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Cadernos de Estudos Africanos
versão impressa ISSN 1645-3794
Cadernos de Estudos Africanos no.36 Lisboa dez. 2018
ARTIGO ORIGINAL
Produção e Circulação de Estereótipos sobre os Africanos nos Registros Fotográficos da Sociedade Colonial Alemã (1909-1939)
Production and circulation of stereotypes about Africans in the photographs of the German Colonial Society (1909-1939)
Naiara Krachenski
Universidade Federal do Paraná, Rua Gen. Carneiro, 460, 7º andar, Ed. Dom Pedro I, Curitiba, Paraná, Brasil, nkrachenski@gmail.com
RESUMO
Procuro refletir neste artigo como os regimes de representação são formados e operam a partir da cultura visual e, em especial, busco discutir a política de visualidade da Sociedade Colonial Alemã. Afirmo, primeiramente, que a utilização de estereótipos no trabalho incessante e repetitivo de determinada prática representacional em fixar um significado único sobre certo tema é um dos pilares para a produção e manutenção de tal tentativa. No caso aqui apresentado, trabalho com a noção de “olhar etnográfico” na produção visual da alteridade absoluta do sujeito africano. Em um segundo momento, procuro evidenciar como significados que se pretendem estanques sofrem importantes flutuações semânticas. Finalmente, apresento de que forma estas imagens circulavam no meio da política imperialista alemã do século XX.
Palavras-chave: imperialismo alemão, visualidade, estereótipos, fotografia, colonialismo, África
ABSTRACT
I aim to reflect in this article how the representational regimes are formed and operate from the visual culture and, especially, I try to discuss the German Colonial Society visual politics. I claim, in the first place, that the use of stereotypes in the incessant and repetitive work of certain representational practice to determine an exclusive meaning about certain theme is one of the basis to the production and reproduction of such effort. In this case, I work with the concept of ‘ethnographical gaze’ in the visual production of the absolute otherness of the African subject. Secondly, I aim to point how the meanings that are thought to be rigid suffer important semantic changes. Finally, I present in which ways those images circulated amidst the German imperialist politics of the twentieth century.
Palavras-chave: German imperialism, visuality, stereotypes, photography, colonialism, Africa
Olhando rapidamente para as fotografias que seguem (figuras 1, 2, 3 e 4), mesmo que elas estejam inicialmente descontextualizadas, o observador contemporâneo reconhece aí alguns traços que lhe são de alguma forma familiares e que lhe permitem inferir, ainda que superficialmente, duas ou três afirmativas a respeito de tais imagens: este observador não se furtaria em dizer logo de início que estas fotos são de alguma região do continente africano e que representam eventos cotidianos de povos nativos que ali vivem; talvez este observador ficasse na dúvida, no entanto, em afirmar qual o período em que essas fotografias foram tiradas.
A partir deste e de outros conjuntos de imagens fotográficas, pretendo fazer neste texto uma reflexão sobre o porquê de julgarmos conseguir identificar tão prontamente imagens que nos são até então desconhecidas; quais são os mecanismos da visualidade que atuam e que compartilhamos neste jogo de reconhecimento e diferenciação. Pensarei tal questão atrelada a outra que me é ainda mais cara: quais os papéis desempenhados pelo estereótipo visual na formação de um imaginário duradouro sobre uma determinada temática no caso, África e quais foram os papéis do estereótipo nos diferentes momentos de produção e circulação destas imagens em específico.
As quatro imagens que formam o conjunto acima são parte de um extenso arquivo visual da Sociedade Colonial Alemã (Deutsche Kolonialgesellschaft DKG) que reúne não só fotografias, mas também pôsteres, cartazes, tabelas, mapas e materiais de propaganda confeccionados por esta instituição durante todo o seu período de atuação. A Sociedade Colonial Alemã foi uma instituição que nasceu em 1884 da fusão de duas entidades privadas já existentes: a Associação Colonial (Koloniaverein, 1882) e a Sociedade para a Colonização Alemã (Gesellschaft für Deutsche Kolonisation, 1884). No entanto, apesar de seu caráter privado, a DKG possuiu apoio de políticos alemães durante toda a sua existência, tendo como presidentes, por exemplo, o príncipe Hermann Hohenlohe-Langenburg (1887-1894), Johann Albrecht (1895-1920), Theodor Seitz (1920-1930) e Heinrich Schnee (1931-1936), todos políticos ligados às questões coloniais. A DKG foi extinta apenas em 1943 devido ao contexto da Segunda Guerra Mundial. A Sociedade Colonial Alemã tinha como objetivos em sua gênese a ampliação do interesse nacional pelo colonialismo, a solução dos problemas coloniais e a manutenção da relação dos alemães no ultramar. Entretanto, a Sociedade não foi desfeita com a perda dos territórios coloniais em 1919 pelo Tratado de Versalhes, mas manteve-se ligada à política nacional alemã até o período do nacional-socialismo.
De maneira ampla, importa-me pensar qual foi a política de representação adotada pela Sociedade Colonial Alemã ao longo destes anos e de que formas tal política de visualidade caminhava lado a lado com os planos da Sociedade Colonial.
O “olhar etnográfico” e a produção de sentido
Quando trabalhamos com algum tipo de análise de discurso, trabalhamos em geral com a produção, reprodução e circulação de significados. Da mesma forma que os discursos verbais, os discursos visuais são responsáveis por criar, divulgar e fixar ideias que engendram, por sua vez, reflexões e atitudes em nome de sua concordância ou discrepância. Ao trabalhar com a história da visualidade tendo em perspectiva um tema em particular, observamos práticas e figuras representacionais que se repetem, com maiores ou menores graus de variações, ao longo do tempo e de um local para outro. De acordo com Stuart Hall (2016, p. 150), podemos definir como um “regime de representação” todo o repertório de imagens e efeitos visuais por meio dos quais um determinado tema é representado em um dado momento histórico.
De forma geral, os regimes de representação procuram fixar os significados para que se criem perspectivas mais homogêneas e simplificadas. Acontece que os significados das representações visuais são móveis, flutuam de acordo com seu suporte, seus espectadores e sua temporalidade; não há como atribuir um significado pronto, acabado e fechado em si mesmo para um objeto da visualidade. É nesse ponto então que começamos a delinear o trabalho de uma política de representação ou de visualidade. É justamente essa tentativa incessante, permanente e repetitiva de determinada prática representacional de privilegiar um significado dentre os vários significados potenciais daquelas imagens e de fixar aí o sentido de leitura de determinado tema que define tal processo (Hall, 2016, p. 143). Deste procedimento, que é sempre uma tentativa, mas que logra razoáveis sucessos, temos a compreensão da importância do reducionismo ao estereótipo e do encerramento dos significados visuais aos binarismos que, ademais, é parte fundamental de todo um modo de se pensar e agir no mundo moderno.
Volto agora ao tema do discurso colonial, justamente neste ponto que lhe é estruturante: sua dependência na ideia de fixidez para a construção ideológica da alteridade racial no contexto colonial (Bhabha, 2013, p. 117). De acordo com Valentin-Yves Mudimbe (1988), a estrutura colonial permitiu a criação de um sistema de oposições rígidas que permanece até os dias atuais, como tradição versus modernidade, oralidade versus escrita, primitivo versus civilizado, que colocavam (e colocam ainda) as nações africanas em um local de passagem de um polo ao outro desta dualidade (Mudimbe, 1988, p. 17). É justamente a partir dessa noção de uma dualidade estrutural nas relações coloniais que entendo a vontade de produção das fotografias da Sociedade Colonial Alemã no início do século XX, principalmente no Sudoeste Africano Alemão e na África Oriental Alemã.
Como podemos observar nas imagens das quais partem estas reflexões, este grupo de fotografias, que tinha nos nativos seu foco principal, tinha também como objetivo retratá-los inseridos no seu cotidiano e nos seus costumes ainda “intocados” pela ação do colonizador. Podemos dizer que estas fotografias apresentam uma tentativa de mostrar um “olhar etnográfico” sobre os sujeitos colonizados, um olhar que pretende, em seu discurso, se furtar de juízos de valor, uma vez que se ancora na fotografia, um suporte visual que, apesar de ser ainda recente no início do século XX, já participava ativamente nas campanhas de exploração das colônias africanas (Oguibe, 1998, p. 566). Ademais, o registro fotográfico era entendido neste período como uma maneira de se apreender o real de uma forma pura e livre de distorções subjetivas que, a partir dessa perspectiva, seriam encontradas na pintura e na escultura (Mauad, 1996).
Tal vontade de um olhar etnográfico, contudo, se insere em um trabalho mais amplo do regime de representação colonialista, qual seja, aquele regime que procura de todas as formas e a partir dos mais diversos suportes culturais fixar um único significado para os sujeitos coloniais. De acordo com Homi Bhabha (2013, p. 117), é o “estereótipo” a principal estratégia do discurso colonial na sua incessante busca por este objetivo. Segundo Hall (2016), o estereótipo racial “reduz, essencializa, naturaliza e fixa a diferença” (p. 191); um significante estereotipado é aquele que foi reduzido a alguns traços definidos por sua natureza. É justamente nesse ponto que Hall diferencia estereotipagem de tipificação. Esta, diz o autor, é necessária para o processo de produção de sentidos, ela é uma caracterização simples, mas flexível. Já o estereótipo apropria-se de determinadas características e reduz o significante a elas a partir do exagero e da simplificação.
Como as políticas de visualidade precisam enfrentar um constante embate entre a pluralidade de significados atribuídos às imagens e a sua vontade de fixação de um sentido único, recorrer ao estereótipo significa não só um trabalho de simplificação da realidade, mas também um processo de intensa repetição do mesmo. Bhabha (2013, p. 117) afirma que a estereotipagem no discurso colonial é uma maneira de identificação que oscila entre algo já conhecido e algo que deve ser ansiosamente repetido. Uma outra característica da estereotipagem é a sua ação de fechamento e exclusão, na medida em que ela baliza os limites simbólicos do significado e exclui tudo aquilo que não lhe pertence. Entretanto, um estereótipo não é uma simplificação porque denota uma falsa realidade; ele é uma simplificação porque é uma forma fixa de representação que nega a diferença.
Muito embora o arquivo fotográfico da Sociedade Colonial Alemã nos permita uma abordagem bastante plural de tais imagens, me parece evidente ao trabalhar com essas fontes que os registros fotográficos possuíam, entre outros, um objetivo bastante claro: representar os sujeitos coloniais africanos como a alteridade absoluta, o Outro por excelência do discurso identitário alemão, assim como mostrar aos espectadores na pátria-mãe o primitivismo dos povos que habitavam as regiões ao tempo dominadas pela Alemanha. De acordo com Achille Mbembe (2014), o Ocidente colonizador teve que inventar e reinventar constantemente mitos que justificassem seu poderio sobre os outros povos; considerava-se, dessa feita, como o centro da razão universal e da verdade. O resto, segundo Mbembe, constituía-se enquanto uma existência objectal: “A África, de um modo geral, e o Negro, em particular, eram apresentados como os símbolos acabados desta vida vegetal e limitada” (Mbembe, 2014, pp. 27-28).
As representações dos nativos a partir daquele olhar etnográfico do qual eu falava acima são um exemplo interessante de uma maneira de abordar o primeiro conjunto de imagens apresentado no início desse texto. Tais imagens nos mostram os nativos das colônias alemãs em quatro momentos distintos: as três primeiras imagens foram tiradas entre os anos 1909 e 1912 na África Oriental Alemã e representam os nativos em um momento de lazer (figura 1), em um momento de repasses de tradições orais (figura 2) e em uma situação de trabalho (figura 3); a figura 4 nos expõe uma foto de mulheres Herero, tirada também neste mesmo período, mas no Sudoeste Africano Alemão.
A representação a partir do olhar etnográfico é uma tentativa de desvendar e expor a “verdadeira África”, aquele continente ainda intocado pela civilização europeia, que seria o polo onde se encontram os costumes selvagens, a barbárie e o exotismo (Silva, 2009, p. 122). De um modo geral, a câmera do fotógrafo que tirou estas fotografias capturou aqueles estereótipos que já eram lugares-comuns ao se pensar em colônias africanas: seres humanos seminus e com acessórios tribais, como colares e pulseiras de cordas; pés descalços e cabelos raspados. São justamente estes traços já difundidos e constantemente repetidos na cultura visual europeia que faziam com que estas imagens fossem interpretadas como a imagem do Outro pelos possíveis observadores daquele período, assim como são ainda estes mesmos traços estereotipados que nos fazem hoje olhar para tais imagens com algum grau de familiaridade.
O olhar etnográfico presente nestas fotografias e em outras centenas presentes no arquivo digital da DKG partem de um pressuposto das teorias raciais, desenvolvidas ainda no século XIX e que se fortaleceram no início do século XX, que aplicava uma distinção baseada no binômio natureza versus cultura para os dois principais grupos racializados no embate colonial: os sujeitos brancos e os sujeitos negros. De um modo geral, entre os brancos, cultura opunha-se a natureza, ela significava uma superação através da Razão de um estado primitivo de desenvolvimento civilizacional; por seu turno, esta mesma lógica pregava que, entre os negros, cultura coincidia com natureza (Hall, 2016, p. 168). O que se pretendia neste regime de visualidade era, ao fim e ao cabo, uma naturalização das diferenças raciais baseada nesta distinção. Conforme apontou Stuart Hall, a lógica que explica tal mecanismo de naturalização é bastante simples: se as diferenças entre brancos e negros são culturais, então elas podem ser modificadas e alteradas ao longo do tempo; contudo, se tais diferenças são naturais, parte da “essência” das raças, então elas estão além da história, são fixas e permanentes (Hall, 2016, p. 171).
Esta ideia é exatamente o que o olhar etnográfico sugere para tais imagens: ele procura evidenciar o aspecto de um primitivismo inato aos povos africanos, uma tentativa de essencialização das culturas nativas atreladas à não superação civilizacional para um estágio racional, no melhor modelo positivista que se pode imaginar. Os nativos são, por um lado, a personificação do homem antes da história, assim como as colônias são entendidas como um local efetivamente sem história, o lócus do passado da humanidade, um continuum no presente de um passado que é, na realidade, um passado eterno, sem movimento, a-histórico e a-culturado. O conceito de raça é fundamental para entender este jogo cultura versus natureza, superior versus inferior: é justamente a noção de raça tal como construída pelas teorias raciais oitocentistas que permitia que se concebessem os povos não europeus como reflexos de um ser menor, a imagem imperfeita do homem ideal o Homem Heterossexual Branco de quem estes povos estariam afastados por uma distância insuperável (Mbembe, 2014, p. 39).
Os Völkerschauen e o regime de visualidade da Sociedade Colonial
A posição do regime de visualidade da Sociedade Colonial Alemã manifestava-se não só nos próprios objetos visuais produzidos por ela, mas também nos posicionamentos em relação à cultura visual espetacularizada do período.
A partir da década de 1880, na Europa como um todo e na Alemanha de modo particular, nota-se um crescimento dos Völkerschauen, shows ao vivo que mostravam “povos exóticos”, os povos colonizados (não só africanos) para o público da pequena burguesia europeia. Inicialmente, estes shows surgiram com a justificativa “pedagógica” de ensinar aos espectadores sobre os hábitos estrangeiros; contudo, já a partir da década de 1890, os Völkerschauen passaram a ter um caráter de espetáculo sensacionalista, um show não necessariamente sobre os povos estrangeiros, mas sobre os hábitos de “selvageria” de tais povos (Ciarlo, 2011, p. 66).
A ideia dos consumidores era de que os Völkerschauen proporcionavam, dentro da cultura de entretenimento da época, uma experiência de viagem autêntica ao desconhecido, a um preço que se podia pagar para algumas horas mergulhado em um universo colonial (Ciarlo, 2011, p. 78). Assim como a literatura de aventura, estes espetáculos cresceram e se popularizaram nos países europeus que constituíam um gosto cultural cada vez mais marcado pela aventura, pelo exótico e pelo sensacionalismo suscitados pelos encontros coloniais.
De acordo com David Ciarlo (2011, p. 76), estes espetáculos do Outro se desenvolveram juntamente com as novas mídias de massa que se proliferavam e se barateavam neste fim de século XIX. As revistas ilustradas, por exemplo, com suas litografias cada vez mais complexas e chamativas foram um importante suporte material de promoção e divulgação dos Völkerschauen. Foi neste momento que se popularizou então uma visualidade da diferença extremamente racializada e marcada pela naturalização do primitivismo colonial. Gravuras nas revistas ilustradas e jornais, pôsteres coloridos colados como anúncios pelas cidades, panfletos que circulavam com cada vez mais frequência pelos passantes das avenidas tornaram-se símbolos e referências a determinada visualidade que se apropriava cada vez mais fortemente de elementos estereotipados para demarcar a separação racial entre o europeu branco e este ser primitivo e selvagem objeto dos espetáculos populares. Diferentemente das imagens produzidas pelas instituições coloniais, por exemplo, estas figuras da cultura do entretenimento e também de uma cultura visual publicitária disseminaram um imaginário do colonialismo a um público muito mais amplo do que aquela audiência que frequentava exposições coloniais ou que era assinante de revistas de tais instituições (cf. McClintok, 2010; Ciarlo, 2011).
Foi justamente contra esta cultura do entretenimento que a Sociedade Colonial Alemã se manifestou neste período. De acordo com os agentes coloniais dessa instituição, estes shows eram inautênticos e falhavam no seu propósito de educação popular sobre os povos das colônias. De modo geral, os colonialistas reprovavam o sensacionalismo presente nas encenações de danças e rituais selvagens, nas alusões ao canibalismo dos nativos e nas encenações de batalhas sanguinárias que agradavam ao gosto popular (Ciarlo, 2011, p. 100). Para os agentes coloniais, a educação sobre as colônias deveria sim existir, mas a partir da autenticidade do conhecimento colonial garantido pela DKG e de uma certa contenção neste modelo espetacularizado tão apreciado pelo público em geral.
Uma das tentativas da Sociedade Colonial Alemã para tentar “corrigir” as falsidades divulgadas pelos Völkerschauen foi a construção de uma Vila Nativa na Exposição Colonial de 1896 que mostrava os nativos das colônias alemãs não como bestas selvagens, mas a partir de seu “melhor aspecto” seu primitivismo ingênuo (Ciarlo, 2011, p. 101). Podemos notar a partir desses exemplos, o lugar discursivo que a Sociedade Colonial outorgava para si mesma, o lugar de um discurso autorizado, pois baseado na experiência real e no conhecimento científico das expedições às colônias africanas. Digo que este era um lócus discursivo que a DKG outorgava a si mesma pois esta era uma posição muito própria dos agentes do imperialismo ligados a ela, uma vez que o público em geral deste fim de século XIX interessava-se de forma muito mais intensa pela espetacularização do mundo colonial que por este discurso extremamente “técnico” e com pouco apelo ao entretenimento.
Esta vontade em se colocar como um discurso mais autêntico e verdadeiro sobre a experiência colonial da Sociedade Colonial Alemã está ligada, em certa medida, àquela vontade de representação dos nativos a partir de um olhar etnográfico. Entendo, dessa forma, que o regime de representação pretendido pela Deutsche Kolonialgesellschaft não se expressava somente a partir dos suportes visuais, mas estava presente em vários posicionamentos dessa instituição com os aspectos culturais do período que mexiam com o tema colonial.
Flutuações do significado
De maneira geral as representações da alteridade racial caminhavam entre dois polos bem definidos: de um lado, havia a imagem do primitivismo inato do homem negro, uma imagem que dava conta de narrar este espaço sem passagem de tempo, sem sociedade organizada e sem qualquer traço que os aproximasse da ideia de civilização tal qual forjada pelo discurso ocidental; de outro lado, havia a imagem da selvageria e violência presente nas diferentes tribos africanas, o que levava a um tipo de justificação da necessidade da subordinação do negro pela violência “civilizadora” (Mudimbe, 1988, p. 14). No entanto, dentro da lógica dos encontros coloniais, é difícil para o historiador sustentar a partir dos fatos tal “pureza” das culturas, tanto africanas quanto europeias. Conforme afirmou Edward Said (2011, p. 51), as culturas no contexto do imperialismo europeu em África, longe de permanecerem autônomas e isoladas, adotaram muitos elementos estrangeiros que foram incorporados (muitas vezes inconscientemente) nos seus cotidianos.
Este segundo conjunto de imagens (figuras 5, 6, 7 e 8) faz parte ainda daquela tentativa de um olhar etnográfico, mas aqui observamos signos que escapam àquela lógica essencializante do nativo em sua primitividade ligada à natureza. O modo como os espectadores abordam tais imagens é ainda aquele modo que procura ver nessas fotografias imagens do negro em seu cotidiano ainda intocado. Esta vontade do espectador em ver aquilo que já lhe é familiar é um dos modos pelos quais a percepção pictórica ganha sentido e significado; e justamente esta expectativa de recepção a um objeto visual molda a maneira como percebemos e significamos tal imagem. Segundo Ernst Gombrich (2007, p. 53), estes níveis de expectativa do observador são denominados “contextos mentais”, modos que conformam a interação entre expectativa e observação e que trabalham com ondas de gratificação ou desapontamento entre estes dois extremos.
Se afirmamos então que os possíveis espectadores dessas fotografias esperariam ver aí imagens que aproximassem os nativos de uma “verdadeira África”, este segundo conjunto de fotos trabalharia com um processo de relativo desapontamento. O que vemos nessas fotos é um processo de flutuação daquele significado inicial pretendido pela fixação do estereótipo racial. Observamos em todas as imagens aqui selecionadas signos que atestam intensas trocas culturais no ambiente colonial, principalmente modos pelos quais os africanos incorporaram e adaptaram signos europeus ao seu cotidiano.
As figuras 5 e 6 apresentam nativos da África Oriental Alemã e do Sudoeste Africano Alemão, respectivamente. Nelas podemos observar um arranjo das pessoas e do cenário que denota o objetivo do fotógrafo em registrar o dia a dia e a organização própria dos nativos dessas colônias. No entanto, o que chama a atenção e nos sugere este processo de troca cultural são as roupas militares usadas por alguns homens nestas fotografias. Na figura 5 a maioria das pessoas retratadas veste as indumentárias tradicionais de tais comunidades; já o segundo homem em pé (da esquerda para a direita) veste uma roupa muito similar às vestimentas militares das Schutztruppe. Na figura 6 a mesma situação acontece: todas as mulheres e crianças presentes na foto vestem roupas mais tradicionais, enquanto os únicos homens retratados aqui (um em pé e outro sentado bem no centro da imagem) vestem os uniformes militares. A explicação mais provável para a presença de uniformes militares dos colonizadores dentro das comunidades nativas é a questão do recrutamento de nativos para o serviço militar nos anos da Primeira Guerra Mundial, bem como durante as guerras coloniais. De acordo com vários autores, o recrutamento de nativos era indispensável para a formação dos pelotões da Schutztruppe, comandadas por generais alemães, mas formada por sua maioria por nativos askaris e bantus (cf. Lehmann, 2011; Pesek, s.d.).
A figura 7, por sua vez, retrata a inauguração de uma escola em Windhoek, no Sudoeste Africano Alemão, no ano de 1912. Ao fundo está a escola, notadamente ainda em fase de construção, sem o teto, já com uma arquitetura europeia. As crianças que erguem cadernos e estão em primeiro plano na foto vestem roupas de modelos alemães as meninas estão de vestidos com laços e os meninos, em sua maioria, de calças, paletós e chapéus. Finalmente, na figura 8 aparecem duas mulheres nativas, provavelmente Hereros ou Namas, pois esta fotografia foi tirada no ano de 1912 também em Windhoek. Estas duas mulheres retratadas aqui representam exatamente o caráter de flutuação cultural nas zonas de contato: elas usam vestidos de um estilo notadamente burguês, mas usam também seus característicos colares e lenços ao redor da cabeça.
No entanto, ainda que as vestimentas sejam um indicativo da presença de uma troca cultural nas colônias alemãs, o que mais me chama atenção nessas fotografias, tanto do primeiro quanto do segundo grupo, é a maneira como os sujeitos representados olham para a câmera fotográfica. Este modo de encarar a máquina, posar para o fotógrafo e inclusive sorrir para a foto (caso da figura 8) denotam, na minha leitura, uma familiaridade com o aparato fotográfico e com o ato de fotografar. Aparentemente, em nenhuma das imagens os sujeitos aparecem desconcertados, assustados ou mesmo bravos com o fato de estarem sendo fotografados. De acordo com Ana Cristina Fonseca da Silva (2009), o fato de ser fotografado poderia ser interpretado pelos nativos como algo interessante:
Se neste caso o ponto de vista de quem fotografava apontava para uma certa inferioridade de quem era fotografado, o ponto de vista de quem era fotografado podia ser exatamente o oposto. Ser fotografado podia ser subjetivamente interpretado como um sinal de sucesso (Silva, 2009, p. 114).
A partir desta segunda amostragem de fotografias da Sociedade Colonial Alemã podemos estabelecer pelo menos duas considerações sobre o regime de visualidade desta instituição: em primeiro lugar, temos que levar em consideração a força da vontade daquele olhar etnográfico com o qual o produtor das imagens abordou os sujeitos enquadrados em sua câmera, produtor este que trabalhava para a DKG e estava alinhado ao seu discurso de autenticidade sobre o conhecimento das colônias e tudo o que lhes dizia respeito. A partir desta consideração, podemos afirmar que os significados que estas fotos adquiriram extrapolaram este significado primeiro que se queria imputar às fotografias; observamos que elas trazem signos que denotam elementos que atestam o caráter híbrido das culturas ou, em outras palavras, elementos que denunciam a própria fragilidade do discurso colonial baseado em estereótipos a partir daquilo que lhe escapa (Cooper, 2005, p. 235). Há aqui uma quebra naquele discurso que se preocupa com imagens de uma “tradição pura” e que nega, em última instância, as possibilidades de trocas culturais (Said, 2011, p. 52).
Em segundo lugar, é importante compreender que o próprio sistema colonial era constantemente colocado à prova na experiência vivida nas colônias e que, a partir disso, era invariavelmente remodelado no cotidiano das relações interpessoais existentes na realidade da colônia (Cooper, 2005, p. 235). Pensando a partir de tal experiência vivida nos territórios africanos e não na vontade discursiva produzida pela Sociedade Colonial na Alemanha, podemos entender que estas fotografias evidenciavam o “processo de civilização” em andamento, ou seja, retratava os nativos como sujeitos da missão civilizadora ocidental. Se assumirmos tal possibilidade, podemos entender estes registros fotográficos inclusive como materiais de propaganda sobre o suposto sucesso do projeto civilizacional levado a cabo pelos alemães na África.
Os usos das imagens
Gostaria de dar agora um pequeno salto temporal e espacial do início do século XX na África para o ano de 1939 na Alemanha. Como é sabido, com o fim da Primeira Guerra Mundial e o Tratado de Versalhes assinado pela Liga das Nações no ano de 1919, a Alemanha perdeu seus territórios coloniais, além de outras punições impostas a este país. No entanto, a Sociedade Colonial Alemã não foi desfeita e continuou a atuar com a pauta do retorno das colônias que haviam sido “roubadas” pelos países signatários do Tratado. Tal atuação da DKG neste momento pós-Primeira Guerra ficou conhecida como Movimento Neocolonial Alemão e foi marcada, sobretudo, pela ênfase em um discurso nacionalista inflamado a partir de propagandas em jornais, periódicos e exposições coloniais (cf. Krachenski, 2016).
A partir do ano de 1936, já com a ascensão de Adolf Hitler e do Partido Nacional-Socialista ao poder, a burocracia nazista agregou a Sociedade Colonial nos seus ministérios e esta instituição se tornou o Reichskolonialbund, encarregado de dar continuidade à questão colonial neste momento. Na realidade, o governo nazista não se ocupou de forma muito prática com um possível retorno das colônias africanas a seu domínio; a questão colonial era muito mais constitutiva de um discurso de poder sobre o Outro do que efetivamente uma política em andamento no período. Contudo, enquanto uma questão estruturante do imaginário ideológico do nazismo, as alusões ao império colonial de outrora eram constantemente trazidas à tona pelos produtores de propaganda do nacional-socialismo.
Como vimos anteriormente, era uma prática da Sociedade Colonial realizar exposições coloniais na virada do século XIX para o XX, encaradas quer como espaços de promoção e divulgação das atividades da DKG, quer como “correções” aos discursos sobre a questão colonial perpetrados então pela mídia de massas. Durante o período do Reichskolonialbund tais exposições eram uma das principais atividades da instituição. Nestas exposições, no entanto, o RKB não visava somente promover e propagar as atividades do departamento colonial, como também tinha como objetivo convencer os espectadores a juntar-se à luta pela recuperação das colônias. Os materiais de exposição, dessa forma, eram exibidos para mostrar não só o dia a dia das colônias, mas também a sua importância na economia e na constituição do tão divulgado espaço-vital (Lebensraum) alemão.
Ao voltar para o arquivo fotográfico da DKG, encontrei fotografias de esculturas que foram feitas para integrar a Exposição Colonial de Dresden de 1939. No entanto, o que me chamou a atenção ao analisá-las foi a semelhança que elas guardavam com as fotografias feitas durante a década de 1910 nas colônias alemãs. Podemos observar três imagens das esculturas feitas para a Exposição de Dresden figuras 11, 14 e 17. Para cada escultura produzida, encontrei dois ou mais registros fotográficos de anos anteriores que se assemelhavam muitíssimo com o que estava sendo representado pela escultura e como tais atividades estavam sendo transpostas para a realidade fabricada pela exposição que mantinha a tradição de criar vilas nativas “autênticas”.
No primeiro conjunto de imagens desta seção, vemos três fotografias muito semelhantes entre si. As duas primeiras são fotografias tiradas na África Oriental Alemã e retratam mulheres moendo grãos em um pilão (figuras 9 e 10). A figura 11, como já afirmamos, é a foto da escultura exposta em Dresden que se intitula: “Mulher batendo milho na África Oriental Alemã”. Observamos em tal escultura uma tentativa de se aproximar ao máximo das representações fotográficas disponíveis como exemplos: vemos o cuidado que o artista/artesão que produziu esta escultura teve em tentar copiar da forma mais fidedigna que conseguisse os utensílios utilizados neste processo, as vestimentas das mulheres e até mesmo o detalhe do bebê que é carregado nas costas de uma das trabalhadoras.
O segundo conjunto de imagens se refere à escultura intitulada “Tecelão da África Oriental Alemã” ( figura 14). Também aqui há uma tentativa de cópia fiel ao registro fotográfico em demonstrar para o espectador o processo de tecelagem feito nas colônias e os instrumentos utilizados neste processo. No entanto, aqui temos uma discrepância importante em relação às fotografias que podem ter servido de base para tal escultura (figuras 12 e 13): esta se refere a um tecelão da África Oriental, enquanto que as fotografias são de tecelões do Camarões. A mesma situação acontece no terceiro conjunto de imagens: a figura 17 representa uma escultura intitulada “Família de Nativos da Nova Guiné Alemã” e as fotografias (figuras 15 e 16) foram tiradas de famílias e casas dos nativos da África Oriental.
Estes últimos grupos de fotografias que exponho aqui nos ajudam a pensar sobre a questão da circulação da visualidade dentro da própria instituição colonial. Se afirmamos que os estereótipos necessitam de uma constante repetição na sua tentativa incessante de fixação de um sentido único, o regime de visualidade também se utiliza de autorreferências a todo tempo para criar e recriar significados. Assim como os traços e modos de representação circulam e se repetem em diferentes suportes visuais, os próprios suportes visuais servem de referência mútua na produção de novas possibilidades de visualidade.
Conforme afirmei anteriormente, os objetos exibidos nas exposições coloniais organizadas pelo Reichskolonialbund nos anos 1930 serviam a um propósito diferente daquelas organizadas pela Sociedade Colonial na virada do século. No entanto, é possível traçar uma linha de continuidade dentro da produção visual das instituições que se utilizavam de seu próprio material fotográfico “etnográfico” para garantir a autenticidade de tais exposições. A circulação desta visualidade colonial é aqui bastante clara: um mesmo arquivo de registros fotográficos é utilizado em um outro contexto institucional para criar uma nova produção de significados, qual seja, o reforço da importância e das riquezas das colônias e seus povos para angariar novos membros para o RKB, o que denuncia uma nova tentativa de fixação de significado a partir de um uso comum daquelas imagens já existentes.
Considerações finais
Busquei refletir neste trabalho como os regimes de representação são formados e operam a partir da cultura visual e, em especial, busquei discutir a política de visualidade da Sociedade Colonial Alemã. Afirmei que a utilização de estereótipos no trabalho incessante e repetitivo de determinada prática representacional em fixar um significado único sobre certo tema é um dos pilares para a produção e manutenção de tal tentativa.
A partir do primeiro conjunto de fontes apresentado aqui, pude afirmar que a Sociedade Colonial Alemã buscou, em um primeiro momento, representar os nativos de suas colônias em África a partir de um olhar etnográfico, ou seja, a partir de uma ótica que colocava o produtor da imagem em uma posição pretensamente neutra de construção do saber e que buscava retratar os sujeitos coloniais dentro dos seus cotidianos e costumes que ainda não haviam sido modificados pela ação do colonizador. A partir desse olhar etnográfico, pude inferir que os sujeitos coloniais retratados em tais fotografias foram construídos como a alteridade absoluta, o Outro por excelência do discurso colonial alemão. Esta alteridade absoluta, por sua vez, foi constituída a partir de elementos visuais estereotipados que pretendiam naturalizar as diferenças entre as raças baseadas no binômio cultura versus natureza. Enquanto o homem branco, detentor da civilização, era também responsável por produzir uma cultura erudita, o homem negro colonizado era escravo de sua natureza inferior e primitiva.
Afirmei também que este regime de representação definido pela DKG não se limitava somente aos discursos e artefatos visuais produzidos por ela, mas tinha neles um vetor para explicitar o papel social que ela desempenhava (ou acreditava desempenhar). As contestações dos agentes imperialistas em relação aos Völkerschauen, símbolos de uma cultura midiática de massas que sabia trabalhar com o gosto popular pelo sensacionalismo e pelo exótico, demonstram que a Sociedade Colonial Alemã se entendia enquanto o lugar do discurso autorizado sobre qualquer aspecto relacionado à questão colonial.
Em um terceiro momento, confrontei a própria vontade deste olhar etnográfico produzido pela DKG a partir das próprias fotografias tiradas nas colônias no início do século XX. Afirmei que no embate colonial, as culturas não permaneceram intocadas, nem de um lado nem de outro, e incorporaram elementos umas das outras. Dessa forma, apresentei registros fotográficos que atestavam como elementos do colonizador foram incorporados pelas comunidades nativas, como roupas e costumes. Estes signos que aparecem nas fotografias do segundo conjunto de fontes escapam àquela lógica que buscava naturalizar e essencializar o nativo na sua primitividade e condição de inferioridade. Pudemos observar a partir desses exemplos que a tentativa de fixação de um significado sempre escapa do controle daqueles que o produzem e fazem com que os sentidos de uma imagem e os usos de determinados estereótipos seja fluído e flexível.
Finalmente, procurei chamar a atenção para a circulação da visualidade colonial dentro da própria Sociedade Colonial. A partir de fotografias sobre esculturas que fizeram parte da Exposição Colonial de Dresden em 1939, demonstrei a possibilidade de que tais artefatos se baseavam nas fotografias tiradas no início do século XX nas colônias e que estavam guardadas nos arquivos da instituição. Assim, pude entender como uma política de visualidade se utiliza de autorreferências para criar e recriar significados e como os próprios suportes visuais servem de referência um ao outro na produção de novas possibilidades de visualidade ainda que com novos objetivos: neste caso, a finalidade não era mais mostrar a primitividade dos nativos a partir de um olhar “neutro”, mas reforçar a importância e a riqueza das colônias perdidas e seus povos para angariar novos membros para o Reichskolonialbund.
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Recebido: 13 de abril de 2017
Aceite: 29 de junho de 2018