficial, crie uma representação do mundo que recalque algumas das condições por detrás da sua constituição, bem como as diferenças concretas entre os seus membros.

Se a história familiar aproximou a autora das fontes, em alguns aspetos esta condição de intimidade dificultou o acesso a dimensões da experiência que se encontrava na base da formação desta comunidade e que os entrevistados omitem, recalcam ou simplesmente ignoram. Maria José Lobo Antunes refere-se a estes obstáculos no capítulo que encerra a sua monografia. É neste quase posfácio, atirado para o fim do livro - numa obra muito bem escrita, organizada e revista terá sido o preço a pagar aos desígnios do comércio editorial – que a autora nos fala das condições de produção da sua obra. É nessas folhas que explica por que não entrevistou o pai e as razões de não ter conseguido falar com os africanos que combateram ao lado do exército português; é também aqui que reflete sobre o modo como o conhecimento prévio dos militares e o facto de ser mulher num mundo de camaradagens masculinas condicionou a construção do relato. Estas biografias não são simples nem lineares. Como a autora refere, elas vão-se acomodando a um discurso construído pelo próprio entrevistado e por aqueles que o rodeiam e que trabalham para a sustentação de uma biografia coletiva em relação à qual as histórias individuais se vão tentando articular.

Se as memórias destes homens contrastam com a versão oficial do exército sobre as suas vidas em Angola, esta circunstância não anula o papel da cultura da instituição militar na construção desta biografia coletiva. A ideologia castrense promove uma ética que privilegia o espírito de corpo, a entreajuda, a camaradagem, onde reinam também um conjunto de princípios viris (“Na tropa a cobardia é a mais odiada de todas as fraquezas humanas”, p. 152) e rituais iniciáticos que suportam a entrada e a pertença a esta comunidade. O discurso da igualdade fraternal, reproduzido pelos próprios militares de um modo sentido, tende a elidir a natureza hierárquica da instituição, onde as patentes, em especial em contexto bélico, reproduzem quase sempre as diferenças de origem social e de qualificações educativas e profissionais.

Um dos assuntos em que os condicionamentos à investigação são mais visíveis é o do conhecimento da guerra enquanto operação militar. Muitos investigadores da guerra colonial portuguesa têm-se focado nas questões da história militar e política do conflito. Mesmo o excelente documentário de Joaquim Furtado
A Guerra é estas dinâmicas que ­privilegia. No âmbito operacional, um dos assuntos mais debatidos é o do papel da violência na guerra, uma questão a que António Lobo Antunes por diversas vezes se referiu criticamente. Nesta etnografia específica, o manto protetor da ideologia da tropa é reforçado pela imagem heroica, mais humana e existencial do que propriamente bélica e guerreira, que Lobo Antunes criou da sua companhia, fixando um registo em grande medida inegociável pelas narrativas individuais. Violento por definição, o cenário de guerra é sujeito a códigos militares e jurídicos que idealmente enquadram o comportamento dos militares, as relações entre si, com o inimigo e com as populações civis. As provas dispersas sobre os “excessos de guerra”, alguns relatos, fotografias, denúncias da época publicadas na imprensa, não são ainda totalmente clarificadoras em relação ao papel da hierarquia militar nestes acontecimentos, muitas vezes atribuídos a atos espontâneos e isolados, apesar de trabalhos recentes sugerirem dinâmicas mais institucionalizadas (Araújo, 2012). Sobre esta violência, a autora conseguiu reunir informação, confirmando, por exemplo, o uso de napalm pelas forças portuguesas. Mais inconstantes são as alusões à violência sobre as populações civis e o ainda mais recalcado assunto das relações sexuais entre militares e mulheres africanas. Estes assuntos seriam sempre sensíveis e não é legítimo considerar que tais práticas fossem comuns a todos os indivíduos, a todas as companhias. Mas a ausência quase geral de descrições sobre estes temas, apesar da insistência da autora, é um facto relevante. É também a força desta comunidade que cria à sua volta um silêncio sobre a violência quotidiana, o racismo e os excessos da guerra.

Ao observar o itinerário destes indivíduos antes e depois da guerra, Maria José Lobo Antunes descreve um mundo diverso de trajetos e experiências sociais. Este coletivo de afetos nascido em Angola parece manter-se contra a multiplicidade das suas comunidades internas. Mas até que ponto consegue a comunidade fraternal fundada pela experiência da guerra e pela cultura militar abolir as diferenças entre os seus membros constituintes, ou pelo menos torná-las secundárias face ao novo coletivo nascente? Como é possível medir este efeito de proximidade social para além da sua força discursiva e memorialista?

Através das vidas destes militares, antes, durante e depois da guerra, Maria José Lobo Antunes oferece-nos um retrato de um país onde persistiam a pobreza e uma desigualdade radical. Muitos dos soldados, grande parte proveniente deste Portugal miserável, ganharam um certo cosmopolitismo durante a guerra. A saída de um ambiente rural, o contacto com Lisboa, primeiro, e Luanda, depois, mostra esse Portugal pobre e fechado a mover-se e a reagrupar-se numa comunidade sob as premissas da instituição militar. A guerra tornou os mais pobres e isolados em pessoas mais vividas. Embora a questão seja pouco explorada neste livro, tudo indica que este efeito terá sido igualmente sentido junto dos militares provenientes do que imprecisamente poderíamos ­chamar de classes médias e médias altas. Os diversos registos deixados por António Lobo Antunes sobre o tempo passado em África parecem demonstrar como a formação desta comunidade excecional o ajudou a conhecer o país e a ter uma determinada intimidade social com indivíduos que deixaram de ser tomados pela sua tipicidade, para se humanizarem, pessoas de quem até se podia estar próximo fisicamente - o criado, o empregado, o suburbano, o provinciano, o analfabeto - mas de quem se estava na verdade muito longe. Esta dimensão da guerra é também importante para perceber a obra do escritor. Apesar de viajada e culta, esta classe privilegiada vivia, também, num mundo fechado. Mas se a camaradagem excecional da guerra, que esconde as diferenças entre os seus membros, permitiu a relação entre mundos que se desconheciam, o modo como ela anula as diferenças é ainda assim efémera. O ritual do almoço, quando a comunidade se recompõe, é uma janela breve em quotidianos nos quais os indivíduos, como refere a autora, estão hoje menos preocupados com o destino da nação do que com o “horizonte do trabalho e da família” (p. 314).

Esta circunstância não retira interesse, bem pelo contrário, ao estudo desta comunidade fraternal. Como Maria José Lobo Antunes demonstra, este objeto é útil para perceber uma experiência singular, vivida por muitos num momento fundamental da história recente do país, que determinou o fim do seu império africano. Desde uma escala que revela vivências e contradições, esta perspetiva desafia outras narrativas sobre o conflito. Mas noutro sentido, talvez menos evidente, a criação de uma comunidade excecional de camaradagens horizontais é um bom observatório para interrogar as permanências das estruturas sociais portuguesas, nomeadamente as suas hierarquias duradouras.

Sobre a instabilidade que caracteriza as versões presentes nestas memórias de guerra, Maria José Lobo Antunes sugere a certa altura que nunca se saberá ao certo o que realmente aconteceu. Se caso isso será sempre verdade, é também um facto que ao terminar a leitura de Regressos Quase Perfeitos ficamos a saber mais.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

 

ARAÚJO, A. (2012), “Sanzala Mihinjo, Abril de 1961”. In M.B. Jerónimo (org.), O Império Colonial em Questão, Lisboa, Edições 70, pp. 37-53.         [ Links ]

LEAL, J. (2010), “Ser português: um orgulho relativo”. In J. Vala, J.M. Sobral (orgs.), Identidade Nacional, Inclusão e Exclusão Social, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, pp. 67-80.         [ Links ]

SOBRAL, J.M. (2010), “Dimensões étnicas e cívicas e glorificação do passado em representações da identidade nacional portuguesa numa perspectiva comparada”. In J. Vala, J.M. Sobral (orgs.), Identidade Nacional, Inclusão e Exclusão Social, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, pp. 81-110.         [ Links ]

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