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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.209 Lisboa dez. 2013

 

Silenciamentos subtis. Atendimento policial, cidadania e justiça em casos de vítimas de violência doméstica

Police attendance, citizenship and justice in cases of domestic violence victims

 

Susana Durão*

*IFCH, Universidade Estadual de Campinas, Brasil. E-mail: ssbdurao@gmail.com.

 

RESUMO

A legitimidade da ação policial depende da autoridade prática e crença emotiva de que os polícias podem, em última instância, abrir uma janela de possibilidades para o reconhecimento de um direito cidadão: o direito à segurança. Através de explorações etnográficas, conduzidas em esquadras de polícia em ­Portugal e com recurso a entrevistas, proponho-me analisar neste ensaio gramáticas morais e emocionais que regem a ação prática de polícias na relação com vítimas de violência doméstica. Para tal uso a noção teórico-metodológica de zonas de ambiguidade intersubjetiva. Defendo que a definição de policiamento depende tanto do que os polícias fazem quanto do que escolhem não fazer.

Palavras-chave: policiamento; violência doméstica; Portugal; intersubjetividade; impotência.

 

ABSTRACT

The legitimacy of police action depends on the practical authority and the emotional belief that the police may ultimately open a window of opportunities for the recognition of a citizen right: the right to security. Through ethnographic explorations and interviews conducted in police stations in Portugal, this essay aims to analyse the moral and emotional grammars governing the practice of police action in relation to domestic violence victims. I use the theoretical and methodological notion of areas of intersubjective ambiguity. I argue that in order to define policing what police officers do is as crucial as what they choose not to.

Keywords: policing; domestic violence; Portugal; intersubjectivity; disempowerment.

 

Neste texto defendo que o estudo de dimensões intersubjetivas da vida social pode ajudar a explicar os principais impasses e dilemas de um tipo de policiamento, o da violência doméstica (VD). A afirmação tem por base uma prolongada e intensiva observação do trabalho policial (complementada com entrevistas) em diversas esquadras portuguesas. Perspetivando relações estabelecidas entre polícias, vítimas e a justiça, explico como opera a gramática de impotência policial. Procuro assim identificar as principais características de práticas de recuo policial que geram lamentos nos próprios operadores da justiça, neste caso os agentes, produzindo simultaneamente silenciamentos subtis nas vítimas, a reserva de tratamento da violência privada em domínio público e, por fim, a incapacitação de reconhecimento pleno e prático de um direito cidadão à segurança. Por fim, argumento que as impotências policiais apoiam a perspetiva dos profissionais como vítimas, vítimas de situações ambíguas e da justiça.

Nos últimos anos, em Portugal e um pouco por toda a Europa, para não dizer no mundo, assistimos a um reforço do policiamento da violência doméstica. Embora há várias décadas se configure um policiamento mais geral das famílias, em sentido lato (Donzelot, 1977; Eliacheff e Lavière, 2006; Fonseca, 2006), é possível verificar mudanças num sentido mais restrito e direto: o policiamento chamado de primeira linha, nas esquadras de polícia, nessas unidades de patrulha e de atendimento ao cidadão. É de destacar que, em conformidade com a tendência internacional, as mudanças legislativas recentes relativas à VD no país se deram tendo como enfoque a via penal. Num primeiro momento, este fenómeno passou a ser considerado “crime público” (em 2000), o que conduziu a uma nova redação e designação legislativa. Desde 2007, o “combate” a este crime foi considerado uma prioridade na política nacional de segurança pública, criando-se assim um conjunto de medidas legislativas destinadas a assegurar a proteção às vítimas (por exemplo: previsão de indemnização, “estatuto de vítima”1 e previsão de detenção policial fora do flagrante delito). Foram também criados planos políticos nacionais de combate à VD. Com as referidas mudanças legislativas, ampliaram-se os direitos da vítima e a ativação do procedimento criminal deixou de depender da vontade das mesmas, o que em tese ampliou o poder de intervenção direta dos agentes policiais nos casos de VD (v. mais em Durão e Darck, 2013). Este processo tem sido apoiado por campanhas mediáticas que se intensificaram enormemente nos últimos anos, com vista a reforçar a ideia de que as vítimas usufruem de direitos (Elias, 2006; Pais, 2010).

Conduzidas por um debate entre políticos e juristas, incluindo marginalmente outros setores da vida social e ação coletiva, podemos dizer hoje que as mudanças na lei portuguesa traduzem, ao contrário de outras (a brasileira e a espanhola, para dar apenas dois exemplos) uma abordagem de pendor universalista e sem um referencial de género no discurso dos direitos das vítimas.2 Isto muito embora as estatísticas apontem que a maioria das vítimas (quase 90%) são mulheres e os agressores, denunciados, homens, com ligeira tendência para o crescimento (DGAI, 2011). Em suma, as mudanças de uma década operam com a ambição de reparação penal e moral das vítimas por via da criminalização do ato de VD.

Simultaneamente, há uma perceção generalizada em Portugal de que os agentes, nas esquadras de polícia, não aparentam estar preparados para lidar com o que deles se exige: um primeiro atendimento, informado, que vise apoiar e esclarecer a vítima acerca dos seus direitos, bem como atuar operacionalmente nos mesmos. Embora dificilmente escapem à onda de “sensibilização” para a VD que as mudanças legislativas e toda a movimentação política e mediática proporcionaram, na prática os agentes manifestam várias dificuldades em lidar com a vitimação/agressão, caso a caso.

Muita da literatura anglo-saxónica, dominante nesta matéria, explica a reticência na relação com este tipo de vítimas, generalizada a múltiplas ­organizações policiais do mundo, sublinhando o que poderíamos chamar de isomorfismo cultural. A recorrência de certos estereótipos, sobretudo de género, tenderiam a reforçar tendências conservadoras e corporativas.3 Estas teorias do policiamento (visto como uma forma de disciplina moral) tendem a encontrar no controlo social informal dos polícias a razão explicativa para um certo afastamento cultural entre polícias e vítimas (sobretudo na medida em que o público das vítimas é maioritariamente composto por mulheres, e o dos agentes por homens). Assim, estes profissionais do controlo e da ordem – mais estimulados pelo perigo, pelas buscas, revistas e perseguição de delinquentes – manifestariam, de acordo com vários autores, tendência para um fraco reconhecimento dos direitos das vítimas.

Ao procurar explicações de resistência cultural profissional, esta literatura crítica instiga o policiamento dos próprios agentes, alimentando a ambição de os converter, por fim, à gramática dos direitos da vítima. Em suma, estas análises centram-se muito no diagnóstico de que o problema do recuo dos polícias face à VD seria efeito de uma intencionalidade dominante de controlo punitivo, e da sua menor sensibilidade para o apoio às vítimas, consideradas, invariavelmente, um objeto secundário da sua intervenção. Ora, isto pode ser, senão contestado, pelo menos empírica e teoricamente complexificado.

Um quadro de prática e interpretação dominante ganha assim forma. Temos, por um lado, num dos extremos do eixo, o ideal normativo-legal, que assenta na ideia de reparação, executada preferencialmente por via penal, inquestionada e determinística. Por outro lado, no extremo oposto, pela mão de cientistas sociais e criminólogos críticos, deparamos com um pessimismo interpretativo face ao trabalho de policiamento da VD. Estas interpretações identificam, nos agentes, bem como no aparelho judiciário, uma tendência para um controlo punitivista. Creio, porém, que o que se situa no meio deste eixo explicativo – indiferenças burocráticas e impotências funcionais – tem sido pouco explorado, cabendo-nos a nós, enquanto antropólogos sociais, o seu desenvolvimento. Foi o que procurei fazer com recurso a situações etnográficas e narrativas de agentes e de vítimas, naquilo a que chamo as zonas de ambiguidade intersubjetivas do funcionamento administrativo do Estado.

É necessário fazer uma revisão geral dos conceitos em uso. Michael ­Jackson (1998, p. 4) define intersubjetividade como a dimensão social relacional, a vida vivida em comum, o que incluiu tanto compaixão, como conflito, identidade e diferença. O autor visa desconstruir a herança romântica e novecentista do termo quando usado como sinónimo de experiência partilhada, entendimento empático e sentimento de companheirismo. A noção mais abrangente de intersubjetividade que propõe está na base das teorias existenciais-fenomenológicas e mergulha numa tradição humanista da filosofia e teoria social. Jackson crê ser esta a investida que autoriza a compreensão da dialética entre mundos locais e globais, o particular e o universal.

A noção de intersubjetividade é teoricamente útil de três formas. Primeiro, possui um nexus relacional fundador, na medida em que se assume que a identidade pessoal é mutuamente constituída, retirando às pessoas individualizadas a primazia ontológica. Depois, a noção torna simétricas realidades sociais plurais, nomeadamente sociedades letradas e pré-letradas, anulando a ideia de que existia um pensamento “civilizado”/lógico e um outro “primitivo”/ilógico. Por último, permite situar a análise na relação entre os dois sentidos da noção de sujeito, referindo-se o primeiro à pessoa empírica, dotada de consciência e livre arbítrio, e o segundo a generalidades abstratas como sociedade, classe, género, nação, estrutura, história e tradição que são “sujeitos” que interferem nas realidades vividas mas que não possuem vida em si mesmos.

Nesse sentido, a intersubjetividade está mergulhada em paradoxo e ambiguidade; enformada por disposições inconscientes, mundivisões e pela instabilidade da vida humana. Em antropologia, essas ambiguidades intersubjetivas podem ser exploradas como problemas de conhecimento (Jackson, 1998, p. 10).

Esta leitura teórica tem ainda a vantagem de chamar a atenção para o elemento político da intersubjetividade – a vita activa, aquilo que mantem o sentido da integridade existencial. A tese de Jackson baseia-se na ideia de que ter controlo sobre relações e procurar um equilíbrio entre mundos é uma preocupação humana central. Jackson defende que: “controlo, direito e poder, no sentido em uso, são questões de maestria existencial antes de serem assuntos de vantagem económica ou política” (Jackson, 1998, p. 21, sublinhados do autor).4

Nesta linha de reflexão, proponho que se leiam as relações mútuas entre polícias e denunciantes que se apresentam como vítimas de violência como relações intersubjetivas ambíguas, nas quais os ingredientes de controlo, direito e poder estão presentes e são alvo de algum tipo de transação e narrativa. Como defende Guita Grin Debert (2006) a violência não é apenas um ato social em si, entre pessoas, mas algo que se configura e reconfigura em texturas políticas, judiciais, policiais-institucionais. A violência não é estável nos diversos planos semânticos que refletem opções políticas e ideias de sociedade.

Devo precisar que me refiro especificamente a zona de ambiguidade intersubjetiva não como lugar físico, mas sim de situação. Esta noção adquire duas aceções complementares – a situação em si provocada pelos encontros contextualizados no tempo e no espaço e a situação que convoca a narrativa sobre eventos onde está em jogo a mediação policial e do Estado nas relações humanas. Embora o encontro seja situacional, as narrativas são latas; atravessam a vida social e os quotidianos, informando o conhecimento geral e intersubjetivo associado aos eventos. Este texto acrescenta um novo ângulo a estudos que refletem acerca da dificuldade do trabalho policial nos casos de VD. Estudos avançam que em Portugal, mesmo depois de denunciados às autoridades policiais, tais crimes continuam a ser repetidos, muitas vezes por um mesmo agressor a uma mesma vítima, e em períodos inferiores a um ano (Rocha, 2011).5

 

PROJETO “MULHERES NAS ESQUADRAS”

 

Num projeto recentemente concluído, procurei precisamente interpretar essas zonas de ambiguidade intersubjetiva.6 Com a colaboração de Marcio Darck, selecionei para a amostra um conjunto de quatro esquadras genéricas da Polícia de Segurança Pública (PSP) em Portugal, nas duas maiores áreas metropolitanas do país, nas regiões de Lisboa e Porto, e uma esquadra de investigação criminal especializada em VD, em Lisboa.

Durante dez meses, levámos a cabo um trabalho de observação direta com participação nos quotidianos de trabalho dos polícias, nas esquadras e nas ruas. Entre as tarefas de pesquisa, salienta-se a recolha de cinquenta e nove entrevistas com polícias (a maioria em esquadras genéricas, mas também em esquadras de investigação criminal), ocupando as mais diversas funções e postos hierárquicos. Entrevistámos oito agentes e chefes de investigação criminal na área da VD e dez mulheres que se consideram vítimas de VD com processos nas polícias e nos tribunais. Do trabalho de participação e observação direta das rotinas de trabalho nas esquadras resultou a análise sistemática de um conjunto de autos de VD numa das unidades da área metropolitana de Lisboa para o período de 2008 a 2011. Em duas esquadras (uma em Lisboa e outra no Porto) tivemos a possibilidade de contar com dois interlocutores privilegiados, uma agente e um chefe, que aceitaram escrever durante seis meses os seus “diários de trabalho”, fontes que vieram a revelar-se muito ricas na pesquisa.

 

GRAMÁTICAS DA IMPOTÊNCIA POLICIAL

 

Foi necessário interpretar o que gera as zonas de ambiguidade intersubjetiva. Nesse sentido foi-se configurando um quadro teórico que pode ser sumariado naquilo a que chamo gramática da impotência policial.

Na verdade, depois do longo período de observação em várias esquadras, ficámos com a noção clara de que o entendimento do policiamento como serviço público não é questionável – a VD é considerada caso de polícia. Hoje, quando alguma denúncia de VD chega ao conhecimento dos polícias, é geralmente, de imediato, alvo de registo e de intervenção. Talvez esse tenha sido um dos efeitos maiores da sua criminalização: o entendimento, do lado da organização policial, de que há uma exigência imediata de efetuar o registo burocrático de qualquer ocorrência que aparente poder ser enquadrada como VD.

Porém, pode dizer-se que a legitimidade da ação policial depende tanto do uso diferencial do poder como da autoridade prática e da crença emotiva de que os polícias podem, em última instância, abrir uma janela de possibilidades para o reconhecimento de um direito cidadão: o direito à segurança. Neste domínio, os polícias participam de uma avaliação justificativa, que é também uma auto-avaliação, que os lê como sendo em grande medida profissionais impotentes em matéria de aplicação da lei, não só aos olhos de quem espera mais deles, como aos seus próprios olhos. Para os agentes e chefes de esquadra que conheci – aqueles que entram mais frequentemente em contacto com as vítimas – existe uma disjunção expressa entre o que deles se espera e aquilo que consideram poder oferecer às vítimas, com a sua ação direta. Por seu lado, as vítimas compreendem e aceitam estas limitações da ação policial e reforçam assim a ideia de impotência do policiamento nestes casos.

Os agentes defendem, portanto, com a anuência das vítimas (quando por nós entrevistadas), que “nada mais podem fazer” por elas, sobretudo operacionalmente. Mas não operam sem lamento. Pudemos verificar a partilha de padrões práticos e intersubjetivos que conjugam avaliações morais e sentimentos face ao ato de policiar, envolvendo, de diferentes modos, a noção do “dever de proteger pessoas”. Os agentes constatam que, apesar de munidas das ferramentas legais, as vítimas envolvem-se individualmente numa espiral de procedimentos formais sem fim, começando esta nos registos efetuados nas esquadras. É comum os agentes subscreverem algum sentimento de fracasso: ou porque não podem atender com privacidade e condignamente quem chega às esquadras (nomeadamente numa “sala de apoio à vítima”7); ou porque consideram que este tipo de conflito exigiria mais mediação efetiva do que tratamento penal; por entenderem que são demasiados os casos que “não dão em nada” quando chegam, se chegarem, às varas dos tribunais; ou, simplesmente, porque consideram que alguns casais mantêm relações violentas que “nunca darão certo”, subtraindo aos polícias a autoridade para neles atuar.

Por isso tendem a considerar que: “A violência doméstica é dos crimes mais complicados para os polícias”. A “complicação” não reside apenas nas situações que vão defrontar, já de si no cruzamento de dimensões públicas e privadas da vida; está na forma como se vai policiar este fenómeno. Ou seja, o fenómeno revela-se duplamente complicado, no sentido operacional e emocional. Isto evidencia que a criação de melhores e mais subtis ferramentas legais nem sempre corresponde a uma maior e igualmente subtil aplicação prática da lei, quer no trabalho policial quer no judiciário.

 

IMPOTÊNCIAS RESIGNADAS E INDIGNADAS

 

Nos atos e vozes mais concretos dos polícias, a gramática emocional que se configura a partir das pesquisas etnográficas bifurca-se em dois sentidos: uma a que chamo de impotência resignada e outra que nomeei como impotência indignada.

Quando mergulhados na primeira, numa impotência resignada, os polícias desenvolvem o seu trabalho junto das vítimas com base no que designo por mínimos burocráticos, tratando o trabalho policial como “canal transmissor” de casos de VD para os órgãos judiciais. Estes agentes centram a sua atenção e os seus gestos no registo, no auto de denúncia ou de notícia, na informação a transitar para esferas de decisão mais altas, informando os tribunais. Este é o entendimento mais comum relativo à atuação policial, tal como expresso no trecho que se segue:

 

[O agente] relata. Ele passa para o papel tudo o que a vítima lhe disser. E a mais não é obrigado. Pode fazer uma pergunta ou outra para perceber melhor, mas nós aqui limitamo-nos a receber a queixa. A Justiça é lenta. Mas funciona. Em relação ao agressor, não podemos fazer muito [Entrevista, 19-01-2011, comandante de esquadra, zona oriental de Lisboa, Portugal].

 

Não foi incomum observar que muitos agentes não cruzam sequer o olhar com as vítimas atendidas, no momento em que recebem as denúncias, mesmo quando estas envolvem um manifesto grau de violência. A própria diretiva burocrática de inserir o auto num sistema informático oferece ao agente uma ferramenta física – o computador – que, colocada entre o polícia e a vítima, se transforma ela própria num elemento ambíguo. O computador significa maior rapidez no seguimento do processo, mas também propicia um contato mais distante entre a vítima e o polícia que regista a ocorrência. Este último pode mesmo utilizar a ferramenta que está ao serviço da vítima como ferramenta que está ao seu serviço, na medida em que “dessensibiliza” a relação situada e o ato profissional do atendimento. Também não foi incomum verificar, no conjunto de autos analisados, que nem sempre a gravidade da narrativa, transcrita numa parte do formulário, corresponde à classificação de risco, numa outra parte do mesmo formulário. Tais contradições no preenchimento poderão ter consequências graves nas fases subsequentes do processo.

Os polícias que revelam um sentimento de impotência indignada são quem mais desencadeia mecanismos de apoio do Estado, redes de emer­gên­cia e organizações não-governamentais, o mais depressa que podem. Ou seja, parecem querer resistir ao que avaliam como incapacidades de ­resposta ­burocrática, sediadas tanto numa esfera superior, como na esfera intermédia da organização policial. Estes agentes procuram oferecer às vítimas um apoio que consideram ser essencial e que baseiam em noções distintivas da autoridade policial como autoridade moral. Todavia, mantêm a noção mais genérica de que a resposta da justiça criminal permanece precária e insuficiente, apesar das mudanças na lei. Estes polícias de esquadra, indignados, uma percentagem minoritária nos nossos contatos e entrevistas, tendem a partilhar a ideia de que, enquanto profissionais na mediação de conflitos, não são tidos em conta no sistema de justiça, muito canalizado pelo poder do judiciário. Escutemos o que defende um desses polícias, que se assume indignado:

 

Nós [polícias], na maioria dos casos limitamo-nos a receber as queixas e a comunicar. Quando eu me queixo a uma pessoa a quem eu confiro autoridade e poder é suposto essa pessoa fazer alguma coisa face à minha situação. Mas nós alimentamos um modelo em que as pessoas queixam-se sabendo que já só se queixam… Quando aqui chegam dizem: “Olhe, eu sei que não vai acontecer nada, mas venho queixar-me na mesma; para constar” […] No caso da VD eu entendo que os polícias têm de ir mais à frente. Ou seja, em situações de crise, que é o que acontece quase sempre, a esquadra está na linha da frente, para o primeiro impacto, na vítima como no agressor. A esquadra não pode ficar numa perspetiva de mera comunicação; tem de passar a ter uma perspetiva de intervenção [Entrevista, 27-01-2011, chefe de esquadra, zona norte de Lisboa, Portugal].

 

A impotência torna-se ainda mais evidente entre os elementos de uma área específica, física e processualmente separada das esquadras – a investigação criminal. A familiaridade destes agentes com as fases mais avançadas do processo-crime permite-lhes conhecer o que consideram ser a insuficiência da resposta penal, mesmo quando esta atinge o fim último – a condenação do acusado.

Ou seja, em burocracias como as policiais, os “servidores” e os “servidos” confundem-se nos seus anseios e leituras do Estado. Determinadas indiferenças burocráticas – tal como já explicou Michael Herzfeld (1992) – e as incertezas que derivam da ação policial, neste caso, podem e devem ser perspetivadas nos modos locais e mundanos das práticas. Partilho com Herzfeld a ideia de que não podemos crer que a explicação das burocracias e do seu funcionamento é resultado direto de personalidades ou de culturas nacionais, como acreditavam Max Weber e Merton. Neste ensaio, não é o desvio arbitrário à norma que se converte em objeto de estudo – preferências, antipatias, discricionariedades situacionais e sistémicas, as quais julgo terem um espaço demasiado central na teoria social. Neste caso destaca-se a rotinização, variável, de práticas burocráticas que são partilhadas intersubjetivamente entre os ­funcionários e as pessoas que se consideram vítimas. Essas práticas têm em comum o facto de se apresentarem aos sujeitos e serem transversalmente sentidas como impotentes, isto é, débeis e incapazes de produzir o efeito de uma autoridade socialmente consentida e esperada.

 

BUROCRACIA: ENTIDADE HETEROGÉNEA

 

A burocracia está longe de ser uma entidade homogénea, como bem discute Albrow (1970). Na pesquisa por nós efetuada, a burocracia revelou, num dado momento, ser acionada como escudo protetor e restritivo da ação policial. Darei apenas um exemplo: a maioria dos agentes, impotentes mas resignados, crê, muito convictamente, que a dificuldade de obter um flagrante-delito nos casos de VD explica, em grande medida, a incapacidade manifesta para agir de modo mais operacional, mesmo se, com as mudanças legislativas já referidas, foram ampliados os seus poderes de atuação direta e mais imediata. Preferem uma abordagem defensiva que alguns nomeiam como “conservadora”. Tal poupa-os de cometer erros e riscos, evitando a todo o custo a acusação de usarem poderes de um campo que consideram não lhes pertencer: o judiciário. Tal leitura leva os agentes a assumirem de antemão um certo recuo, que é muitas vezes justificado como sendo em benefício de uma atitude de “imparcialidade” profissional positiva, particularmente útil em situações e casos que julgam “complicados”. Muitas das modificações legais operadas, que afetam a conduta policial, redundam em aspetos que podem beneficiar o processo judicial mas que não integram uma reflexão sobre a dimensão técnico-profissional. Um bom exemplo é a recente introdução de instrumentos de avaliação processual de risco. Intervenções que envolvam uma certa uniformidade, com autonomia dos procedimentos policiais, mantêm-se inexploradas.8 Em termos policiais, o risco pode ser avaliado, não necessariamente evitado.

Ou seja, mesmo antes de qualquer ocorrência de VD ter lugar, já os agentes nas esquadras – apoiados pelos seus comandantes – crêem que muito dificilmente terão legitimidade para atuar nestes casos. E uma das razões invocadas prende-se com uma limitação que surge como um imperativo: o facto de só muito raramente serem colocados na situação (ideal) de conseguirem visualizar o ato criminal enquanto ele segue o seu curso.9 Assim, os agentes consideram a possibilidade de uma intervenção policial decisiva, mas apenas em casos de flagrante delito. Estes recuos operacionais não são meramente variações previsíveis de uma cultura policial “desconfiada” e “machista”. Estes recuos são legal e burocraticamente justificados; são assim reconfigurados na ação prática e nas ambiguidades intersubjetivas que sobressaem nos quotidianos das unidades policiais.

É neste sentido que a impotência vai ganhando a densidade de uma gramática ocupacional, prática e semântica, que atravessa a polícia e a justiça e se expande a outros setores da vida social, sem que se conceba linearmente a sua origem. Tendo por referência este quadro reflexivo, torna-se mais fácil compreender um dado só aparentemente incompreensível: os polícias em geral defendem que as leis (penais e administrativas) ajudam a mudar os seus processos de trabalho, mas esses processos mudam muito devagar e não por decisão dos próprios agentes.

 

VÍTIMAS: DO DIREITO À EXPRESSÃO EMOCIONAL

 

O que fazem os polícias é tão determinante quanto o que consideram não poder fazer. O uso de algum tipo de poder – neste caso acionado pelo sistema de justiça criminal – é tão decisivo como as sucessivas narrativas e práticas de impotência, de retirada da autoridade policial no ato. Mas a impotência é gerada em mão dupla. Vimos até agora como ela é burocrática e profissionalmente construída, autojustificada. Mas uma tal impotência policial gera incapacitação nas vítimas. Uma questão fulcral merece então ser colocada: será esta impotência, manifestada tanto por polícias como por vítimas, em palavras e gestos, uma recusa ao direito da expressão emocional das vítimas? Veremos que sim.

Como disse, as próprias vítimas entrevistadas manifestam-se impotentes, sendo este sentimento alimentado pela impotência que pressentem e ­testemunham nos gestos e vozes dos polícias, nas instâncias policiais e no campo mais alargado da justiça. Assim, ambos se co-constituem, apoiando-se numa mutualidade de entendimentos e emoções.

Convoco aqui a narrativa de uma mulher, Maria de Fátima, que quando conheci tinha 62 anos e era empregada doméstica, nascida na região da Nazaré e a viver na época em Oeiras. Esta foi uma das dez mulheres que, tendo ­passado por experiências de violência conjugal, aceitou ser entrevistada por mim em diversas sessões e encontros. O ponto de contacto estabeleceu-se através da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), uma das mais prestigiadas e dinâmicas ONGs de apoio às vítimas em Portugal, a qual se prontificou a apoiar o projeto. Todas as entrevistadas estavam a ser, ou tinham sido, acompanhadas pelos serviços técnicos da APAV, que combinam apoio jurídico, psicológico e assistência social. O critério de seleção para as entrevistas foi apenas um: que tivessem tido contacto com as autoridades policiais e judiciais num ou mais momentos da sua experiência de vitimização. Embora ambicionado, não ­conseguimos no decurso do projeto entrevistar nenhum homem que assumisse ser vítima.

 

“OS POLÍCIAS NÃO PODEM FAZER MAIS”

 

Escutemos Maria de Fátima:

 

Casei-me com ele depois de o meu marido ter morrido. Casei em 2005 e deixei-o em fevereiro de 2008. Vinha quase todos os dias para a porta do meu prédio fazer espetáculo, gritar: “És uma vaca, uma puta, uma ladra, beijaste vagabundos na minha frente, nunca soubeste ser mulher…” Cada vez que ele vinha eu chamava a polícia. Os polícias mandavam-no embora, mas ele depois vinha outra vez. Andei nisto até novembro de 2010, quando ele desapareceu. Depois de o tribunal o chamar que anda a monte. Ninguém sabe onde está.

Os agentes tomavam conta da ocorrência, falavam com ele e mandavam-no embora. Era o que eles me diziam: “A gente não pode fazer mais nada…” Mas a polícia para mim era o meu anjo da guarda. Eu telefonava para a esquadra e nem cinco minutos demoravam a chegar ao local. Eles diziam para mim: “A senhora quer que a gente a acompanhe a qualquer lado? Qualquer coisa que precisar de nós ligue, que estamos sempre à disposição.” Os polícias diziam-lhe a ele [ao ex-marido] para se ir embora dali. Iam até à linha do comboio. Iam ver se ele tinha mesmo apanhado o comboio. E faziam isso mesmo quando ele não me batia… Não tenho nada a dizer da polícia. Havia alturas em que eu ia diretamente pôr o requerimento ao tribunal, mas chamava a polícia na mesma. De todas as vezes que ele veio e que eu os chamei, eles vieram, mas diziam: “A gente não pode fazer nada.” Eram sempre agentes diferentes, mas já todos sabiam do meu caso.

Ele andava sempre com a arma dentro da mala. Dele, medo não tenho e nunca tive. Tenho medo é da arma. Ele disse que ia meter uma bomba na minha casa e que ia tudo pelos ares. Tem-me ameaçado tantas vezes que eu vivo com medo. Chegou a dizer para a própria polícia: “Qualquer dia venho aqui e rebento com tudo”. A polícia tudo isso escreveu mas, coitados, eles não podem fazer mais nada. [Entrevista, 27-12-2010, no Gabinete de Apoio à Vítima de Cascais, Portugal.]

 

LAMENTOS IMPOTENTES

 

Em termos gerais, o lamento dos agentes não é muito diferente do lamento das vítimas. Seja a impotência sentida resignada ou indignada, ambas se consubstanciam num queixume, nas narrativas da incapacidade de avançar com novas soluções e medidas para os casos e vítimas de VD que chegam às esquadras. É reconhecido por todos um impasse na ação profissional dos polícias. Como se viu até aqui, estamos bem longe da lógica de moral punitiva, a qualquer custo, como atribuição transversal de valor cultural dos agentes. Nesse sentido, a importância e amplitude da negociação situacional das respostas policiais, em contextos portugueses, pouco se assemelha ao que tem sido etnograficamente evidenciado em contextos anglo-saxónicos (Hoyle, 1998).

O lamento impotente dos polícias tem assim a compreensão das próprias vítimas; é reconhecido como estando neles, mas também para além deles. A entrevistada no Gabinete de Apoio à Vítima de Cascais usa o termo “coitados”, demonstrando mesmo compaixão para com aqueles que deveriam ser capazes de exercer autoridade em seu benefício, mas que não conseguem. Esta adjetivação sugere uma repentina inversão de papéis. Tal como já antes evidenciado por Clarck (1997), algumas micro-hierarquias da vida quotidiana desafiam as assimetrias de poder, neste caso a declarada vítima desafia o poder policial ao ponto de poder sentir pena dele. Há uma compaixão que ao mesmo tempo subtrai os polícias da sua atividade mais central: o exercício pleno de uma autoridade que deles e só deles é esperada.

Contribui para essa simpatia o modo como as mulheres articulam críticas dirigidas à polícia com acusações ao funcionamento mais amplo da justiça criminal ou do Estado. Estas focam mais a ideia de (in)justiça e menos as arbitrariedades dos agentes (embora tal possa, evidentemente, acontecer). Convém lembrar que tem sido recorrentemente identificado um problema genérico de morosidade na justiça portuguesa (Gomes, 2011). Mas no nosso estudo, o que se destaca narrativamente é a comprovação e justificação dos limites, impotentes, do serviço policial perante as vítimas e os agressores. Há um reconhecimento de que este terceiro presente – o polícia – é muitas vezes um presente de resposta ausente (de autoridade).

É inegável que a impotência institucional descrita gera formas de incapacitação nas vítimas. Talvez a mais notória seja precisamente a recusa, porventura institucionalmente involuntária, ao direito de expressão emocional e de dor nestes serviços públicos. Por tudo o que até aqui foi dito depreende-se que a esquadra, hoje, não é um lugar onde se possam expressar as emoções. É, em boa medida, um lugar feito para “comunicar”. Comunicar, na Polícia, significa, como já salientado, “participar” a instâncias superiores ou administrativas os casos narrados pelas vítimas, em geral através de autos. As instâncias judiciais, no caso o Ministério Público e os tribunais, são assim os responsáveis lato sensu pelas vítimas – são eles que passam a “conduzir o inquérito”. Magistrados e juízes reencaminham depois os casos para os agentes, só que desta vez para divisões e secções da investigação criminal. Desse modo, os agentes da justiça e os agentes da investigação criminal não só se colocam hierarquicamente acima das esquadras e dos seus polícias como lhe limitam a capacidade de se imaginarem como profissionais da justiça.

Nas esquadras de investigação criminal, especializadas na área da VD, os agentes reconhecem que muitas vezes as vítimas lhes chegam sem terem sido ouvidas devidamente na fase anterior, nas esquadras genéricas. Referem que ouvir é o que fazem a maior parte do tempo. Daí a recorrente sugestão de que deveriam contar com o apoio de outros técnicos, como psicólogos, na própria Divisão de Investigação Criminal (onde não existem), para que pudessem lidar melhor com a dimensão criminal do problema. Mas o entendimento mais importante aqui é de que a maioria das vítimas não quer avançar para um processo-crime e consequente para a condenação do(a) agressor(a). A maioria dos queixosos quer “resolver problemas relacionais”, mas muitas vezes a resolução que desejam não passa por excluir o(a) acusado(a) da vida deles. A tónica das vítimas coloca-se nos dilemas relacionais ou, nos casos mais graves, na necessidade de medidas que as proteja imediatamente, e fisicamente, do agressor. A Polícia e a Justiça colocam as suas baterias ao serviço de uma resposta penal para apenas os casos que se consideram solidamente investigados, mas que tende a ser demorada, muito circunstancial e impotente. Em suma, para os agentes da investigação criminal a resposta penal é tida, na maioria dos casos com que lidam, como insuficiente, fria e inflexível – até porque ou o caso segue por decisão judicial obrigatória, para a fase de julgamento ou, mais frequentemente, é arquivado. Tal contradição operacional do sistema cria a sensação de incapacitação de julgamento na justiça.

Acontece que, assim que informam as instâncias superiores da justiça penal, no momento do auto de VD, os agentes nas esquadras consideram-se – sem que ninguém os contrarie – imediatamente autorizados a esquecer tais casos, tais vítimas. Mesmo quando em permanente contato com essas pessoas, com casos que se repetem nos quotidianos que patrulham, sendo chamados com frequência para intermediar conflitos com violência locais, que conhecem bem (como ilustra a narrativa), esses são para os agentes casos de pessoas com histórias mas sem história. Estas pessoas consubstanciam “ocorrências” que deverão ser tratadas, sobretudo, como “processos, com o estatuto de crime público, dignos de um seletivo registo oficial (com atribuição de um NUIPC, número único de identificação de processo-crime), o envio da vítima para recolha dos exames médicos necessários, e pouco mais. Quando em estado visivelmente de risco, aí sim com o assentimento das vítimas, os agentes recorrem aos serviços de emergência da assistência social ou a associações de apoio à vítima e “encaminham-nas”. Mas “pouco mais se pode fazer”, dizem.

Existem, todavia, importantes nuances nas manifestas impotências dos profissionais. Para os agentes impotentes resignados, o processo administrativo é tudo, mesmo quando é muito pouco – na lógica de um trabalho pelos mínimos burocráticos. Por vezes, alguns agentes transmitem um certo orgulho da peça de expediente escrita, mas só muito raramente falam com o mesmo brilho nos olhos do bom atendimento prestado a uma vítima. A atenção preferencial não é a vítima, enquanto pessoa, mas sim a codificação da identificação dos seus dados pessoais e da narrativa fática que o formulário informático exige. Desse modo, a narrativa das mulheres que chegam com as suas denúncias de violência às esquadras é pré-orientada para a conformidade burocrática do exercício de registo policial. Pode dizer-se que a subordinação do atendimento, e até da vítima, ao ato burocrático, é um aspeto dominante na rotina das esquadras portuguesas, com a ênfase conformista de agentes resignados.

Impotentes, mas indignados, certos agentes, inconformados com os seus limites, anseiam por um aumento da autoridade moral e ética perante os casos de VD (sobretudo quando envolvendo crianças, mas não apenas). Em geral, as histórias das vítimas mobilizam a sua sensibilidade e pena. Isto fá-los duvidar de todo o processo policial-judicial onde estão inseridas as suas próprias ações. Muitos agentes e alguns chefes narraram-me as suas próprias histórias de osmose sentimental com as vítimas. A discussão da identificação intersubjetiva, através da dor, é frequente entre os agentes que conheci. De modo mais geral, não é pouco comum estes alegarem que uma das principais características da ocupação policial é precisamente a exposição ao sofrimento humano.

Porém, isto envolve-os em sentimentos que, embora de forma diferente dos anteriores, os resignados, redundam também numa certa recusa do direito à expressão do sofrimento das vítimas. Os polícias recentram a atenção nas suas próprias impotências, não apenas ocupacionais mas propriamente humanas – a dor do testemunho. E, deste modo, eles correm o risco de se transformar nas vítimas involuntárias das situações que deveriam ajudar a gerir. Com agentes resignados ou indignados, verificamos que a gramática da impotência faz parte do padrão das respostas policiais à VD.

A subalternização burocrática do ato de policiamento da VD, com relação aos órgãos judiciais, torna os agentes relativamente passivos em boa parte do processo técnico e profissional do seu trabalho de aplicação das leis: quer na qualidade do atendimento quer na resolução mediada dos problemas que envolvem vítimas e agressores. Resta aos agentes pouca margem para imaginar e enquadrar formas de atuação efetiva na resolução de conflitos desta natureza. Ou seja, a conceção dominante da atividade policial em casos de VD tende a consumar-se na atividade de administração do processo burocrático.

Em estudos recentes, efetuados em delegacias de atendimento às mulheres no Estado de São Paulo, foi evidenciado um “contexto de dilemas” e uma tendência de judicialização das relações e da vida social (Debert, Gregori e Piscitelli, 2006) muito especialmente após a implementação da Lei da Maria da Penha (Santos, 2010). Este contexto manteve-se atravessado pelo contraste entre o que se espera dos polícias civis e o que estes estão capazes de oferecer, como também analisa Muniz (1996). Apesar disso, diversos autores explicam e exemplificam etnograficamente como a categoria “violência doméstica” permitiu reprivatizar questões políticas, com todos os problemas que tal implica. Já em Portugal, um dos resultados do projeto “Mulheres nas Esquadras…” evidenciou um sentimento de impotência transversal, apesar do clamor penal. A orientação legislativa em Portugal lembra que as vítimas têm direito à expressão da sua vitimação a partir do momento em que são identificadas judicialmente nessa condição e se lhes reconhece esse estatuto. A pressão social e política teve o seu papel no aumento da participação deste tipo de crime às polícias (DGAI, 2011). Todavia, nas instâncias de resolução judiciária, e desde logo nas esquadras, tais vítimas continuam com escasso direito à expressão pública do seu sofrimento privado. É evidente uma extrema dificuldade institucional e social no reconhecimento de direitos considerados privados – como seja a dor associada à violência e a sua interrupção com medidas policiais – em domínio público. Mesmo quando existem espaços pré-definidos para tal, como as salas de apoio às vítimas (que se tornaram salas multi-usos), as organizações da justiça, neste caso as Polícias, não oferecem a este tipo de crime e de vítima o cuidado merecido. Conclui-se assim que toda esta situação condiciona a expressão emocional das vítimas.

Cynthia Sarti (2009) tem evidenciado como a construção social da violência está associada à ideia de vítima. Através de um estudo de campo em unidades de atendimento de emergência hospitalar no Brasil, a autora demonstra que o reconhecimento de um ato como violento pressupõe atributos previamente identificados na vítima. Assim, a organização do serviço de atendimento passa a seguir esta lógica. As campanhas e políticas contra a violência, na saúde, como na justiça, têm tido, desde os anos 1980, um viés de género (Santos, 2005). Isso faz com que se conceba a “vítima” como mulher, o que deixa de fora uma série de vítimas que povoam as estatísticas, em particular os jovens rapazes negros, e a conceção de um atendimento transversal que os inclua. Estabelecendo um paralelo, em Portugal, o caso do tratamento policial e judicial da violência entre pessoas íntimas ou familiares evidenciou que embora estatisticamente as vítimas sejam largamente mulheres (entre os 25 e os 50 anos), a representação da vítima na esfera pública e política penal pretende ser cada vez mais universalista. Por isso a tipologia da lei deriva claramente da violência de género para a violência doméstica. Toda a política é concebida como um direito para todos os atingidos, sem distinções no acesso às instituições.

A lei defende assim direitos de cidadania universais. Mas tende a silenciar um aspeto importante: o de que as vítimas existem como coletivo na medida em que os casos individuais se tornam expressivos nas instâncias que lhes prestam os primeiros socorros de segurança. Sem direito à expressão pública de sentimentos de invasão, ameaça e agressão, plurais e complexos, por parte de familiares e de pessoas da sua intimidade, e sem medidas de polícia/justiça mais adequadas e consequentes, as mulheres que entrevistei ficam, em vários momentos do processo de denúncia, atendimento e tratamento dos casos, sem direito à vita activa ou, dito de outro modo, a uma cidadania plena.

Ou seja, os planos políticos da ação pública, legal e particularmente policial, podem ter escassa mobilização privada quando os sujeitos que representam não se revêem na sua própria representação. Existe uma permeabilidade para silenciamentos nas esquadras, ainda que estes sejam hoje mais subtis do que foram em fases históricas do fenómeno de VD em que o direito legal das vítimas não era sequer equacionado. Pode dizer-se que foi ultrapassada a fase do consentimento social. Não existem dúvidas quanto à não condescendência pública e legal da violência que envolva familiares, companheiros, namorados, idosos. Comandantes e agentes são os primeiros a criar campanhas de prevenção ou dissuasão local da VD.

Defendo assim que os silenciamentos que surgiram durante a pesquisa revelam menos a indiferença social ou burocrática – sobre a qual os operadores políticos, com as suas campanhas de sensibilização pensam ser de atuar, criando uma onda de intolerância em volta do fenómeno – do que impotências práticas. Essas, por sua vez, são geradoras de impotenciações variadas, desde logo nas próprias vítimas que enfrentam inúmeras dificuldades no controlo básico da sua existência, isto é, na obtenção dos mínimos de segurança. São essas mesmas incapacitações que os operadores de justiça de primeira instância, os agentes de esquadra, pressentem, operam e descrevem, mas cuja solução têm dificuldade em articular. Não podem fazer mais?

 

CONCLUSÕES

 

Na literatura sobre os estilos de policiamento e usos discricionários do poder policial em matéria de violência doméstica existe toda uma dimensão de ambiguidades e de dinâmicas finas da vida social que continua por retratar etnograficamente. Como já referi, uma das poucas obras que procura documentar etnograficamente os encontros entre polícias e vítimas faz uma distinção entre regras legais e práticas policiais, baseando toda a argumentação na determinação situacional das decisões policiais (Hoyle, 1998). Esse não é exatamente o argumento que a observação empírica que desenvolvi requer. A análise de cenas e falas em torno ao trabalho de atendimento policial a pessoas em situação de vitimização por violência doméstica pareceu-me particularmente central para fornecer luz a estas dimensões ocultas.

Uma das críticas que se pode fazer à literatura sobre o tema é exatamente a sua centralidade na questão do poder, absoluta alteridade provocada por uma assimetria de posições e de género sexual entre polícias e vítimas que, com variações contextuais, acaba por ser definida como característica estruturante do policiamento em geral, e nestes casos de violências domésticas em particular. Esta é uma configuração a ter em conta, mas existem outras. Para dar apenas um exemplo, Han (2013) destaca como na cidade de Santiago no Chile os polícias contribuem para a violência e desestabilização do trabalho legal mas, ao mesmo tempo, por estarem implementados nos bairros ao longo do tempo e numa ocupação duradoura, acabam por ser locais e extra-locais. Para entender como estes são vistos pelos moradores, Han evoca a figura do estrangeiro proposta por Simmel (1908 [1971]), essa síntese entre o próximo e o remoto, bem distinta da alteridade radical.

Parece estar mitigado nas análises etnográficas um outro ângulo de análise: o de usos da autoridade moral dos polícias nestes casos. Entendo aqui autoridade como a autorização legal para se fazer obedecer, orientada para uma moral de serviço público-profissional. A legitimidade da ação policial não depende apenas do uso diferencial e de certo monopólio de poder, mas também de alguma espécie de autoridade prática e de crença emotiva difundida de que os polícias podem, em última instância, abrir uma janela de possibilidades para algum tipo de reconhecimento (mais ou menos fluido e mais ou menos factual) de um direito cidadão: o direito à segurança inter-pessoal em situações violentas e de risco eminente.

Através de explorações etnográficas conduzidas em diversas esquadras de polícia em Portugal, evidenciei como é possível definir vários padrões emocionais que regem a ação prática de polícias em relação a vítimas de violência doméstica. Demonstrei que o que fazem os agentes é tão ­determinante quanto o que escolhem não fazer; o uso de algum tipo de poder é tão flagrante quanto as sucessivas narrativas e práticas da impotência e de retirada da autoridade policial no ato. Serão as formas de impotência que procurei analisar, em palavras e gestos trocados entre estes e mulheres que se apresentam como vítimas, uma recusa ao direito da expressão emocional das últimas?

Gostaria de concluir demonstrando como esta dinâmica surge associada a uma tendência recente de vitimização dos próprios polícias. Recentemente, ­Fassin (2013a e 2013b) aponta para a importância de analisar do mesmo modo as várias perspetivas: (i) daqueles que estão envolvidos no policiamento promovido por BACs (brigadas anti-crime), (ii) as visões sobre quem incide o policiamento, os moradores de bairros sociais da periferia parisience e (iii) a perspetiva dos “ausentes” (a população maioritária). O autor adverte ainda para configurações morais nos polícias: por um lado, a ideia de que os agentes consideram os juízes lenientes em relação aos supeitos que os primeiros detêm. Também em Portugal os polícias depositam frequentemente a razão da sua impotência nos juízes e magistrados em geral, aspeto que tratei detalhadamente noutro lugar (Durão, 2013). Fassin alerta também para um segundo problema importante. Ele demonstra como as estratégias de comunicação das instituições policiais tendem a representar os polícias como vítimas, de modo a conquistar a simpatia “do público”, isto é, de uma boa parte da população, e evitar que sejam social, política e legalmente responsabilizados por abusos de autoridade ou mesmo violência indevida. Os agentes da autoridade, pelo menos em contextos europeus, já não surgem tão associados à masculinidade e à invencibilidade como noutros tempos.

A segunda parte da argumentação de Fassin tem impacto mesmo quando pensamos no efeito da retração do policiamento comum, enquanto serviço aos cidadãos, e não apenas no que é o seu tema predominante, a atuação das BAC (brigadas anti-crime), evidentemente mais treinadas para serem reativas e cada vez mais presentes nos bairros de migrantes e pobres. Concluo, baseando-me na leitura do autor, que a declarada impotência policial alimenta essa conquista de simpatia junto da população e das próprias vítimas, como demonstrei. Estaríamos assim num processo de pretensa humanização dos polícias sem refletir o seu papel efetivo como autoridade, mesmo quando a condução do seu serviço depende exatamente de um exercício de autoridade e não de mero registo burocrático. Tudo isto leva a crer que ao negarem às vítimas a sua expressão emocional e o tratamento mais fino e empenhado nos seus casos, os polícias ressituam-se a si mesmos no centro de toda a questão, apresentando-se como vítimas. Eles passam a ser as vítimas de situações ambíguas, dos juízes e de um sistema de justiça onde dizem não ter alcançado o devido protagonismo, precisamente porque mobilizam uma poderosa justificação: “Não podemos fazer mais”.

 

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Recebido a 27-01-2013. Aceite para publicação a 16-10-2013.

 

NOTAS

1 Trata-se de um documento que é oferecido nas esquadras e pela mão dos policiais às vítimas, caso as mesmas o queiram receber. Com este, a vítima, oficialmente reconhecida enquanto tal, passa a ter acesso prioritário e gratuito a vários serviços de saúde e proteção social do Estado.

2 Na antropologia brasileira, pela mão de autoras como Filomena Gregory, têm sido evidenciados os desdobramentos semânticos na arena institucional das noções de “violência contra a mulher”, incluindo a violência conjugal, violência doméstica, violência familiar e violência de género (1993, 2006). No caso português e noutros países europeus, os desdobramentos surgem a partir da noção de violência entre pessoas, familiares ou íntimas, procurando-se um certo desvio de enfoque na questão de género.

3 Existe uma literatura de referência na área (Reiner, 1985a; Reuss-Ianni e Ianni, 1983; ­Skolnick, 2005; Waddington, 2005; Westmarland, 2008). V. também exemplos de abordagens gerais do policiamento (Goldstein, 1977; Reiner, 1985b) e abordagens mais voltadas para a questão do atendimento e investigação da violência doméstica (Mawby, 1999; Richards, ­Letchford e Stratton, 2008).

4 Jackson define controlo como “tomada do curso da ação numa dada direção”. O direito é definido como um balanço complexo entre o mundo que cada um reivindica o direito de chamar o seu próprio (o seu mundo) e os mundos que abandona e perde para a alteridade (o mundo em geral). O poder é visto como “poder de si” ou modus vivendi, no sentido em que as pessoas experimentam o mundo como sujeitos e não meramente como predicados contingentes (Jackson, 1998, pp. 16-22).

5 Vale a pena a alusão a alguns dados expressivos: o Observatório de Mulheres Assassinadas (da UMAR), um dos poucos a coletar estes dados em Portugal, identificou pelo menos trinta e seis casos de mulheres assassinadas e quarenta e nove tentativas de homicídio em 2012, a maioria levada a cabo por companheiros ou ex-companheiros, num país com 10 milhões e 500 mil habitantes.

6 Women in Police Stations: Violent Crime and Gender Relationships/Mulheres nas Esquadras: Crimes de Violência e Relações de Género (FCT/PIHM/VG/0131/2008), projeto financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia em Portugal, ao abrigo de protocolo estabelecido com a Secretaria de Estado da Igualdade, na área científica da Violência de Género. O projeto decorreu entre setembro de 2009 e fevereiro de 2012, no âmbito das atividades científicas do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, e foi executado com a colaboração de Marcio Darck (mestrando em criminologia na FDUP, Porto) e Pedro Moura Ferreira (sociólogo do ICS/UL, Lisboa).

7 Estas salas são espaços físicos criados especificamente para atender vítimas com discrição e privacidade. As salas existem em mais de 65% das atuais 217 esquadras com competência territorial da PSP, mas na maioria dos casos praticamente não têm uso ou, pelo menos, o uso para o qual foram criadas. De notar que, na generalidade, as vítimas são atendidas por elementos masculinos e nos espaços de atendimento comum, na chamada “banca”, em geral no espaço de receção à entrada das esquadras. Em nenhum momento vimos as vítimas serem informadas acerca da possibilidade de poderem ser atendidas por uma policial do sexo feminino, embora tal norma esteja prevista. Há uma explicação organizacional para tal. As profissionais nas polícias estão estatisticamente menos representadas nos escalões mais baixos da hierarquia (cerca de 6% do total) do que nos postos de comando (cerca de 10% do total), o que por si só dificulta, quando não inviabiliza, a aplicação prática da norma (Cf. Balanço Social da PSP, 2010; última consulta em junho de 2012). Não existem políticas afirmativas para a contratação de agentes para avolumar a presença feminina nas unidades de atendimento ao público. A subrepresentação feminina tem várias razões históricas que não podem ser explicadas neste texto.

8 A este respeito vale a pena ler o Blackstone’s Police Operational Hadbook (2009). Na secção sobre VD existem várias indicações acerca de: as partes envolvidas, a “cena” e a recolha de prova, o relatório inicial, responsabilidades quando estão envolvidas crianças, a investigação subsequente, os poderes policiais para entrar em espaços privados, as contra-alegações, a responsabilidade parental, a propriedade e a ação civil. Este tipo de abordagens processuais lembram que o trabalho de aplicação da lei tem início desde logo na fase do atendimento policial, e não apenas, como parece considerar-se na prática em Portugal, na fase da intervenção mais específica da investigação criminal, quando a direção do processo passa para as mãos do Ministério Público (Ler mais em Durão, Darck e Ferreira, 2013).

9 Devo dizer também que, de acordo com o Código de Processo Penal português, “é flagrante delito todo o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer” (n.º 1 do art.º 256). Defende-se que não é necessária visibilidade da infração, mas sim atualidade. As autoridades estão perante um flagrante-delito quando conseguem repor a sequência de factos gerados pelo crime (cf. Lei n.º 112/2009, art.º 30, n.º 3). Esta subtileza é apagada na maior parte das práticas policiais, mas não apenas porque os agentes têm uma certa intencionalidade. A maioria dos juristas e policiais partilham uma gramática restritiva e cautelosa de uso flagrante delito, em particular quando envolvendo agressões de VD.

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