SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número179Tempos Interessantes: Uma Vida no Século XXPara a História da Indústria em Portugal, 1941-1965: Adubos azotados e siderurgia índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.179 Lisboa  2006

 

Thomas Geisen, Anthony Andrew Hickey, Allen Karcher (eds.), Migration, Mobility, and Borders. Issues of Theory and Policy, IKO-Verlag fur Interkulturelle Kommunikation, Frankfurt am Main/Londres, 2004, 186 páginas.

 

Com contributos da Austrália, dos Estados Unidos e da Europa, os oito ensaios que integram o volume Migration, Mobility, and Borders (Migração, Mobilidade e Fronteiras) constituem uma tentativa de abordar os temas epónimos num contexto global. No que concerne às «fronteiras», na «Introdução», os editores apontam o facto de que tais fronteiras não são meras linhas de demarcação num mapa: possuem significado social, cultural e político relativamente àquilo que definem, incluem e excluem. Do mesmo modo, as entidades que as fronteiras definem — estados, províncias ou comunidades — possuem também vida própria. Como tal, os movimentos transfronteiriços encerram um significado que transcende a simples passagem física de uma fronteira e a vida dentro das fronteiras está dependente das diversas divisões internas.

Partindo deste ponto, os restantes ensaios identificam outras tensões que marcam a teorização da migração: o modo como divisões internamente construídas como classe, género ou raça se tornam fronteiras em si mesmas, com ou sem diferenciações espaciais; contudo, não obstante a importância destes fenómenos e de outros desenvolvimentos, como a globalização e a existência de entidades metanacionais, como a União Europeia, os editores defendem também que as fronteiras não devem ser ignoradas, sejam elas antigas fronteiras nacionais ou fronteiras redesenhadas por formações étnicas.

Quatro dos capítulos que compõem esta antologia incidem sobre a Europa. «Migration as a balancing process: individual and societal connections of mobility», de Dirk Hoerder, professor de História na Universidade de Bremen, analisa a avaliação das condições de vida realizada pelos migrantes. O processo de equilíbrio que cada migrante (potencial) tem de efectuar, possivelmente em conjunto com a sua família, envolve a avaliação das futuras possibilidades económicas e sociais em «casa» e no exterior, particularmente a possibilidade (ou ausência de possibilidade) de alcançar um nível de vida mínimo. Este paradigma surge em oposição à concepção dos migrantes como «desenraizados» ou, na Alemanha, «sujeitos sem pátria» (vaterlandslose Gesellen). As dificuldades culturais que os alemães experimentaram historicamente na concepção da migração como um processo de decisão pragmático, mais do que um processo de imolação virtual da identidade nacional, são ilustradas pela predisposição da língua e folclore alemães para o sedentarismo; como afirma Hoerder, «a língua nunca é neutra» (2004, p. 16).

A afirmação da «escolha» (ou de uma abordagem de custos/benefícios) como o paradigma dominante para a compreensão da migração, se bem que muitas vezes limitada por condições estruturais económicas e sociais (incluindo as políticas governamentais), é intensificada pela consideração dos sistemas que interagem com processos individuais de tomada de decisão e opções de migração preexistentes: ao nível micro, o pessoal e o familiar (ou seja, factores emocionais, intelectuais e religiosos); ao nível que Hoerder denomina como «meso», de região e estrutura (por exemplo, redes comunitárias e familiares); finalmente, ao nível macro, em sistemas de migração preexistentes, sejam eles transcontinentais ou transoceânicos.

Os factores que influenciam a decisão de migrar são ainda mais desenvolvidos em «People on the move: the inclusion of migrants in `labor transfer systems' — the European case», de Thomas Geisen, da Universidade de Zurique. Este capítulo examina a dinâmica do desenvolvimento sócio-histórico dos movimentos migratórios, incluindo uma análise aprofundada da contradição entre migração como uma acção de inspiração individual e um acontecimento determinado por estruturas sócio-económicas; o papel da interacção entre migrantes é também trazido à luz. Além disso, numa perspectiva que muito deve a Wallerstein, o autor refere o estabelecimento de um sistema global de diferentes padrões migratórios, uma rede historicamente interligada à expansão colonial e ao desenvolvimento do capitalismo, fornecendo mão-de-obra e força militar sempre que estas eram necessárias às potências coloniais e capitalistas. Estes padrões de movimento são descritos e analisados por Geisen em termos de «sistemas de transferência de mão-de-obra». Por exemplo, o processo de manutenção da supremacia da Europa e do Atlântico Norte serviu também para regularizar determinados movimentos migratórios internos e externos — por exemplo, o fluxo de escravos para os países colonizados e no interior dos mesmos. Geisen analisa desenvolvidamente as cinco diferentes fases de tais migrações, desde a ascensão da Espanha e o início da colonização europeia do continente americano até aos diversos movimentos do pós-guerra no século XX.

O resto do capítulo aborda a relação entre a migração e o estado--nação e é de particular interesse para os estudiosos da área, tendo em conta a tendência para se considerarem os movimentos humanos apenas em termos de fluxos populacionais internacionais. De facto, o significado sociológico dos movimentos de cidade para cidade, de vila para vila e de aldeia para aldeia, etc., não deve ser ignorado. Dentro das nações, as políticas de migração tendem a ser contraditórias: frequentemente, as migrações são necessárias à manutenção de uma mão-de-obra adequada; porém, são desvalorizadas ou até olhadas com desconfiança — uma desconfiança renovada à luz da ameaça do terrorismo global. Para colocar a questão em termos mais coloquiais, os migrantes são muitas vezes necessários, mas nem sempre desejados.

Se as próprias fronteiras nacionais exercem de facto um efeito regulador decisivo sobre a migração, tal poderá verificar-se mais em termos de barreiras burocráticas do que de barreiras físicas; por detrás dos seus «muros», os governos utilizam o seu poder político-económico para encorajarem determinados tipos de migrantes e dissuadirem outros. Mas quem são os migrantes culturalmente adequados? De acordo com Geisen, a preferência por migrantes portugueses no Luxemburgo, por exemplo, devia-se em parte à sua fé católica. As próprias teorias da migração têm variado historicamente, sendo necessariamente diferenciadas em termos sociais, políticos e económicos. Isto deve-se, e não em último caso, ao facto de os migrantes possuírem uma multiplicidade de razões para os seus movimentos e estarem sujeitos à influência de uma multiplicidade de forças estruturantes, incluindo os sistemas burocráticos, e de situações subjectivas, o que exige uma perspectiva teórica multifocal. A análise da migração como um «sistema de transferência de mão-de-obra» é em si mesma baseada na noção marxista da mão-de-obra como uma mercadoria de troca. No «sistema global moderno» (Wallerstein), esta mão-de-obra abstracta está à venda. Ocorreu um afastamento histórico gradual da concepção do trabalhador como mercadoria (escravatura), em benefício da noção do trabalhador como um agente mais ou menos livre, servindo a migração como forma de suprir as carências de mão-de-obra onde quer que se verifiquem. Geisen introduz o conceito de capital de Bourdieu enquanto relação de poder num contexto social, distinguindo entre capital económico, capital cultural e capital social; do que podemos inferir que o processo de decisão de migração — com os movimentos de trabalhadores como parte do processo de «transferência de mão-de-obra» — é conduzido pela posse destes capitais. Por conseguinte, os «sistemas de transferência de mão-de-obra» não podem ser interpretados unicamente com base na economia, mas antes como um complemento da interconexão de processos económicos, políticos, sociais e culturais.

«International norms and refugees: the concentration camp world of the australian state», de Alastair Davidson, da Universidade de Tecnologia Swinburne, de Melbourne, apresenta uma análise esclarecedora sobre a recente «crise» de refugiados na Austrália; apesar dos níveis relativamente reduzidos dos pedidos de estatuto de refugiado por parte de estrangeiros ilegais (9450 em 1991, em comparação, por exemplo, com os 71 000 no Reino Unido), o governo australiano promulgou em 1992 leis draconianas que estabeleciam a detenção obrigatória de migrantes considerados «ilegítimos» e instituíam uma rede de campos de detenção para tais indivíduos. Isto incluiu o estabelecimento de campos offshore nas ilhas do Pacífico que têm sido alvo de muitas críticas. Davidson centra a sua análise crítica na situação dos «boat people» ilegais, tipicamente oriundos do arquipélago do sudeste asiático, que enfrentam uma complexa situação legal no que concerne a solicitarem asilo devido a práticas do governo australiano, como a redefinição do seu território nacional com vista a evitar obrigações legais. Assim, estes migrantes enfrentam o perigo de se tornarem civiliter mortuum, sendo efectivamente destituídos de quaisquer direitos; em consequência, Davidson relata casos de violação, abuso de crianças, fome e tortura.

Kathleen Weekley, da Universidade de Wollongong, Austrália, assina o ensaio «US-Philippines `special relations' revived? National borders and the war against terror». Estas circunstâncias, caracterizadas por uma renovada cooperação militar entre os dois países, fazem eco de uma era anterior em que os Estados Unidos mantinham acordos — e bases — militares nas Filipinas, mas agora com a intenção de, nas palavras do secretário da Defesa norte-americano Donald Rumsfeld, «desenvolverem um melhor trabalho no combate […] aos terroristas». À semelhança de Davidson, Weekley contextualiza a sua análise em relação à questão das fronteiras: estabelecidas, neste caso específico, como forma de protecção contra as diversas comunidades étnicas muçulmanas e/ou outras do sul das Filipinas. Significativamente, as incursões dos Estados Unidos nas Filipinas são consideradas em termos do seu carácter transnacional, mais do que em termos de uma ofensa à soberania nacional do país, sendo esta última questão cada vez mais irrelevante face ao discurso da guerra ao terror, pelo menos em termos de retórica.

«Gambling and the economic security of the american Indian: the case of the eastern band of Cherokees», de Anthony Andrew Hickey, da Universidade da Carolina Ocidental, analisa a questão da exploração e da pobreza numa das «colónias internas» dos Estados Unidos. Ao longo dos últimos anos, os casinos de jogo das tribos nativas norte-americanas tornaram-se uma importante resposta económica à pobreza. Contudo, o sucesso económico do jogo tribal é algo contraditório, com a riqueza concentrada num pequeno número de tribos e muitos fracassos financeiros absolutos. Hickey estuda o caso do Bando Oriental da Nação Cherokee, localizado na Carolina do Norte ocidental. A reserva permaneceu mergulhada na pobreza durante a maior parte do século xx, até à chegada do casino, que exerceu um efeito positivo sobre o desenvolvimento económico, apesar dos problemas ambientais que começaram a emergir como efeito secundário desse sucesso económico — por exemplo, a nível do trânsito e do grande crescimento urbano.

Katrin Kraus, da Universidade de Zurique, apresenta «Constructing `Europe' and the `European identity': the role of education in the process of european unification», analisando, em particular, a política de mobilidade. Kraus faz notar que a integração europeia tem sido um processo contínuo, com a mobilidade como parte do progresso integrativo, isto é, promovendo não apenas as línguas, o reconhecimento transnacional e os encontros «estrangeiros», mas também sentimentos de pertença à Europa; o estabelecimento de leis comuns e da união monetária, na forma do euro, constitui outro pilar auto-evidente da integração. A par da dinâmica exterior da integração, Kraus sublinha a importância dos desenvolvimentos de «integração mental» que ajudam a garantir a aceitação da união. Com estes dois esforços de integração, a União Europeia, enquanto organização supranacional, procura competir com as nações pela posição de referência na formação da identidade individual (e política). A política educacional «integrativa» tem incluído programas de acção de educação e formação, como o Sócrates e o Leonardo da Vinci, acções «programáticas», como o Ano Europeu da Aprendizagem ao Longo da Vida (1996) e o Ano Europeu das Línguas (2001), directivas gerais, o fornecimento de dados comparativos (através, por exemplo, do programa Eurídice) e o Fundo Social Europeu, entre outras medidas. A somar a tais iniciativas políticas está a ênfase numa «cidadania activa», o que significa que os cidadãos europeus devem descobrir e aceitar a Europa como uma área social e política de relevância para si próprios.

Gottfried Mergner, da Universidade de Oldenburg, Alemanha, explora «The `national heritage' of German colonialism: the continuing presence of the colonial past in germany.» Apesar de o império alemão ter possuído colónias, maioritariamente em África, durante apenas cinquenta anos, Mergner revela traços de discurso colonialista no presente. Estas incursões inspiradas pela religião e pela ideologia nacionalista de finais do século XIX e primeiras décadas do século XX— após a Conferência do Congo (1884-1885) — transportavam consigo a imagem estereotipada do «negro» e da «negra», manifestações que Mergner encontra na literatura infantil; de facto, o autor defende que o conceito de «negro» está intimamente ligado ao da infância na sociedade burguesa, com as crianças e os negros tipificados como criaturas da natureza que carecem de uma influência civilizadora — com a importante diferença de os segundos serem destinados aos níveis mais baixos da sociedade, ao passo que as primeiras são burgueses em potência. Actualmente, a manifestação mais popular deste fenómeno na Alemanha surge na forma do «Sarotti Negro», uma figura dos anúncios publicitários de uma conhecida marca de chocolates — o popular doce coberto de chocolate tem o nome de «beijo negro» (Negerkuss).

Na avaliação da utilidade desta compilação para os estudiosos da área podemos apontar como uma crítica óbvia o seu carácter ecléctico; certamente não existe uma relação directa, ou sequer indirecta, entre, por exemplo, a política externa dos Estados Unidos nas Filipinas e o discurso colonial da Alemanha. Contudo, já que o eclectismo é uma «falha» praticamente universal das antologias de vários autores, tal não é com certeza um defeito grave. Mais potencialmente enganadora para o leitor é a sinopse da contracapa, ao dar a entender que os ensaios do volume se centram nas questões da migração e das fronteiras no contexto do pós-11 de Setembro, quando, na verdade, apenas o artigo de Weekley o faz. Porém, alguns destes ensaios proporcionam informações úteis aos estudiosos da migração, particularmente em áreas especializadas para as quais escasseiam as análises aprofundadas; a exploração dos processos de tomada de decisão da migração para além do puramente económico (Hoerder e Geisen) e a análise do discurso da integração europeia (Kraus) são particularmente oportunas. A esta luz, a compilação deve ser entendida não tanto como uma antologia de ensaios sobre a migração, a mobilidade e as fronteiras per se, mas antes como uma série de artigos sobre questões relacionadas com este amplo tema.

David Cairns

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons