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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.203 Lisboa Apr. 2012

 

Theoria hominis: Hermínio Martins, filosofia, ciência e tecnologia.

 

Renato Rodrigues Kinouchi*1

*Centro de Ciências Naturais e Humanas da Universidade Federal do ABC – Brasil. E-mail: renato.kinouchi@gmail.com

 

Há 50 anos, a filosofia da ciência encontrava-se prestes a sofrer uma importante inflexão. Durante décadas, ela havia estado associada, quase exclusivamente, à lógica e à epistemologia na tarefa de elucidar, dentro do contexto da justificação, quais os procedimentos metodológicos que garantiriam a adequada fundamentação do conhecimento científico. No entanto, o notável impacto do livro The Structure of Scientific Revolutions (Kuhn, 1962) abalou diversas teses das visões então predominantes, e provocou uma acentuada reavaliação do papel da história da ciência, bem como da sociologia, num terreno anteriormente defendido como prioritariamente filosófico. A partir de então, a paisagem teórica, por assim dizer, alterou-se de maneira significativa e nenhum dos ramos disciplinares logrou novamente entronizar-se no comando das investigações sobre a ciência, ainda que alguns deles possam não ter abdicado dessa pretensão.

Foi dentro desse extraordinário contexto que Hermínio Martins publicou o seu primeiro texto teórico longo em inglês – intitulado “The Kuhnian ‘revolution’ and its implications for sociology” – cujo objetivo era o de analisar as implicações das teses kuhnianas para o estabelecimento de uma sociologia do conhecimento científico, que a um só tempo superasse, por um lado, a corrente mertoniana e, por outro, o relativismo epistemológico. Cumpre sublinhar a presteza com que Martins (1972) intuiu a senda aberta por Kuhn; em entrevista recente (Jerónimo, 2011), relata que se debruçara sobre a obra pouco depois do seu lançamento e, além disso, que foi o primeiro sociólogo a escrever um longo texto sobre o assunto (Martins, 1972), apenas dois anos após a publicação da coletânea Criticism and the Growth of Knowledge, organizada por Lakatos e Musgrave (1970).

A trajetória de Hermínio Martins já foi apropriadamente apreciada por Garcia (2006) na sua introdução à coletânea Razão, Tempo e Tecnologia. Aqui, o nosso intuito é apenas o de mostrar como essa trajetória muito dificilmente se enquadra em determinadas dicotomias que se tornaram clichês nos ­últimos 50 anos. No plano geral, recordemos a famosa dicotomia das “duas culturas” de Snow (2001 [1959]), a opor cientistas – que trariam “o futuro em seus ossos” – e intelectuais – que, no entender de Snow, mal perceberiam a sua própria scientific illiteracy (curiosamente, tal défice já havia sido apontado por Álvaro de Campos, ao glosar que poucos se apercebem que “O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo”). Por outro lado, particularmente no plano da filosofia, mas com repercussões em áreas adjacentes, há a dicotomia entre o estilo analítico de investigação filosófica – reputado como claro, preciso, mas geralmente circunscrito a questões de linguagem – e o dito continental – cuja variada gama de orientações só encontra abrigo comum sob o rótulo devido a todas serem consideradas não-analíticas. Cabe agora perguntar: qual o lugar de Hermínio Martins nessas dicotomias que povoaram o imaginário da academia por tantos anos? Trata-se de um cientista ou de um intelectual? E em relação ao muito que há de filosofia na sua obra, esta é analítica ou continental?

Creio que a imensa maioria dos leitores há-de reconhecer o conteúdo ­científico presente no Experimentum Humanum de Hermínio Martins (2011). Se houver dúvidas a esse respeito, cumpre esclarecer que o autor faz prioritariamente teoria, uma modalidade de estudos que já gozou de maior prestígio, e que o empirismo vigente tende a depreciar. Todavia, mesmo que utilizemos critérios mais pragmáticos, tais como o da “utilidade prática” do seu pensamento, Hermínio Martins faz ciência indubitavelmente (conquanto faça ética, também, como veremos). Por exemplo, a sua análise dos conceitos de risco e incerteza (2011, cap. V) é um dos elementos mais práticos que pode haver para as sociedades contemporâneas: basta notar a incrível expansão da indústria de seguros – que se faz acompanhar pelo recuo dos Estados nos setores da saúde e da previdência social (2011, pp. 204-205) – e das indústrias “­lúdicas”, dos ­casinos e das lotarias. Capaz de articular um arco argumentativo que ­compreende Cournot, Von Mises, Peirce, Popper, Keynes e Knight, entre outros, o teórico social oferece uma síntese daquilo que se poderia denominar de tentativas de domesticação do acaso (Hacking, 1990) no terreno das avaliações de risco, chamando a atenção para a “insuficiência do conceito de risco” e para a “necessidade do conceito de incerteza”. Ocorre que no caso de Hermínio ­Martins, o cientista não inibe o intelectual. Exercendo essa última função, o sociólogo alerta-nos, neste texto em particular, mas também em diversos outros, sobre as ameaças escamoteadas por análises deficientes no que diz respeito às incertezas epistémicas relativas ao alcance e à irreversibilidade das decisões tecno-científico-económicas. Em resumo, Hermínio Martins é um cientista e é um intelectual, e não apresenta contradições performáticas na atuação destes dois papéis.

No tocante ao estilo filosófico do sociólogo português, de certo apresenta uma forte componente analítica; e provavelmente não poderia ser diferente, dado o seu convívio junto à nata da filosofia da ciência anglo-saxónica. Todavia, Martins (2011, e.g., cap. II) empreende uma intensa reflexão sobre a importância, para o bem e para o mal, da visão fáustica da tecnologia, cujos expoentes (bastante heterogéneos nas suas opiniões) são usualmente classificados como continentais: Spengler, Heidegger, Adorno e Horkheimer, entre tantos outros. Ocorre que em Martins (2011), clareza, precisão e rigor analíticos se associam a uma enorme erudição filosófica, que se derrama em perío­dos longos, mediante um vocabulário rico e repleto de neologismos. E nisso ele não faz concessões: não substitui uma boa frase longa por dez curtas, nem expressões semanticamente ricas por outras mais pedestres. Enfim, não cai nas facilidades dos papers. Entretanto, em hipótese alguma transige com o tipo de verborragia sincrética que foi exposta ao ridículo há alguns anos atrás e, por conseguinte, afasta-se completamente do tipo ideal do filósofo continental que os analíticos costumam pintar: confuso, obscuro e enredado por conceitos metafísicos que não possuem referente algum, exceto na cabeça daqueles que sofreram semelhante inculcation.

Para finalizar, vale a pena assinalar uma questão de fundo que perpassa todo o Experimentum Humanum, mas que fica mais saliente quando o autor discute temas como o gnoticismo tecnológico (cap. 1); a sucessão de ­teodiceias e antropodiceias que atravessam a história do pensamento ocidental (cap. 3); ou ainda o ritmo acelerado do desenvolvimento tecnológico (cap. 8), que promete para breve alcançar um de seus mais significativos patamares – a possibilidade de efetivar o trans-humanismo –, num crescendo exponencial a caminho da última das utopias, a singularidade. O que me parece é que ao procurar fornecer algum tipo de compreensão total (à maneira de Mauss?) do ­experimento da humanidade, Hermínio Martins implicitamente tece a sua “teoria do homem”. Salvo engano da minha parte, é uma teoria cética, no melhor sentido da palavra, que desmonta aqueles sistemas de crenças, mostra-lhes a sua história, as suas contingências, assim como a vaidade que os anima. Essa visão cética, porém, não recai na misantropia ou na censura generalizada à ciência (no que diz respeito a esse tipo de reflexão em língua portuguesa, cf. Aires, 2005 [1752], pp. 130-149). Pelo contrário, há uma “forte sensibilidade humanista”, já destacada pelo filósofo Hugh Lacey. A propósito, parece-me sintomático que a apreciação desse humanismo venha de um estudioso com vivências tão marcadamente multiculturais quanto as de Martins; Hugh Lacey é australiano, radicado nos Estados Unidos, e fluente em português em virtude de mais de quarenta anos de colaboração com universidades brasileiras. Ocorre-me que as trajetórias de ambos, no conjunto, recobrem cinco continentes. E relembro-me de que “no universo da cultura o centro está em toda parte” (Reale, 1994, p. 46).

 

BIBLIOGRAFIA

AIRES, M. (2005 [1752]), Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, Lisboa, Imprensa Nacional- -Casa da Moeda.         [ Links ]

GARCIA, J.L. (2006), Razão, Tempo e Tecnologia. Estudos em Homenagem a Hermínio Martins, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais.         [ Links ]

HACKING, I. (1990), The Taming of Chance, Cambridge, Cambridge University Press.         [ Links ]

JERÓNIMO, H.M. (2011), “Entrevista a Hermínio Martins por Helena Mateus Jerónimo”. Análise Social, 200, XLVI (3.º), pp. 460-483.         [ Links ]

KUHN, T.S. (1962), The Structure of Scientific Revolutions, Chicago, University of Chicago Press.         [ Links ]

LAKATOS, I. e MUSGRAVE, A. (eds.) (1970), Criticism and the Growth of Knowledge, Cambridge, Cambridge University Press.         [ Links ]

MARTINS, H. (1972), “The Kuhnian ‘revolution’ and its implications for sociology”. In S. Rokkan, A.H. Hanson e T. Nossiter, Imagination and Precision in the Social Sciences – Essays in Memory of Peter Nettl, Londres, Faber and Faber, 1972, pp. 13-58.         [ Links ]

MARTINS, H. (2011), Experimentum Humanum: Civilização Tecnológica e Condição Humana, Lisboa, Relógio D’Água Editores.         [ Links ]

REALE, M. (1994), “Minhas memórias da USP”. Estudos Avançados, 8 (22), pp. 25-46.         [ Links ]

SNOW, C.P. (2001 [1959]), The Two Cultures, Londres, Cambridge University Press.         [ Links ]

 

Notas

1 O autor agradece à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) o apoio mediante concessão de Bolsa de Pesquisa no Exterior, junto ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

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