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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.210 Lisboa Mar. 2014

 

Questionando o social - A propósito do Homo Academicus de P. Bourdieu

Ruy Llera Blanes*

*Faculty of Social Sciences, Department of Social Anthropology, University of Bergen, Postboks 7802, N-5007 Bergen, Norway. E-mail: ruy.blanes@gmail.com

 

Em Homo Academicus, Pierre Bourdieu apresenta uma análise das condições históricas de produção do conhecimento científico entre 1968 e 1988 na França. Desde então, grandes mudanças ocorreram no sistema universitário a nível global e, em especial, no sistema de investigação científica. Por relação a Portugal hoje, quais seriam para si as grandes questões a levantar para a realização de um esforço semelhante?

 

Tal como o resto da sua obra, o projeto Homo Academicus de Pierre Bourdieu caracteriza-se pela sua “integralidade”, isto é, pela permanente interligação, no mesmo pensamento, dos problemas teóricos, metodológicos e práticos ligados ao conhecimento sociológico. Aplicando essa máxima, e o desafio de Bourdieu de fazer uso da mesma reflexividade (“participação objetificadora”) para “exoticizar o doméstico” (1984, p. xi), respondo ao desafio lançado pelos editores da Análise Social de participar numa reflexão crítica sobre as condições da prática científica a partir de uma disciplina – a antropologia social e cultural – que é permanentemente colocada nas margens do sistema científico em Portugal.

Enquanto alguém que passou pelo “sistema” de investigação científica em Portugal – como bolseiro de investigação, candidato a e membro de projetos, membro da direção de associação profissional, autor, subscritor de petições, “preenchedor” de curricula na internet, etc. –, e que entretanto foi forçado a sair desse sistema, e até do país por falta de alternativas (ou de qualidade, dependendo do ponto de vista), não deixo de sentir alguma frustração quando olho, a partir do outro lado da Europa, para o lugar que até há bem pouco tempo era o meu espaço de trabalho, convivência e sobrevivência.

Procuro, em qualquer caso, evitar uma crítica às estratégias políticas que determinaram o “sistema”, porque os seus erros e perversões são por demais conhecidos e explicitados pelos meus colegas. Prefiro focalizar-me aqui, também à moda de Bourdieu, no “campo”, isto é, nas relacionalidades e dinâmicas detetáveis na investigação científica em Portugal, fazendo-o com base na minha disciplina, mas certo de que aquilo que deteto não lhe será exclusivo – antes pelo contrário.

Uma das características mais evidentes do campo académico antropológico português é aquilo que Bourdieu referia como a desconexão entre o conhecimento académico e o conhecimento prático. Ou, noutras palavras, o facto de, apesar de estarmos todos convencidos da importância da nossa “mensagem”, o conhecimento académico raramente sair da academia e participar em círculos mais abrangentes de reflexão, debate e ação. Poderemos eventualmente equacionar causas endémicas para tal facto, como a desadequação do discurso antropológico relativamente aos formatos e estilos dos jornalistas e veiculadores de opinião em Portugal, pouco dados a respostas relativistas ou complexificadoras. Também poderíamos equacionar causas estruturais, como o histórico equívoco sobre o tipo de conhecimento que a antropologia social e cultural produz, equívoco que se perpetua tanto nos media como nos meios académicos e políticos.

No entanto, prefiro encontrar explicações para este fenómeno dentro do próprio campo, identificando aquilo a que posso chamar “desterritorialização institucional”. A principal observação que recolho junto de colegas antropólogos estrangeiros que têm ou tiveram a oportunidade de trabalhar em Portugal é a de que não existe um “local de encontro” dos antropólogos, nem tanto a nível geral, mas sobretudo ao nível de cada instituição ou centro de investigação, um espaço ou momento de interação mais ou menos espontânea entre colegas de profissão e disciplina. Isto, a meu ver, está relacionado com dois fatores interligados: o corporativismo assumido, implícita ou explicitamente, por muitos antropólogos em Portugal, seja graças a um habitus que é mais um “hábito”, uma rotina individualizante de (não) circulação, seja graças a um processo de transformação de uma vocação académica numa vocação de funcionalismo público. Como resultado, este corporativismo simultaneamente afasta as instituições umas das outras (fenómeno a que vulgarmente chamamos “capelinhas”) e impede o acesso de gerações mais jovens de antropólogos à construção e evolução da própria disciplina, mantendo-as na marginalidade e precariedade laboral. Ao mesmo tempo, impede uma consciência do coletivo para além da própria instituição (ou mesmo dentro da mesma) e produz um tipo de participação política que é, na maior parte dos casos, meramente “reativa” e em resposta a “crises”.

Invariavelmente, as críticas que emergem em relação à falta de oportunidades laborais na antropologia em Portugal apontam para aquele que é o principal criador de emprego científico: a Fundação para a Ciência e Tecnologia. Essas críticas são necessariamente fundamentadas, porquanto a FCT é, do ponto de vista histórico, a autoridade interlocutora com o Estado (num país onde a investigação ainda é maioritariamente pública) e produtora do espaço social onde nos movemos. No entanto, o habitus académico acima descrito também foi partícipe na definição da política científica que produziu essa marginalidade e precariedade, ao fazer prevalecer o corporativismo acima descrito sobre um coletivismo mais abrangente. Neste sentido, pensando outra vez como Bourdieu numa “etnografia institucional”, apercebemo-nos de que, para além das clássicas rivalidades interdisciplinares – seja entre a antropologia e a sociologia, entre as ciências sociais e exatas, entre a antropologia social e a biológica, etc. –, subsistem lógicas intradisciplinares de disputa interna, dentro dos departamentos e centros de investigação, que impedem o desenvolvimento de uma consciência colectiva.

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