SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número206Relações sinuosas: Portugal e o mundo árabe, 1950-1973Políticas públicas da água em Portugal: do paradigma hidráulico à modernidade tardia índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.206 Lisboa jan. 2013

 

Da confusão à ironia. Expectativas e legados da PIDE em Angola

From confusion to irony. Expectations and legacies of the PIDE in Angola

 

Ruy Llera Blanes*

*ICS, Universidade de Lisboa. E-mail: ruy.blanes@gmail.com

 

RESUMO

Neste artigo pretendo descrever alguns exemplos de dialéticas de repressão e resistência entre a PIDE e outras autoridades policiais em Angola e um movimento religioso autóctone, a conhecida “Igreja Tocoista”, entre as décadas de 1950 e 1970. Em primeiro lugar descrevem-se as motivações, receios e expectativas dos agentes da PIDE, contrapostos com as reações dos líderes e seguidores desta igreja que foram objeto das campanhas de “securitização” da colónia. Em segundo lugar, traça-se um retrato do legado da memória que ficou no seio deste movimento, em particular na Angola contemporânea. Como procurarei demonstrar, a experiência de repressão colonial deu lugar, no seio deste movimento, a uma “história de sofrimento” que hoje se repercute numa narrativa de resiliência e reafirmação particular de angolanidade, frequentemente marcada por reversões e ironias.

Palavras-chave: religião; política; repressão; memória; Angola.

 

ABSTRACT

In this article I propose to describe some examples of dialectics of repression and resistance between the PIDE and other police authorities in Angola, and an indigenous religious movement, the “Tokoist Church” between the 1950s and 1970s. Firstly, I describe the motivations, fears and expectations of the agents of the PIDE, contrasted with the reactions of leaders and followers of this church who were subject to the campaigns of “securitization” of the colony. And secondly, I will portrait the legacy of the memory that emerged within this movement in contemporary Angola, in which the experience of colonial repression produced a “history of suffering” that reverberates today through narratives of resilience and the particular reaffirmation of an “Angolan-ness” that was often marked by reversals and ironies.

Keywords: religion; politics; repression; memory; Angola.

 

INTRODUÇÃO

 

Neste texto proponho uma reflexão antropológica sobre política e temporalidade a partir dos conceitos de “expectativas” e “legados”, produzidos e negociados em contextos de autoritarismo político, repressão e violência.1 Pretendo fazê-lo abordando uma das suas expressões mais marcantes no que à história contemporânea portuguesa diz respeito – a presença do empreendimento colonial português (e em particular da sua polícia política, a PIDE) em território africano, e a forma como as suas colónias africanas (neste caso Angola) se tornaram num terreno de negociação e experimentação “poética” (no sentido etimológico de poiesis) de ideologias, ontologias e políticas. Tomando como estudo de caso a ação da PIDE sobre um movimento religioso autóctone (a “Igreja Tocoista”), farei esta reflexão no âmbito de dialéticas mais latas de repressão, protesto e resistência – nomeadamente, refletindo sobre a dimensão conflitual da relação entre formas hegemónicas e marginais de produção de sociedade, frequentemente mediada por determinadas expectativas e utopias, que redundam em situações de fratura entre o “Estado” e a “sociedade”. Partindo desta perspetiva, também proponho pensar como a repressão – entendida aqui como a produção de “culturas de terror” (­Taussig, 1987), mas também como a imposição da perceção de uma determinada e inamovível ordem “naturalizada” das coisas – pode ser em si mesma produtora de resistências, propiciando uma dinâmica de confrontação e violência frequentemente apresentada como sendo “inevitável” (ver também Blanes, 2012). É no exercício de indagação dessa aparente inevitabilidade na produção de fraturas que proponho detetar “ironias” – ou como a agência repressora, funcionando a partir de uma ontologia social concreta, produz efeitos contrários àqueles idealizados nos seus modelos-tipo de sociedade, nas suas utopias. Trabalharei igualmente com outros dois questionamentos: por um lado, a relação entre lógicas autoritárias e a “produção de temporalidades” (explanadas através de memórias e expectativas); e por outro, o problema da “produção da dialéctica” que está presente na maior parte das teorias políticas sobre violência, dominação e resistência.

Ao longo da história, foram vários os autores e pensadores que identificaram e debateram estas dinâmicas de opressão (ação) e reação (negação) no contexto político-religioso, nomeadamente nas transições entre contextos coloniais e pós-coloniais. Dou apenas alguns exemplos que radicam na disciplina antropológica: o antropólogo francês Georges Balandier, cuja trajetória biográfica o levou a presenciar e participar na resistência à ocupação nazi e nos movimentos de libertação e descolonização africana, propunha uma “teoria da turbulência e da reação” para explicar o aparecimento de movimentos político-religiosos de contestação ao sistema colonial em regiões como o Congo Belga ou o Gabão, como resultado das características fraturantes e conflitivas do próprio sistema social colonial (Blanes, 2009a). O resultado foi uma teoria social da “fratura” e da “desordem”, características que ele assumia como inerentes a toda a expressão política e social (Balandier, 1955, 1976, 1988). Similarmente, Pierre Clastres desenvolvia uma teoria política do social que desconstruía a irredutibilidade da relação entre “sociedade” e “Estado”, indagando sobre discursos de poder e resistência contra projetos de controlo “estatal” colonializante por parte de profetas Tupi-Guaraní na Amazónia (Clastres, 1989 [1974]). Este debate, inserido na constituição de uma antropologia política enquanto projeto epistemológico, também se desenvolveu através de reflexões sobre a violência e a sua “arqueologia”, numa revisão da premissa clássica e “naturalizada” que associava selvajaria (americana, amazónica) à ausência de Estado e consequente permanência da violência (Clastres, 1994). Como Balandier, Clastres também se preocupava com as conceções histórico-antropológicas em causa no estudo da violência.

Partindo do mesmo contexto geográfico, o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro viria a propor, nos seus estudos sobre cosmologia amazó­nica, uma “teoria política da inimizade” (1992), inserida numa “economia de alteridade” (2002, p. 267) específica que nos ajuda a entender políticas de ­conflito. Da sua análise, retenho a discussão sobre a noção (ou experiência) de inimizade tal como ela é partilhada entre os Araweté, que vêem os Maï (divindades) como sendo “como inimigos”, e não meros “inimigos” (Viveiros de ­Castro, 2002, p. 270). Existem nesta conceção duas sugestões que eu identifico: a de uma incorporação “corporal” da alteridade no universo de significação, através da própria ação de construção dialética; e uma dimensão “performática” presente na proposição “são como”, que denuncia uma necessidade de identificação do outro através de um processo expressivo, poético de configuração.

Portanto, o que está aqui em causa é o problema antropológico clássico de correlação entre a construção política de identidades e a identificação de alteridades ou inimizades. O trabalho de Viveiros de Castro, desde este ponto de vista, culmina uma tradição antropológica de estudo de processos de autoconceção e autoconstituição (Fabian, 1983; Cabral, 1991), por exemplo desde as teorias de configuração grupal identitária e respetivas fronteiras de Barth (1969) aos debates de Benedict Anderson (1983, p. 141 e ss.) sobre patriotismo e racismo, as conceções sensoriais de Taussig (1987, 1993) sobre mimese e alteridade etc. Nestes casos, exploram-se processos políticos, simbólicos e experienciais de identificação e diferença. Aqui, procuro uma configuração compósita e exploro as teorias políticas da identidade em jogo, e em particular as oposições e fricções emergidas em contextos onde essas teorias encontram materialização e agência, se tornam operativas através de ações de repressão totalitarizante e resistência (Comaroff, 1985). Num contexto de regime político autoritário como o português, e no caso da polícia política e dos movimentos religiosos autóctones em Angola, observamos estas dinâmicas em função de lógicas de resistência.

Neste campo, inspirado em Clastres, James C. Scott (1990, 2009) também indagaria a “arte da resistência” em contextos de dominação sociopolítica e subordinação, nomeadamente no que diz respeito à governação estatal e rejeição da mesma no Sudeste Asiático por parte de comunidades locais. Através desta análise, Scott propõe também uma desconstrução dos processos de state-making, através da deteção das suas contra-hegemonias – como por exemplo os “profetas da renovação” (Scott, 2009, p. 283) ou outras formas ocultas de dissidência produzidas através da propagação de utopias.

Mas os autores acima citados também coincidem numa análise do social a partir de uma perspetiva dinâmica, onde o conflito é inerente, obrigando assim a que se reconheçam as distintas agencialidades e motivações por trás das configurações políticas observadas, tanto do ponto de vista da sua manutenção e reprodução ortodoxa, como da sua ruptura iconoclástica (Sarró, 2008). Aqui particularmente, traduzo essas agencialidades e motivações para dois conceitos temporalizadores: as “expectativas” e os “legados”.

Nesta linha, proponho que a memória, e a noção mais abrangente de temporalidade, assumem um papel fundamental na teoria do conflito. A arte de resistência explorada por Scott, em particular em Domination and the Arts of Resistance (1990), desenvolvia-se através de uma noção de “conduta política fugitiva” (Scott, 1990, p. 17) de grupos em situação de subordinação que desembocava na produção de “registos alternativos”, contestando ordens hegemónicas. Seguindo esta proposta, sugiro também que essa conduta fugitiva também se encontra em determinadas culturas político-religiosas, tais como os profetismos e messianismos, profundamente ligados à produção de memórias e historiografias particulares (Blanes, 2011). Uma das componentes exploradas neste âmbito tem sido a do martírio como configuração conceptual mediadora entre a experiência da violência e repressão e a emergência de resistências. É pelo menos o que transparece, por exemplo, em etnografias como as de Allen Feldman (1991) ou Esmail Nashif (2008) sobre presos políticos e violência policial, adicionando à “cultura de terror” onde a memória traumática se instala (Ricoeur, 2004; Sarró, 2009; Argenti e Schramm, 2010) – uma outra de expectativas mais ou menos providencialistas e, porque não, esperança (Crapanzano, 2003; Miyazaki, 2004; Zigon, 2009; Sarró, 2010).

 

A PIDE E A PRODUÇÃO DE INIMIGOS

 

No que segue proponho extrapolar esta análise dinâmica e temporalizadora para contextos de repressão e resistência em diferentes momentos históricos em Portugal e no espaço lusófono em geral. Talvez o exemplo mais explícito destas lógicas de ação e reação seja o da PIDE, a polícia política portuguesa que existiu durante uma boa parte do século XX. Sob vários pontos de vista, embora não a única, a PIDE terá sido uma das materializações mais marcantes do regime do Estado Novo, na medida em que representava (eufemisticamente falando) uma instância de mediação entre o aparato governamental, a sua axiologia (Rosas, 2001; Domingos e Pereira, 2010) e os seus cidadãos. Ao longo da sua existência entre 1945 e 1974,2 foi a instituição, a institucionalização do controlo exercido pelo Estado (o Estado Novo e o marcelismo), materializada em estratégias, agências, protagonismos e localidades concretas (Pimentel, 2007). Neste sentido, a PIDE surge na acumulação de um processo de constituição legal de aparatos de combate à “dissidência” e instauração e manutenção da ordem pública em Portugal (Ribeiro, 1995; Pimentel, 2007), e remete para uma época particular na história portuguesa que acabaria por terminar através de um marcante processo revolucionário. Esses aparatos e dispositivos eram por norma e sem pejo marcados pela violência como estratégia de ação prioritária (Bastos, 1997; Pimentel, 2007, p. 25) e pela configuração e identificação totalitária de adversários – normalmente, os “comunistas” – que serviam igualmente de justificação moral para a mesma.

Mas como sabemos, a PIDE não desapareceu do quotidiano dos portugue­ses: está no corpo e mente dos portugueses e portuguesas que sofreram ou beneficiaram com a sua existência. Também está na memória que circula de forma desigual nos diversos meios académicos e públicos que têm vindo a tra­balhar com testemunhos e arquivos e produzindo um conhecimento renovado sobre o passado recente português e lusófono. É o caso das antigas prisões militares da PIDE em Peniche e no Tarrafal, hoje transformadas em museus no âmbito de “projetos de memória”; de uma linha recente da história contemporâ­nea portuguesa, que tem procurado mapear o contexto social e político que marcou o desenvolvimento de uma “polícia política” num país como Portugal (Ribeiro, 1995; Rosas, 2001; Mateus, 2004; Madeira, Pimentel e Farinha 2007; Pimentel, 2007); ou mesmo da antropologia, que procurou ilustrar algumas das dinâmicas de opressão a partir das ideologias de Estado e pessoa vigentes (Bastos, 1997). Mas é também o caso da peça de teatro inspirada na vida do antigo diretor da organização entre 1962 e 1974, Silva Pais, e que foi recentemente objeto de uma ação judicial interposta pelos seus descendentes; ou do documentário “48”, dirigido por Susana Sousa Dias e recentemente estreado em Portugal, com testemunhos de antigos presos políticos a partir das elicitações dos seus retratos produzidos no âmbito da sua prisão (2011). Desde esta perspetiva, a PIDE continua a ser, usando a conhecida expressão do historiador Pierre Nora, um “lugar de memória” muito particular (e por vezes incómodo) na sociedade portuguesa. A estes movimentos não será certamente alheia a disponibilização pública, desde abril de 1994, dos arquivos secretos da PIDE/DGS na Torre do Tombo, que vieram inaugurar um novo campo e regime de reflexão, memória e consciência histórica na academia e sociedade portuguesas, inserindo-se progressivamente em debates mais abrangentes sobre transição política e políticas da memória, tais como se desenvolvem por exemplo na América do Sul (Brito, González-Henríquez e Fernández, 2004; Ribeiro, Santos e Maeso, 2010).

Portanto, enquanto dispositivo sociopolítico “poético” que agiu sobre a vida de milhares de pessoas, a PIDE ilustra o mesmo tipo de dinâmicas de repressão e resistência que comecei por referir. Como diria Hannah Arendt, a ambição totalitária implica a identificação de uma antítese, de um “inimigo” (Arendt, 1973); mas também, em última instância, produzirá o seu próprio fim através desse mesmo processo de identificação. Invoco aqui a noção de totalitarismo a respeito da PIDE porque, independentemente dos resultados práticos da sua ação (seja em Portugal ou Angola), esta instituição enquadrava-se um projeto ideológico, político e pragmático de controlo autoritário sobre a vida pública e privada dos cidadãos (Pimentel, 2007), em favor de um “bem comum superior” - a ideia de nação portuguesa, cristalizada na recorrente formulação “a bem da nação”, repetida em toda e qualquer correspondência produzida no seu seio. Neste contexto, a ambição da PIDE era totalitarizante, e prevalecia sobre qualquer ideia de autonomia, pluralismo e soberania individual dos cidadãos objeto do seu escrutínio.

Assim, um primeiro ponto que procuro seguir é o de que a PIDE, enquanto entidade politicamente agente, participou, voluntária ou involuntariamente, na produção dialética de “inimizades”, de tal maneira que pode ser interpretada – não sem polémica, admito – como parte ativa na queda do sistema que a própria procurava defender (cf. por exemplo, Cardina, 2010). Vou procurar explorar esta possibilidade a propósito do contexto angolano, onde a PIDE esteve presente aproximadamente vinte anos, desde meados da década de 1950 à saída do território em 1974-1975 (Mateus, 2004; Bender, 2009 [1978]), no âmbito da política colonial estabelecida pelo Estado Novo no pós-guerra (Rosas, 1998, p. 436 e seguintes; Castelo, 2005). Como descreve Dalila Mateus (2004, p. 23 e ss.), a Delegação de Angola da PIDE foi formalmente consti­tuída em território angolano em 1954, mas a sua presença foi mais ou menos residual até 1957, altura em que se começou a efetuar transferência de pessoal do corpo da PSP (que até então era quem cumpria as funções de vigilância e controlo) e se cumpriam funções de polícia judiciária no aeroporto e porto de Luanda. A partir de 1961, com a eclosão do conflito armado no território, as medidas de controlo aumentaram com a multiplicação de delegações, subdelegações e postos em vários distritos do território, e com a criação dos Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de Angola (SCCIA), que complementava a “pesquisa empírica” da PIDE com a centralização e processamento de informações, estudos, estatísticas e relatórios, encaminhados superiormente. Esta multiplicação institucional, respondendo à situação de conflito emergente, implicou um alargamento substancial da rede de produção de informações (nomeadamente através da rede de informadores), e consequentemente o desdobramento de intervenientes, documentos e teorias, nem sempre no mesmo sentido.3

No âmbito desta atividade de contra-espionagem, investigação e vigilância nos territórios ultramarinos, num contexto internacional marcado pela progressiva independência política das antigas colónias africanas, de crescente contestação internacional contra o projeto imperial português, e pelo contínuo combate em territórios internacionais contra os movimentos comunistas (Pimentel, 2007), as colónias portuguesas transformaram-se paulatinamente em campos de batalha – simbólica e, a partir de 1961, física. Nas páginas que se seguem, exercitarei uma simulação do ambiente político e ideológico da época, através de uma pequena etnografia arquivística, procurando captar as sensações e ideologias que marcavam a ação da PIDE no território angolano.

 

PROFECIA E CONSPIRAÇÃO EM ANGOLA

 

Neste artigo estou a pensar em particular nos membros de um movimento religioso angolano que se tornou num dos alvos preferenciais das políticas de securitização, defesa e repressão promovidas pelo aparato policial português: a chamada “Igreja Tocoista”, que herda o seu epíteto do seguimento ao seu profeta fundador, Simão Gonçalves Toco (1918-1984).4 Este movimento, tal como é retratado em Angola nos dias de hoje, é visto como um dos símbolos máximos da resistência à opressão colonial, sobretudo pela história de repressão e resistência que marcou a sua existência em território angolano, e pelo impacto do seu discurso anti-colonial e libertário entre os autóctones angolanos nas décadas de 1950 a 1970.5Deste ponto de vista, a história do tocoismo confunde-se em vários aspetos com a do próprio país.

Nascido numa aldeia remota da região de Maquela do Zombo no distrito do Uíge, Toco cresceu e estudou numa missão baptista local (Kibokolo), antes de em 1942 decidir emigrar, como muitos seus conterrâneos à época, para ­Leopoldville (hoje Kinshasa), no então Congo Belga. É nesta cidade onde, poucos anos mais tarde, viria a emancipar-se dos baptistas e iniciar o seu ­próprio movimento cristão, combinando predicamentos reformistas e convicções milenaristas, com uma forte componente emancipatória e autonomista, que rejeitava a opressão colonial e a “colonização espiritual”, e predicando entre a então grande comunidade de “zombos”, migrantes seus conterrâneos da Maquela naquela cidade. O impacto público do movimento no quartier indigène de Leopoldville (que por aquela época começava a conhecer os primeiros movimentos políticos de libertação, e que já conhecera outro movimento semelhante, o kimbanguismo) levou a que as autoridades belgas, suspeitando do seu caráter subversivo, prendessem Toco e as centenas de seus seguidores, para, em janeiro de 1950, os entregarem no posto de fronteira de Nóki (província do Zaire) às autoridades portuguesas. É a partir deste momento que este grupo de centenas de “indígenas” é inserido no sistema ideológico e político do projeto colonial português, que terá violentas repercussões a nível prático.6 A ação das autoridades, executada consecutivamente pela PSP, pela PIDE e ainda pelos SCCIA, repercute-se em três estratégias principais: a prisão ou deportação dos elementos mais “perigosos” para localidades como São ­Nicolau (Moçâmedes), ou mesmo São Tomé; a “fixação de residência” (e consequente proibição de circulação no território) dos membros da “seita”, tanto em bairros “indígenas” de urbes como Luanda ou Benguela, como em colonatos agrícolas tais como os de Caconda ou Vale do Loge; e a vigilância e controlo dos seus protagonistas, através de informações recolhidas por informantes ou pela interceção de correspondência entre os seguidores.7 Estas políticas visavam, por um lado, provocar o desaparecimento do movimento através da sua dispersão, e por outro “estudar” o impacto da liderança do seu profeta fundador. O próprio líder passará por vários destes processos e destinos (Vale do Loge, Luanda, Caconda, Jáu) antes de ser finalmente fixado como ajudante de faroleiro em Ponta Albina, no deserto do Namibe, no sul da província.

Os primeiros relatórios produzidos para a PSP sobre o movimento de Simão Toco procuram “confirmar” as influências comunistas e correspondente potencial subversivo na sua ideologia (uma conjunção inédita e irónica de utopias). Vários agentes e interlocutores (desde polícias a chefes de posto, cipaios, professores e padres católicos) passam a produzir “proto-etnografias” desta “seita”, e a identificar os seus elementos subversivos, num crescente contexto de suspeita e contra-informação sobre movimentações indígenas contra o projeto colonial, contribuindo para a acumulação de um acervo de estudos sobre os “tocos”. Ao confrontar estas teorizações com os resultados no arquivo da PIDE, não há uma conclusão visível sobre este questionamento, mas antes uma acumulação de interpretações frequentemente contraditórias entre si sobre se este movimento era de facto uma ameaça à segurança nacional. Frequentemente observam-se informações divergentes oriundas de informantes e interlocutores diferentes, ora mostrando uma atitude colaboracionista, ora revelando intuitos “terroristas” e anti-patrióticos:

 

[…] Depois perguntei-lhe qual era o fim que tinham em professarem aquela religião; responderam-me que […] o seu chefe Simão Toco os ensinara a orarem a Deus e a respeitarem todos os brancos […]; que respeitassem as autoridades e acatassem sempre com respeito as suas ordens e que se alguém lhes batesse que pedissem perdão, mas que não odiassem. [Relatório de Averiguações, 03-07-1957].8

 

—Qual é o [movimento religioso na região] mais importante?

—O tocoismo.

—A que causas atribui a formação destas religiões?

—Influências do protestantismo, deformadas pelo comunismo.

—São perigosas social e politicamente?

—Sim.

[Relatório da Intendência do Congo, 13-11-1957].9

 

Recolhiam-se igualmente notícias contraditórias sobre os efeitos da estratégia da PIDE:

 

Quanto ao movimento de Simão Toco no distrito, julgo que o isolamento em que se encontra o seu chefe – que suponho ser agora relativamente eficiente […] – está produzindo os seus efeitos no sentido da desorganização e desorientação dos adeptos da seita. [Relatório do governador de Moçâmedes, 06-03-1957].10

Em primeiro lugar deve notar-se que a seita “Tocoismo”, segundo informações, está lançada em todos os pontos principais desta província, especialmente nas cidades e vilas principais, ignorando-se se existem elementos em Silva Porto (Relatório, circa 1957).11

 

Os agentes coloniais da época, perante o tipo de informações que iam recolhendo, pareciam não saber lidar com as múltiplas instâncias de resistência, tanto individual como coletiva, nem sempre organizada, reações aos processos de repressão hegemónica por parte de um movimento religioso que seguia uma cartilha cristã e não política ou militar. Um bom exemplo dessa confusão é o que acontece em 1961-1962, quando eclodem as ações de guerrilha na região do Uíge, perto da fronteira com o ex-Congo Belga: após os primeiros ataques aos colonos, muitos indígenas, preocupados com a reação militar portuguesa, fogem para o refúgio nas matas e para o outro lado da fronteira. Numa tentativa de repor a normalidade, e de eliminar o crescente controlo que a UPA exercia nas matas, as autoridades portuguesas trazem Simão Toco do sul da província para a região, e utilizam-no enquanto “líder local” para chamar os seus conterrâneos de volta para as suas aldeias. Toco vai então percorrer as zonas fronteiriças acompanhado por elementos do governo português, munido de um altifalante. Muitos acabam por voltar a atravessar as fronteiras, mas não tanto para regressar às suas condições de origem, mas antes para seguir o profeta.12 Portanto, persiste a suspeita de que Toco aproveitava estas expedições para fazer proselitismo e reorganizar o seu movimento, tendo em vista a futura criação de uma Igreja Tocoista. É assim que acaba por ser novamente enviado em 1963 para um segundo exílio, desta vez na ilha de São Miguel, nos Açores, onde permanecerá até à retirada portuguesa de Angola.

Mas, num contexto nacional marcado pelo consumar da violência, pela emergência dos movimentos de auto-determinação e progressivo isolamento político português no sistema internacional, não havia lugar para a incerteza; havia uma necessidade de “objetificar um inimigo”, concluindo-se com a recomendação, recorrentemente repetida, de submeter o movimento a uma apertada vigilância e tomar as ações necessárias para impedir o seu desenvolvimento. Multiplicam-se ofícios como este:

 

[…] Tem este Governo-Geral vindo a receber fotocópias de originais de cartas trocadas entre tocoistas e Simão Toco, que se revelaram um precioso meio de melhor se conhecer a seita. […] Tendo em atenção que o tocoismo está sofrendo uma evolução orientada para a clandestinidade, o conhecimento do teor de toda a correspondência reveste-se agora de mais importância do que nunca, pelo que solicito a Vossa Excelência que se digne mandar providenciar no sentido de que: […] seja recomendada intensa vigilância sobre a correspondência trocada entre Simão Toco e os seus sectários […] [Ofício do Gabinete de Negócios Políticos, 31-03-1967].13

 

Consequentemente, em 1963 estuda-se a possibilidade de aplicar a medida de proscrição ao tocoismo, tal como fora aplicado à Watch Tower e ao movimento Baha’i, com a seguinte sustentação:

 

[…] a) O Tocoismo é inconveniente e a sua expansão deve ser contrariada; b) Os chefes e adeptos mais extremistas devem ser detectados, expurgados e exilados para zona a determinar, sendo aconselhável que estes indivíduos sejam denunciados publicamente por chefe da seita influente; c) Aos chefes colaborantes e moderados será concedido auxílio para a educação dos seus filhos; d) Aos missionários será concedido apoio para acção apostólica junto dos sectários de Simão Toco [Ofício Governo Geral Angola (SCCIA), 16-06- 1964].14

 

Eventualmente, após a instalação da situação de conflito bélico, os relatórios da PIDE e dos SCCIA na Torre do Tombo, após os primeiros anos em que produzem o “estudo” detalhado do tocoismo, passam então a ser também de controlo e operacionalização, “fichando” as suas principais figuras, que assim se transformavam em “suspeitos”, e controlando as suas atividades através da vigilância in loco, da recolha de informações por informantes e, especialmente, pela análise da correspondência postal que o líder Simão Toco estabelecia com os seus seguidores em Angola ao longo das décadas de exílio que sofreu no deserto do Namibe e na ilha de São Miguel. Esta correspondência atingiu ao longo dos anos os milhares de cartas (Blanes, no prelo) e, como se depreende da citação acima, rapidamente se transformou num dos principais mecanismos de controlo e vigilância do movimento tocoista,15 ao mesmo tempo que se erguia como principal eixo de interação entre o líder e os seus seguidores – conscientes mesmo assim de que as suas epístolas eram objeto de controlo alheio (idem).

Por tê-lo feito noutro lugar (Blanes, no prelo), não vou aqui elaborar uma análise do acervo epistolar, que hoje constitui um “centro de memória” muito particular no tocoismo, na medida em que constitui uma concentração em acervo da sua produção, que de outra maneira seria inexistente, continuando até aos dias de hoje a ser “descoberto” pelos crentes do movimento. Mas invoco-o porque constituem um dos exemplos de como a repressão da PIDE produziu, ad hoc, ironias no que diz respeito às expectativas com que se movia e à sua frustração.

 

A REPRESSÃO E AS SUAS IRONIAS

 

Os métodos empregues pela PIDE e restantes autoridades para terminar com o movimento tocoista, foram, sabemo-lo hoje, um rotundo fracasso do ponto de vista estratégico. Vários relatórios produzidos na década de 1960 confessam o fracasso da política instituída:

 

A anexa informação, que respeita à evolução da seita tocoista e às suas correspondentes e ulteriores atividades, verificadas após a fixação de residência em Ponta Albina, do seu fundador Simão Gonçalves Toco, parece ter um interesse especial em dar-se a conhecer ao pessoal desta Polícia, muito especialmente ao que presta serviço em Angola. Esta nossa opinião baseia-se na circunstância, não só por muitos elementos não terem tido ainda contactos com assuntos relacionados com a “seita”, mas também para esclarecer outros tantos funcionários que dela pouco ou nada conhecem além do “é toco”, sem se aperceberem do que é a “seita”, quais são os seus antecedentes, o progressivo desenvolvimento da sua atividade, que se reconhece estarem a degenerar e a denunciar propósitos político-subversivos […] [Relatório PIDE, “Evolução da seita Tocoista desde 1961 a 1965”, 08-05-1966].16

 

Nas páginas que se seguem, vou descrever e analisar outros dois exemplos de “ironias” resultantes de uma ação repressiva motivada por uma expectativa, e que se repercutiu em posteriores “legados” ou regimes de memória e recordação presentes hoje no seio do universo tocoista. Estes legados resultam de um duplo exercício de recordação: aquele que é mantido e circula sob a forma de história oral e depoimentos escritos no seio das igrejas tocoistas em Angola, entre os sobreviventes e descendentes dos protagonistas das resistências acima descritas, alguns dos quais pude conhecer e entrevistar; e aquele que emerge no acervo da PIDE em Angola, que produz um conhecimento historiográfico particular no que diz respeito à compilação, organização e apresentação de materiais outrora pertencentes aos próprios tocoistas ou produzidos na sua interação com as autoridades coloniais.

Até recentemente, estes dois regimes não se cruzaram, pela mera circunstância de que poucos membros desta igreja tiveram oportunidade de visitar e pesquisar nos arquivos em Lisboa, e com eles produzir conhecimento partilhado no universo institucional e intelectual do movimento (exceção feita a Kisela, 2004). E esse encontro entre registos de memória está a acontecer no preciso momento em que se escrevem estas linhas,17 e configuram o tocoismo como um espaço particularmente relevante para compreender a história tanto da própria igreja e do seu líder, mas também da própria Angola.

 

IRONIA NÚMERO 1: DO DESTERRO À RE-TERRITORIALIZAÇÃO

 

Como referi acima, uma das estratégias assumidas pela polícia portuguesa em 1950, perante as oleadas de indígenas que regressavam deportados (ou voluntariamente) aos postos fronteiriços, foi a da “disseminação territorial”, pela qual os seguidores de Simão Toco eram divididos em pequenos grupos (nem sempre respeitando lógicas familiares) e espalhados por distintos locais da província: zonas de “fixação de residência” em áreas urbanas (Luanda, ­Benguela, Moçâmedes, etc.) e em zonas rurais como o Ambrizete (Zaire), Vale do Loge (Uíge), Caconda, etc.

E assim foi que os “tocoistas”, originalmente um pequeno grupo de “zombos” de etnia bakongo do norte de Angola, passaram a ser dispersos por todo o território. Mas, não obstante as restrições de mobilidade a que estavam ­sujeitos, os seguidores de Toco aproveitariam para fazer proselitismo em redor dos campos e centros onde se encontravam recluídos, e eventualmente transformaram o seguimento de Simão Toco num movimento multiétnico, de alcance “nacional angolano”, lusófono. Isto, como comecei por propor, apenas foi possível graças à estratégia da própria polícia portuguesa que, apostando na separação e disseminação dos seus membros, os levou pela colónia fora, servindo de veículo de transporte. Como me dizia um dos atuais líderes da igreja: se Simão Toco chegou ao sul do país (Angola), foi “porque viajou nas próprias carrinhas da PIDE” (Entrevista, dezembro de 2007). Criaram-se, portanto, novas “territorialidades tocoistas” através de processos de deportação, exílio e fixação. Já na década de 1950, falava-se no seio do tocoismo de três centralidades: Vale do Loge, Luanda e Benguela, e poucos anos depois a própria PIDE reconhecia a dispersão de núcleos desta “seita” por todo o território, detetando núcleos da igreja relevantes nas províncias do Zaire, Congo (Uíge), Quanza Sul, Luanda, Benguela, Huambo, Huíla, Moxico e ­Moçâmedes (­Blanes, no prelo). Este processo terá repercussões inevitáveis na própria formação e auto-conceção do movimento, que se viu obrigado a reestruturar, tanto do ponto de vista ideológico como pragmático, e material, em função da sua nova condição multi-étnica (Blanes, no prelo).

Um dos episódios mais marcantes neste processo de re-territorialização foi o ocorrido no Vale do Loge, na região do Bembe (Uíge), um local de uma beleza natural extraordinária mas de difícil acesso e virtualmente desabitado até à chegada dos tocoistas ao local. Em janeiro de 1950, após a entrega dos deportados na fronteira de Nóki, um grupo de aproximadamente 250 pessoas, entre as quais Simão Toco, é encaminhado, junto com dois técnicos portugueses, para esta região, para depois servirem de mão de obra para o desenvolvimento de um colonato agrícola idealizado pela Junta de Exportação do Café, no âmbito das políticas de povoamento e desenvolvimento agrário promovidas pelo Governo Geral de Angola (Castelo, 2005). Apesar da inicial escassez de recursos, os regentes agrícolas “europeus” e os tocoistas conseguiram paulatinamente transformar o local numa exploração de café (mabuba) bem sucedida, chegando a exportar anualmente mais de 5 toneladas de café, mesmo tendo em conta que o ciclo de produção dos cafeeiros não atingira o seu pique durante a sua estadia no colonato (Estudo de Planeamento do Núcleo de Povoa­mento Agrário do Vale do Loge, 1970).18 Graças à sua postura de submissão voluntária ao trabalho agrícola, o grupo de “deslocados” conseguiu, evitando situações de violência extrema,19 coexistir com as autoridades coloniais, que por sua vez os autorizavam a praticar as suas atividades litúrgicas (embora sob um forte controlo). O facto de terem sido relegados para um “lugar remoto”, onde a própria PIDE não permanecia, também terá ajudado à emergência dessa situação de paz negociada e colaboração. No entanto, com o eclodir das ações de guerrilha nesta região em 1961, os tocoistas fugiram em debandada para as matas e para a fronteira com o Congo, escondendo-se assim das tropas portuguesas. Interrompia-se assim um período particular de trabalho e resistência pacífica para muitos tocoistas, que não mais voltariam ao Vale do Loge.20

Durante as minhas visitas ao vale e aos bairros do Palanca e Terra Nova em Luanda, conheci e entrevistei alguns dos tocoistas que fizeram parte desta história de deslocação. V., por exemplo, recorda-se que quando chegaram dormiam ao relento no capim, usando a sua própria roupa para fazer de cama e se protegerem dos bichos. P. contava que os “colonos” permaneciam isolados no colonato, proibidos de contactarem e interagirem com as populações vizinhas. L., que era apenas um bebé quando foi deportado com os seus pais para o Vale, conta também como foram distribuídas alfaias agrícolas a todos os homens e mulheres presentes no grupo - “uma catana, um machado, uma enxada, uma picareta, uma pá e uma alavanca”-, e organizados turnos de trabalho duríssimos para desbravar a mata (“capinar”) e cavar covas para plantação das ramas de café, enquanto construíam paulatinamente as suas próprias casas de madeira e capim com os recursos disponíveis no próprio vale. N. também explicava como cada trabalhador recebia um salário de 75 angolares (no caso dos homens) e a comida era centralizada num armazém e distribuída por cubata ou unidade familiar. Também se lembram das restrições de movimentos impostas, que os impediam de se deslocarem para além de 8 quilómetros a leste e oeste do colonato, sem serem acompanhados por um oficial do governo (as únicas deslocações autorizadas eram para o posto de saúde do Bembe, em caso de doença). Mas igualmente se falou na “greve de braços caídos” promovida pelos colonos como protesto pela proibição momentânea dos cultos religiosos, provocada por desentendimentos no seio dos tocoistas (Relatório da Junta de Exportação de Café, 1956). Neste sentido, apesar do sofrimento imposto pelo trabalho forçado e pela privação de liberdade, persiste nas memórias de muitos tocoistas a ideia de que a estadia no Vale do Loge não se restringia apenas a traumas motivados pela repressão, mas também à recordação de momentos de organização coletiva, resistência, colaboração e crescimento institucional e espiritual.

Quando no início de 2012 visitei o vale pela primeira vez com o meu colega Abel Paxe e amigos da igreja tocoista, pude ver no terreno as histórias recolhidas em Luanda e imaginadas em modo remoto: subi os montes que rodeavam o colonato, onde Simão Toco, ainda em 1950, promovera uma oração a Deus para solicitar a ajuda dos antigos profetas na sua tarefa de “relembramento” do cristianismo; visitei as ruínas da igreja católica que os tocoistas se recusaram a visitar aquando da visita do Bispo para a sua inauguração, em 1958; pisei o chão do local onde permanecia a primeira “igreja tocoista”, construída de raiz em madeira no mesmo ano, e onde começou a operar o chamado “tabernáculo” (Blanes, 2009a; no prelo). Também apreciei como, apesar do estado de ruína em que se encontra a maioria das estruturas do tempo em que o colonato funcionou no seu esplendor, e apesar da sua localização remota, o Vale do Loge continua a ocupar um lugar central na memória e historiografia tocoistas, e por essa mesma razão está a ser alvo de um processo em curso de recuperação e patrimonialização, tanto pelos habitantes locais que professam o tocoismo, como pelos antigos colonos que trabalharam na exploração do café. Estas iniciativas passam pela recuperação das antigas casas dos colonos, e também pela reativação da atividade agrícola em escala comercial.

O caso do Vale do Loge é ilustrativo da forma como a história do tocoismo foi propagada através de movimentos e deslocações involuntárias (Blanes, 2009b), produzindo assim processos inesperados de associação à terra motivados pelas trajetórias particulares tanto do seu líder fundador, como dos seus seguidores (Blanes, no prelo). Essa deslocação, como vimos, foi imposta exogenamente pelas autoridades portuguesas, que impuseram um “ethos de deslocamento” na experiência tocoista (ver nota acima sobre os ngunga nguele), produtor de territorialidades inéditas.

 

IRONIA NÚMERO 2: DA TORTURA AO MARTÍRIO

 

Um dos materiais mais marcantes dos arquivos da PIDE, embora disperso e provavelmente sobrevivente a um expurgo individual e institucional ao longo dos anos – para além de estar sujeito a um enquadramento jurídico particular de proteção da privacidade – é o “ficheiro de interrogatório”. Não necessariamente pelo seu conteúdo – destinado a produzir uma informação estratégica –, mas mais pelos dispositivos e práticas associadas ao mesmo, envoltas numa dinâmica de violência e extorsão. Temos algumas referências sobre como eram praticados os interrogatórios pela PIDE em Angola (Mateus, 2004, p. 107), para além de alguns testemunhos recolhidos entre pessoas que passaram por essa experiência. Um exemplo é o de V., uma “mãe” tocoista que ­entrevistei, e que partilhou comigo os distintos momentos de “interação” com as autoridades coloniais portuguesas. V. foi, tal como Simão Toco, deportada do Congo Belga, mas insistindo: “não houve qualquer crime, só a Palavra de Deus”. Depois, ­passou pelo Vale do Loge, antes de ser deportada com o marido para São Tomé. Depois de um desentendimento entre o seu marido e o capataz do vale, foi decidida a sua deportação do vale. Ao ver chegar o carro que ia levar o seu marido, V. pegou nos seus três filhos e entrou para dentro da viatura, exigindo ser levada junto com o seu marido. Após um tempo em Carmona, Vila Salazar (hoje Ndatalando), Catete e Luanda, V. e a sua família são deportados para São Tomé e Príncipe, onde permanecerão sete anos e conhecerão grande ­sofrimento, dadas as “surras” a que eram submetidos nas roças pelas autoridades. Muitos homens acabariam por morrer lá. “O sofrimento não tem medida, até comíamos as folhas que não davam” (venenosas). No entanto, a fé de V. reafirmava-se com o símbolo do tocoismo que ela carregava consigo (uma estrela branca de oito pontas sob um fundo vermelho). Ela sofria muito com os trabalhos que o marido era obrigado a fazer (subir às palmeiras, por exemplo), e armava “confusão” cada vez que ele demorava a chegar do serviço. Mas ao mesmo tempo, recordava-se da máxima parti­lhada pelo próprio Simão Toco, que recomendava sempre precaução em todos os contactos que mantivessem com as autoridades. Eventualmente, V. terá conseguido regressar com a sua família para Luanda, onde se encontra ainda hoje.

Para além destas narrativas biográficas que vamos recolhendo, resta-nos o material de arquivo. Um exemplo de como os serviços de inteligência embarcavam numa produção repressiva de conhecimento é, por exemplo, o do indígena moçambicano Alberto Cosse. A sua é uma das poucas transcrições de interrogatório – neste caso produzido pelos Serviços de Centralização e Coordenação de Informação de Moçambique – completas a que podemos ter acesso na Torre do Tombo. Através dele ficamos a saber que aderira ao seguimento de Simão Toco quando se encontrava deportado em São Tomé, a trabalhar numa roça, onde fora parar depois de preso em Lourenço Marques por “vadiagem” e “vários furtos e fugas da cadeia”. Fora deportado, de acordo com o relatório policial, com o objetivo de se “obter a sua regeneração”. Cosse terá sido autorizado a regressar a Moçambique, mas foi rapidamente preso para interrogatório pelos SCCIM após se ter dirigido às autoridades para pedir licença para viajar para Luanda, e assim se juntar à “seita”. Vários objetos e pertences seus foram apreendidos: um emblema em pano encarnado bordado a branco representando uma estrela de oito pontas, uma lista da Direcção dos Irmãos de Cristo de Angola, cartas manuscritas, folhetos com títulos como “A Vindoura Regeneração do Mundo”, etc.

Alberto Cosse não é uma figura central na historiografia tocoista, nem sequer nos ficheiros da PIDE. Representa, aliás, uma experiência de certa forma “marginal” do tocoismo, na medida em que era de nacionalidade moçambicana e aderira ao movimento em São Tomé, portanto longe dos cenários principais onde se desenvolvia a história tocoista. Mas é-nos relevante em primeiro lugar porque ilustra o alcance da ação e repressão policial, e os seus efeitos no espaço atlântico colonial; em segundo lugar, porque reforça a ideia da constante – embora não necessariamente organizada – preocupação por parte das autoridades relativamente à expansão da “seita”; em terceiro, porque contribui, mesmo que involuntariamente, para o mapeamento do movimento tocoista;21 e finalmente, porque é um indicador das dinâmicas de repressão e resistência através das quais o tocoismo operou. Em primeiro lugar, na surpresa e tentativa de compreensão do fenómeno:

 

P    […] Mas esse Simão Toco Gonçalves donde é que ele vive?

R    Simão Toco Gonçalves vem de Angola.

P    Vem de Angola? Mas não está em São Tomé? Vai São Tomé, vai Angola?

R    Ele a São Tomé veio só uma vez […].

P    Mas em Angola são brancos ou são pretos?

R    Angola são pretos.

P    São pretos? Mas como é que se chama essa Igreja?

R    Essa Igreja do Simão Toco?

P    Sim.

R    Esta Igreja de Simão Toco é Igreja Protestante Evangélica, mas é ele tem cor da estrela. A cor quer dizer que ele é caçador das instruções de religiões de Jesus de protestantes.

P    Ele é quê?

R    Ele tem cor de estrela.

P    Que é isso, que é isso? […]22

 

A esta tentativa de compreensão seguia-se uma outra de demarcação de motivações, procurando identificar por que é que pessoas como Cosse optavam por aderir a um movimento com as características do tocoismo, quais os critérios pessoais e políticos.

 

P    Mas como é que… Tu eras da Igreja Evangélica, não eras?

R    Era. Sou. Primeiro fui baptizado, eu sou, fui baptizado na Missão do Simão Toco da Estrela […].

P    Mas como é que tu entraste para a Igreja de Simão Toco?

R    É que ele vem também. Quando ele vem já, chegou lá, diz que essa religião que eu tem é religião da Estrela. Agora nós queremos entrar na Igreja dele, porque somos cantores, somos cantores dos livros. Ele escolheu qual era o rapaz mais esperto para cantar […].

P    Mas porque é que pediste para ser baptizado com Estrela e não pediste para ser baptizado com o [missionário protestante] Carvalho?

R    Coração chegou, Senhor Administrador!

P    Mas como é que é essa coisa, coração, oh Alberto? Deus mandou, não é? […] Mas o que é que o teu coração também está a pensar? Largar a tua família, largar tudo aqui e ir para Angola?

R    Sr. Administrador, é só coração!

P    Mas porquê?

R    É Deus que está a chamar.23

 

Depreendia-se também a notoriedade que a figura de Toco detinha entre as comunidades indígenas, não só no contexto angolano, mas também no espaço colonial atlântico – o que por sua vez prefigurava uma proto-sociologia do rumor e da sua circulação, muito para além do registo “oficial”.

 

P    […] Simão Toco o que é que ele faz?

R    Ele está a andar todas terras […].

P    E Simão Toco não tinha lá gente dele?

R    Tem muita gente dele da Estrela que está e outro está na Luanda.

P    Não, em São Tomé?

R    Em São Tomé tinha poucos de Estrela, não era muito, não. Era pouco.

P    Então todo gente anda com essa Estrela, assim, encarnada, na rua e tudo?

R    Na rua de Luanda, tudo na rua anda assim […].24

 

O exemplo de Cosse, tal como o de V., é particularmente interessante, porque ilustra os retratos heterogéneos e compósitos que se podem construir a partir deste momento histórico: através de uma narrativa pessoalizada, proferida de forma involuntária e sob coação (interrogatório), reconstrói-se, mesmo que parcialmente, e com as devidas ressalvas, uma história pouco conhecida até agora do tocoismo – a sua implantação fora do contexto angolano, no contexto da política colonial portuguesa –, ao mesmo tempo que se materializam histórias orais e rumores em documentos aos quais se acede de forma ad hoc. Neste sentido, opera-se em crentes tocoistas, como Cosse, um processo de personalização da repressão, uma identificação corporalizada do martírio da experiência tocoista através da sua sujeição ao poder policial. Se tal prática com um tocoista em Lourenço Marques aparecia como una novidade, em Angola fazia parte do quotidiano, em que os principais líderes e ­protagonistas eram invariavelmente chamados aos postos de polícia para prestarem declarações ou receberem instruções das autoridades, com variáveis níveis de imposição.

Neste contexto, para além do registo da “biografia profética” (Blanes, no prelo), experiências como a de Cosse também refletem a emergência pública de uma história personalizada e “anónima” do tocoismo, que hoje contribui, qual mosaico, para a acumulação histórica que se opera por trás deste movimento. Através da sua emergência documental, Cosse transformou-se num lugar de memória disponível para os tocoistas, no âmbito da sua própria reconstrução histórica (idem).

 

MEMÓRIAS EM TRANSIÇÃO: REPRESSÕES E IRONIAS NO CONTÍNUO HISTÓRICO

 

A “relocalização” do Vale do Loge e a sua inserção na trajetória historiográfica tocoista, assim como a reconstituição de registos de repressão e resistência como o de Alberto Cosse, representam um aspeto central na experiência e no ethos de qualquer tocoista: a importância da memória e a sua cultivação através de diversos métodos de recolha, registo e transmissão (Blanes, no prelo). Esta cultivação da memória, por sua vez, produz um sentido de “resiliência” (Paxe, 2009) que circula de forma ativa entre os membros – a ideia de que apesar do sofrimento e da perseguição (Blanes, 2009c) a igreja “continua de pé”. O que se sugere aqui, portanto, é a ideia de que o “legado” disponível entre os tocoistas está diretamente relacionado com as “expectativas” dos agentes, ideólogos e executores da PIDE, impostas sobre as próprias utopias dos crentes angolanos.

Mas por outro lado, também persiste a recorrência do conflito como dimensão aparentemente inerente à sua existência. Apesar de ser um movimento crescentemente notório no espaço angolano, visto como uma resposta autóctone de caráter emancipatório, esta não encaixava na lógica de violência dialética que se foi acumulando entre o aparato colonial e os autóctones, e transformou-se involuntariamente num dos polos da oposição binária produzida pela lógica de violência e confrontação. Aqui, revela-se uma teoria política da inimizade tal como nos falava Viveiros de Castro: o tocoismo transformou-se numa “corporalização autóctone” das ansiedades e axiologias do aparato colonial, que ensaiava a identificação dos seus inimigos. Esse ensaio, interessantemente, assentava numa teoria proto-antropológica da liderança profética, vista como sendo necessariamente subversiva, sem no entanto questionar – como fizera por exemplo Balandier – os contextos sociais e políticos que facilitavam essa emergência. A produção académica para comprovar essa ­teoria (por exemplo, Cunha, 1959; Estermann, 1965), apenas fazia parte da self-fulfilling prophecy.

Mas o devir dos acontecimentos acabou por ultrapassar o autoritarismo binário da PIDE: não só não impediu o desmoronar do projeto colonial, como tão pouco impediu o crescimento do movimento tocoista, que se serviu da dispersão pelos campos de trabalho para construir uma igreja pública, de alcance nacional. Em agosto de 1974, nas vésperas da saída de Portugal do território, o líder religioso é autorizado a regressar do exílio, assiste-se àquilo a que os jornais da época chamaram “regresso triunfal” de Simão Toco à chegada ao porto de Luanda, perante o júbilo de milhares de tocoistas e angolanos (Diário de Angola, 31-08-1974). Pouco tempo depois, seria recebido pelo então Alto-Comissário em Angola, o almirante Rosa Coutinho.

A reversão das lógicas de poder, mediada pela retirada dos portugueses de Angola, provocou, para além de todas as mudanças societais e políticas em Angola, uma reconfiguração da memória e narrativa historiográfica no seio desta igreja em particular. A sobrevivência à agência repressora da PIDE possibilitou, nos anos que se seguiram, o desenvolvimento de uma ideologia de sofrimento, martírio e providência que encaixava perfeitamente na teologia messiânica com que a igreja se fundara décadas antes: uma ideologia de libertação espiritual e política. Toco constituiu-se assim, para muitos angolanos, um mártir e um herói dos tempos coloniais. É verdade que o que aconteceu nas mais de três décadas a seguir à independência angolana também afetou, “mediou” essa memória (Blanes, no prelo). Seja como for, o discurso sobre o martírio colonial mantém-se muito vivo nos dias de hoje entre os membros da igreja.

Mais ainda, a partir de 1994, com a abertura dos arquivos da PIDE e já depois da inauguração da primeira “Igreja Tocoista” em Lisboa (1992), inaugurou-se um novo regime de memória, e os próprios tocoistas procuram consultar os arquivos e prosseguir o seu processo de revisão histórica. Aqui descobre-se, do ponto de vista tocoista, um regime historiográfico inédito, na medida em que se acumula e concentra uma multidão de textos, documentos e objetos produzidos ou confiscados pelas autoridades portuguesas a propósito deste movimento religioso – nomeadamente, dezenas de milhares de páginas de correspondência pessoal entre o líder e os seus seguidores. Este processo de revelação, apenas possível “graças” à ação repressora da PIDE, está ainda em curso, na medida em que estes arquivos (na Torre do Tombo e no Arquivo Histórico Ultramarino, sobretudo) acumulam dezenas de milhares de folhas, e nem todos conseguiram aceder-lhes; no entanto, já permitiu o aparecimento de uma produção endógena de “historiografia tocoista”, estruturada sobretudo em torno da biografia do profeta e da sua correspondência (ver, por exemplo, Kisela, 2004).

 

CONCLUSÕES

 

Pretendi neste texto pensar o exemplo tocoista através de uma interseção mais abrangente entre ideologia, ação e momento histórico: o reconhecimento coletivo de uma fratura entre a sociedade e o Estado, mediada pela crescente sensação de inevitabilidade da dicotomia repressão/resistência – sensação que nos obriga a olhar com atenção para os distintos sentidos que estes conceitos podem assumir em diferentes contextos geográficos e históricos, e para as subsequentes expectativas que são colocadas nos distintos campos de ação. Os “resistentes” tocoistas, embora lutando fisicamente contra o “opressor”, faziam-no apenas contra a sua vertente executora (a “polícia”, num sentido lato) e não a sua totalidade (os promotores da ação opressora). Por outro lado, para os agentes da polícia política, o tocoismo simbolizava (embora não de forma exclusiva) o tipo de inimigo que se procurava identificar; neste contexto, o exemplo aqui apresentado é apenas um dos vários que se poderiam explorar para o caso angolano.

Seja como for, no caso que apresentei aqui, tanto o governo português como o movimento tocoista tinham, no seu horizonte de expectativas, uma noção de “tempo messiânico”, a ideia de um futuro mais ou menos concreto onde se concretizariam os seus projetos de sociedade (Benjamin, 1968; Jameson, 2005). Agiam ora reprimindo, ora resistindo, em função de uma ideologia e de uma expectativa – uma determinada “conceptualização histórica”, como diria Koselleck. Se para os tocoistas – e para muitos angolanos – esse tempo messiânico chegou sob a forma de mudança política, por um lado, e confirmação providencial divina, por outro, para os antigos agentes da PIDE ter-se-á verificado uma sensação inversa, em que a expectativa se transformou em frustração e nostalgia. Neste contexto, não deixa de ser irónico que aquilo que a PIDE produziu no âmbito da sua estratégia repressora – o tal “arquivo secreto” – sirva hoje como fonte de memória e confirmação de expectativas.

Nesta perspetiva, a Angola tardo-colonial foi também um campo de experimentação poética: por um lado, no ensaio da “naturalização” de uma determinada ontologia social (totalitarizante, conservadora, imperialista) – que viria posteriormente a ser contestada através de uma “reação”; e por outro, de uma experiência de temporalização determinada por utopias contrastantes. A “arte da resistência” tocoista idealizava uma nova soberania assente na libertação espiritual, o que por sua vez contrastava com o próprio providencialismo da ideologia e praxis da PIDE; posteriormente, após a independência, a igreja veria essas utopias traduzidas em inscrições de memória como as que descrevi aqui. Faltará ainda conhecer essas inscrições do lado de quem promoveu a repressão.

 

BIBLIOGRAFIA

 

ÁLVARO, A. N. (2011), Estudo sobre a Relevância da Acção dos Tocoístas na Luta de Libertação Nacional no Período da Emergência do Moderno Nacionalismo Angolano. Tese de licenciatura em Sociologia, Luanda, Universidade Agostinho Neto.         [ Links ]

ANDERSON, B. (1983), Imagined Communities. Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, Londres e Nova Iorque, Verso.         [ Links ]

ARGENTI, N., SCHRAMM, K. (eds.) (2010), Remembering Violence. Anthropological Perspectives on Intergenerational Transmission, Oxford, Berghahn.         [ Links ]

BALANDIER, G. (1955), Sociologie actuelle de l’Afrique noire, Paris, Presses Universitaires de France.         [ Links ]

BALANDIER, G. (1976), “Tradition, conformité, historicité”. In J. Poirier e F. Raveau (eds.), L’Autre et l’ailleurs. Hommage a Roger Bastide, Paris, Berger-Levrault, pp. 15-38.         [ Links ]

BALANDIER, G. (1988), Le désordre, Paris, Arthème Fayard.         [ Links ]

BARTH, F., (1969), Ethnic Groups and Boundaries. The Social Organization of Culture Difference, Boston, Little, Brown and Company.         [ Links ]

BASTOS, S. P. (1997), O Estado Novo e os Seus Vadios. Contribuição para o Estudo das Identidades Marginais e a sua Repressão, Lisboa, Dom Quixote.         [ Links ]

BENDER, G. (2009 [1978]), Angola sob o Domínio Português. Mito e Realidade, Luanda, Nzila.         [ Links ]

BENJAMIN, W. (1968), Illuminations. Essays and Reflections, Nova Iorque, Schocken Books.         [ Links ]

BLANES, R. (2009a), “O messias entretanto já chegou. Relendo Balandier e o profetismo africano na pós-Colônia”. Campos – Revista de Antropologia Social, 10 (2), pp. 9-23.         [ Links ]

BLANES, R. (2009b), “Circunscricão moral. Mobilidade, diáspora e configurações doutrinais na Igreja Tokoista”. In R. Carmo e J. Simões (eds.), A Produção das Mobilidades. Redes, Espacialidades e Trajectos num Mundo em Globalização, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, pp. 247-261.         [ Links ]

BLANES, R. (2009c), “Remembering and suffering: Memory and shifting allegiances in the Angolan Tokoist Church”. Exchange, 38 (2), pp. 161-181.         [ Links ]

BLANES, R. (2011), “Unstable biographies: The ethnography of memory and historicity in an Angolan prophetic movement”. History and Anthropology, 22 (1), pp. 93-119.         [ Links ]

BLANES, R. (2012), “O tempo dos inimigos: notas para uma antropologia da repressão no século XXI”. Horizontes Antropológicos, 18 (37), pp. 261-284.         [ Links ]

BLANES, R., no prelo, A Prophetic Trajectory.Ideologies of Space, Time and Belonging in an Angolan Religious Movement (manuscrito submetido), Oxford e  Nova Iorque, Berghahn.         [ Links ]

BRITO, A. B., González-Henríquez, C. e Fernández, P. A. (eds.) (2004), Política da Memória. Verdade e Justiça na Transição para a Democracia, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais.         [ Links ]

CABRAL, J. de P. (1991), Os Contextos da Antropologia, Porto, Difel.         [ Links ]

CARDINA, M. (2010), “Violência e anticolonialismo nas oposições ao Estado Novo”. Revista Crítica de Ciências Sociais, 88, pp. 207-231.         [ Links ]

CASTELO, C. (2005), Passagens para África. O Povoamento de Angola e Moçambique com Naturais da Metrópole (1920-1974), Porto, Afrontamento.         [ Links ]

CLASTRES, P. (1989 [1974]), Society Against the State. Essays in Political Anthropology, Nova ­Iorque, Zone Books.         [ Links ]

CLASTRES, P. (1994), Archaeology of Violence, Nova Iorque, Semiotext(e).         [ Links ]

COMAROFF, J. (1985), Body of Power, Spirit of Resistance. The Culture and History of a South African People, Chicago, University of Chicago Press.         [ Links ]

CRAPANZANO, V. (2003), “Reflections on hope as a category of social and psychological analysis”. Cultural Anthropology, 18 (1), pp. 3-32.         [ Links ]

CUNHA, J. S. (1959), Aspectos dos Movimentos Associativos na África Negra, Volume II (Angola), Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar.         [ Links ]

DOMINGOS, N. e PEREIRA, V. (eds.) (2010), O Estado Novo em Questão, Lisboa, Edições 70.         [ Links ]

ESTERMANN, C. (1965), “O Tocoismo como fenómeno religioso”. Garcia de Orta, 13 (3), pp. 325-342.         [ Links ]

FABIAN, J. (1983), Time and the Other. How Anthropology Makes its Object, Nova Iorque, ­Columbia University Press.         [ Links ]

FELDMAN, A. (1991), Formations of Violence. The Narrative of the Body and Political Violence in Northern Ireland, Chicago, University of Chicago Press.         [ Links ]

FERREIRA, C. (2012), O Tocoismo como Elemento da Identidade Angolana (1950-1965). Tese de mestrado, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa.         [ Links ]

GRENFELL, J. (1998), “Simão Toco, an Angolan prophet”. Journal of Religion in Africa, 28 (2), pp. 210-226.         [ Links ]

JAMESON, F. (2005), Archaeologies of the Future. The Desire Called Utopia and Other Science ­Fictions, Londres e Nova Iorque, Verso.         [ Links ]

KISELA, J. A. (2004), Simão Toco. A Trajectória de um Homem de Paz, Luanda, Nzila.         [ Links ]

MADEIRA, J.; PIMENTEL, I.; FARINHA, L. (2007), Vítimas de Salazar: Estado Novo e Violência Política, Lisboa, Esfera dos Livros.         [ Links ]

MATEUS, D. C. (2004), A PIDE/DGS na Guerra Colonial, 1961-1974, Lisboa, Terramar.         [ Links ]

MIYAZAKI, H. (2004), The Method of Hope. Anthropology, Philosophy, and Fijian Knowledge, Stanford, CA, Stanford University Press.         [ Links ]

NASHIF, E. (2008), Palestinian Political Prisoners: Identity and Community, Londres e Nova ­Iorque, Routledge.         [ Links ]

PAXE, A. (2009), Dinâmicas de Resiliência Social nos Dircursos e Práticas Tokoistas no Icolo e Bengo. Tese de mestrado, Lisboa, ISCTE-IUL.         [ Links ]

PIMENTEL, I. (2007), A História da PIDE, Lisboa, Círculo de Leitores/Temas e Debates.         [ Links ]

RIBEIRO, A. S., SANTOS, C. M. e MAESO, S. R. (eds.) (2010), “Violência, memória e representação”. Número especial, Revista Crítica de Ciências Sociais, 88, pp. 5-7.         [ Links ]

RIBEIRO, M. da C. (1995), A Polícia Política do Estado Novo, 1926-1945, Lisboa, Estampa.         [ Links ]

RICOEUR, P. (2004), Memory, History, Forgetting, Chicago, University of Chicago Press.         [ Links ]

ROSAS, F. (1998), O Estado Novo (1926-1974), volume VII da História de Portugal, coord. José Mattoso, Lisboa, Estampa.         [ Links ]

ROSAS, F. (2001), “O salazarismo e o homem novo: Ensaio sobre o Estado Novo e a questão do totalitarismo”. Análise Social, 157, XXXV (Inverno), pp. 1031-1054.         [ Links ]

SARRÓ, R. (2008), The Politics of Religious Change on the Upper Guinea Coast. Iconoclasm Done and Undone, Edimburgo, International African Library.         [ Links ]

SARRÓ, R. (2009), “O sofrimento como modelo cultural: uma reflexão antropológica sobre a memória religiosa na diáspora africana”. In L. Pereira e C. Pussetti (eds), Os Saberes da Cura, Lisboa, ISPA, pp. 33-51.         [ Links ]

SARRÓ, R. (2010), “The futures of prophecy: Old hopes and new geographies for African prophetic churches”. Paper apresentado na Glopent Conference 2010, “Geographies of Conversion”, Amesterdão, fevereiro de 2010.         [ Links ]

SCOTT, J. C. (1990), Domination and the Arts of Resistance. Hidden Transcripts, New Haven, Yale University Press.         [ Links ]

SCOTT, J. C. (2009), The Art of Not Being Governed. An Anarchist History of Upland Southeast Asia, New Haven, Yale University Press.         [ Links ]

TAUSSIG, M. (1987), Shamanism, Colonialism and the Wild Man. A Study in Terror and Healing, Chicago, University of Chicago Press.         [ Links ]

TAUSSIG, M. (1993), Mimesis and Alterity. A Particular History of the Senses, Londres e Nova Iorque, Routledge.         [ Links ]

VIVEIROS DE CASTRO, E. (1992), From the Enemy’s Point of View. Humanity and Divinity in an Amazonian Society, Chicago, University of Chicago Press.         [ Links ]

VIVEIROS DE CASTRO, E. (2002), A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia, São Paulo, Cosac Naify.         [ Links ]

ZIGON, J. (2009), “Hope dies last: Two aspects of hope in contemporary Moscow”. Anthropological Theory, 9 (3), pp. 253-271.         [ Links ]

 

ARQUIVOS CONSULTADOS

 

Torre do Tombo

PIDE-DGS, Serviços Centrais, Processo 1825, volume 1, “Simão Gonçalves Toco”.

PIDE-DGS, Serviços Centrais, CI(2), Processo 6462, “Tocoismo, Religião da Estrela”.

Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de Angola, Processo 773100, caixa 261, “Pareceres sobre Proscrição”.

Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de Moçambique, Processo A-9-149, “Alberto Cossa”.

 

Arquivo Histórico Ultramarino

Ministério do Ultramar, Gabinete de Negócios Políticos, Processo 020, Parte 1 (1949-1960), “Seita Místico Religiosa Simão Gonçalves Toco”.

 

Recebido a 19-07-2012. Aceite para publicação a 09-11-2012.

 

NOTAS

 

1  Este artigo resulta da reescrita de uma comunicação apresentada no colóquio “Legados do Autoritarismo em Portugal em perspetiva comparada”, organizado pelo Instituto de História Contemporânea a 23 e 24 de abril de 2012. Agradeço aos técnicos dos arquivos da Torre do Tombo e do Arquivo Histórico Ultramarino pelo apoio, ensinamentos, e esclarecimentos prestados ao longo desta pesquisa. Agradeço igualmente aos meus colegas Abel Paxe, Cléria ­Ferreira, Ramon Sarró, Nuno Domingos e Pedro Aires Oliveira pelos debates sobre estas questões, e ao João de Pina-Cabral pelas observações críticas a versões anteriores do texto. Finalmente, um agradecimento aos vários amigos tocoistas em Luanda que me levaram ao Vale do Loge, e que debateram comigo as questões invocadas neste artigo.

2  Criada em 1945 a partir do legado da PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) existiu formalmente até 1969, altura em que foi substituída pela DGS (Direcção Geral de Segurança). No entanto, enquanto projeto repressivo de controlo, vigilância e repressão, podemos considerar que se manteve até à Revolução de 25 de abril de 1974.

3   Como se verá em baixo, a informação oriunda dos distintos serviços envolvidos no pro­cesso de recolha e pesquisa era frequentemente contraditória. Neste contexto, havia lógicas de relacionamento interno que não eram necessariamente harmoniosas. Agradeço a um dos revisores deste artigo por chamar a atenção para esta questão.

4   Tenho vindo a desenvolver pesquisas sobre este movimento desde 2007, com trabalho de terreno principalmente em Lisboa, Luanda e o norte de Angola. A este trabalho de terreno juntou-se mais recentemente uma investigação de arquivo, nos acervos da PIDE localizados em Lisboa (em particular na Torre do Tombo), e no Arquivo Histórico Ultramarino.

5  Esta conclusão é a que é hoje recorrentemente veiculada em Angola. No entanto, a relação entre o movimento tocoista e os movimentos de libertação não foi de todo pacífica, já que Simão Toco se opunha à resistência armada e às táticas de guerrilha (Grenfell, 1998; Kisela, 2004; Álvaro, 2011; Ferreira, 2012; Blanes, no prelo). Há toda uma história pós-colonial que determinou essa situação mas que não poderemos abordar aqui por falta de espaço.

6  A estas centenas de deportados à força juntar-se-iam, nos meses seguintes, outros milhares de expatriados zombos no Congo Belga que decidiram regressar voluntariamente a Angola para seguir o seu profeta, submetendo-se ao mesmo programa (Blanes, no prelo).

7   A política de dispersão pelos colonatos foi feita em colaboração com o Governo Geral de Angola, que através de distintos serviços (entre os quais a Junta de Exportação do Café) “recrutava” mão de obra entre os indígenas sujeitos a medidas de segurança para os diferentes empreendimentos de povoação e exploração agrícola que procurava desenvolver na altura (Castelo, 2005).

8   AHU, MU, Gabinete de Negócios Políticos, Processo 020, Parte 1 (1949-1960), “Seita Místico Religiosa Simão Gonçalves Toco”.

9  AHU, MU, Gabinete de Negócios Políticos, Processo 020, Parte 1 (1949-1960), “Seita Místico Religiosa Simão Gonçalves Toco”.

10  AHU, MU, Gabinete de Negócios Políticos, Processo 020, Parte 1 (1949-1960), “Seita Místico Religiosa Simão Gonçalves Toco”.

11   AHU, MU, Gabinete de Negócios Políticos, Processo 020, Parte 1 (1949-1960), “Seita Místico Religiosa Simão Gonçalves Toco”.

12   Muitos acabariam por se instalar numa vila, chamada Taia Nova (Uíge, Maquela do Zombo), construída de raiz pelos tocoistas com o assentimento das autoridades coloniais, que viam na iniciativa o cumprimento dos seus objetivos de repovoamento da região.

13  IAN/TT, PIDE-DGS, Serviços Centrais, Processo 1825, volume 1, “Simão Gonçalves Toco”.

14   IAN/TT, Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de Angola, Processo 773100, caixa 261, “Pareceres sobre Proscrição”.

15  Os arquivos da PIDE na Torre do Tombo e no Arquivo Histórico Ultramarino contêm processos relativos a vários outros movimentos religiosos (Kimbanguistas, Testemunhas de Jeová, etc.). Mas nenhum alcança a acumulação de informação recolhida sobre o tocoismo.

16  IAN/TT, PIDE-DGS, Serviços Centrais, CI(2), Processo 6462, “Tocoismo, Religião da Estrela”.

17  A minha própria produção enquanto antropólogo será partícipe desse processo de ­encontro.

18  O sucesso do empreendimento foi tal que motivou a visita, em 1953-1954, do governador geral Agapito da Silva Carvalho ao colonato.

19  A violência e a coação, no entanto, não deixaram de existir. Antigos habitantes do colonato por mim entrevistados recordam que o “chicote não faltava”, e alguns relatórios de entidades envolvidas referem episódios pontuais de desentendimento e repressão.

20  Os antigos habitantes do Vale do Loge são hoje referidos no seio do tocoismo como os ngunga nguele ou “deslocados” em kikongo. Após fugirem do vale em 1961, viveriam nas matas circundantes e no outro lado da fronteira do Congo até 1962, altura em que Toco faz o apelo público para o seu regresso. Nessa ocasião, não regressam para o vale, mas antes para o lugar de Taia Nova e, posteriormente, para Luanda, onde se encontra a maioria dos sobreviventes. Por outro lado, no Vale do Loge permaneceram alguns habitantes das aldeias vizinhas que entretanto se tinham convertido ao tocoismo.

21   Neste caso concreto, por exemplo, somos informados de que Toco esteve três dias em São Tomé e Príncipe em 1954, facto pouco conhecido no seio do próprio tocoismo.

22  IAN/TT, Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de Moçambique, Processo A-9-149, “Alberto Cossa”. Neste processo, o apelido Cosse encontra-se grafado como Cossa.

23  IAN/TT, Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de Moçambique, Processo A-9-149, “Alberto Cossa”.

24  IAN/TT, Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de Moçambique, Processo A-9-149, “Alberto Cossa”.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons