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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.208 Lisboa jul. 2013

 

Salvador Giner: A consciência sociológica

Entrevista com Salvador Giner* por José Luís Garcia**

*Universidade de Barcelona. E-mail: sginer@diginter.com

**ICS-UL.E-mail: jlgarcia@ics.ul.pt

 

Há quatro décadas que Salvador Giner é uma figura-chave da sociologia de Espanha. Na atualidade, é Catedrático Emérito de sociologia da Universidade de Barcelona e presidente do Institut d’Estudis Catalans (Academia das Ciências e Humanidades da Catalunha), após ter sido professor nas Universidades de Puerto Rico, Reading, Lancaster, diretor do departamento de sociologia e antropologia em Brunel West London University, e diretor do Instituto de Estúdios Sociales Avanzados do Consejo Superior de Investigaciones Científicas (CSIC). Licenciado em direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em direito (sociologia) pela Universidad Autónoma de Barcelona, é ainda Licenciado e Doutor pela Universidade de Chicago (MA e PhD), onde teve como professores Hannah Arendt, Friedrich Hayek e Edward Shils. Este último foi o orientador da sua tese de doutoramento dedicada à conceção da sociedade industrial plenamente desenvolvida como sociedade de massa (Mass Society, Nova Iorque, Martin Robertson, 1976).

Salvador Giner integra a segunda geração de emigrantes intelectuais espanhóis, como consequência do contexto de ditadura subsequente à Guerra Civil espanhola (1936-1939), seguindo os passos da geração de José Ortega y Gasset (1883-1955) e dos seus discípulos em redor dos quais se constituiu a Escola de Madrid. O grupo de que Ortega y Gasset era mentor praticou um pensamento ou ensaísmo social rico e imaginativo, inspirado na metafísica alemã e centrado na preocupação liberal-conservadora pelo caráter de Espanha, diferenciando-se das correntes progressistas-socialistas que fundiam a sociologia com a questão social. A geração de Giner, após o triunfo franquista na Guerra Civil, descobriu na sociologia uma possibilidade intelectual importante, na qual as figuras de Ortega y Gasset, mas também de Ángel Ganivet e Miguel de Unamuno eram referências de primeira grandeza, a par de outros teóricos relevantes – embora menos conhecidos – da sociologia espanhola que tinham florescido no período anterior à Guerra Civil nas áreas do direito (Joaquín Costa), da criminologia (Bernaldo de Quirós), dos estudos rurais (novamente Joaquín Costa, Díaz del Moral e Bernaldo de Quirós), da sociologia do trabalho, das técnicas de investigação e de outros domínios conexos que compreendiam a antropologia e a etnografia.

O aparecimento da figura e do trabalho de Giner em Espanha ocorre de forma mais notória no período de transição democrática espanhola, que ficou marcada pelo triunfo da chamada cultura do consenso estabelecida pelos Pactos de la Moncloa, assinados no ano de 1977 pelas principais forças políticas, incluindo o Partido Comunista de Espanha. Se, nas gerações anteriores, a sociologia espanhola se preocupava sobretudo com a fisionomia de Espanha e com as questões agrárias, sem menosprezar outras com menor expressão no âmbito cultural e político, no novo contexto impuseram-se a questão da modernidade, do republicanismo, da sociedade cívica e dos problemas associados ao chamado corporativismo, bem como as problemáticas mais recentes do ambiente, da globalização, da cultura, do consumo, mas também das questões do carisma e religião num contexto de modernização da sociedade.

Dois fatores relevantes permitem compreender a importância de Giner para a sociologia espanhola. Numa primeira fase, a sua trajetória intelectual e académica desenvolvida fora da ­Espanha franquista, tendo tido o mérito de nunca se desligar do que acontecia na Universidade espanhola. Num segundo período, os seus livros dedicados ao pensamento social e à teoria sociológica, que passaram a jogar um papel fundamental na formação de gerações de estudantes de língua castelhana e que ao mesmo tempo não se limitavam à mimetização de outras obras congéneres publicadas em França, Inglaterra, Alemanha ou EUA, antes ousavam avançar na descoberta de teorias e conceitos para a sua sociedade e sociedades congéneres. Expressão enfática desta tendência constitui o facto de, em Teoría Sociológica Clásica (Barcelona, Ariel, 2001), Giner, a par da valorização de Veblen como teórico das elites das sociedades desenvolvidas, dar a conhecer Joaquín Costa como teórico das sociedades de caciquismo (ou da usurpação oligárquica do poder). Um outro exemplo é o realce que atribui nessa obra ao trabalho de Adolfo Posada sobre as mulheres e o feminismo. Vale ainda a pena destacar o valor do seu tratado introdutório à sociologia, Sociologia, que, desde a sua primeira publicação em 1968, tem sido objeto de várias traduções e edições; o seminal conjunto de ensaios que compõe Carisma y Razón: La Estructura Moral de la Sociedad Moderna (Madrid, Alianza Editorial, 2003) e o aparecimento em 1998 (com segunda edição em 2006) do Diccionario de Sociologia, revelador do trabalho sistemático de Giner e de outros académicos de gerações mais novas no desenvolvimento desta área do conhecimento em Espanha.1

Conhecedor profundo e admirador da língua e da cultura portuguesas, interlocutor sistemático da sociologia de Portugal, esta entrevista com Salvador Giner decorreu, durante todo o dia de 9 de julho de 2012, em Barcelona, no seu gabinete do Institut d’Estudis Catalans, no Carrer del Carme, Raval.

 

JOSÉ LUÍS GARCIA - Quero começar esta entrevista perguntando-te sobre a tua origem social, a tua infância e juventude, se foram em Barcelona, como era esta cidade após a Guerra Civil, sobre a tua vida no período do Franquismo, sobre os constrangimentos provocados pela Segunda Guerra Mundial. Como foi a tua trajetória até à entrada na Universidade?

SALVADOR GINER - Eu sou filho de professores da República. A minha mãe era basca, da zona mais etnicamente distinta do País Basco. O meu pai era alicante de língua catalã. Estudou no magistério para professor. Ambos foram para Madrid, para a Escola Superior do Magistério, que era uma escola nova, fundada pela República, com uma ilustre professora, a primeira catedrática de Espanha, a senhora María de Maeztu, republicana, a primeira mulher na Faculdade de Pedagogia. Eles conheceram-se ali, casaram e tiveram como destino Barcelona. Vieram para aqui, com um salário razoável, por serem professores. Na realidade, o governo catalão ajudava os professores da Reforma Educativa Republicana, num esforço maravilhoso de reformar Espanha através dos professores de escola, nacionais. Isto antes de 1936.

Passámos a guerra civil em Barcelona. Uma das minhas primeiras recordações foi um bombardeamento de Barcelona, tinha 3 ou 4 anos. Lembro-me dos aviões alemães passarem no céu. À noite viam-se os faróis, era um avião. ­Disparavam, eu pensava que era fogo-de-artifício, mas eram baterias antiaéreas, e aquilo parecia-me extraordinário, visto do terraço de minha casa. Guardo algumas recordações. Depois veio o Franquismo, uma época muito dura. O meu pai esteve em casa por algum tempo, foi preso, perdeu o seu lugar de professor. Passou a ter uma vida como representante comercial, foram tempos muito difíceis. Eu não me lembro de passar por momentos demasiado terríveis, porque os meus pais punham comida na mesa, para mim e para a minha irmã. Vivíamos com a dignidade das classes médias, as sofridas classes médias, como dizem os sociólogos. Também o dizem do povo.

Venho de uma família muito culta, porque integrava a elite dos professores. Em minha casa entravam e saíam professores universitários, alguns exilados, alguns muitos famosos como Ferrater Mora, um grande filósofo, que esteve no Chile e nos Estados Unidos da América, e ocasionalmente vinha a Espanha de avião com passaporte, pois foi-lhe permitido voltar a Espanha, passados alguns anos. Vinha visitar o meu pai, vinha a minha casa. Levámos o que se chamava uma vida de exílio interior. Nem todos foram exilados, Franco foi responsável por expulsar cerca de meio milhão de espanhóis e pela morte de um milhão, no entanto, em Barcelona as famílias republicanas mantiveram o seu ambiente liberal, tolerante, e eu cresci neste mundo. Quando acabei a escola primária, o meu pai enviou-me para o liceu francês porque pensava que eu não devia ir para uma escola jesuíta, nem para um seminário de padres, e sim para uma escola laica. E então consegui entrar numa escola pequena de muito prestígio. Fiz um bacharelato espanhol num liceu francês. A elite dos professores sofreu represálias, mas tive a sorte de ter estudado numa escola excelente. Quando acabei, escolhi direito como podia ter escolhido outro curso, porque a Faculdade de Ciências Económicas – eu queria ter seguido Económicas – foi inaugurada um ano após eu ter começado. Havia apenas uma em Espanha e era em Madrid. Estudei direito sem vocação nenhuma. Devo dizer que não era muito fácil. Recordo-me de ter estudado direito processual, direito romano, direito civil e de ter trabalhado muito. Mas, enfim, fiz direito.

Ao entrar na universidade, logo nos primeiros dois meses, organizei uma revista clandestina, chamada Hydra, com vários poetas e escritores. O importante desta atividade era conspirar contra o regime fascista. A Guerra ­Mundial tinha-nos isolado totalmente e não havia ajudado em nada a Espanha. Tal como aconteceu com Salazar e depois com os gregos – com a Grécia foi mais feroz devido à guerra civil entre comunistas e o governo pró-americano. Eu notava – e não tinha saído para o estrangeiro – que a Espanha era um país derrotado, sem alegria. Basicamente, reuni um grupo de amigos e decidimos transformar o mundo. Nessa altura, não tínhamos ainda reparado que as grandes potências, Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos da América, nos tinham abandonado totalmente. Radicalizámo-nos ao ponto de pensarmos que a única solução era o comunismo. O que sabíamos do comunismo era que se opunha a esse regime, repugnante, reacionário, antiquado e antidemo­crático.

Eu tinha 18 ou 19 anos quando, com um grupo muito pequeno de pessoas, fundámos um núcleo comunista na Universidade de Barcelona – a primeira célula comunista da universidade espanhola. Não a recomendamos nem a Deus nem ao Diabo. Não tinha nenhuma ligação ao Partido Comunista. Nunca fui nem sou marxista, todavia naquele momento pensámos que o melhor era isto. Encontrámos um escritor espanhol, chamado Luis ­Goytisolo, muito conhecido, irmão de Juan Goytisolo. Depois, o núcleo aumentou quando outros meus amigos da Faculdade de Filosofia se juntaram e criámos duas células. Nessa altura, porém, regressou a Barcelona um filósofo marxista que tinha integrado o partido comunista alemão e, ao chegar aqui, quis pôr ordem neste grupito de comunistas clandestinos. Em 2 ou 3 meses, atribuiu-se poderes supremos. Estava em contacto não se sabe com que forças, se com forças do partido comunista no exílio, se com Moscovo ou Paris. Ao fim de algumas semanas, começou a “limpar” o partido e expulsou-me. Eu estive no partido 6, 7, 8 meses, não chegou certamente a 8 meses… Fui expulso por este senhor, Manuel Sacristan Luzon, madrileno, que vivia em Barcelona. Existem documentos sobre isto. Bem, fez-me um favor imenso porque me livrou…

JLG - Como surgiu a sociologia na tua vida?

SG - De uma forma casual. Eu fui a uma livraria na universidade, na antiga Universidade de Barcelona, que já não existe. Havia lá muitos livros em segunda mão, encontrei um livro de um tal Hans Freyer em castelhano, que tinha sido traduzido em Buenos Aires, A Sociologia como Ciência da Realidade.

 

LJG - Descobriste a sociologia com Hans Freyer?

SG - Não. Tinha descoberto a sociologia após uma pequena crise pessoal, com significado para qualquer estudante, como são as crises religiosas.

 

JLG - E não tiveste nenhuma disciplina de sociologia no curso de direito?

SG - Havia uma disciplina no plano de estudos, onde lecionava um sociólogo fascista, uma pessoa estranhíssima, que falava de Pareto, naturalmente, e que via os cursos de sociologia como uma espécie de ramificação muito menor de uma licenciatura mais ampla. Recordo-me que o nome dele era Sánchez, e provocava-nos muito riso com os seus esforços para falar castelhano apesar de a sua dicção ser inteiramente catalã. Tenho pessoas, amigos, que fizeram o curso de direito e que são juristas, que se recordam do lendário Sánchez, porque era uma pessoa estranha. Mas não me influenciou em nada. Encontrei num alfarrabista esse livro de Hans Freyer, ainda o guardo, é um livro muito mal traduzido. Mas, apesar de o livro ser complicado, vi ali algo interessante, a ideia de ciência da sociedade. Depois comprei 2 ou 3 livros, dos quais conservo um, do Fundo de Cultura Económica, que vinham do México. A censura deixava passar bastantes livros, permitiu entrar algumas traduções para castelhano do Fundo de Cultura Económica. Eu estava bastante só. O meu grupo de amigos ria-se de eu querer ser sociólogo. No entanto, eu não tinha ainda ideia do que era a sociologia.

Como conhecia nomes como Weber e sabia que havia sociologia na ­Alemanha, e ainda a possibilidade de encontrar algum trabalho dado que não tinha dinheiro nem uma bolsa de estudos, então comecei a estudar alemão aqui em Barcelona, perto deste edifício [o edifício do Institut d’Estudis Catalans], na Academia de Línguas Catalã. Fui estudando alemão. E quando acabei este curso, apercebi-me de que era importante ter uma licenciatura. Não me interessava o direito, mas tinha de o terminar. Também ia escrevendo poesia, publicando em revistas. Tenho aqui escritos, revistas clandestinas [mostra vários exemplares]. Tenho este número da Hydra, aqui escreveram escritores, poetas catalães que agora são famosos. Escreviam no bar, por vezes um pouco embriagados. Vázquez Montalbán, um grande escritor, foi meu companheiro de curso. E conspirávamos. Esta era a revista n.º 1, de 1953, quando entrámos e estávamos há dois meses na universidade. Esta é a revista Hydra, claro, ­censurada. Nós distribuíamo-las quase clandestinamente nas aulas da universidade. Este aqui é um documento incrível da censura. Para a revista poder sair fomos à polícia e esta censurou página a página.

 

JLG - Nessa sequência foste para a Alemanha estudar sociologia?

SG - Sim, fui para a Alemanha. Quando me interessei por sociologia, comecei a estudar alemão, como disse já, e fui para Colónia sozinho. Fui um pouco louco. Consegui o passaporte, a polícia emitiu-o porque tinha concluído o serviço militar, deu-mo com autorização de uma única saída. Apenas uma saída, já que para voltar teria de ter um visto espanhol. Tinha 23 anos, estava sem dinheiro, mas o meu pai, num gesto de grande generosidade, pagou-me 3 meses de um curso intensivo de alemão. Cheguei ao Goethe Institute daquela época, tinha começado o curso de alemão em Barcelona, colocaram-me no nível médio. Em Colónia, conheci René König. Informei-o de que não estava matriculado e de que não tinha dinheiro, mas que gostaria de trabalhar com ele. René König disse-me para fazer um exame em alemão tinha de ser em alemão sobre a teoria dos três estados de Comte, para ver se sabia escrever pelo menos uma página e meia, e correu muito bem. Então, deu-me senhas para almoçar gratuitamente durante 9 meses. Contudo, não me podia dar nenhuma bolsa de estudos. Por isso, fui dar aulas de espanhol para poder estudar.

 

JLG - O que é que estudavas em Colónia?

SG - Tive algumas aulas sobre a história da industrialização, lecionadas por König, sobre os intérpretes da Revolução Industrial e sobre Spencer. Um curso interessantíssimo. No entanto, assim que fiz o curso percebi que havia bolsas de estudo para ir para os Estados Unidos e eu não tinha capacidade para viver sem uma. Então, dirigi-me a Bona, numa moto emprestada, à Amerika Haus para solicitar uma bolsa. Muito atenciosamente, a pessoa que me atendeu explicou-me que tinha de fazer duas coisas: aprender inglês e fazer uma inscrição, um pedido numa entidade espanhola, onde houvesse um consulado americano. Tinha, pois, que regressar a Espanha. Mas fui primeiro para Inglaterra de boleia e depois de barco. Em Londres, estive em casa de um amigo, que me acolheu, tendo frequentado cursos de inglês durante o verão. O meu pai enviou-me uma pequena quantia, o suficiente para me matricular numa escola de línguas em Oxford Street. Existiam cursos de inglês todas as tardes, 3 a 4 horas por dia. Retornei depois a Espanha em setembro ou outubro, fui à casa americana de Barcelona e apresentei-me. Recordo-me de que uma das perguntas que o cônsul-geral me fez foi em que universidade queria eu ingressar. ­Respondi Chicago em primeiro, Yale em segundo e Harvard em terceiro. ­Porquê? Na verdade, não tinha honestamente nenhuma ideia… Coloquei-me em contacto com um professor de sociologia de Madrid, esplêndido, que dava a única cadeira de sociologia em Espanha, Enrique Gómez Arboleya. Era uma pessoa triste, de Granada, tinha sido secretário do músico Manuel de Falla. Escreveu um bom livro intitulado História de la Estructura y del Pensamiento Social. Hasta Finales del Siglo XVIII (Madrid, Instituto de Estudios Politicos, 1976), uma obra enorme da qual só saiu um primeiro volume. Foi o professor König que me aconselhou a ir a Madrid falar com ele. Don Enrique Gómez ­Arboleya era uma pessoa encantadora, embora um pouco taciturna. Levei um dia inteiro para chegar a Madrid num comboio arcaico. Fui vê-lo e disse-lhe que era aluno de René König, que pretendia uma bolsa para estudar nos Estados Unidos da América. Escreveu-me uma carta de referência. Ajudou-me muito. Assisti a algumas das suas aulas, é o pai da sociologia espanhola posterior a 1939. Foi uma amizade brevíssima porque ele suicidou-se com um tiro na cabeça (no mesmo dia em que o presidente Eisenhower veio a Espanha e abraçou publicamente o tirano Francisco Franco, no final de 1959). Há um livro de homenagem a Arboleya, no qual eu escrevi um capítulo de agradecimento.

 

JLG - Foi ele que te aconselhou a estudar na Universidade de Chicago?

SG - Ele disse-me que eu tinha de ir para Chicago estudar sociologia empírica. Arboleya escreveu sobre pensamento e estrutura social, concentrando-se sobretudo no século XVIII. Fez um estudo de filosofia sobre Francisco Soares, sobre os filósofos de Salamanca e Coimbra. Depois passou da história da filosofia neoescolástica ibérica à descoberta da sociologia. Passou por uma fase de crise e pensou que, sendo o único catedrático de sociologia em Espanha, devia fazer sociologia empírica, quase de tipo positivista. Nos nossos encontros em Madrid e em Barcelona, manifestava sempre a sua insistência para que eu fizesse sociologia empírica em Chicago. Eu obedeci às suas recomendações e fui aceite pelas três universidades. Mas não por mérito, hoje é mais difícil entrar em Yale, Harvard e Chicago.

 

JLG - E foste para Chicago…

SG - Fui para Chicago, mas aí traí o meu professor. Os deuses têm desígnios curiosíssimos… Matriculei-me no departamento de sociologia. Havia antropologia, sociologia, economia…

 

JLG - Quem dirigia a sociologia?

SG - Peter Rossi. Foi o meu primeiro professor. Dirigia o justamente célebre NORC, National Opinion Research Center, onde realizei os meus primeiros inquéritos nos bairros mexicanos de Chicago porque falava castelhano. No entanto, nem sempre as perguntas preparadas pelo Departamento eram adequadas aos ­hispânicos. Era um orgulho trabalhar com as pessoas da célebre Escola de ­Chicago, em sociologia urbana, ainda que eu fosse um mero aprendiz. Também lá estava Edward Shils que, sabendo que eu era de Barcelona, me chamou e perguntou se eu era anarquista. Respondi que era um comunista anti-estalinista, e desiludido. Começou por dizer-me que eu era louco, e tivemos uma grande conversa sobre a guerra civil e as suas consequências. Estamos a falar do ano de 1959. Era um homem difícil, lendariamente difícil, mas de uma extraordinária exigência intelectual. Com exceção de uma notável e famosa colaboração com o seu amigo Talcott Parsons, a sua obra é de uma lucidez extraordinária. Poucos sociólogos escreveram de forma tão simples e elegante como ele. Disse-me que eu estava a sofrer demasiado com a sociologia empírica, e que a sociologia empírica e quantitativa não tinha tanto interesse como alguns supunham. Disse-lhe que queria fazer o curso em Chicago e que fui aconselhado por um catedrático espanhol a fazer sociologia empírica e que depois pretendia regressar ao meu país. Respondeu-me que esquecesse o meu país, e perguntou-me o que eu queria fazer, do que é que gostava. Repliquei que gostava de teoria sociológica, teoria social, filosofia moral. Retorquiu--me: “então tem que fazer isso!”. Contestei que estava matriculado na bolsa ­Fullbright… Ele disse-me “traga-me os papéis!”. Levou-me ao 4.º piso, onde estava o Committee on Social Thought, que ainda existe. Sou discípulo deste grupo. Éramos 24 alunos, de mestrado e doutoramento. Ali estava Hannah Arendt, Edward Shils, John Green e outros. Naquele ano, o professor visitante era ­Mircea Eliade. Fui às suas aulas. E também a outras de alguns filósofos, como Strawson. Permaneci ali 4 anos e meio, e no último acontece algo dramático. Comecei a pensar que devia ter escrito uma carta a Enrique Gómez Arboleya, lamentando não estar a dedicar-me à sociologia empírica, mas que nunca iria perder o interesse. E nunca perdi! Na verdade, fiz várias investigações empíricas enormes. Por exemplo, o estudo da sociedade catalã.

 

JLG - E entretanto ele suicidou-se?

SG - Sim, matou-se, como disse anteriormente. E recebi uma carta póstuma dele. Nunca tive de dar uma explicação a Don Enrique, foi muito breve a minha missão com ele. Recebi 2 cartas póstumas na minha vida. A outra foi de um notável sociólogo catalão, Francisco Marçal, que tinha feito a sua carreira na ­Argentina, e teve um acidente…são circunstâncias diferentes… Foi em ­Londres que me chegou a carta. Francisco Marçal esteve muito tempo na ­América Latina e dirigiu a Revista Latinoamericana de Sociologia, em Buenos Aires. Morreu num terrível acidente de automóvel.

A Fundação Fullbright estava disposta a renovar-me a bolsa de estudos. Em Chicago estudei muito, e passei de bolseiro a fellow da Universidade. No Committee on Social Thought não gostavam dos mestrados, o interesse estava nos doutoramentos. Tive autorização para fazer o doutoramento e Shils sugeriu-me uma tese sobre a revolução do anarquismo europeu. Meteu-se-lhe isso na cabeça, porque eu era de Barcelona e tinha feito um curso com Hannah Arendt, que, na altura, se interessava muito pelo anarquismo, em especial pela cooperação e autogoverno. Porém, eu disse a Shils que esse tema não me agradava. Interessava-me, sobretudo, o processo de massificação das sociedades contemporâneas.

 

JLG - Um dos grandes debates desse período.

SG - Sim, um debate complexo, no qual existem elementos antidemocráticos em posições inesperadas e supostamente democráticas. Talvez por isso eu tenha tido uma crítica muito dura da esquerda. Por ter mostrado que a teoria de Adorno e colegas era de cunho elitista. Esta perspetiva criou-me algumas inimizades em Espanha. Eu sou de esquerda, mas defendi que a orientação de Frankfurt mostrava um certo desprezo pelo povo e pelo trabalhador.

 

JLG - Mas tu tens em conta o conceito de alienação derivado de Marx e as preocupações simmelianas da objetivação do conteúdo cultural, bem como as análises weberianas e pós-weberians da tendência para a burocratização…

SG - Sim, claro. A alienação do trabalhador (muito menos a alegada alienação das classes médias, com as suas neuroses e angústias supostamente existenciais). Eu queria demonstrar que a classe operária estava alienada, mas sem cair em qualquer espécie de marxismo. A ideia de mass man, uma ideia de Ortega, apoderou-se da esquerda frankfurtiana. Se tive algum mérito é que nessa época havia diversas teorias. Havia a teoria dos mass media, a dos mass politics, e depois a dos mass man, da personalidade autoritária, o homem massa… Juntei-as num livro, num trabalho de síntese que não existia até aquele momento, que culmina com uma crítica às debilidades e contradições do pensamento conservador e antidemocrático. O livro seguiu o seu curso. E como disse o sociólogo Daniel Bell numa ocasião memorável para mim – é o autor do livro mais importante sobre a teoria das massas, em The End of Ideology há um capítulo enorme sobre a sociedade de massas que é uma maravilha – … “nothing will be the same after your book”… na teoria da sociedade de massas. Foi o maior elogio que já recebi. Claro, é um livro como outro qualquer.

 

JLG - Quem arguiu a tua tese?

SG - Daniel Bell. Quando me elogiou, era o examinador externo, Edward Shils, ex officio, e John Ulrich Nef, como presidente do Committee on Social Though.

 

JLG - Como foram as aulas com Hannah Arendt?

SG - Arendt deu-me aulas no mestrado e no doutoramento. Com ela, fiz uma só cadeira, embora tenha frequentado duas. Fiz filosofia política. Quando a frequentei, o conteúdo foi sobre o seu livro On Revolution, que é fruto dessa cadeira. Assisti também a seminários com Friedrich Hayek, no seu próprio gabinete porque não gostava de os fazer na sala de aula. Por isso, sou aluno dele, embora não seja um discípulo. Fui ainda aluno de Leo Strauss. Deu-me a nota B+ e não o A ou A+ de que necessitava para renovar a minha bolsa de estudos, devido a um ensaio de final de curso sobre a teoria da revolução na Política de Aristóteles. Talvez eu tenha escrito algo sobre as classes médias atenienses que não lhe tenha agradado. Mas estou-lhe muito agradecido, e o capítulo dedicado a Aristóteles na minha História del Pensamiento Social (­Barcelona, Ariel, 1967) deve muito a Strauss. O seu livro conciso sobre Hobbes é exemplar. Relativamente a Hayek, os seminários individuais partilhados com outro estudante de doutoramento – Conrad Snowden – foram decisivos para a elaboração do capítulo dedicado a Hobbes na minha História, pelo rigor com que me fez interpretar o pensamento deste autor na primeira parte do Leviatã e em especial no Behemoth.

 

JLG - Quanto tempo ficaste nos Estados Unidos da América?

SG - Cerca de 5 anos. Ainda estive algum tempo em Porto Rico a lecionar, ao mesmo tempo que escrevia a tese. Fui também uns meses para Cambridge, para o King’s College, com o objetivo de terminar a tese em 1965. Pensei em regressar a Espanha, mas acabei por me candidatar a um lugar de professor em Reading e fui para lá. Na Inglaterra há essa coisa cruel… se vais para lá, ganhas uma miséria e tens de ir aceitando mais lugares. Fui depois para ­Lancaster como senior lecturer, e de Lancaster para Brunel West London University, em Londres. Vivi em Highgate, a dois passos do túmulo de Marx. Fazíamos ­jogging, o meu filho e eu, e passávamos pelo túmulo de Marx. Havia sempre grupos de chineses e de alemães da RDA, compungidos e cabisbaixos diante do túmulo, virando costas ao de Herbert Spencer, que está mesmo em frente. Em Brunel, fui chefe do departamento de sociologia e antropologia, e progredi de acordo com as regras de uma vida académica normal. A minha principal atividade intelectual, para além de colaborar na revista democrática anti-franquista Ruedo Ibérico, sediada em Paris, estava centrada num grupo de estudo, um seminário espontâneo, formado por Michael Mann, Nicos Mouzelis, Josep Llobera, Leslie Sklair e eu próprio. Durou muitos anos, apresentávamos trabalhos uns aos outros. Todos nos dedicávamos à macrossociologia ou à sociologia histórica.

 

JLG - E tinhas contacto com outros exilados?

SG - Sim, eu tinha muitos contactos… Em Reading formara-se uma pequena escola de estudos europeus, cujo primeiro diretor foi Hugh Thomas, especialista em Espanha. Constituímos entre vários amigos – Stuart Wolf, Hugh Thomas, Angus Mackay – um grupo de estudos europeus, “School of European Studies”. Publiquei um pequeno artigo que foi o primeiro de muitos outros, que se chama “La estructura social de España”, que vendeu muitíssimo, um livrinho. Encetei amizade com Hermínio Martins, que estava em Oxford, no Centro de Estudos Ibéricos, no St. Anthony’s (o meu único amigo português que insiste em falar comigo em inglês!). Entendia-me muito bem com o Hermínio. É uma pessoa de uma densidade intensa. O problema dele, claro, era Salazar e o meu era Franco. Fiquei muito amigo do Hermínio Martins, por isso lhe pedi que escrevesse o capítulo de Portugal para Contemporary Europe: “Class status and power”. Era muito importante porque não havia nada sobre a Europa na Inglaterra, nação por nação. A colaboração do Hermínio foi um breve capítulo, escrito com elegância simmeliana. Um marco notável para a sociologia portuguesa. Comecei a conhecê-la através do Hermínio, mas também graças à minha amizade com Manuel Villaverde Cabral, um eminente sociólogo português, decerto o mais dotado para fazer a ponte entre as duas sociologias ibéricas. O professor Cabral foi discípulo de Pierre Vilar, em Paris, mestre de notáveis historiadores catalães. O seu livro clássico, Portugal na Alvorada do Século XX, corresponde ao espírito de Pierre Vilar. É sociologia histórica de grande qualidade.

 

JLG - E como seguiam o declínio do salazarismo e do franquismo?

SG - Organizávamos manifestações em Londres. Houve muitas pessoas que viram isso como uma atividade folclórica, mas de cada vez que conseguíamos pôr 150 pessoas na embaixada de Paris, ou na embaixada de Londres com bandeiras republicanas insultando o regime… o regime franquista ficava desesperado… Eu escrevia artigos no Times Literary Supplement, eram resenhas de livros. Entre estas, está um artigo que escrevi sobre a importante colectânea de José Cutileiro, A Portuguese Rural Society (Oxford, Clarendon Press, 1971), que constitui uma pequena obra-prima da antropologia rural e que é hoje de referência obrigatória. Também pude mencionar na British Sociological Association a importância do meu malogrado amigo Afonso de Barros para a sociologia agrária europeia.

 

JLG - Com a queda do franquismo regressas a Espanha com o projeto de desenvolver a sociologia …

SG - Sim, e tive uma sorte muito grande. Com o meu regresso, termino a primeira versão da minha História del Pensamiento Social. É um livro muito volumoso e que atingiu inexplicavelmente 12 edições. Tenho um exemplar com cortes a vermelho da censura, mas 90% saía. Em cada edição, a linguagem está mais nua, mais precisa. Sofro de uma obsessão de que não sobre uma só palavra, não divague.

 

JLG - No teu trabalho parecem existir duas componentes importantes: uma é a ideia de fazer uma receção do pensamento social, da teoria social em Espanha; a outra é não reduzir a sociologia à “policy science”.

SG - Sim, eu quis romper com isso. Em Espanha, havia pouca tradição sociológica, o mal deste país é o sucursalismo. Então, escrevi sobre a tradição sociológica espanhola. Desde Baltasar Gracián a Ortega y Gasset há uma linha onde não existe sociologia. Durante muitos anos, muitos sociólogos iam a Paris e tornavam-se discípulos de Alain Touraine e de Pierre Bourdieu. Não se emancipavam. Do pensamento espanhol, interesso-me pela moral, como todos os pensadores espanhóis se interessam pela moral. Mas não quero seguir uma orientação já estabelecida, temos de a construir.

 

JLG - Inclusivamente, recuperaste vários aspetos do pensamento espanhol, de Joaquím Costa, por exemplo, como património do pensamento social.

SG - Tudo isso é importantíssimo. É a tradição liberal espanhola laica, que há que recuperar. Mas, claro, passou muito tempo e não podemos repetir as mesmas coisas. Se queres ter uma síntese do que fiz nesta vida, do ponto de vista da sociologia, há 4 linhas. Em primeiro lugar, tenho a sociologia geral, que é integracionista, mas não é eclética. Verás que no meu tratado de sociologia numa parte recorro às pattern variables de Parsons e Shils e na página seguinte não. Pode dizer-se que é uma miscelânea, mas não, não é. Não sou eclético, integro aquilo que é compatível entre si, porque caso contrário não fazemos ciência. Sou conhecido por ser racionalista, interesso-me pela rational choice, mas nada mais. E na sociologia integracionista, do ponto de vista do conflito social, eu sou claramente conhecido como sociólogo do conflito. Não sei se há mais harmonia ou conflito no mundo, o mundo é dos processos gerais universais, conflito e harmonia. Esta é a primeira linha. A minha segunda linha é a sociologia do Mediterrâneo e de Espanha. Estudei todo o Mediterrâneo, fiz muitos estudos em Itália, alguma sociologia urbana nesse país, por vezes dou conferências sobre Itália, mas inevitavelmente a procura – como dizem os mercado-capitalistas – vem de Espanha. Fiz esse artigo que se tornou famoso, “La estructura social de España”, porque na primeira linha digo que a Guerra Civil espanhola foi uma guerra de classes, ponto. Também foi uma guerra de religião, ponto. Participei em vários trabalhos sobre a legitimação das transições do Sul. E este foi lido por Philippe Schmitter e Guillermo O’Donnell. Gostaram muito, e publicaram-no num livro que se chama Transitions to Democracy, editado pela Universidade de Johns Hopkins. Puseram-no como primeiro capítulo, como opening. Eu ousei comparar transversalmente os quatro Estados que tinham passado pelas ditaduras: Grécia, Itália, Espanha e Portugal. E descobri que havia não só semelhanças, mas também sincronias. A minha terceira linha é a História. Eu tenho algo de historiador, então escrevi alguns artigos sobre ideologia, tentando expor Montesquieu, Rousseau, Montaigne… A humanidade é muito antiga, tem muito a dizer. Não há que “coisificar” a sociologia. Porque se superas a linguagem da época, Rousseau é um grande sociólogo, embora tenha alguns elementos abertamente anti-sociológicos… Comte… Montesquieu é um gigante… Adam Smith… sobre a sociedade civil… Aristóteles sobre a natureza das classes médias e a perspetiva de que cada qual tem as posses de acordo com a sua posição no mundo.

 

JLG - Ibn Khaldun…

SG - Exato, é o maior sociólogo da civilização, do que é uma civilização. É um génio. Escrevi algumas coisas sobre ele. Para isso dependo, naturalmente, das traduções de Muqqadimah. Usei a inglesa de Rosenthal. Fui eu mesmo que redigi a entrada Abén Jaldún (Ibn Khaldun em castelhano) para o meu Dicionário.

 

JLG - E qual é a tua quarta linha?

SG - A última linha é a sociologia moral. O que se passa em alguns casos é ter escrito coisas que se enquadram em cada uma destas quatro áreas. E se entras numa, entras em todas as outras. Tenho uma preocupação moral desde o primeiro dia. Tudo o que escrevi sobre a sociedade civil é sobre a sociedade decente. A pessoa a quem se atribui a expressão “sociedade decente” é Avishai ­Margalit, the decent society. Eu tenho-a usado sempre, mas não escrevi um livro. Seguindo a minha linha integracionista, elaborei recentemente uma teoria sobre a produção social da moral, trata-se do meu último estudo, El Origen de la Moral (Barcelona, Península, 2012), que presta homenagem à sociologia analítica, mas mantém o enfoque conflitivista, ou da conflict sociology. A moral humana é fruto do conflito, e a sua explicação racional sociológica é mais profunda do que a sua explicação psicológica. É isso que El Origen de la Moral tenta mostrar.

 

JLG - Outros autores têm utilizado o termo “sociedade decente”…

SG - Sim, é verdade… mas creio ser o primeiro a citar Avishai Margalit. Há que ser sempre cortês. Hermínio Martins, por exemplo, conceptualizou melhor do que ninguém e antes do que qualquer outro o conceito de “sociologia nacional” e de “nacionalismo sociológico” e outros, posteriormente, atribuíram estes ­conceitos a si próprios, ignorando a sua referência original. Tal não é admissível, principalmente se a obra do sociólogo, como é o caso de Martins, é conhecida internacionalmente. O livro que coordenaste com ele, Dilemas da Civilização Tecnológica, é muito superior a outros que surgiram no “centro” da cultura ocidental. Portugal não pertence ao centro, mas antes à periferia, e isso tem os seus custos. São custos situacionais.

Passámos de uma sociedade utópica nas suas aspirações a uma em que pelo menos desejamos que seja uma sociedade decente, que seja minimamente aceitável. O meu lema não é uma sociedade onde não existam ricos e pobres, trata-se sempre de respeito. Respeito e reverência mínima. Essas são as ideias básicas. Parece-me que os sociólogos deveriam dedicar-se muitíssimo a isso. Escrevi muitas coisas nos últimos 15 anos sobre virtudes cívicas, sobre o altruísmo. Devo ser o único sociólogo no mundo que acredita no altruísmo…

 

JLG - Depois de Auguste Comte…

SG - Sim. Foi ele que inventou a palavra.

 

JLG - Outro tópico muito importante do teu trabalho é o da sociedade corporativa. Como surgiu o teu interesse por ele?

SG - Eu estava em Lancaster. Interessavam-me as estruturas burocráticas, estava farto delas e queria refletir sobre elas. Tinha várias conversas com Manuel Perez Yruela, na altura engenheiro da IBM, éramos amigos, e demo-nos conta de que nas sociedades democráticas as corporações dominavam o mundo. Assim, a sociedade moderna podia entender-se como uma sociedade de corporações, e não como uma sociedade de massa, como já tinha defendido no meu trabalho Mass Society. E não só de corporações, há gente de baixo. Porque quando te referes a isto, outros sociólogos dizem que também existem operários, agricultores, pessoas marginalizadas. E eu pensava: e se for ao contrário? Que exista uma rede corporativa brutal no mundo, que é funcional. É funcional porque existe uma população sem trabalho que vai sendo recrutada segundo a vontade do mercado. Escrevi um livro com Manuel Perez Yruela, La Sociedad Corporativa (Madrid, CIS, 1979), que causou boa impressão. De recordar também Philippe Schmitter, que escreveu um clássico que se chama Still the Century of Corporatism?, onde abordou a questão do neocorporativismo, que esteve em debate durante alguns anos (Schmitter costuma definir-me como sociólogo do corporativismo societário, por contra-ponto aos que estudam relações corporativas a um nível menos geral). Li o seu livro e vimo-nos em Florença numa reunião onde também estava um grande estudioso do corporativismo português…

 

JLG - O meu colega do ICS-UL, Manuel de Lucena…

SG - Sim, Manuel de Lucena. Talvez ele tenha cometido o erro tático de trazer um livro enorme, inacabado…Sou das pessoas que considera Manuel de Lucena um sociólogo de primeira linha, mas penso que se enganou ao tentar fazer uma opus magnum. Na reunião, éramos todos anglo-saxónicos, portanto, precisos, breves, demonstrativos, com papers de 10 minutos. Lucena ia por outro caminho… Mas vi que o seu trabalho era de grande qualidade. Depois, ­Schmitter denunciou-me, entre aspas, porque dizia que eu, na realidade, estava a apresentar um societal corporatism. Este é um debate em que estive envolvido, eu e várias pessoas, e recordo-me desse momento da reunião. Eram encontros importantes sobre o corporativismo… Lucena falou com muito conhecimento do corporativismo português porque não falava só do patronato, mas também de como estava construída a sociedade portuguesa. Vimos que havia um corporativismo moderno, britânico-alemão, e um corporativismo mais antigo, espanhol e português, naturalmente próximo da América Latina… Aí surgiu a ideia, e desenvolvi-a… Tenho vários trabalhos.

 

JLG - Como vês o tema da universidade pública e da ciência por estes dias?

SG - Mal. Neste momento, não está bem, a muitos níveis. A universidade tem-se transformado. Escrevi um paper que acabei de apresentar em Roma, intitulado “La apostasía de la razón”. Creio que a universidade caiu num utilitarismo, converteu-se na obsessão da utilidade. Aqui está o que penso sobre a universidade: a falácia utilitarista. Pedimos demasiado à universidade. Pedimos tudo, pedimos eficácia. E a universidade converteu-se não num pilar, mas num centro da sociedade, por completo. Se tu fechares as universidades amanhã, o mundo continua a funcionar, mas vai “parando”. Deveríamos construir substitutos das universidades. Por exemplo, aqui na Catalunha, depois da guerra contra Espanha e França, que perdemos em 1714, proibiram as universidades. O que se passou? Rapidamente a burguesia de Barcelona montou escolas de ofícios, uma academia de medicina. Começou tudo a funcionar de uma outra maneira. Portanto, supõe-se que tudo continuaria. Pois, se as universidades desaparecessem totalmente, “pararíamos” a sociedade. Estamos a fazê-lo de outra maneira, penso que estamos a causar o seu desaparecimento, mas por outros métodos, à base de transformar a universidade e de a desvirtuar totalmente.

 

JLG - Como última questão o tema da crise atual dos países da Europa do Sul…

SG - As crises são breves, sairemos desta como temos saído sempre. Sairemos melhor, porque temos um sistema muito menos primitivo… o Estado está débil, então funcionam as famílias, a ajuda mútua… Inglaterra, Dinamarca, Alemanha fizeram uma modernização de um século e meio, mas nós fizemo-la demasiado rápido. Preocupa-me Berlusconi, o berlusconismo; políticos fracos em Espanha; na Grécia, a confusão mental. São países que têm uma tradição muito grande, uma nobreza natural, e estão a perder tudo… Temo que estes países estejam a perder a sua dignidade. A Itália é um caso; os gregos estão comidos por pequenos clãs, algumas famílias que dominam uma massa desesperada. Penso que são países que não souberam enfrentar a modernidade. Em Espanha, a vulgaridade televisiva é superior a todas as vulgaridades televisivas, até na pornografia… Não soubemos entrar suave e paulatinamente no mundo moderno… A resposta que a sociologia deve dar a esta crise é constituir-se como disciplina moral. A sociologia deve focar-se nas questões das pretensões do poder, da prepotência do poder… Tem de estar sempre do lado dos pobres. Há que pedir aos governos que façam boas escolas para os pobres, altruísmo, uma política social. A sociologia possui as melhores armas, que são as armas da razão.

 

NOTAS

1 A edição deste Diccionario, cuja organização esteve também a cargo de outros dois reputados sociólogos espanhóis, Emílio Lamo Espinosa e Cristóbal Torres, granjeou desde a sua primeira edição o estatuto de obra enciclopédica de referência mais consultada sobre sociologia em língua castelhana e foi reimpressa várias vezes, tendo jogado um papel relevante na consolidação da sociologia nesse país. A segunda edição não constitui uma mera reaparição nem tão pouco procede a uma breve resolução de lacunas, antes sim a uma revisão e ampliação muito significativa do acervo conceptual e terminológico, incluindo conceitos específicos da sociologia latino-americana, bem como autores da Argentina, Brasil, México e Portugal. No total, 272 autores colaboraram nessa obra que contempla 1451 entradas e 171 de remissão e que tem uma influência de grande alcance em todo o mundo iberoamericano. Salvador Giner alia o seu papel de co-organizador com a escrita de 84 entradas que cobrem muitos dos seus principais interesses – teoria sociológica, democracia e republicanismo cívico, modernidade e sociedade de massas, expressões de religião e carisma.

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