Serviços Personalizados
Journal
Artigo
Indicadores
- Citado por SciELO
- Acessos
Links relacionados
- Similares em SciELO
Compartilhar
Revista Crítica de Ciências Sociais
versão On-line ISSN 2182-7435
Revista Crítica de Ciências Sociais no.105 Coimbra dez. 2014
DOSSIER
Expulsaram-me no deserto!
Entrevista com Pierre Delagrange*
Elsa Lechner*, Carlos Nolasco**, Joana Sousa Ribeiro*** e Pierre Delagrange****
* Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal elsalechner@ces.uc.pt
** Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal cmsnolasco@ces.uc.pt
*** Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal joanasribeiro@ces.uc.pt
**** Ativista e especialista sobre migrações
Centro de Estudos Sociais, Coimbra, 19 de abril de 2013
Delagrange é ativista pela defesa dos direitos humanos, fundador da Coletividade das Comunidades Subsarianas em Marrocos e signatário da Carta Mundial dos Migrantes. Camaronês nascido em 1977 com o nome de Kesseng à Beyeck, foi atleta de competição no seu país natal até se interessar pela situação dos migrantes subsarianos no Norte de África numa viagem a Marrocos. Nesta entrevista, Pierre Delagrange conta como se envolveu na causa dos direitos dos migrantes e relata a sua experiência de migrante e ativista em Marrocos, apresentando as razões da sua ação política e cívica. Foi cocoordenador de projetos multimédia no Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, consultor da CARITAS, dos Médicos Sem Fronteiras, da Associação Marroquina dos Direitos Humanos e realizador dos filmes documentários Terre des migrants (2012), Visages cachés (2013) e Sans papiers, sans clichés, libre voix, mieux informé (2013).
Pierre Delagrange foi convidado pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra no âmbito da projeção do filme documentário de Stefano Liberti e Andrea Segre, Mare chiuso, por iniciativa das investigadoras Iside Gjergji e Mariangela Palladino, do Núcleo das Humanidades, Migrações e Estudos para a Paz. A presença deste ativista camaronês no CES só foi possível depois de ultrapassadas as barreiras levantadas pelo Consulado Geral de Portugal em Marrocos.
A presente entrevista, realizada pelos organizadores deste dossier temático, pretende dar a conhecer a visão e versão de alguém que viveu por dentro as realidades dos migrantes subsarianos no Norte de África, e se empenhou na luta pela defesa dos direitos humanos desses migrantes.
Pierre Delagrange (PDL): Em Marrocos, prefiro ser tratado por Pierre Delagrange. Este nome não me rotula como camaronês, faz de mim um cidadão universal e permite-me integrar várias comunidades. Sou o presidente da Coletividade das Comunidades Subsarianas em Marrocos. No entanto, antes de ser presidente desta coletividade, fui tesoureiro de uma associação onde vi certas coisas que não batiam certo e decidi juntar-me a duas ou três pessoas para criar este grupo. Cheguei a Marrocos pela primeira vez em 2006, fiquei lá quinze dias e voltei para os Camarões. Durante aqueles quinze dias vi migrantes a mendigar, nunca pensei que houvesse negros em Marrocos. Em 2007, volto a Marrocos e decido ficar lá durante um mês em vez de quinze dias, já que tinha um visto de um mês. Durante a minha estadia, mudei de cidade e viajei muito para tentar perceber o fenómeno da migração. Porque é que há negros em Marrocos? O que é que eles fazem aqui? Porque é que deixaram o país deles para estar aqui? Informei-me, e com todas as informações fui para os Camarões e voltei para Marrocos em 2008. Decidi desta vez ficar um ano. A minha área de competência é a ciência experimental, portanto queria encontrar alguns cientistas marroquinos para não perder muito tempo e investir na aplicação prática, era preciso melhorar as minhas competências nas aulas de ciência experimental. Integrei logo uma associação marroquina que faz animações científicas, podia, ao mesmo tempo dedicar-me às questões das migrações. Um ano depois voltei para os Camarões porque cada ano tenho que voltar. Fiquei lá durante alguns meses e criei a associação de animação científica dos Camarões. Sete meses depois voltei para Marrocos, em 2010, e vi que havia várias associações marroquinas implicadas nas questões de migração por causa dos acontecimentos de 2005, em que morreram mais de quarenta pessoas na fronteira entre Ceuta e Melilla. Mais de trezentas pessoas tentavam entrar na Europa a partir da Espanha. A morte dessas pessoas levou à criação de várias associações de defesa dos direitos humanos, de ONG europeias como CARITAS, CEI, MSF que estavam sediadas em Marrocos. Essas organizações começaram realmente a implicar-se nas questões de imigração. Da nossa parte, não baixámos os braços. Queríamos mostrar que nós também existimos e que temos a capacidade de nos organizar para fazer alguma diferença. Montámos um projeto chamado A caravana de livre circulação que devia deixar Rabat e chegar a Dakar, no Senegal. Escrevemos este projeto para mostrar aos nossos amigos europeus, marroquinos e subsarianos o trajeto que um imigrante faz, para eles perceberem a experiência que fazem os imigrantes atravessando todos esses países num autocarro onde toda essa gente que morreu se encontrava. Fizemos este percurso durante cinco dias, dormimos na fronteira marroquina debaixo das tendas. Atravessámos a Mauritânia até ao Senegal. Ao sair da Mauritânia houve um atentado bombista mesmo depois de o nosso autocarro ter passado. Os passageiros perceberam logo que era arriscado atravessar a fronteira da Mauritânia. Quando se sai de Marrocos para a Mauritânia há bombas, e se sair pela estrada há minas disseminadas porque existem terroristas naquela parte do país. Terroristas islamitas que reivindicam os seus direitos, o que obriga o Estado da Mauritânia a colocar minas nas estradas para melhor os caçar e manter a segurança. Essa viagem abriu os olhos dos europeus perante os riscos que os migrantes correm para chegar a Marrocos pela estrada e mais ainda quando vão atravessar o mar para a Europa. Fomos para a Ilha de Gorée participar na assembleia mundial das associações que trabalham sobre questões migratórias e de solidariedade. Escrevemos a Carta Mundial dos Migrantes que é uma ideia de um tunisino, Tieloul, que vive há quarenta e dois anos em França. Reuniu-se no início com um marroquino para começar o projeto e na Ilha de Gorée reunimos durante quatro dias, endossámos a Carta para difusão. Queríamos propor e mostrar ao mundo que aquela Carta contém os princípios dos migrantes. Depois participámos no Fórum Social Mundial de Dakar, onde tivemos a oportunidade de apresentar a Carta. Uma semana depois, voltámos para Marrocos pelo mesmo caminho. Uma vez em Marrocos, decidimos criar o coletivo das comunidades que tenho a honra de presidir hoje. O objetivo era reunir todas as comunidades subsarianas presentes em Marrocos no intuito de defender os direitos de todas essas pessoas. Fiz as minhas investigações porque quis saber realmente o que se passava. Levei dois anos para viver a experiência, andei com um falso passaporte para ver como aquilo se passa, fui preso durante dezasseis dias. A minha família não sabia onde me encontrava, fui expulso no deserto em pleno inverno. Vi e senti a neve porque neva também em Marrocos tal e qual como estou vestido aqui hoje.
Elsa Lechner (EL): Estava sozinho?
PDL: Não, havia outros imigrantes que foram expulsos no deserto como eu.
EL: Como aconteceu esse episódio?
PDL: Fui preso no aeroporto de Casablanca alegando que eu tinha um falso passaporte camaronês, e eu sou camaronês. Bateram-me alegando que não sou camaronês.
EL: Isso aconteceu depois de 2006?
PDL: Sim, foi depois de 2006, aconteceu em 2008.
EL: Pergunto porque disse que foi pela primeira vez para Marrocos como atleta.
PDL: Sim. Foi procurando perceber as coisas que me encontrei no meio da multidão dos migrantes clandestinos, em situação irregular. Vivendo no meio dos migrantes clandestinos, confundiram-me com um deles, embora tivesse o meu passaporte válido, a polícia alegou que era detentor de um passaporte que não era meu. Disse que o passaporte era meu mas não acreditavam, insistiam em dizer que o passaporte não era meu e portanto deixava de ser camaronês.
EL: Então disseram que era de onde?
PDL: Disseram que era congolês, que fingia ser camaronês porque viram que o meu passaporte continha vários vistos, pelo menos dezassete. Expliquei-lhes que sou um atleta e que viajei muito. Essa é a razão pela qual o meu passaporte tem muitos vistos. Não acreditavam, pensavam que tinha roubado o passaporte pura e simplesmente porque fundi-me naquele grupo de migrantes para perceber a realidade deles. Pronto! Deixei-me levar para a cadeia. Depois fomos ao julgamento e o juiz achou que era inocente e decidiu que eu fosse deportado para o meu país de origem. Não foi o que aconteceu. Expulsaram-me no deserto, aí encontrei muitos migrantes e testemunhei muitas coisas que acontecem aos migrantes naquelas fronteiras.
EL: Como é a vida no deserto depois da expulsão? Como é a interação entre uns e outros?
PDL: Normalmente, segundo as leis marroquinas, se alguém for preso por falsificação de documentos como é o meu caso porque disseram que o passaporte não era meu tem quarenta e oito horas para ser expulso para o seu país de origem. No entanto, eu fui expulso no deserto. De acordo com as leis vigentes no país, depois de preso temos quarenta e oito horas para sermos expulsos. No primeiro dia faz-se um processo verbal ou atas, e no segundo é que procedem à expulsão. O meu caso foi diferente. Não fui expulso logo no prazo delimitado pela lei. Esperaram ter mais migrantes clandestinos que foram buscar nas celas das outras cidades do país para os reunir numa esquadra de polícia. Entretanto as pessoas detidas não têm o direito de informar a família.
EL: Confiscam os documentos, os telemóveis
PDL: Confiscam tudo desligam os telemóveis, não se tem a possibilidade de falar com ninguém.
EL: O dinheiro...?
PDL: o dinheiro, confiscam tudo.
EL: Objetos pessoais?
PDL: Objetos pessoais como relógios porque pensam que se pode fazer qualquer coisa na cela. Pode ir buscar o dinheiro para comprar qualquer coisa para comer já que ninguém vai visitar. Fiquei lá durante dezasseis dias
EL: Dezasseis dias na cadeia?
PDL: Sim, depois desses dias fui expulso.
EL: E como é que se processou a expulsão?
PDL: O processo é o seguinte: durante a tarde, autocarros vêm buscar os clandestinos que levam até à fronteira da Argélia. Nesses autocarros são algemados em pares e apanham os autocarros de transporte público com passageiros que viajam até à cidade da expulsão. Depois deixam os passageiros marroquinos e levam os clandestinos à estação da outra cidade que fica na fronteira, aí deixam os clandestinos na esquadra de polícia que fica na fronteira. Os oficiais de polícia daquela esquadra esperam pela noite para colocá-los num pequeno carro e vão encontrar os militares da fronteira Marrocos-Argélia. Os polícias deixam os clandestinos com os militares que se encarregam de acompanhá-los até à fronteira da Argélia. Esses militares têm armas e paus na mão. Não disparam com as armas mas batem com os paus e mandam-nos correr. Têm que correr para a frente mas em frente não há nada, é só o deserto. Tive a sorte de encontrar um oficial de polícia em Casablanca que me avisou: Se te disserem para ir sempre em frente, se fores, vais-te perder e ninguém te vai encontrar, vais morrer; à esquerda é Marrocos, à direita é a Argélia e em frente é o deserto. Portanto se te mandarem correr sê mais rápido do que os outros e vai para a esquerda porque depois de um dia de marcha voltas para Marrocos e assim salvas-te. Entretanto, quando íamos para a fronteira no autocarro encontrei dois jovens marroquinos que foram expulsos de França, eram clandestinos. Pagaram uma caução para serem libertados. Ao conversar com eles, vi que tínhamos a mesma história. Contaram-me como é que foram presos pelos polícias franceses no local de trabalho e como foram expulsos. Simpatizei com um deles que era oriundo de uma cidade perto da fronteira, e quando me viu disse-me que me ia ajudar a voltar para Marrocos.
EL: Qual é a distância?
PDL: Mais de setecentos quilómetros porque são seis horas de viagem pela estrada. Colocam os clandestinos num autocarro normal com os outros passageiros. Quando chegamos à fronteira, os militares marroquinos batem-nos com os paus e correm atrás de nós para sairmos dali. Entretanto na fronteira da Argélia, há militares argelinos escondidos que começam a disparar logo que veem clandestinos a entrar no território deles. Podem se ver os vestígios das balas de kalashnikov junto dos pés de quem pisa aquele lugar.
EL: Há pessoas que ficam amputadas?
PDL: Sim. Há apenas dois meses mataram três pessoas que entraram no território argelino por engano. Quando os militares marroquinos viram isso fugiram. Os militares argelinos foram buscar os corpos está a ver o que se passa aí? Nessa situação as famílias não sabem se os seus filhos ainda estão vivos ou mortos. Nunca viram a sepultura dos seus filhos, porque não podemos provar nada, não podemos provar que foram mortos pelos argelinos, nem que os marroquinos os expulsaram.
EL: Há testemunhos?
PDL: Sim, mas ninguém acredita nesses testemunhos, esses testemunhos verbais não são credíveis. Está a ver? E então, nós a associação dos migrantes subsarianos estamos a fazer quase a mesma coisa que o vosso projeto com os multimédia, câmaras distribuir aos migrantes para tornar pública a questão da migração. Queremos dar a cada migrante uma máquina fotográfica ou uma câmara para fotografar ou filmar aquilo que vivenciam para poder mostrar às pessoas que não acreditam que essas coisas existem.
EL: Quando saíram da prisão, os polícias entregam-vos os documentos, os telemóveis, os objetos pessoais?
PDL: Não entregam os documentos. Podem, talvez, entregar os telemóveis se não lhes forem úteis.
EL: Pode-nos contar a sua passagem pelo deserto?
PDL: Quando escapei no deserto, encontrei um nigeriano que já tinha sido expulso pelo menos dezassete vezes com quem ultrapassei muitas barreiras com objetos contundentes, várias pessoas ficaram feridas. Felizmente gosto de experimentar muitas coisas, até no meu país fazia várias experiências, portanto estou sempre preparado para poder andar sem sofrer qualquer tipo de ferimentos. Consegui ultrapassar essas provas sem lesão. Paguei vinte euros a este nigeriano, que conhecia muito bem a zona, para me levar à primeira cidade marroquina depois da fronteira. Quando cheguei a essa cidade disseram-me que havia uma residência universitária de estudantes marroquinos que costumava abrigar migrantes na minha situação sem a polícia saber. Podia ficar aí até poder sair e ir ao centro da cidade. Fiquei lá e encontrei vários outros migrantes. Antes disso, dormi na fronteira e estávamos no inverno. Fazia muito frio. Para me proteger do frio, cortei caixas que coloquei dentro da minha roupa como uma segunda roupa, nas minhas calças... Protegi também as minhas orelhas porque o vento no deserto é tão forte que parece que quer cortar as orelhas. Dormi naquela zona durante dois dias.
EL: Ao ar livre
PDL: Sim, num rochedo. Preferi dormir no rochedo porque tinha medo dos escorpiões. Não podem chegar ao cume do rochedo.
Carlos Nolasco (CN): Comeu alguma coisa?
PDL: Não comi nada. Há alguns migrantes que levam consigo frutos silvestres e havia alguns camponeses marroquinos que nos davam pão caseiro bem rijo. Depois de dois dias, decidi avançar porque tinha acabado de vivenciar aquilo que queria. Eram coisas que eu quis experimentar. Houve um grupo de migrantes que me convidou para atravessar o mar até Espanha. Recusei porque não quis atravessar, só quis experimentar uma coisa. Voltei para a residência onde fiquei durante seis dias e dormi num campo de basquetebol ao ar livre. Tinha cento e vinte euros, gastei vinte com o guia, sobraram cem.
EL: Euros? Não é em moeda local?
PDL: Não, era euros que eu tinha.
EL: Onde encontram euros?
PDL: Fiz o câmbio no meu país. Tinha três empregos quando estava lá.
EL: O que fazia?
PDL: Fui responsável por uma discoteca que tinha vinte e quatro empregados. Fui responsável por um ginásio e chefe de segurança da mulher de um ministro. Fazia esses três trabalhos mas passava mais tempo como segurança da mulher do ministro. Nos fins de semana estava na discoteca.
EL: Era segurança?
PDL: Era mais bodyguard.
EL:Bodyguard?
PDL: Sim porque havia dois seguranças e três bodyguards que me auxiliavam no meu trabalho, eu era o chefe deles.
EL: Esse trabalho de bodyguard foi consequência do desporto que praticava ou foi o trabalho de bodyguard que o levou ao desporto?
PDL: Acho que foi o desporto que originou tudo, porque comecei a praticar desporto na escola primária, o meu pai foi militar e gostava de fazer exercício. Quando ele acordava de manhã para fazer desporto, eu ia com ele. Foi assim que apanhei o vírus. Aos dezoito anos fiz o primeiro concurso para entrar na legião francesa, chumbei. Fiz o concurso para entrar na legião marroquina mas não esperei os resultados e fui para a escola de polícia onde fiz dois anos de formação de guarda-costas. Fiz um ano de formação na polícia científica para saber como se faz um inquérito como detetive, a balística, a grafologia, a falsa assinatura, escrita falsa, fisionomia, ler os sinais da cara de uma pessoa. Graças a isso trabalhei com o ministério da Justiça e da polícia científica. O nosso trabalho consistia em resolver os crimes que não eram resolvidos pelos polícias. Fazíamos as investigações e entregávamos as conclusões à polícia que procedia às detenções. O desporto que praticava ajudou-me muito a integrar esse meio. Essas atividades ajudaram-me também a poder ser guarda-costas, gerir o ginásio e as discotecas. Com a conta bancária recheada, consegui viajar.
EL: É um país grande...
PDL: Sim é um país bastante grande.
EL: Quantos habitantes?
PDL: Hoje em dia, temos vinte milhões de habitantes. Depois dessas viagens através do país, decidi comprar um bilhete de avião. Nunca tinha andado de avião portanto quis viajar de avião. Procurei um país onde podia ter acesso facilmente a um visto. O Benim ofereceu-me as condições, visto de um mês, hotel Apanhei o avião e fui para o Benim. Foi assim que comecei a visitar África. De Cotonou, fui para Lagos na Nigéria, Acra no Gana, Lomé no Togo, Burkina Faso, Niamei no Níger. Essas viagens foram financiadas com o dinheiro que amealhei nos três empregos que eu tinha. Depois voltei para o Gana onde permaneci durante um mês, assisti à Taça Africana das Nações, descobri Marrocos graças à sua equipa de futebol. Entretanto fazia competições de desporto, fazia parte da seleção camaronesa de desporto de luta (combate). Um dia, avisaram-nos que o campeonato africano ocorreria em Marrocos. Pensei, já vi a equipa de Marrocos jogar no Gana: vou dar o meu melhor para fazer parte dos atletas que vão à competição. Foi assim que fiz o meu possível para ganhar o meu lugar e ganhei a medalha de bronze nessa competição. Essa medalha deu-me ânimo para querer ir ao campeonato mundial e participei em todas essas competições.
EL: E deixou esse mundo de sucesso para ir conhecer as sombras do mundo?
PDL: Às vezes a nossa curiosidade leva-nos a fazer coisas que não estávamos à espera. A minha levou-me a procurar saber porque é que os migrantes nigerianos mendigavam em Marrocos, encontrar soluções. Como é possível isso acontecer? Como podemos parar isso? Levei cinco anos a pensar, encontrar soluções, a maneira como posso resolver esse problema no meu país. Não só em Marrocos mas também no meu país. Comecei a fazer um projeto com alguns amigos.
EL: Há pouco disse que experimentou usar um falso passaporte. Como foi isso?
PDL: Felizmente quando usei o falso passaporte, nunca tive problemas com os polícias, nunca passei por um controlo com ele. A única coisa que fazia era levantar dinheiro transferido por alguns amigos que viviam fora de Marrocos. No entanto, quando voltei para os Camarões passando pelo Benim usei aquele passaporte. Fiz a viagem sem ser interpelado. Pensei: Uau, é possível viajar assim com um falso passaporte . Está a ver ?
EL: E quem fabrica esses falsos passaportes?
PDL: São passaportes que se podem encontrar com pessoas nas ruas. São oportunidades é como os vendedores de perfume nas ruas, compra esse perfume e não vai voltar a ver o vendedor porque é um vendedor ambulante. Para nós subsarianos, é fácil ter acesso ao passaporte português e viajar com ele, mas vocês não podem andar com o passaporte camaronês. Você não pode ser camaronesa mas eu posso apresentar-me como português. Está a ver é incompreensível, não é? Você pode até ter a nacionalidade camaronesa mas é difícil de acreditar, Uau, camaronês de origem portuguesa. No entanto há congoleses que têm a nacionalidade camaronesa porque passaram doze anos lá. De acordo com as leis camaronesas, depois de sete anos de residência pode pedir a nacionalidade, portanto muitos congoleses, burundineses, ruandeses depois desse tempo pedem para ser camaroneses. Acolhemos mais de seis mil refugiados ruandeses depois do genocídio, que são hoje camaroneses. Se formos ver bem, dos vinte milhões de habitantes dos Camarões, apenas doze milhões são camaroneses de origem, os outros não o são. Não há nenhuma distinção entre nós lá, vivemos em harmonia com eles. Partilhamos tudo, opiniões políticas, sociais, económicas. É pena não ser a mesma coisa nos países do Magrebe. É triste ver como os marroquinos rejeitam os argelinos, como os tunisinos rejeitam também os marroquinos é triste tudo isto. No entanto, na Europa como em França, ou na Bélgica, no parlamento ou nas câmaras municipais, há marroquinos como presidentes de câmara. No parlamento belga encontramos deputados marroquinos, são realmente integrados. A Bélgica e a França aceitaram-nos até nos altos cargos da administração. Os Camarões fazem a mesma coisa com os seus imigrantes, infelizmente os países do Magrebe não o fazem.
EL: Porquê?
PDL: Por causa das barreiras. Eu disse como não podemos mudar a política deles de um dia para outro, temos que aprender o que eles fazem para saber o que devemos fazer. É isso que ando a fazer com os meus irmãos subsarianos. Aprendemos a viver com os marroquinos, a integrar-nos, vai ajudar-nos a poder viver no outro país, ou viver nos nossos países. Aqueles que têm o desejo de ir para a Europa podem aprender informática, por exemplo, para poder integrar o mercado de trabalho ou ser competitivo no seu país de origem. Fazemos a sensibilização junto dos nossos associados para eles aprenderem uma profissão. O objetivo deles não deve ser andar de um país para outro. Os congoleses, por exemplo, não deixam o país deles para irem para a Europa, vão para os países vizinhos. Deixam o país deles por causa da guerra. E o primeiro país vizinho que encontra são os Camarões, é por essa razão que param lá doze anos. E depois pensam assim: pronto já que tenho a nacionalidade agora posso ir procurar outra coisa, e viajam de país em país até chegar a Marrocos. Em Marrocos, são informados que podem ir até Espanha e aí abandonam todos os seus passaportes e arriscam. Mas porque é que fazem isto? É a questão que em Marrocos continuamos a colocar. Vão para fazer o quê? O que é que fazem em Marrocos? O que é que contam fazer na Europa? O que é que não podem fazer nos vossos países? São essas perguntas que nós colocamos. Eu, por exemplo, sei o que eu quero. Passei cinco anos da minha vida para tentar perceber o fenómeno, tentar encontrar soluções em detrimento do meu corpo. Às vezes, as famílias poupam dinheiro para ajudar essas pessoas que vêm para Marrocos a poder atravessar o mar rumo à Europa.
EL: Quanto custa isso? Quanto tempo é que leva? E qual é o meio de transporte? A rede?
PDL: Não existe nenhuma rede.
EL: São iniciativas individuais ou familiares?
PDL: A primeira rede que eu encontro é o mapa. Por exemplo se quer percorrer Portugal, vê no mapa qual comboio é preciso tomar para chegar a tal sítio. Quando apanhar o autocarro, o táxi é isso que eles fazem. Pegam num mapa e mesmo que não saibam ler, há sempre alguém que conheça o caminho, que os informa sobre o trajeto.
CN: Os passageiros sabem os riscos que correm?
PDL: Não sabem. Nem imaginam, são sempre surpreendidos com o choque da realidade. Acabam por se encontrar numa situação em que pagam a viagem ao condutor e no dia combinado para a viagem, encontram-se com cinquenta pessoas numa 4x4 para atravessar o deserto.
EL: Cinquenta? Então o condutor é um oportunista?
PDL: Claro. Se tivesse o computador mostrava-lhe algumas fotos onde se podem ver pessoas suspensas nos carros, são mais de cem pessoas.
EL: Quanto é que pagam?
PDL: Pagam muito dinheiro, quinhentos ou mil euros.
EL: Para fazer uma viagem com cem outras pessoas naquelas condições?
PDL: Pois!
EL: Quantos dias dura a viagem?
PDL: Na maior parte das vezes dois ou três dias. Por exemplo, uma viagem dos Camarões até Marrocos, sem parar, demora quinze dias.
EL: Camarões-Marrocos quinze dias sem parar? Mas param para fazer algumas necessidades, comer
PDL: Claro que param para essas necessidades, mudar os pneus
EL: Homens, mulheres, crianças
PDL: Sim, mas a viagem por avião são seis horas. Eu nunca fiz o trajeto de autocarro, não tomei este risco, fui de avião com a companhia aérea Air Maroc. Nem todos sabem que a viagem de avião dura apenas seis horas e é mais barata. A viagem pela estrada é três vezes mais cara do que comprar um bilhete de avião.
EL: Fazem a viagem (cara) pela estrada porque sabem que vão ser presos no aeroporto?
PDL: Acho que não é por medo de serem presos no aeroporto, é que antes de fazerem a viagem nem sequer sabem que estão a fazê-la. Às vezes, não se dão conta que estão a sair do país. Às vezes saem só porque os amigos os encorajaram. Para fazer uma viagem é preciso prepará-la. É preciso ter um passaporte, um visto, ver o itinerário, quanto dinheiro vai gastar, o clima, a língua, a moeda do país está a ver? Mas eles não procuram todas essas informações.
EL: Qual é então a motivação?
PDL: A motivação é, na maior parte das vezes, a falsa informação que lhes chega.
EL: São pessoas que aproveitam a ignorância dos outros
PDL: Aproveitam a ignorância dos outros mas essas pessoas também são ignorantes porque são incentivadas por alguém que já fez a viagem. Há pessoas que estão em Marrocos que nunca viajaram de avião portanto não sabem que é mais barato, não conhecem o processo para obter um visto para entrar num país estrangeiro. Encontramos pessoas que obtiveram um passaporte em Marrocos e queriam um visto, mas foi-lhes pedido que saíssem do país para voltar a entrar antes de obter o visto de entrada. Assim, guineenses e marfinenses que têm a oportunidade de entrar em Marrocos têm este problema. Saem pela fronteira da Mauritânia pensando que vão poder entrar sem problema mas não se dão conta que é preciso ter o carimbo de saída para mostrar que realmente saíram do país. Não se informam do processo de saída e de entrada em diferentes territórios e ficam presos num no mans land, um território de cinco quilómetros entre a Mauritânia e Marrocos. Não podem ir para a Mauritânia nem para Marrocos. A situação é tão dramática que fazem S.O.S. São turistas que nos informam da situação e nós contactamos as autoridades dos dois países para tentar resolver a situação. Então é a falta de informação que deixa muitas pessoas naquelas zonas. Às vezes, tenho que gastar o meu dinheiro numa viagem de três dias para ir até à Mauritânia para estabelecer contactos caso aconteçam outras situações, poderíamos resolvê-las. Encontrei os responsáveis da Associação Mauritana dos Direitos Humanos na Tunísia, discutimos esta situação para que eles também possam intervir naquela zona. Portanto acho que é um problema de comunicação, temos que informar as pessoas sobre o processo de obtenção de visto. Mostrar as desvantagens de se encontrar numa situação daquelas dando o exemplo de pessoas que a vivenciaram. Estamos neste momento a preparar uma campanha de sensibilização, de informação e de comunicação nos países subsarianos que constituem o viveiro do fluxo migratório. Não negamos a migração dos países do Magrebe. Marrocos por exemplo tem mais imigrantes na Europa do que os países da África subsariana. Há muitos marroquinos, egípcios, tunisinos na Europa. Viram o número de tunisinos que entraram na Europa depois da revolução? Muitos tunisinos chegaram à Itália, até saiu na comunicação social. Antes disso nunca houve um barco com mais de mil e duzentas pessoas. Nunca! Mas havia mais de mil tunisinos na Itália. No entanto, quando subsarianos chegam no número máximo de seiscentos, os média ocidentais e magrebinos sobrevalorizam os factos. Pergunto: porquê? Porque passaram pelo Magrebe antes de chegar à Europa e não estão contentes. A União Europeia quer travar o fluxo migratório em Marrocos, mas não pode. Não pode impedir as pessoas de se descolocarem. Não somos árvores com raízes para ficar parados num sítio. Portanto, acho que é melhor tentar melhorar as condições da migração, informar melhor as pessoas. Mostrar as vantagens tanto para os migrantes como para o país acolhedor. Marrocos beneficia da migração. As pessoas vão perguntar: Como? Os migrantes em Marrocos não trabalham. Recebem dinheiro da família, dos amigos. Onde é que gastam aquele dinheiro? Em Marrocos. As ONG que podiam sediar-se na África subsariana ficam em Marrocos, criam empregos para os marroquinos. Os fundos de apoio que a União Europeia proporciona a essas ONG vão para aos bancos de Marrocos, esses fundos são gastos lá. Os senhorios ganham também com a renda das casas alugadas por essas ONG e os trabalhadores estrangeiros pagam e vivem assim.
EL: Conhece Já fez negócios aí?
PDL: Conheço. Já.
CN: Os polícias marroquinos têm um comportamento diferente com os cidadãos comuns?
PDL: De acordo com as investigações e a minha experiência, acho que existem dois tipos de polícias: uns são claramente racistas e os outros não conhecem as leis sobre os direitos humanos. Porém, os chefes de polícia conhecem essas leis, mas como eles não vão ao terreno, só sabem dos abusos dos agentes quando é tarde de mais. Vão saber por exemplo que os seus elementos cometeram detenções arbitrárias, violências físicas. Houve um caso que ocorreu no bairro chamado Cacadu, é um bairro social, onde dois diplomatas conversavam com um estudante subsariano. A polícia marroquina chegou e levou os três para controlo de identidade. O título de residência do estudante era vermelho, não foi acusado. Os títulos de residência dos diplomatas eram amarelos, foram acusados de falsificação e foram levados para a esquadra de polícia. Preparavam-se para os mandar para o deserto nas vinte e quatro horas seguintes, pura e simplesmente porque são pretos. Se fossem brancos não iam ser tratados desta forma.
EL: O que aconteceu depois?
PDL: O estudante é que nos informou da situação e nós contactámos as autoridades diplomáticas. O embaixador ligou ao chefe de polícia para o informar da situação e ficou escandalizado. Que merda é que os seus elementos fizeram!. Chegou à esquadra para libertar os diplomatas, essa situação quase criou um incidente diplomático. Pensam que esses polícias queriam fazer o trabalho deles? Mas o que é que lhes faltou? A informação.
EL: Isso é o racismo em ação
PDL: É isso mesmo. Como são pretos automaticamente têm falsos documentos, devem ser expulsos.
CN: Como é que a população em geral se comporta com os imigrantes?
PDL: A população em geral não é fundamentalmente racista. O racismo existe em todos os países, até nos Camarões existe.
EL: Nos Camarões o racismo é contra quem?
PDL: Nos Camarões é diferente, não é um racismo baseado na cor da pele. É mais entre as diferentes etnias, culturas e sobretudo de desconfiança Há etnias que são reconhecidas como a elite intelectual económica e quando falam com pessoas de outra etnia, há uma certa desconfiança do género querem-me tirar aquilo que eu tenho, entende?
EL: Estereótipos?
PDL: Exatamente, mas em Marrocos é mesmo o racismo baseado na cor da pele.
EL: Qual é o papel das religiões nisso?
PDL: A religião é determinante. Por exemplo se não és muçulmano tens dificuldade em ser aceite em alguns serviços. Até na mesquita, quando chega um subsariano eles se afastam enquanto estão a adorar Deus.
EL: Qual é a religião dominante nos Camarões?
PDL: Acho que é dividido, metade muçulmana e metade cristã. O norte é muçulmano e o centro é cristão. As duas religiões coabitam sem problema e é possível fazer um casamento misto.
EL: Os migrantes subsarianos que ficam suspensos durante vários anos no Magrebe, onde praticam os cultos?
PDL: Esses migrantes frequentam a religião que tinham. Os católicos têm capelas em Marrocos onde podem ir. Eu por exemplo vou rezar naquela capela e faço parte do coro.
EL: Na igreja não há racismo?
PDL: Não há racismo na igreja porque não há marroquinos cristãos. São europeus os cristão em Marrocos.
EL: Não há marroquinos cristãos?
PDL: Não há, é impossível, é proibido pela lei. Podem ser cristãos na Europa mas lá não. É proibido pela lei, é mesmo proibido falar de cristianismo com um marroquino. Se os polícias te apanharem a falar da Bíblia com um marroquino podes ser preso. Os cristãos são os subsarianos, os europeus, filipinos, asiáticos Os subsarianos frequentam as grandes capelas construídas pelos franceses, italianos Aqueles que são testemunhas de Jeová vão à missa num local alugado onde se encontram todos os domingos. Quer seja na Tunísia quer seja na Mauritânia é a mesma coisa. A lei proíbe mesmo a evangelização dos muçulmanos pelos cristãos nesses três países onde estive. No entanto, a lei não proíbe a evangelização dos cristãos pelos muçulmanos. Portanto um muçulmano pode-te converter em muçulmano mas tu não tens o direito de o converter em cristão (risos). Não tens o direito de lhe dizer que a religião dele está errada em tal aspeto e a tua está correta está a ver?
CN: Há concorrência entre os subsarianos e os marroquinos na migração para a Europa? Porque os marroquinos também querem sair
PDL: A questão não é saber se os marroquinos querem migrar para a Europa, já migram. São muitos a migrar todos os dias.
EL: São clandestinos?
PDL: São. Não sei se viram a notícia. O rei de Marrocos convocou o embaixador de Espanha para falar do naufrágio de um barco que transportava migrantes clandestinos. Podemos ver num vídeo como o navio espanhol fez naufragar o barco marroquino. Houve muitos mortos, o que levou Marrocos a apresentar queixa num tribunal em Espanha. Quer dizer, se não houvesse mortos, ninguém falaria do assunto e esses clandestinos estariam na Europa. Quando os marroquinos e os espanhóis afundam os barcos dos subsarianos, as imagens e vídeos não comovem ninguém. Os polícias espanhóis mandam os barcos de volta para Marrocos, para os marroquinos levarem os clandestinos subsarianos para o deserto. E ninguém faz queixas no tribunal. É aí que não concordo com os diplomatas subsarianos em Marrocos porque não fazem nada, não servem para nada.
EL: Por que é que não fazem nada?
PDL: Não fazem nada porque pensam não ter o poder para o fazer. Porém, quando uma jovem italiana foi detida com um grupo de clandestinos, ela ligou ao marido da Mariangela, Sebastien, um amigo francês que trabalha comigo. A italiana ligou-lhe e passou a chamada à mulher, que é italiana, para ela poder falar com ela. A jovem italiana explica-lhe que está a ser ameaçada pelos polícias juntamente com os clandestinos numa zona de acesso a Espanha. A Mariangela ligou ao cônsul italiano que por sua vez ligou à jovem italiana. Pediu-lhe para entregar o telefone ao polícia para poder falar com ele. Nas horas seguintes a jovem foi libertada. Então por que é que as nossas autoridades não podem fazer a mesma coisa?Por que é que os outros têm essa influência e nós não? Porquê essa falta de respeito?
EL: Já tentou ter uma entrevista com os diplomatas camaroneses?
PDL: Já.
EL: O que é que aconteceu?
PDL: Já falei com diplomatas camaroneses, malianos, senegaleses, burquinabês, guineenses e da Costa do Marfim para ver o que fazer para terem a mesma influência dos diplomatas italianos. Disseram-me que há acordos bilaterais que foram assinados com as autoridades marroquinas e que não podem defender pessoas que entraram clandestinamente no território, blabla Disse, está bem não podem fazer nada para esse tipo de pessoas, mas e os outros que já cá estão? Por exemplo, houve um estudante guineense que foi selvaticamente apunhalado, morreu. Os assassinos nunca foram encontrados. Por que é que o cônsul da Guiné não insiste em encontrar os criminosos? Houve uma estudante camaronesa que foi violada por onze marroquinos numa faculdade. Por que é que o consulado de Camarões não faz nada para deter os criminosos? Fui obrigado a informar a Associação dos Direitos Humanos de Marrocos para tentar resolver essa situação.
EL: E a Amnistia Internacional?
PDL: A Amnistia Internacional não tem conhecimento da situação.
EL: Mas está presente em Marrocos?
PDL: Está, mas está controlada pelos marroquinos. É preciso ter marroquinos corajosos e com vontade de querer manter limpa a imagem do país, porque vemos Marrocos como país turístico, acolhedor, país onde se pode estudar depois da França. Agora se os estudantes que chegam são violados, violentados pelos marroquinos já não vão querer ir para lá. Não vão fazer estudos de borla, há fundos, bolsas que vão para os cofres do Estado graças a esses estudantes. Recenseei mais de dezassete países da África subsariana: Madagáscar, Cabo Verde, Angola, Camarões, Mali, Senegal todos esses países investem muito dinheiro na formação dos seus estudantes.
EL: Depois da Primavera Árabe como está a situação?
PDL: Depois da Primavera Árabe, o fluxo migratório mudou. Agora são os magrebinos que imigram mais, podemos ver os tunisinos, argelinos, egípcios que atravessam Marrocos para a Europa. Já vi polícias marroquinos a expulsar jovens argelinos que foram apanhados com clandestinos subsarianos na fronteira argelina.
EL: Mas os marroquinos são também africanos
PDL: Pois, mas são eles que nos habituaram a esses termos (risos). Às vezes quando fazem a distinção entre africanos e marroquinos, nós fazemos a pergunta: o que é que se passa? Depois ficamos a saber que no sistema educativo deles, no mapa, mostram apenas o Magrebe e dizem que o Sul do Saara é o vazio.
EL: Então na linguagem, no imaginário marroquino África não aparece?
PDL: Não. Para eles só existe o Magrebe. Na cabeça deles não são africanos.
EL: Para os marroquinos o Magrebe é um espaço suspenso na geografia?
PDL: Exatamente, pensam assim. É só agora que o Rei os sensibiliza para conhecer a África subsariana, pois iniciou a cooperação Sul/Sul. Fez umas viagens à África subsariana, visitou o Gabão, o Senegal, a Costa do Marfim para mostrar aos marroquinos que eles têm que manter uma relação e trabalhar com o Sul para poder desenvolver o continente a que pertencem. Infelizmente os jovens marroquinos pensam que não estão na África. Não são africanos, então são o quê? Para eles, africano rima com pretos. Se quiserem podem dizer África branca, mas África negra é África na mesma. (risos)
CN: Os europeus ficam comovidos com os vídeos e documentários sobre a migração clandestina. O filme1 que vimos ontem
PDL: Se vir o filme da jovem italiana vai ficar o dia todo sem comer, vai chorar. Eu não consigo ver aquele filme duas vezes.
CN: Qual é peso emocional desses filmes na vida dos migrantes clandestinos?
PDL: Não ficam surpreendidos porque costumam ver isso ao vivo.
EL: Sabem o que se passa.
PDL: Pois, é o dia a dia deles. Porém quando vejo aquele filme, fico triste porque tenho a sensação de não ter feito bem o meu trabalho. Fico chocado por ver um africano magrebino violentar um outro africano simplesmente porque a União Europeu quer que seja o seu polícia. É triste, é mesmo triste. Quando encontro marroquinos que vivem na França ou na Bélgica, dizem que são bem tratados pelos negros, sentem-se à vontade com os negros porque são discriminados pelos europeus. Os europeus rejeitam-nos, têm medo deles. Percebe? Os europeus preferem lidar com os negros do que com eles, porque são vistos como terroristas. Os europeus pensam: posso acolher o negro, parece inocente, o país dele não está desenvolvido Os magrebinos para obterem um emprego são obrigados a aliarem-se aos negros. Foi a mesma coisa que os dois marroquinos que encontrei durante a minha expulsão no deserto me disseram. Foi um ganês que os ajudou a encontrar um emprego. No dia em que foram presos pela polícia francesa, o ganês não foi preso, embora estivesse em situação clandestina. É triste para eles quando estão na Europa, é triste para nós quando estamos no país deles. No entanto, não estamos contentes quando vemos como são tratados. Não nos satisfazemos de os ver tratados assim na Europa, mas eles tratam-nos assim no país deles, já não sabemos o que pensar. Podemos pensar que se calhar os europeus têm razão, mas será que eles têm razão de nos tratar da mesma maneira? Estão a ver como é que é a balança? Portanto, disse que as autoridades marroquinas devem tomar cuidado com o fluxo migratório, tratar bem os migrantes que lá vivem porque esses migrantes vão participar na construção do país deles. Hoje em dia, Marrocos está a instalar bancos, telecomunicações (Maroc Telecom), Wafabank em alguns países subsarianos. Se esses subsarianos conseguem entrar na Europa e tirar um curso e voltar para o país de origem e encontrar os marroquinos nos países deles, podem tornar-se terroristas. Vão pensar assim esses marroquinos trataram-me tão mal, vão pensar em vingança, e a primeira coisa que podem fazer é meter bombas nas agências dos bancos e telecomunicações marroquinas.
EL: E os diplomatas não pensam no assunto?
PDL: Pois não pensam no assunto. Falei com vários migrantes, alguns com o pé partido, os outros com o braço partido. Disseram-me que quando voltarem a cruzar um magrebino, se vão vingar.
EL: Então é o ódio que se cria?
PDL: Um ódio que está a ser desencadeado. E é uma coisa alimentada pelas autoridades, porque o marroquino comum não se importa com as coisas do Governo. Quando, por exemplo, um subsariano vai fazer queixa de agressão na polícia, não há nenhuma resposta. Isto significa que as autoridades não levam a sério a queixa.
EL: A nível político, não há nenhum partido que se preocupe com a questão migratória?
PDL: O partido que está no poder fingiu interessar-se, mas depois arrumaram o assunto. Há um outro partido que criou o sindicato dos trabalhadores imigrantes em Marrocos o primeiro sindicato. É esse partido que apoia o sindicato. Quando vejo as coisas, tenho a sensação que os partidos políticos, quer o partido no poder quer o outro partido, querem aproveitar o sindicato para fins eleitorais. Querem fazer como François Hollande. Durante a campanha eleitoral tinha palavras bonitas e os marroquinos que têm a nacionalidade francesa votaram nele. É a mesma política que querem aplicar, infelizmente não a fazem bem.
EL: Os subsarianos votam lá?
PDL: Não, e se calhar nunca vão votar lá, mas há subsarianos que têm empresas lá.
EL: E mesmo assim não podem ter uma participação na vida política?
PDL: Não, não têm.
EL: Então participam na economia mas não podem na vida política?
PDL: Exatamente. Há muitos que têm empresas mas para criar uma empresa é preciso casar-se com uma marroquina. A empresa fica no nome da marroquina.
EL: Os casamentos mistos são aceites, então.
PDL: Alguns casamentos são aceites se o subsariano aceitar ser muçulmano ou se já é muçulmano, mas com os cristãos não há hipótese.
EL: E os filhos dos subsarianos?
PDL: Pois. Houve problemas com essas crianças porque não tinham nenhuma nacionalidade.
EL: Nem uma nem outra?
PDL: Às vezes, têm a nacionalidade subsariana e por causa disso a embaixada dos Camarões em Marrocos proibiu esse tipo de casamento, porque passando alguns anos depois do casamento a marroquina pode pedir a nacionalidade camaronesa e a criança adquire a nacionalidade camaronesa. A marroquina tem direito à nacionalidade camaronesa mas o marido não pode ter acesso à nacionalidade marroquina, nem a criança tem direito à nacionalidade marroquina. Só agora é que o rei promulgou uma lei que permite que as crianças desses casamentos tenham direito à nacionalidade.
EL: Nem o jus soli pode ser aplicado a essas crianças que têm mães marroquinas?
PDL: Nem pensar. Imagine as crianças que nasceram lá! Essas crianças só podiam ter a nacionalidade do pai. O pior é que as crianças ficam sem nenhuma pátria.
EL: Há muitas crianças assim?
PDL: Há.
EL: Frequentam a escola?
PDL: Não. Vão para as creches das ONG como a Fondation Occident-Orient. É uma associação marroquina que faz o possível para que essas crianças tenham o direito à educação.
EL: Em que língua são dadas as aulas?
PDL: Em francês e árabe. A CARITAS também tem uma escola onde se ensina o francês a essas crianças.
EL: Imagino que no meio urbano essas divisões (entre cores, religiões, classe profissional ) sejam mais visíveis.
PDL: É mesmo visível. Apenas um grupo de jovens é que quer mudar as coisas aprendendo francês e inglês. Vão ter com os subsarianos para praticar o francês e o inglês. Com este contacto caem todos os estereótipos os pretos são canibais que tinham acerca dos pretos. Dão-se conta de que foram enganados pelo país.
EL: Acusam os negros de canibalismo?
PDL: Sim, mas depois apercebem-se de que não é verdade. Começam então a conviver. As raparigas é que são mais abertas e curiosas. Elas apercebem-se que os subsarianos as tratam com mais atenção e querem logo casar com eles.
EL: Estava mesmo a pensar que a questão do género estava ausente da nossa conversa. Como fazem as mulheres subsarianas para suprir as suas necessidades? Encontram trabalho?
PDL: As mulheres encontram muitas dificuldades em viver e integrar-se lá. Algumas ONG como CARITAS, EDI fundações é que tentam ajudar essas mulheres em ter uma certa autonomia financeira. Ajudam-na a criar pequenos negócios como restaurantes onde se fazem pratos africanos tanto para os africanos como para os europeus. Outras são costureiras, fazem camisas africanas para nós; outras são cabeleireiras. Encontramos mulheres da Costa do Marfim e senegalesas que têm a sorte de trabalhar como empregadas em casas dos europeus e dos marroquinos. Os marroquinos que viveram na Europa e têm vivenda preferem o trabalho das subsarianas do que das marroquinas porque pensam que as marroquinas lhes podem trazer problemas ou até roubar; com as subsarianas não encontram esse problema porque se elas roubarem é considerado modo de se sustentar.
EL: Pierre, podíamos ficar horas e dias a fio para falar do assunto, é um privilégio estar a falar consigo e direi que é um momento histórico estamos comovidos.
Joana Sousa Ribeiro (JSR): Podemos publicar a entrevista? Não há problemas?
PDL: Claro, podem.
EL: Vai estar no website daRevista Crítica de Ciências Sociais2 e doSujet dans la Cité.3
PDL: A única coisa que eu quero é mostrar às autoridades marroquinas as falhas que deixam passar em vez de tentar revolvê-las. Essas falhas podem ter um efeito negativo no futuro porque quando os estudantes não acabam os estudos por causa da violência física, não é bom. É uma perda também para os marroquinos. Quando os estudantes guineenses vão renovar os títulos de residência e os polícias guardam os passaportes deles e os expulsam pela fronteira, esses estudantes voltam para Marrocos e já não encontram os passaportes, isto é grave. Acho que se as leis são mudadas ou aplicadas, no que diz respeito às queixas dos migrantes, muitas coisas mudaram mas essa negligência está a manchar a imagem do país. Portanto gostava que Marrocos acordasse.
EL: Podemos contactar o embaixador de Marrocos em Portugal e ter uma entrevista com ele
PDL: Sim o embaixador tem que saber porque fui vítima de discriminação da parte de uma senhora
EL: Ah, isso no Consulado de Portugal em Marrocos
PDL: Sim ela pegou no meu dossier e pediu-me para eu voltar na semana seguinte para entregar outros documentos, fiz o que ela me pediu: vou lá às 9h
EL: Pierre, quando a funcionária me disse que entregou falsos documentos e que representa um alto risco migratório, o que é que está por detrás, do seu ponto de vista?
PDL: É um ódio racial, é pura discriminação porque ela não tem poder de decidir se o documento é falso ou não. As autoridades marroquinas aprovaram a autenticidade dos documentos, mas quem é ela para não os reconhecer perante as mesmas autoridades marroquinas?
EL: Então de onde vem a desconfiança?
PDL: A única razão é o ódio racial, é um preto, tem que ser odiado, esmagado.
EL: É racismo institucionalizado?
PDL: Pois é!
EL: Não há outra razão?
PDL: Não há. Porque são documentos autentificados pelas autoridades.
EL: A ação da polícia é ilegal?
PDL: É mesmo. É só para mostrar que são capazes de fazer a mesma coisa comigo. São as consequências do militantismo.
EL: Estigmatizam os militantes?
PDL: Claro. Portanto quando os seus contactos disseram que foi difícil, acho que é porque há pessoas que travam as coisas, conhecem as minhas atividades, sabem que venho estar convosco. Não querem que eu vos venha dar essas informações. Era preciso que vocês usassem os grandes meios para a obtenção do meu visto. Quando obtive o visto, pensei assim: vou ser seguido nos meus movimentos por um polícia à paisana. Não me espanta. Na rua é difícil mas eu sei que há pelo menos um polícia à paisana que segue todos os meus movimentos. Quando o cônsul me entregou o visto, ele disse-me: Olha que te estou a dar um visto Schengen. Entende o que quer dizer?
EL: Foi o próprio que lho entregou?
PDL: Foi e disse-me que era um visto Schengen, eu não preciso de saber isso. A mensagem oculta é essa: podes ir até França ou Bélgica, fugir e esconder-te onde quiseres. Quer ter uma razão para continuar a estigmatizar os subsarianos de Marrocos. Vão dizer: Viram, a Universidade de Coimbra insistiu para entregar o visto a este senhor, afinal fugiu, tínhamos razão. Nunca vão ter razão porque vou voltar, vou fazer a cópia do meu passaporte e vou ter com o cônsul para lhe dizer cá estou eu, porque assinei um compromisso, tenho um país. Vim com a bandeira do meu país, vou tirar foto com ela. Quando voltar vou mostrá-la ao cônsul, não sou nacionalista, mas gosto do meu país. Posso fazer muitas coisas em Marrocos, no Benim, no Congo. Sei que há muitas coisas que estão por fazer em Marrocos, muitos subsarianos sofrem muito, portanto acho que o meu contributo está em África. O que é que vou fazer na Europa? Trabalhar num restaurante, num hotel, numa agência da Amnistia Internacional porque tenho alguma experiência em questões migratórias? Não, prefiro propor um projeto que faz mexer as coisas em África. Não vou pedir um visto e depois fugir. Fugir para quê?
EL: Pois faça-lhes a pergunta. É pertinente.
PDL: É triste, é a imagem que têm de nós. Vou fugir com a minha namorada que é belga e viver na Bélgica. Tenho casa em Marrocos e vou fugir para quê? A luta que faço há tanto tempo vai ser abandonada assim? De que serviram todos esses sacrifícios? Qual a mensagem que vou deixar? Gastei muito dinheiro e levei cinco anos da minha vida para aprender coisas que não se ensinam nas universidades. Hoje, vários estudantes vão ter comigo durante três meses para fazer as suas teses. Têm várias fontes, mas sabem que a pessoa indicada para lhes fornecer certas informações sou eu. Não estou a vangloriar-me, mas sei o que faço, sei aquilo de que falo, sei onde fui procurar todas essas informações que os outros não têm, à minha experiência. Vivenciei as coisas, portanto sei que conselhos dar aos migrantes estudantes com cartão de residência e aos europeus que lá vão. É triste dizer que vou fugir.
EL: Vamos continuar a trabalhar juntos para tornar público esse preconceito, esse racismo.
PDL: Gostava de falar com o cônsul.
EL: Teríamos muito gosto em telefonar
PDL: Pensam que vou manchar a imagem da Universidade de Coimbra porque querem ter razão. Lá está, vocês insistiram, ameaçaram
EL: Não, não ameaçámos.
PDL: Mas é isso que dizem, que a Universidade fez pressão para me dar o visto.
EL: Ninguém fez pressão nenhuma. Simplesmente telefonámos para perguntar o que se passava. Tudo foi cordial, correto. Até a linguagem não foi essa.
PDL: Pois, mas eles alteram-na assim. Tudo isto é triste. Se eu tivesse intenção de fugir, podia continuar atleta e depois de um campeonato mundial assinar um contrato num país e viver lá. Deixei de ser atleta profissional, participei em campeonato mundial, ganhei medalhas. Posso assinar um contrato como atleta profissional na Europa, mas não o faço. Dedico-me à migração, acho que isso deve interpelar as pessoas. Gasto o meu dinheiro nesta causa, é uma vontade pessoal de querer mudar alguma coisa. É por essa razão que agradeço à Universidade de Coimbra, ao CES. Honestamente fizeram o que muitos ainda não fizeram. Quero que os outros saibam que podemos tornar públicas algumas realidades, correr riscos e tomar decisões.
EL: Quais riscos?
PDL: Riscos de convidar um responsável subsariano que, para eles, pode fugir. Para eles é um risco.
EL: Nunca tomámos isto como um risco porque não vemos a realidade com os mesmos óculos. Não seria nosso problema se o Pierre decidisse fugir. Fomos coerentes de acordo com as nossas convicções. Aquilo que fizemos agora é mais importante. Para nós, é o início de uma possível consciencialização. Nós acreditámos em si. Se fugisse estaria a trair-nos a nós também.
PDL: A partir desta experiência sabem o quanto é difícil mandar vir um subsariano. (risos).
EL: Muito obrigada Pierre.
NOTAS
* Entrevista realizada no âmbito do projeto Pesquisa das migrações e abordagem biográfica: construindo um trabalho em colaboração no contexto português (PTDC/CS-ANT/111721/2009 FCOMP-01-0124-FEDER-014442), financiado com fundos FEDER através do Programa Operacional Factores de Competitividade - COMPETE e por Fundos Nacionais através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia - FCT.
1 Mare chiuso (2012), de Stefano Liberti e Andrea Segre.
3 Cf. entrevista em francês em http://www.lesujetdanslacite.com/1/entendre_voir_712918_0.html#pr_1596270