Introdução
A violência doméstica afeta de forma significativa diferentes dimensões da vida da mulher, nomeadamente a social e a saúde (Alshammari, McGarry, & Higginbottom, 2018). Assumindo várias vezes a violência a forma de agressão física, estas mulheres acabam por recorrer aos serviços de urgência em resultado dessas agressões (Conselho de Ministros, 2013). Para além disso, e mesmo recorrendo com frequência aos serviços de saúde, estas mulheres não denunciam que são vítimas de violência doméstica por diversos motivos: atitudes negativas dos profissionais de saúde, dúvidas sobre a sua segurança e preocupações relativas às consequências da denúncia (Heron & Eisma, 2021).
Assim, o enfermeiro no serviço de urgência desempenha um papel de grande relevo na abordagem destas mulheres, quer na identificação quer no encaminhamento destes casos, já que muitas vezes este é o primeiro local onde as vítimas recorrem e onde é possível identificar a situação. Sendo este um tema pertinente e acerca do qual, em Portugal, não foi encontrada evidência científica sobre os conhecimentos, atitudes e barreiras dos enfermeiros dos serviços de urgência, torna-se importante identificá-los, permitindo ampliar o conhecimento sobre este tema e contribuir para a identificação de potenciais estratégias que permitam o empoderamento dos enfermeiros para a abordagem às mulheres vítimas de violência pelo seu parceiro no contexto dos serviços de urgência.
Neste contexto, o objetivo deste estudo é identificar os conhecimentos, atitudes e barreiras dos enfermeiros do serviço de urgência na identificação e encaminhamento da mulher vítima de violência doméstica.
Enquadramento/fundamentação teórica
A violência do parceiro íntimo é “um comportamento dentro de uma relação íntima que causa dano físico, sexual ou psicológico, incluindo atos de agressão física, coerção sexual, abuso psicológico e comportamentos controladores” (Organização Mundial de Saúde, 2012,p. 11). Esta definição aplica-se a todas as situações de violência pelos cônjuges e parceiros atuais e passados. Segundo a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), 2021, as pessoas envolvidas podem ser casadas ou não, ser do mesmo sexo ou não, viver juntas, separadas ou namorar. Mulheres vítimas de violência, seja ela física, emocional ou sexual, podem sofrer de problemas de saúde relacionados, como por exemplo infeção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana/Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (VIH/SIDA), lesões musculoesqueléticas, distúrbios de sono. No entanto, as consequências da violência doméstica não são apenas físicas, interferindo com a saúde mental das mulheres e a sua qualidade de vida, havendo muitas mulheres que sofrem em silêncio (Alshammari, McGarry, & Higginbottom, 2018; Silva et al., 2015). As repercussões destes comportamentos abusivos vão muito além da mulher, tendo consequências sérias nos seus filhos e, de forma mais abrangente, nas famílias, pelo que o papel dos profissionais de saúde é determinante no rastreio, identificação e gestão destas situações nas famílias afetadas, assim como na capacitação de famílias e comunidade sobre os efeitos perniciosos da violência doméstica (Walker-Descartes, Mineo, Condado, & Agrawal, 2021).
Em Portugal, a violência doméstica é considerada um crime público de acordo com o artigo nº152 do Código Penal (Lei nº19/2013, de 21 de Fevereiro). Dados relativos a Portugal apontam para uma média de 24 mulheres agredidas por dia, com especial relevo para a violência doméstica, que constituiu 75,4% de todos os crimes reportados à APAV em 2020 (APAV, 2021). Em 2020, a APAV apoiou 13 093 vítimas diretas, alvo de mais de 19000 crimes, dos quais 14854 por violência doméstica (APAV, 2021), Dentro desta problemática, foi implementado em Portugal um Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e de Género que assenta essencialmente nos pressupostos da Convenção de Istambul, tendo por âmbito a aplicação do circunscrito à violência doméstica e até a outros tipos de violência. Este Plano procura divulgar uma cultura de igualdade e não violência, tendo como objetivo principal tornar Portugal um país livre de violência. Apresenta-se estruturado em cinco estratégias, que são: prevenir, sensibilizar e educar; proteger vítimas e promover a sua integração; intervir junto do agressor/agressores; formar e qualificar profissionais e, também, investigar e monitorizar (Conselho de Ministros n.º 102/2013, 2013). Esta é uma situação que coloca a mulher em situação de particular vulnerabilidade e, pela sua natureza, é expectável que muitas destas mulheres recorram aos serviços de urgência (Conselho de Ministros, 2013). “O serviço de urgência tem por objetivo a receção, diagnóstico e tratamento de doentes acidentados ou com doenças súbitas que necessitem de atendimento imediato em meio hospitalar” (Administração Central do Sistema de Saúde, 2015, p. 9). Neste contexto, os enfermeiros destes serviços, “e integrados numa equipa multidisciplinar que presta cuidados especializados a pessoas portadoras dessas problemáticas no âmbito do desenvolvimento de modalidades terapêuticas (…) dão também o seu contributo com vista a estabelecer uma relação de ajuda com estas pessoas” (Marques, 2017, p. 23).
A evidência sugere que os enfermeiros, ao longo da sua formação, não recebem treino suficiente para lidar com estes casos, bem como saber reconhecer e identificar os mesmos. Os enfermeiros não sentem a confiança necessária para dar resposta a casos desta natureza, principalmente devido à pouca formação na área, medo de ofender e falta de habilidades comunicacionais (Alshammari, McGarry, & Higginbottom, 2018).
Resultados de uma revisão integrativa (Oliveira, Pereira, Almeida, Bastos, & Augusto, 2020), apontam no sentido de ser escassa a produção científica na área da violência doméstica em Portugal, principalmente no que toca à atuação dos enfermeiros dos serviços de urgência. A evidência disponível deixa claro que esta é uma problemática que necessita de maior aprofundamento e investigação. Assim, levantou-se a questão: “Quais os conhecimentos, atitudes e barreiras do enfermeiro do serviço de urgência perante a mulher vítima de violência doméstica?”
Metodologia
Para responder à questão de investigação, foi desenvolvido um estudo exploratório descritivo, transversal, inserido num paradigma de pesquisa quantitativa.
A população alvo deste estudo numa primeira fase foram os enfermeiros dos serviços de urgência. Inicialmente para a recolha de dados foram selecionadas duas instituições de saúde de grandes dimensões, com serviços de urgência. No entanto, apenas uma das instituições autorizou a realização do estudo. Os participantes que constituíram a amostra inicial, não probabilística de conveniência, foram aqueles que aceitaram colaborar no estudo de forma livre, informada e esclarecida. Num total de 60 enfermeiros do serviço participaram 21. Uma vez que apenas foi possível obter autorização de uma instituição e, no sentido de aumentar o número de participantes procurando reduzir dentro do possível o enviesamento dos resultados, foi posteriormente utilizada uma técnica não probabilística de amostragem em bola de neve, de modo a ser possível o acesso a mais participantes, através da rede de contactos de uma instituição de ensino superior. Os critérios de inclusão definidos foram consentirem explicitamente à participação no estudo e estarem a exercer funções no serviço de urgência há pelo menos um ano. Pretendeu-se assim, garantir que o profissional tivesse sido já confrontado com situações reais, de forma a poder contribuir de forma significativa para o estudo. Com esta técnica foram incluídos mais 38 participantes no estudo.
Para a recolha de dados foi utilizado um questionário de autopreenchimento online intitulado “Violência contra a mulher por parte do seu parceiro: opinião dos enfermeiros dos serviços de urgência”, adaptado do questionário “Violência Doméstica contra as mulheres: conhecimentos, atitudes e barreiras do enfermeiro de família” (Oliveira, Oliveira, Carvalho, Santos, & Torres, 2020), com a devida autorização dos seus autores.
O questionário apresenta 6 secções. Na secção 1 encontram-se as questões relativas aos dados sociodemográficos dos participantes, sendo constituída por questões de escolha múltipla e algumas questões de resposta aberta. Na secção 2, questiona-se os participantes quanto à formação na área da violência contra a mulher e utilizam-se questões de escolha múltipla. A secção 3 reporta-se a questões sobre o conhecimento relativo ao tema da violência contra a mulher e, para isso, os participantes têm de responder a questões de escolha múltipla e algumas de resposta aberta. A secção 4 é composta por questões acerca das barreiras para lidar com estes casos, identificadas numa lista e a serem numeradas por ordem de relevância para o mesmo. Na secção 5 é pedido ao participante que manifeste a sua opinião relativamente às afirmações colocadas referentes ao tema da violência contra a mulher e respetivos cuidados de enfermagem, utilizando uma escala tipo Likert de 1 (completamente de acordo) a 4 (completamente em desacordo). Na secção 6, são apresentadas questões de escolha múltipla e de resposta aberta relativamente às vivências a nível pessoal e profissional relativas a casos deste género. Para tratar os dados quantitativos recorreu-se ao programa informático SPSS, versão 25, e os dados qualitativos foram tratados através do QDA Miner 4 Lite.
O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética das instituições onde decorreu (CA-256/2020-0t_MP/CC).
Resultados
A recolha de dados foi realizada entre outubro de 2020 a janeiro de 2021. Participaram neste estudo 59 enfermeiros, sendo 83,05% do sexo feminino (n=49), com uma idade média de 35,12 ± 6,99 (mínimo de 24 e máximo de 53 anos). Quanto ao estado civil, 30,5% (n=18) eram solteiros, 62,70% (n=37) eram casados ou a viver em união de facto, 5,1% (n=3) eram divorciados ou separados e apenas 1 participante era viúvo. Dos enfermeiros que participaram no estudo, 62,70% (n=37) eram enfermeiros de cuidados gerais e 37,3% (n=22) tinham título de enfermeiro especialista.
Formação prévia
Quanto à formação prévia, 74,6% (n=44) dos enfermeiros referem nunca ter recebido formação sobre violência doméstica. Não recebeu apoio por parte da instituição onde trabalha para realizar formação na área cerca de 83,1% (n=49), sendo que 34,7% (n=17) identificam como razão para a falta de apoio o facto de a instituição não solicitar formação nesta área. Os resultados apontam que 65,3% (n=32) dos enfermeiros não demonstra curiosidade no tema ou não parece haver interesse por este tema no serviço onde exercem funções.
Conhecimento dos enfermeiros
Quanto ao conhecimento que os enfermeiros do serviço de urgência têm acerca da violência doméstica, 74,6% (n=44) referem conhecer a definição de violência contra a mulher e 52,6% (n=31) desconhecem a percentagem aproximada de mulheres portuguesas que sofrem de violência doméstica. Contudo, 100% dos enfermeiros que participaram neste estudo referem que os maus-tratos de mulheres por parte dos seus parceiros podem ocorrer em qualquer setor social, económico e educativo. Dos enfermeiros que participaram, 66,1% (n=39) referem que o principal motivo do homem praticar violência contra a mulher deve-se ao facto de ter presenciado situações de violência durante a infância.
Em questão aberta, foi solicitado aos enfermeiros participantes que identificassem quais os danos físicos, características psicológicas/emocionais e danos sexuais que já viram ou pensam estar presentes em mulheres que sofrem violência por parte do seu parceiro (Tabela 1). A frequência dos dados apresentada sugere a relevância atribuída pelos participantes em cada uma dessas dimensões.
Dos enfermeiros que participaram no estudo, 45,8% (n=27) referem não saber se no serviço onde exercem funções existem protocolos ou procedimentos definidos para a orientação de casos de mulheres vítimas de violência. Apenas 18,6% (n=11) referem que no seu serviço existem protocolos ou procedimentos definidos para a orientação destes casos. Em contraste, 35,6% enfermeiros (n=21) referem que não existem protocolos de atuação para estes casos na instituição onde exercem funções. Dos participantes, 66,1% (n=39) referiram conhecer alguma instituição para onde pudessem referenciar as vítimas de violência, sendo que as instituições mais mencionadas foram a APAV (n=32; 54,2%) e a PSP (n=3; 5,1%). Quanto ao conhecimento acerca de leis portuguesas que protejam as mulheres vítimas de violência por parte do seu parceiro, apenas 45,8% dos participantes (n=27) referiram conhecer essas leis, sendo que apenas 3,4 % (n=2) dos participantes identificaram corretamente quais.
Atitudes e Barreiras
Quanto às barreiras que os enfermeiros referem para identificar estas vítimas, 57,6% (n=34) assinalam a falta de privacidade como o maior obstáculo e 49,2% (n=29) a não existência protocolos de deteção destes casos no serviço onde exercem funções como outra barreira significativa. Quanto às dificuldades para encaminhamento destas vítimas, 54,2% (n=32) referem a falta de conhecimento sobre o tema como sendo a principal dificuldade, seguido da dificuldade em identificar e tratar dos casos (n=30; 50,8%). Quando questionados relativamente aos fatores que dificultam a deteção dos casos, 55,9% (n=33) referem o caráter privado da violência como sendo a principal dificuldade/barreira.
Para 66,1% (n=39) dos enfermeiros participantes, o enfermeiro tem o papel de identificar e dar o devido encaminhamento sempre que deteta casos de mulheres maltratadas pelo seu parceiro. 32,2% (n=19) refere ainda que os enfermeiros se interessam pela deteção desses casos, mas continuam sem atuar perante os mesmos. Dos participantes, 39% (n=23) referem que quando se deparam com uma mulher maltratada encaminham o caso para instituições que lhe ofereçam apoio especializado, enquanto 20,4% (n=12) diz apenas conversar com estas mulheres.
A maioria dos participantes (94,9%, n=56) referem que a violência que o parceiro exerce contra a mulher se reflete de forma muito importante sobre a sua saúde e 98,3% (n=58) refere até que, em situações extremas, pode ocasionar a morte da vítima. Dos enfermeiros participantes, 93,2% (n=55) são da opinião que os casos de mulheres maltratadas pelo seu parceiro não dizem apenas respeito ao setor jurídico, mas também ao da saúde. Quanto à existência de protocolos, 96, 6% (n=57) dos enfermeiros consideraram que seria útil para os enfermeiros do serviço de urgência a existência dos mesmos para deteção de casos de mulheres vítimas de violência pelo seu parceiro e 96,6% (n=57) considera que seria útil a identificação destes casos aquando da sua admissão no serviço de urgência, enquanto que 56% (n=33) dos participantes no estudo admite ser difícil identificar estes casos no serviço de urgência. Quando questionados acerca do seu interesse em participar num curso/formação sobre violência contra a mulher, 93,2% (n=55) dos enfermeiros que participaram neste estudo referem que estariam interessados em participar, caso este evento existisse num futuro próximo.
Apesar de ser uma minoria, 5,1% (n=3) dos participantes no estudo considera que os maus-tratos às mulheres não são um problema sério por serem incidentes isolados e deles não resultarem consequências importantes, não achando por isso necessária a existência de formação sobre a violência durante a formação do enfermeiro.
Dos participantes, 72,9% (n=43) consideram que a deteção de casos de mulheres maltratadas pelo parceiro deve ser uma das tarefas do enfermeiro e 69,5% (n=41) consideram que as questões sobre a violência devem ser incluídas na avaliação inicial.
Quanto à identificação dos casos de mulheres maltratadas pelo parceiro, 74,6% (n=44) refere que realiza perguntas especificas apenas quando suspeita que se trata de um caso. Assim, 61% (n=36) refere que já identificou casos de mulheres maltratadas pelo seu parceiro, e estes relatam que nos últimos 3 meses detetaram uma média de 1,4 casos (mínimo de 0 e máximo de 6). Quando questionados quanto ao tipo de conduta que têm quando identificam algum caso de violência, 66,1% (n=39) dos enfermeiros referem encaminhar os casos para profissionais e instituições especializadas e, destes, 59,3% (n=35) referem encaminhar para autoridades policiais. Em contraste, 20,4% dos profissionais (n=12) não sabem o que fazer neste tipo de casos. Quanto ao interesse na capacitação sobre o tema da violência doméstica contra a mulher, apenas 1 dos participantes (1,7%) referiu não ter interesse em participar. Neste âmbito, foi também pedido aos participantes, em questão aberta, que identificassem 3 temas que gostariam de ver incluídos nessa formação (tabela 2). A frequência dos dados apresentados sugere a importância atribuída pelos participantes a cada um dos temas.
Discussão
A maioria dos participantes relatam nunca ter recebido formação na área da violência doméstica contra a mulher, mas revelam interesse em aprofundar conhecimentos na área, e esta realidade é verificada também no estudo de Mendéz-Hernandez et al. (2003) e no estudo realizado por Oliveira et al., (2020), com enfermeiros de família em Portugal.
Num outro estudo realizado com enfermeiros que recebem mulheres vítimas de violência doméstica relata-se que a sua maior dificuldade é a abordagem comunicacional, já que para isso são necessários conhecimentos específicos na área (Giacomo, Cavallo, Bagnasco, Sartini, & Sasso, 2016). No estudo de Marques (2017), os enfermeiros relataram a complexidade da prestação de cuidados às vítimas de violência por parte do seu parceiro, e identificaram a necessidade de maior investimento e/ou aprofundamento nesta área, resultados estes que vão ao encontro aos resultados deste estudo.
Os enfermeiros fizeram alusão a diferentes tipos de danos físicos, psicológicos e sexuais provocados às mulheres vítimas de violência, com grande similitude com os relatados pelos participantes do estudo realizado por Oliveira et al. (2020). Já anteriormente no estudo de Mendéz-Hernandez et al. (2003), onde este questionário foi utilizado pela primeira vez, os participantes concordaram que a violência afeta significativamente a saúde destas mulheres e que os profissionais de saúde têm um papel importante na atuação perante estes casos, embora, apenas uma pequena percentagem, tome alguma atitude diante destes casos, o mesmo foi verificado neste estudo. Num outro estudo também realizado em Portugal concluiu-se que o papel dos enfermeiros nestas situações deverá passar pela sinalização, acompanhamento e encaminhamento da vítima, estabelecendo uma relação de empatia, segurança e empoderamento da vítima no serviço de urgência (Marques, 2017). Os profissionais acreditam que o principal motivo que leva um homem a praticar violência contra a sua parceira é o facto de ter presenciado situações de violência durante a infância, o que vai ao encontro do que tinha já sido verificado no estudo de Oliveira et al. (2020) com enfermeiros de família. No entanto, a evidência sugere que, embora a violência doméstica possa ser transmitida de geração em geração, apenas uma pequena parte dos agressores já foi vítima no passado ou assistiu a situações de violência na sua infância (Centro de Estudos Judiciários, 2016).
Existem algumas leis em Portugal que, de alguma forma, protegem as vítimas de violência doméstica, como demonstra a Lei nº71/2015, que explicita medidas de proteção à vítima, tais como proibições/restrições ao agressor de entrar em contato sob qualquer forma, frequentar lugares públicos onde a vítima esteja ou até mesmo a sua própria residência, e ainda proibição de aproximação da vítima até uma determinada distância (Lei nº71/2015, de 20 de Julho), mas que a maior parte dos participantes desconhece. No entanto, neste estudo, os participantes revelam que embora saibam que devem encaminhar devidamente estes casos, na maioria das vezes não o fazem devido ao carácter privado da violência e à falta de protocolos de atuação nos serviços onde exercem funções, referindo que estas são as principais barreiras no encaminhamento dos casos de violência doméstica contra a mulher, aliadas à falta de conhecimentos na área. À semelhança de um estudo realizado num hospital português com o objetivo de avaliar o nível de conhecimento dos enfermeiros sobre práticas forenses no intra-hospitalar, mais de metade dos participantes apontam a falta de protocolos de atuação para abordagem a vítimas de violência e que a sua existência facilitaria a intervenção eficaz dos enfermeiros (Ferreira, 2018). De salientar que as necessidades de formação identificadas pelos participantes como mais relevantes para a sua prática no contexto da violência doméstica corroboram as barreiras na identificação, encaminhamento e deteção de casos de mulheres vítimas de violência doméstica. Relativamente às entidades/instituições para encaminhamento das vítimas, mais de metade dos participantes identificaram a APAV como instituição de referência, reconhecendo assim o papel que esta associação tem desenvolvido junto da comunidade e organizações, incluindo órgãos de polícia criminal, cujas referenciações representam 20% do total de referenciações para esta associação (APAV, 2021).
Os enfermeiros dos serviços de urgência que participaram neste estudo concordaram que existe necessidade de aprofundar conhecimentos no que diz respeito à atuação perante casos de violência contra a mulher por parte do seu parceiro, pelo que praticamente todos estes profissionais revelaram interesse em participar em cursos/formações nesta área, tal como foi também apurado em estudos anteriores, em que os enfermeiros confessaram ter falta de preparação para atuar perante estas situações (Alshammari, McGarry, & Higginbottom, 2018). No estudo realizado no ano passado com enfermeiros de família foi também salientada esta necessidade de formação dos enfermeiros para lidar com casos de violência contra a mulher, uma vez que a maioria dos profissionais não sabem como atuar perante situações deste tipo (Oliveira et al., 2020) .
Conclusão
Uma grande percentagem dos enfermeiros dos serviços de urgência que participaram no estudo referem que os profissionais de saúde têm um papel fundamental na identificação e encaminhamento das mulheres vítimas de violência pelo seu parceiro, no entanto, a maior parte deles nunca teve formação nesta área e salientam a falta de conhecimentos sobre o fenómeno como sendo uma barreira para a sua atuação, corroborando resultados de estudos já desenvolvidos, quer a nível nacional, quer internacional. Reconhecem também como barreiras para a identificação destes casos a falta de privacidade e a falta de protocolos de atuação nos serviços onde exercem funções. Os resultados sugerem que a maior parte dos participantes não sabe como atuar quando se deparam na sua prática clínica com casos de violência doméstica contra a mulher, referindo que deveriam existir protocolos específicos de atuação nos serviços.
Uma vez que a violência doméstica se constitui como um problema de saúde pública no nosso país e sobre o qual existe pouca evidencia que permita delinear estratégias apropriadas, será importante o aprofundamento de estudos nesta área, no contexto dos serviços de urgência portuguesa, de modo a criar evidência e dimensionar adequadamente algumas das questões apontadas por este estudo. Este será um dos caminhos para promover a capacitação dos profissionais de saúde no que concerne a identificação e encaminhamento das mulheres vítimas de violência doméstica.
Este estudo tem limitações relacionadas com a dimensão da amostra, a técnica de amostragem e a predominância de género nos participantes, pelo que os resultados deverão ser interpretados tendo em consideração estas limitações.
Os resultados sugerem da necessidade de formação nesta área para os profissionais de saúde, bem como da necessidade de criação e implementação de protocolos específicos de atuação nos serviços de urgência, de modo a facilitar a intervenção dos enfermeiros nestes casos específicos.