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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.210 Lisboa mar. 2014

 

Questionando o social - A propósito do Homo Academicus de P. Bourdieu

Filipe Carreira da Silva*

ICS, Universidade de Lisboa;Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189 Lisboa, Portugal. E-mail: fcs23@ics.ul.pt

 

Em Homo Academicus, Pierre Bourdieu apresenta uma análise das condições históricas de produção do conhecimento científico entre 1968 e 1988 na França. Desde então, grandes mudanças ocorreram no sistema universitário a nível global e, em especial, no sistema de investigação científica. Por relação a Portugal hoje, quais seriam para si as grandes questões a levantar para a realização de um esforço semelhante?

 

A meu ver, são pelo menos quatro as questões que têm de ser equacionadas por quem quer que seja que se proponha pensar a produção de conhecimento científico no nosso país em 2014: mobilidade, financiamento, avaliação e impacto. Qualquer uma destas questões pode ser discutida de várias perspetivas: por exemplo, a questão da mobilidade pode ser encarada da perspetiva de um cientista em concreto ou das condições financeiras disponibilizadas para o efeito por uma agência governamental, como é o caso da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Para simplificar o meu argumento, irei cingir-me apenas a algumas das perspetivas possíveis na discussão de cada uma das questões acima indicadas.

Comecemos, então, pela mobilidade.1 Em Portugal, quando se fala em mobilidade é comum pensar-se em mobilidade de cientistas para fora do país ou para o nosso país. Existem boas razões para isto, de resto. Nas últimas duas décadas, assistimos a um aumento da mobilidade internacional de pessoal qualificado sem paralelo na nossa história, quer para o nosso país (muitos, incluindo estrangeiros, à procura de um posto de trabalho), quer em direção ao estrangeiro (bolseiros, na sua maioria). Neste último caso, infelizmente, a mobilidade dos bolseiros foi garantida apenas num sentido: o da sua ida para fora. Ao contrário da generalidade dos programas de apoio à formação avançada, que prevêem e asseguram o regresso obrigatório após a obtenção do grau no estrangeiro, no caso das bolsas de doutoramento da FCT isto não aconteceu. As universidades que deveriam absorver este contingente de pessoal qualificado ficaram de fora deste processo, e sem recursos ou incentivos para contratar mais doutorados, limitaram-se a contratações ad-hoc. Daqueles que decidiram regressar a Portugal, a maior parte entrou para os Laboratórios Associados com contratos a termo. Com a recessão económica de 2011-2013, assiste-se a um refluxo de volta para o estrangeiro de um número muito significativo destes cientistas. Tem sido esta emigração forçada de uma geração de cientistas portugueses formados no estrangeiro com bolsas da FCT que tem atraído a atenção dos meios de comunicação social para o tema da mobilidade. Sucede, porém, que existe um outro plano em que a mobilidade se pode conceber. Falo da mobilidade de cientistas entre instituições de ensino superior dentro de um só país. Esta mobilidade existe em relação inversa à endogamia, isto é, à contratação preferencial de indivíduos que fizeram a sua formação nessa mesma instituição. Coexistem atualmente na Europa sistemas mais abertos a esta mobilidade e sistemas que são quer por razões jurídicas, quer por razões linguístico-culturais, fundamentalmente endogâmicos. Portugal, com uma taxa de endogamia na ordem dos 80%, é um exemplo claro de um sistema fechado ou endogâmico.2 Com base na minha própria experiência profissional, não tenho grandes dúvidas de que muitos dos problemas com que ­Portugal se confronta se devem justamente à endogamia ou falta de mobilidade interna: um sistema aberto estimula muito mais o mérito, premeia o esforço e proporciona um leque mais vasto de opções de carreira aos seus membros do que um sistema endogâmico. A estabilidade do vínculo laboral, a principal virtude destes últimos, não fica colocada em questão (sai-se de um contrato estável para outro): o que se ganha é transparência e maior sensibilidade ao mérito no momento de se contratar ou promover alguém. E, apesar de esta mobilidade interna ocorrer entre instituições de um mesmo país, a verdade é que ao abrirem-se as portas do recrutamento se está inevitavelmente a abrir as portas a contratações de investigadores vindos de outros países. Com efeito, as vantagens de um sistema aberto fazem-se igualmente sentir ao nível institucional, ao abrirem um conjunto de opções estratégicas de expansão ou reorganização às universidades e centros de investigação desconhecido em sistemas caracterizados pela endogamia. Na Europa de hoje, os casos dos países escandinavos, Holanda e Reino Unido são, provavelmente, os mais claros exemplos de sistemas com forte mobilidade interna e, por isso mesmo, capazes de atrair pessoal qualificado de outros países.

A segunda questão tem que ver com o financiamento. Nas últimas duas décadas, assistiu-se a um aumento muito substancial do investimento público no ensino superior e nas instituições de investigação científica. Em 1990, o Estado português dedicava 0.2% do PIB a financiar o ensino superior enquanto vinte anos mais tarde esse valor atingia os 0.6% (de 0.3% para 1%, se se considerar a dotação orçamental em I&D em % do PIB). As consequências deste esforço de financiamento não se fizeram esperar, com um aumento do número de investigadores (de 1.6 por mil habitantes em 1990 para 8.3 em 2010), do número de publicações científicas citadas (de 845 publicações citadas em 1990 para 8 916 vinte anos mais tarde), bem como do número de invenções patenteadas (de 16 em 1990 para 174 em 2010). Em 2012, a dotação orçamental em I&D de 0.9% colocava Portugal entre os países europeus que mais investiam neste domínio, só atrás da Finlândia (1.1%) e Dinamarca (1.0%) e a par de países como a Alemanha e a Suécia. Perante estes dados macroeconómicos,3 o cenário de uma estagnação ou retrocesso no esforço público de financiamento da ciência significaria perder competitividade relativamente aos nossos parceiros europeus. Por outras palavras, a questão do financiamento da ciência em Portugal é felizmente hoje em dia uma não-questão, desde que o esforço por parte do Estado mantenha a trajetória de convergência com o resto da Europa dos últimos anos.

A terceira questão relaciona-se com a avaliação. Por isto entenda-se quer a avaliação de instituições, quer a avaliação de desempenho individual no seio de uma instituição. Ambos os tipos de avaliação são essenciais para a justa alocação de verbas, progressão nas carreiras, etc. Também aqui a evolução das práticas nas últimas décadas foi assinalável, com o estabelecimento de procedimentos periódicos de avaliação por pares das instituições de investigação científica, pelo menos em parte com base em das publicações em revistas científicas indexadas a repositórios como o ISI (Thomson). Já os sistemas de avaliação de desempenho individual variam substancialmente de instituição para instituição, tornando difícil fazer generalizações. Em meu entender, uma possibilidade a explorar no nosso país seria a de implantar um sistema nacional de avaliação das publicações individuais por painéis de peritos externos, por área científica, a exemplo do que sucede no Reino Unido, que terá servido de inspiração ao modelo de avaliação institucional empregue pela FCT.4 Uma das vantagens deste sistema de avaliação é que une os planos individual e institucional da avaliação: as publicações (livros e artigos em revistas) de cada investigador são periodicamente avaliadas por painéis de pares, num processo muito semelhante ao double peer-review das revistas, sendo esta informação subsequentemente utilizada como base do financiamento dos respetivos departamentos e faculdades.

A quarta e última questão refere-se ao impacto da atividade científica no meio social e económico. Tradicionalmente, o impacto da investigação produzida media-se através de indicadores bibliométricos (citações). Nos últimos anos, tem-se generalizado a prática de se complementar tais indicadores com dados qualitativos (incluindo impacto nos media): a ideia, correta a meu ver, é ajudar as instituições financiadoras a premiarem de forma mais eficaz as ideias que fazem a diferença – na cura de uma doença, na resolução de um problema de engenharia, ou na explicação de uma crise político-económica.5 O trabalho da comunidade científica portuguesa terá tanto mais impacto, por conseguinte, quanto for publicado em revistas científicas indexadas, em editoras académicas prestigiadas, e se fizer sentir entre a população em geral. Claro que o impacto de algum deste trabalho só se fará sentir dentro de muitos anos e de forma mediada. É, portanto, essencial que quem financia a investigação em Portugal não se limite a premiar o impacto de curto prazo, mas seja antes capaz de premiar as ideias que realmente fazem a diferença.

Em suma, em 2014 e após uma das piores crises económicas das últimas décadas, Portugal tem no seu sistema de ensino superior e de investigação científica um setor que poderá contribuir para a saída desta crise. Porém, para que tal suceda, é necessário aprofundar o processo de modernização deste sistema: é essencial combater a endogamia estimulando a mobilidade de cientistas dentro e fora de portas, manter o esforço de financiamento dos últimos anos e implementar sistemas de avaliação do desempenho e do impacto da investigação produzida à luz das melhores práticas internacionais. Só com mais e melhor ciência, feita por portugueses ou estrangeiros a trabalhar em Portugal, no masculino e no feminino, em português ou em inglês, poderemos responder aos exigentes desafios económicos e sociais que se avizinham.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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NOTAS

1 Sobre o tema do “social enquanto mobilidade”, veja-se Urry (2007). Já sobre a questão específica da mobilidade de agentes educativos, veja-se, por exemplo, Dervin (2011). Sobre o caso português, veja-se, por exemplo, o volume recentemente editado por Araújo, Fontes e Bento (2013).

2 Heitor e Horta (2004). Ainda sobre o caso português, veja-se também Horta, Veloso e ­Grediaga (2010), Horta (2013) e Soares e Trindade (2003). Sobre o caso espanhol, em que se estima que a taxa de endogamia atinge os 95%, veja-se Navarro e Rivero (2001) e Cruz-Castro e Sanz-Menéndez (2010).

3 Dados disponíveis no site da Pordata (http://www.pordata.pt).

4 Sobre o sistema inglês, actualmente designado de Research Excellence Framework 2014 veja-se o respectivo website http://www.ref.ac.uk/. Para uma avaliação crítica de edições anteriores deste esquema de avaliação, veja-se Elton (2000) ou Barker (2007). Um estudo crítico da utilização de painéis de peritos para avaliarem publicações em revistas com peer-review encontra-se em Bence e Oppenheim (2004).

5 Sobre as novas formas de se avaliar o impacto social do trabalho de investigação científica para além das citações, veja-se, por exemplo, Taylor (2013).

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