INTRODUÇÃO
A esperança média de vida da população mundial está a aumentar a uma escala global. Neste contexto, para a Organização Mundial de Saúde1 não existe uma pessoa tipicamente idosa. Em Portugal, segundo o Gabinete de Estatística e Planeamento2, a população idosa corresponde à faixa etária dos 65 anos e mais e tem tido tendência a aumentar, em consequência do aumento da longevidade e da decadência da natalidade. Em 2019, o índice de envelhecimento em Portugal era de 161,3% e em 2080, a população idosa no nosso pais irá corresponder a cerca de 37% da população total2,3 existindo atualmente em Portugal mais de 100 mil indivíduos institucionalizados em Estruturas Residenciais para Idosos (ERPI)4.
Com o aumento da população idosa, aumenta também a percentagem de indivíduos dependentes de terceiros para a satisfação das suas atividades de vida diária. O envelhecimento da população aumenta a necessidade por serviços de saúde. Contudo, dar resposta às diversas necessidades da população idosa constitui um grande desafio, visto que, mesmo sem doenças crônicas, podem apresentar alguma perda funcional. Daqui resulta que uma parte da população portuguesa se encontra permanentemente sob os cuidados de uma equipa multidisciplinar5.
Com o avançar da idade, todas as estruturas do organismo humano sofrem com o processo degenerativo levando à perda de função e capacidade, quer se esteja perante um processo de doença ou não. Os processos degenerativos mais comuns que afetam os idosos estão relacionados com a capacidade de ver, de ouvir e de deglutir eficazmente6. No contexto do processo de senescência, a dificuldade em deglutir é denominada de presbifagia6. Esta é, na maior parte das vezes, assintomática e resulta das alterações anatomofisiológicas das estruturas que envolvem o pescoço e a cabeça. A perda de massa muscular nesta região leva à regressão da laringe, ao aumento do período de apneia, ao risco de penetração e de acumulação de resíduos na faringe. Consequentemente, há redução da eficácia do tempo de progressão do bolo alimentar, atrasando assim o reflexo de deglutição. O envelhecimento afeta o processo de deglutição, quer na fase oral quer na fase faríngea. O hemisférico cortical responsável pela deglutição desenvolve, com o avançar da idade, mecanismos compensatórios limitando a atividade motora e sensitiva durante todo este processo. A presbifagia é, portanto, um processo fisiológico resultante do envelhecimento6,7.
A presbifagia foi reconhecida como uma síndrome geriátrica pela European Society for Swallowing Disorders e pela European Union of Geriatric Medicine Society, em 2016, atendendo à sua natureza multifatorial, por apresentar muitas complicações e ter uma taxa de prevalência de 60% em idosos institucionalizados7. A disfagia, de acordo com a 11ª revisão da Classificação Internacional de Doenças pode ser classificada como a dificuldade em deglutir, que pode ter como resultado alterações neuromusculares ou obstruções mecânicas. Divide-se em orofaríngea (associada à disfunção na faringe e esfíncter esofágico superiores) e esofaríngea (associada à disfunção do esófago)8. Assim, a disfagia não é considerada uma doença, mas sim uma condição clínica que coloca em risco a segurança da via aérea e a capacidade de manter as necessidades nutricionais do indivíduo, por dificuldade em deglutir alimentos líquidos e sólidos em quantidade suficiente para satisfazer essas necessidades. Surge muitas vezes associada a doenças neurodegenerativas como as doenças de Parkinson e Alzheimer e ao acidente vascular cerebral, situações estas cuja prevalência aumenta com a idade6,9,10 agravando assim o quadro de presbifagia que se vai instalando ao longo do processo de envelhecimento.
As principais complicações da disfagia incluem a má nutrição, a desidratação, as úlceras por pressão (UP) e problemas respiratórios. Adicionalmente, esta condição está associada a piores resultados em saúde, nomeadamente reinternamentos, períodos de hospitalização mais longos, maior taxa de morbilidade/mortalidade, elevados níveis de ansiedade e depressão e consequentemente diminuição da qualidade de vida11.
O principal objetivo da avaliação/rastreio da disfagia é permitir a sua identificação, o mais precocemente possível, para encaminhamento e acompanhamento adequados da pessoa. É consabido que rastreio precoce da disfagia está associado a uma diminuição da incidência de complicações respiratórias e este deve ser efetuado por enfermeiros que tenham formação adequada12. Atendendo às complicações inerentes a esta condição e elevada prevalência nos idosos, a sua identificação deverá ser uma prioridade nas ERPI. A gestão da disfagia impõe, assim, uma abordagem multidisciplinar que envolve enfermeiros, enfermeiros especialistas em reabilitação, médicos, nutricionistas, terapeutas da fala e os cuidadores informais13. No que concerne aos focos de atenção e diagnósticos de enfermagem, o compromisso da deglutição, o risco de aspiração e o compromisso nos autocuidados comer e beber e higiene oral são os mais afetados. De toda a equipa multidisciplinar, os enfermeiros são os profissionais de saúde que, idealmente, se deverão encontram em permanência nas ERPI. Neste contexto, os enfermeiros responsáveis por avaliar e assegurar a resposta na consecução das atividades de vida diária dos idosos institucionalizados, tendo, por esta razão, um papel fulcral na implementação de intervenções que previnam complicações, concretamente neste domínio10. Neste contexto, pelas suas competências específicas, os enfermeiros especialistas em enfermagem de reabilitação têm um importante contributo na reabilitação e recuperação funcional, traduzindo ganhos em saúde, concretamente tendo por foco a deglutição14.
Urge assim a necessidade de dimensionar esta problemática no contexto das ERPI portuguesas, uma vez que é escassa a evidência referente à prevalência da disfagia nas pessoas integradas nestas instituições. Neste contexto, foi desenvolvido um estudo cuja questão de investigação é: Qual a prevalência da disfagia em idosos institucionalizados?
METODOLOGIA
Este foi um estudo de carácter observacional, de prevalência. A técnica de amostragem foi não probabilística por conveniência. Os critérios de inclusão foram os idosos residentes nas ERPI convidadas, que aceitaram e consentiram à participação no estudo. Os critérios de exclusão foram os idosos que frequentam os Centros de Dia e de Convívio. A participação neste estudo foi voluntária e não acometeu risco para os participantes, sendo que o mesmo teve parecer favorável por parte da Comissão de Ética da Escola Superior de Saúde Norte da Cruz Vermelha Portuguesa - Parecer n.º 006/2021, Código: 2021.005. A realização do estudo foi igualmente autorizada pela direção das instituições participantes. Todos os preceitos éticos e legais aplicáveis à investigação foram cumpridos. Todos participantes forneceram o seu consentimento informado, escrito ou, na sua impossibilidade, foi obtido através do representante legal.
Aos enfermeiros das respetivas instituições, foi facultado um Instrumento de Recolha de Dados composto por duas partes: I - Dados sociodemográficos e clínicos; II - Rastreio da deglutição através do Gugging Swallowing Screen (GUSS). Na parte I - Dados sociodemográficos e clínicos - foi solicitado ao enfermeiro da ERPI a colheita dos seguintes dados: idade, género, comorbilidades, medicação habitual, internamentos hospitalares no último ano e o score, à data da recolha de dados, dos instrumentos de avaliação do risco de queda (Escala de Quedas de Morse), risco de desenvolvimento de UP (Escala de Braden), nível de independência para as atividades de vida diária (Índice de Barthel) e funcionamento cognitivo (Mini-mental State Examination). Na Parte II, foi solicitado ao enfermeiro que procedesse ao rastreio da disfagia através do GUSS, com a autorização da autora da versão portuguesa15. Na primeira parte deste instrumento, é realizada a avaliação preliminar com itens de teste de deglutição indiretos: vigilância, tosse e/ou pigarreio e deglutição de saliva; na segunda parte é realizada a avaliação direta da deglutição, com uma sequência de três subtestes com as consistências de semissólido, líquido e sólido, avaliando-se o tempo de deglutição, a presença de tosse involuntária (imediata ou tardia), sialorreia e alterações da qualidade da voz após a deglutição. Os testes são sucessivamente realizados e o insucesso na realização de um item da avaliação indireta ou de um item nos subtestes determina a interrupção do rastreio. O score varia de 0 a 20, com a seguinte classificação: 0 a 9 disfagia grave com alto risco de aspiração, 10 a 14 disfagia moderada com risco de aspiração, 15 a 19 com disfagia ligeira com risco de aspiração e 20 disfagia ligeira/sem disfagia sem risco ou com risco mínimo de aspiração, sendo que a versão portuguesa produz resultados semelhantes à versão original, é de simples aplicação pelo enfermeiro à cabeceira do utente, confiável e com sensibilidade adequada para orientar os profissionais de saúde para a necessidade de uma avaliação mais especializada 15.
Os dados colhidos foram inseridos e analisados através do programa estatístico IBM SPSS versão 23.
RESULTADOS
A colheita de dados decorreu entre maio e agosto de 2021 nas cinco ERPI convidadas, localizadas em território nacional, Portugal Continental e Ilhas. Num universo de 529 residentes nas referidas ERPI um total de 93(17,58%) participaram no estudo. A idade média dos participantes foi de 82,53±8,07 anos (mínimo 65, máximo 105) e 62(66,66%) eram do género feminino. A patologia mais prevalente nos participantes foi a hipertensão arterial e a medicação crónica mais utilizada foram os psicofármacos (tabela 1). Dos participantes, 34(36,56%) foram internados no último ano, sendo a causa mais frequente de internamentos a doença respiratória (tabela 2).
Patologia | n (%) |
---|---|
Hipertensão Arterial | 58(62,37%) |
Dislipidemia | 37(39,78%) |
Demência | 36(38,71%) |
Osteoartrose | 34(36,56%) |
Diabetes | 25(26,88%) |
Medicação | |
Psicofármacos | 75(80,65%) |
Anti-hipertensores | 43(46,24%) |
Anti-dislipidémicos | 39(41,94%) |
Anticoagulantes | 38(40,86%) |
Diuréticos | 32(34,41%) |
Motivo de Internamento | n (%) |
---|---|
Doença respiratória | 9(26,47) |
Queda | 6(17,65%) |
Infeção do Trato Urinário | 5(14,71) |
Doença cardíaca | 2(5,88) |
Doença renal | 2(5,88) |
Anorexia | 1(2,94) |
Ansiedade | 1(2,94) |
Hipoglicémia | 1(2,94) |
Alterações Neurológicas | 1(2,94) |
Tromboembolia Pulmonar | 1(2,94) |
Ferida Infetada | 1(2,94) |
Prostatite | 1(2,94) |
Acidente de viação | 1(2,94) |
Relativamente ao risco de queda, risco de UP, de independência para as atividades de vida diária e funcionamento cognitivo, obteve-se a seguinte caracterização dos participantes (tabela 3):
n ⱡ (%) | média±DP* | Mínimo | Máximo | |
---|---|---|---|---|
Risco de queda | 64(68,81%) | 43,08±34,84 | 0 | 90 |
Risco de UP | 64(68,81%) | 18,89±3,07 | 12 | 23 |
Independência para as atividades de vida diárias | 65(69,89%) | 43,08±34,84 | 0 | 100 |
Funcionamento cognitivo | 33(34,48%) | 16,49±8,82 | 0 | 30 |
ⱡ Não foram obtidos dados de todos os participantes.
*DP - desvio padrão
A aplicação do instrumento de rastreio da disfagia - GUSS - não resultou em nenhuma complicação imediata nos participantes. Os resultados da sua aplicação mostram que 56 (60,22%) são classificados com algum grau de severidade de disfagia/aspiração e 37 (39,78%) obtiveram um score de 20, sendo considerados disfagia ligeira/sem disfagia e sem risco ou com risco mínimo de aspiração15 (tabela 4).
DISCUSSÃO
A prevalência da disfagia nos participantes deste estudo é elevada. Os resultados permitiram igualmente caracterizar, do ponto de vista de fármacos mais utilizados e causas de internamento no último ano, os participantes.
Relativamente às patologias mais prevalentes nos participantes, estas vão ao encontro dos dados fornecidos pelo Instituto Nacional de Estatística 17 para a população residente com mais de 65 anos. Encontra-se, particularmente, semelhança na diabetes, hipertensão arterial e na dislipidemia. Quanto aos dados recolhidos relativos à medicação crónica, estes vão ao encontro dos achados de um estudo desenvolvido por Rosa 18, que envolveu 211 idosos de quatro ERPI da região da Covilhã.
Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística 19, um total de 314134 idosos com mais de 65 anos tiveram episódios de internamento hospitalar nos 12 meses anteriores à entrevista, o que corresponde a 13.8% do total da população residente em Portugal, com mais de 65 anos. Os achados desde estudo indicam que 35.35% dos idosos institucionalizados necessitaram de internamento hospitalar no último ano, cerca de 2.6 vezes mais em comparação com o total da população residente em Portugal com mais de 65 anos. Esta discrepância poderá ser justificada pela fragilidade da população institucionalizada em consequência das suas comorbilidades. As principais causas de internamento hospitalar em Portugal em idades superiores a 65 anos são: oclusão das artérias cerebrais, pneumonias, fraturas de colo do fémur, infeções do trato urinário e insuficiência cardíaca 20. Estes resultados vão ao acordo dos dados agora obtidos.
Um estudo internacional9 particularizou em Portugal uma prevalência da disfagia situada entre 10% a 20% em idosos institucionalizados em ERPI. Em França, Canadá, Bélgica, Estados Unidos e Reino Unido a prevalência situa-se entre 21% a 25%. O país com a maior prevalência de disfagia em idosos institucionalizados em ERPI foi a Polónia (48%) e os países com a menor prevalência foram Turquia (4%) e Hungria (8%)9. Outro estudo13 revelou uma prevalência da disfagia de 12.8% utentes em ERPI italianas e evidência proveniente da China Oriental21 demonstrou uma prevalência da disfagia de 31.1%. Por fim, um estudo diferente, realizado exclusivamente em ERPI portuguesas 22, revelou uma prevalência de 38.2%.
A elevada prevalência da disfagia agora encontrada, comparada com a obtida em ERPI portuguesas22 (38.2%), poderá ser explicada pelo maior nível de dependência e a utilização de distintas estratégias para o rastreio da disfagia, assim como a estratégia utilizada pelos autores do estudo internacional9 em que a disfagia foi determinada aplicando a questão dicotómica se o utente tem ou não disfagia. A resposta a esta questão seria obtida através dos registos médicos, onde pudessem constar problemas de deglutição, ou através do conhecimento prévio da existência de disfagia. Estes autores referem ainda que não foi providenciado aos profissionais de saúde das ERPI explicações/informações sobre o termo e definição de disfagia, o que poderá também explicar as diferenças encontradas. No estudo desenvolvido na China Oriental21 foi utilizado como instrumento de avaliação a versão chinesa da escala EAT-10. De igual modo, verifica-se um contraste significativo no nível de dependência dos idosos em comparação com o nível de dependência dos idosos incluídos neste estudo e que poderão explicar as diferenças encontradas em termos de prevalência da disfagia.
CONCLUSÃO
Neste estudo foi encontrada uma prevalência de 60,22%de disfagia em idosos institucionalizados. Não sendo as ERPI instituições primariamente dirigidas à prestação de cuidados de saúde, evidência de uma prevalência tão elevada tem sérias repercussões na organização e prestação de cuidados de saúde aos idosos institucionalizados. Mostra-se assim fundamental que nas ERPI sejam implementadas estratégias para a identificação precoce da disfagia e estratégias compensatórias. Estes resultados sugerem assim a necessidade de incluir nas ERPI enfermeiros especialistas em Enfermagem de Reabilitação, pelas competências específicas na implementação de estratégias de reabilitação, promovendo o atraso na progressão da disfagia e minorando o aparecimento de complicações, permitindo ganhos em saúde e diminuindo os custos associados ao tratamento destas complicações.
Este estudo tem limitações, nomeadamente a dimensão da amostra e a técnica de amostragem não probabilística, que impedem a generalização destes resultados, pelo que os mesmos deverão ser interpretados cuidadosamente. Por isso, devem ser replicados estudos desta natureza, de modo a se consolidar a evidência que sugere elevada prevalência da disfagia em idosos institucionalizados. A elevada prevalência da disfagia em idosos institucionalizados, para além dos custos diretos e indiretos resultantes das suas complicações, nomeadamente internamentos hospitalares por pneumonia por aspiração, tem graves implicações na qualidade de vida destes idosos.