A vivência de uma situação de pandemia não implica apenas consequências ao nível da saúde pública, mas também levanta questões de ordem económica e política (Chakraborty & Maity, 2020; Sengupta & Jha, 2020). Para além disso, as implicações no que concerne à saúde física e mental são indiscutíveis (Choudhari, 2020).
Todos os constrangimentos associados à mais recente pandemia vivenciada em todo o mundo (i.e. COVID-19) têm trazido à luz diversos debates relativos à vulnerabilidade das populações migrantes/refugiadas. As evidências na literatura apontam para um aumento do risco destas populações no que diz respeito a aspetos sociais, económicos e relacionados com a saúde (Bhandari et al., 2021; Choudhari, 2020; Dhungana, 2020; Dias et al., 2021; Hayward et al., 2021; Ivaknyuk, 2020; Maldonado et al., 2020; Özvaris et al., 2020).
Com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, foram apresentados em Portugal recentemente os resultados do estudo “Literacia em Saúde em Populações Migrantes”. O estudo usou um questionário aplicado a 1126 pessoas migrantes e refugiadas, em plena pandemia, onde se percebe que os maiores riscos decorrem da condição migratória acrescida do facto de serem mulheres, mais velhos, menos escolarizados, desempregados, recém-chegados e indocumentados. Por outro lado, esse mesmo estudo identifica que, se é inegável que a sistematização de referências político-legais tem evidenciado uma clarificação do direito à proteção da saúde dos estrangeiros residentes e o seu acesso a cuidados de saúde em Portugal, algo que foi inclusivamente reforçado durante a pandemia, evidencia-se que a falta de acesso a serviços de saúde constitui um obstáculo à integração, com impacto em diversas áreas e em decorrência de diversos fatores (Dias, et al., 2021).
É de salientar os fatores de risco para o bem-estar psicossocial que se verificam nas populações migrantes e refugiadas e dos quais são exemplo o afastamento dos familiares (que se verifica em muitos dos casos), situações de exclusão social, dificuldade no acesso aos cuidados de saúde e dificuldades económicas devido à perda de emprego ou às condições precárias a nível laboral (Yen et al., 2021; Choudhari, 2020). As dificuldades no acesso aos cuidados de saúde e o distanciamento das fontes de suporte social constituem-se como riscos acrescidos perante a desafiante situação pandémica que tem pairado por todo o mundo (Arya et al., 2021; Bhandari et al., 2021). Deste modo, é essencial ter em consideração os efeitos que a situação de pandemia pode ter ao nível das populações que já integravam os grupos mais vulneráveis mesmo antes da COVID-19, como é o caso dos migrantes e dos refugiados (Alahmad et al., 2020; Bukuluki et al., 2020; Burton-Jeangros et al., 2020; Vieira et al., 2020; Zapata & Rosas, 2020).
A COVID-19 veio acentuar assimetrias e desigualdades sociais e de saúde já existentes em diversos grupos, tais como os migrantes e os refugiados (Arya et al., 2021; Bukuluki et al., 2020; Crawley, 2021; Vonen et al., 2021), sendo infelizmente relativamente fácil cair-se num exacerbar ou intensificar de situações de discriminação, pobreza, desemprego e isolamento (Bukuluki et al., 2020; Spiritus-Beeden et al., 2021). Estes grupos populacionais enfrentam barreiras sociais e culturais que podem comprometer o seu acesso à informação relativa à prevenção e proteção face ao vírus SARS-CoV-2 (Araya et al., 2021; Bhandari et al., 2021; Bukuluki et al., 2020; Guadagno, 2020; Hayward et al., 2021; Özvaris et al., 2020; Vieira et al., 2020). São também grupos fortemente afetados pelas oscilações laborais e económicas que resultam das medidas governamentais para combater a propagação do vírus (e.g. confinamentos que obrigam ao encerramento da maioria das atividades e serviços e que impedem ou dificultam a circulação dos indivíduos) (Bukuluki et al., 2020; Ivaknyuk, 2020). São ainda grupos que nem sempre encontram capacidade de resposta dos serviços a si dirigidos, o que frequentemente não se coloca no direito à proteção ou no acesso aos cuidados em saúde, algo que alguns países reforçaram durante a crise pandémica, mas na efetiva prestação do serviço de uma forma eficaz e adaptada à crescente diversidade cultural e religiosa das nossas sociedades (Dias et al., 2021).
A literatura aponta a existência de diversos fatores de risco presentes na população migrante e refugiada que podem ter um impacto negativo significativo ao nível da sua saúde mental, nomeadamente os que se relacionam com as condições de vida mais precárias, a exclusão social, a incerteza e insegurança face ao futuro e as dificuldades no âmbito do mercado de trabalho e consequente instabilidade financeira, que se intensificam face à uma situação pandémica (Spiritus-Beeden et al., 2021).
É de salientar a importância do fortalecimento das redes de suporte numa altura de pandemia, principalmente junto das populações desfavorecidas e minorias (Wong et al., 2020). A literatura aponta no sentido de o suporte social ser um fator de peso no que diz respeito à gestão de situações adversas, tendo uma relação com o nível de resiliência dos indivíduos (Li et al., 2021; Mei et al., 2021).
É fulcral ter em conta as populações migrantes e refugiadas aquando da delineação de planos e estratégias para a prevenção e combate à pandemia da COVID-19 (Brandenberger et al., 2020; Bukuluki et al., 2020; Guadagno, 2020), tendo em mente as suas características e necessidades específicas. Com isto, deve-se abordar esta questão através de uma visão holística e integrativa, que inclui questões socioeconómicas, psicossociais e culturais (Bukuluki et al., 2020).
Assim, os objetivos do presente estudo são: i) perceber as condições que poderiam ajudar refugiados ou migrantes em Portugal a lidar com a pandemia Covid19; e ii) perceber as condições criadas por refugiados e migrantes para ajudar terceiros a lidar com a COVID-19.
Método
O presente estudo tem uma abordagem qualitativa baseada no inquérito internacional colaborativo ApartTogether (www.aparttogetherstudy.org/), realizado durante a pandemia da COVID-19. O estudo foi desenvolvido em colaboração com a Organização Mundial de Saúde (World Health Organization [WHO], 2020), e teve como objetivo perceber o impacto da pandemia da COVID-19 e quais as medidas preventivas adotadas nos e, para os migrantes e refugiados em toda a Europa. Em Portugal o estudo ApartTogether obteve aprovação da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) e foi levado a cabo por investigadores do projeto Aventura Social e ISAMB/ Universidade de Lisboa.
Participantes
Participaram no estudo em Portugal 330 indivíduos, com uma média de idades de 35,25±11,21 anos, dos quais 62% (n=183) são do género feminino. O Quadro 1 apresenta as características sociodemográficas dos participantes. Todos os participantes concordaram em participar no estudo e, após terem conhecimento dos objetivos do estudo realizaram o preenchimento do questionário online de forma voluntária, tendo sido garantido o anonimato e a confidencialidade dos dados.
Foram analisados dados sociodemográficos dos participantes (idade, sexo, escolaridade, situação profissional atual, tempo e situação de residência em Portugal). Para a análise qualitativa, foram considerados e analisadas as respostas a duas perguntas de resposta aberta e opcional presentes no questionário, nomeadamente a pergunta 1) “O que mais poderia ajudá-lo a lidar com esta situação do coronavírus?” e a pergunta 2) “Como ajuda os outros durante a crise do coronavírus?”.
Análise de dados
As respostas à pergunta 1) e 2) foram importadas para o software MAXQDA 2020 (Udo & Stefan, 2019). E as características sociodemográficas dos participantes foram analisadas através do software SPSS versão 25. Os dados foram analisados através da técnica de análise de conteúdo. Numa primeira fase da análise dos dados o primeiro e segundo autores leram o conteúdo das respostas e realizaram uma análise preliminar. Numa fase posterior foi realizada uma segunda análise dos dados, tendo sido aprimorado o sistema de categorização. Os dados foram analisados até à sua saturação, ou seja, até não emergirem dos dados novas e diferentes categorias.
Resultados
No total foram codificados 233 segmentos de texto, onde 100 segmentos de texto deram origem ao sistema de categorização que dá resposta à pergunta 1), e 133 segmentos de texto deram origem ao sistema de categorização que dá resposta à pergunta 2). À pergunta de resposta aberta “O que mais poderia ajudá-lo a lidar com esta situação do coronavírus?” responderam 85 indivíduos. Por outro lado, à pergunta 2) “Como ajuda os outros durante a crise do coronavírus?”, responderam 114 indivíduos.
1. Condições que adicionalmente ajudariam a lidar com a COVID-19
Da análise das condições que potencialmente ajudariam os migrantes e refugiados em Portugal, emergiu o sistema de categorização ilustrado na Figura 1.
Relativamente às condições que adicionalmente ajudariam os migrantes e refugiados em Portugal a lidar com a COVID-19, foram identificadas como o Top 5 das condições: i) adesão às medidas de prevenção de transmissão COVID-19; ii) proximidade de família/amigos; iii) pensamento positivo.; iv) ter/manter trabalho; e, v) apoios financeiros.
Alguns dos segmentos de texto representativos do Top 5 das condições que adicionalmente ajudariam os migrantes e refugiados a lidar com a COVID-19 são:
i) Adesão às medidas de prevenção de transmissão COVID-19
- “Meter em prática todas as precauções para evitar a contaminação, lavagem constante das mãos, usar a máscara de proteção, distanciamento social, evitar usar muito transportes públicos.”;
- “Autocuidado e distância social.”;
- “Reduzindo o número de novas infeções e mortes. Conformidade com todas as regras de segurança.”.
ii) Proximidade de família/amigos
- “A única coisa que eu gostaria, era poder ver minha família.”;
- “Poder ter os meus filhos mais perto de mim.”;
- “Estar mais com os meus amigos.”;
- “Virtualmente conectado com amigos e familiares.”;
- “Ter contacto, ainda que ocasional, com amigos, não estar fisicamente distante deles.”;
- “O bem-estar da minha família e amigos.”.
iii) Conseguir manter otimismo/ “pensamento positivo”
- “Alguns pensamentos bons e saudáveis.”;
- “Meus pensamentos positivos e auto satisfação ajudam-me a lidar com esta situação do Corona.”;
- “Não ficar preocupado nem chateado.”;
- “Colocar a mente em outro lugar, não pensar muito.”.
iv) Ter/manter trabalho
- “Só continuar a trabalhar, nada mais.”;
- “Encontrar um emprego.”;
- “Recolocação no mercado de trabalho.”.
v) Apoios financeiros
- “Posso ser ajudado financeiramente.”;
- “Nada mais só preciso de dinheiro durante este tempo.”;
- “Ter uma renda para poder cobrir as necessidades da minha filha (alimentação, educação, roupas) e que não falte nada em casa.”;
- “Poder ser ajudado financeiramente será a melhor ajuda para mim.”.
2. Condições criadas por refugiados e migrantes para ajudar terceiros a lidar com a COVID-19
Da análise das condições criadas por refugiados e migrantes para ajudar terceiros a lidar com a COVID-19 emergiu o sistema de categorização ilustrado na Figura 2.
Relativamente às condições criadas por refugiados e migrantes para ajudar terceiros a lidar com a COVID-19 foram identificadas como o Top 5 das condições criadas: i) suporte emocional; ii) voluntariado; iii) adesão às medidas de precaução; iv) fornecer informação credível; e, v) doação de alimentos/produtos essenciais.
Alguns dos segmentos de texto representativos do Top 5 das condições criadas por refugiados e migrantes para ajudar terceiros a lidar com a COVID-19 são:
i) Apoio/Suporte emocional
- “Com conselhos e palavras de ânimo.”;
- “Tento passar mensagens positivas e de esperança.”;
- “Eu mantenho contato com eles para que se sintam menos solitários.”;
- “Eu ajudo outros durante esta crise do Corona, motivando-os a usar esta situação como uma oportunidade na sua vida.”;
- “Diálogo/aconselhamento.”;
- “Suporte mental.”;
- “Não se separar dos outros, incentivar os outros a pensar corretamente.”.
ii) Voluntariado
- “Vou às compras para quem precisa e não pode sair de casa.”;
- “Voluntariado para ir às compras para idosos e pessoas com dificuldade de locomoção.”;
- “Vou fazer as compras a alguns vizinhos.”;
- “Trabalho em casa como voluntária, oferecendo apoio à fundação na qual trabalhei anteriormente no meu antigo país de residência.”;
- “Ajudamos idosos que vivem sozinhos através de uma associação.”.
iii) Adesão às medidas de precaução
- “Me protegendo e tomando todas as medidas de prevenção, que assim também protejo os outros.”;
- “Isolamento social.”;
- “Mantendo-me afastada e usando os meios de evitar contrair a doença.”;
- “Seguindo as medidas de segurança.”;
- “Em relação aos idosos estou sempre com uma distância de 2 metros e quando estou com os meus amigos estou com a máscara e estou sempre a pôr gel nas mãos.”.
iv) Fornecer informação credível
- “Em primeiro lugar, gostaria de explicá-los sobre a doença corona. Depois, explicaria como podemos manter nossa autodefesa. Se eu descobrir que alguém tem sintomas de corona, chamarei imediatamente o médico.”;
- “Dar-lhes informação.”;
- “Sou analista de deteção e diagnóstico do SARS-CoV-2 e tento educar e informar as pessoas que estão interessadas na temática e em como se manterem protegidas de infeção pelo novo coronavírus.”;
- “Entrega de mensagens de saúde pública.”.
v) Doação de alimentos/produtos essenciais.
- “Eu me ofereço para preparar comida para os idosos.”;
- “Compartilhando alimentos, itens essenciais.”;
- “Colaboro com compras de alimentos para famílias carenciadas.”;
- “Se eu tiver, darei um pouco de comida.”;
- “Damos comida para quem realmente precisa.”.
Discussão
Os objetivos do presente estudo qualitativo foram: i) perceber as condições que poderiam ajudar refugiados ou migrantes em Portugal a lidar com a pandemia COVID-19; e, ii) perceber as condições criadas por refugiados ou migrantes para ajudar terceiros a lidar com a COVID-19.
Os participantes relataram como uma das principais preocupações as questões relacionadas com a saúde, como a adesão às medidas de saúde pública, assim como questões financeiras, relacionadas em alguns casos com a perda dos seus trabalhos durante esta fase pandémica, com a obrigação de encerrar a maior parte das atividades durante os períodos de confinamento (Araya et al., 2021; Bhandari et al., 2021; Bukuluki et al., 2020; Guadagno, 2020; Ivaknyuk, 2020; Özvaris et al., 2020; Vieira et al., 2020). A interação entre determinantes socioeconómicos relacionados com a saúde e as possíveis barreiras no acesso aos cuidados de saúde tendem a conduzir a um maior impacto da COVID-19 em grupos minoritários, incluindo no que diz respeito à incidência e à prevalência da doença (Greenaway et al., 2020).
Um estudo de Srivastava et al. (2021) que pretendeu avaliar fatores causadores de stress durante a pandemia da COVID-19 e estratégias utilizadas pelos migrantes para lhes fazer face, concluiu que os principais fatores de stress se prendem com a crise financeira vivenciada, o suporte social deficitário, a incerteza e o medo face à pandemia. As estratégias de coping apontadas pelos migrantes que participaram neste estudo prenderam-se essencialmente com envolver-se em ações orientadas para os problemas concretos (e.g. toma de medicação para ajudar no combate ao stress e trabalhar para fazer face à situação económica mais desfavorecida), procurar suporte social junto da família, amigos ou outros e manter um pensamento positivo e de autoajuda, o que vai ao encontro do que foi identificado pelos nossos participantes.
Face à situação de pandemia, fica claro que estes fatores de risco ganham uma relevância ainda maior e desafiam o bem-estar psicossocial destas populações (Guedes et al., 2021; Spiritus-Beeden et al., 2021). As redes de suporte são especialmente fundamentais nesta fase, sendo identificadas como um elemento-chave por todos os indivíduos para um bem-estar físico e emocional, assim como um nível de maior resiliência durante a fase aguda da pandemia (Guedes et al., 2021; Li et al., 2021; Mei et al., 2021). Um estudo de Mead et al. (2021) concluiu que alguns dos fatores protetores que surgem associados ao bem-estar durante a situação pandémica prendem-se com a gratidão, o otimismo face a uma situação adversa e a existência de suporte social.
O presente estudo de abordagem qualitativa apenas se focou em analisar as condições descritas pelos refugiados e migrantes a viver em Portugal, que tiveram acesso ao questionário online e decidiram responder voluntariamente às duas perguntas de resposta aberta. Assim, os resultados aqui reportados podem não refletir todas as condições necessárias para adicionalmente apoiar migrantes e refugiados a lidar com a pandemia da COVID-19 em Portugal. Por outro lado, estes resultados podem não espelhar todas as condições criadas pelos próprios para ajudar terceiros a lidar com a pandemia.
Em forma de conclusão, este artigo permite compreender e reconhecer o papel que os migrantes e refugiados podem desempenhar na comunicação e sensibilização dos riscos para a saúde aos restantes elementos da sua comunidade, durante a pandemia e no futuro em futuras crises sanitárias, climáticas ou psicossociais.
É fundamental por um lado incluir e capacitar a população migrante e refugiada para participar na construção de planos e estratégias públicas de prevenção e combate às desigualdades sociais existentes nestas populações, especificamente no contexto pandémico, em que os grupos minoritários e desfavorecidos foram dos que mais sofreram, por outro lado prever uma adequada capacidade de resposta dos serviços a si dirigidos, uma prestação de serviços de uma forma eficaz e adaptada à crescente diversidade cultural e religiosa das nossas sociedades (Dias, et al., 2021; Guedes, et al., 2021; Spiritus-Beerden et al., 2021; Ullah et al., 2021). Ao enfrentar estes desafios, para além da participação das populações-alvo, a abertura, a flexibilidade e a capacidade de lidar com a mudança e com a diversidade aparecem evidenciadas.
Contribuição dos autores
Fábio Botelho Guedes: Concetualização, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição.
Susana Gaspar: Redação do rascunho original, Análise formal
Ana Cerqueira: Análise formal.
Tania Gaspar: Análise formal.
Gina Tomé: Análise formal.
Cátia Branquinho: Análise formal.
Pedro Calado: Redação - revisão e edição.
Maria Emília Marques: Redação - revisão e edição.
Ilse Derluyn: Concetualização.
An Verelst: Concetualização.
Morten Skovdal: Concetualização.
Margarida Gaspar de Matos: Concetualização, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição.