Atualmente, a autoperceção de saúde é uma medida amplamente utilizada para avaliar o estado de saúde da população. Estudos retratam sua utilização desde 1960 (Garrity et al., 1978; Kaplan et al., 1976; Maddox, 1962) e em pesquisas epidemiológicas com populações brasileiras e internacionais (Alkaid et al., 2019; Cha et al., 2019; Cruz & Irffi, 2019; Fajardo-Bullón et al., 2019).
O conceito da autoperceção de saúde consiste na autoavaliação do estado de saúde individual referente à sua própria saúde, sendo um indicador que engloba diversos componentes da vida (Jylhä, 2009; Simon et al., 2005).
Os instrumentos que avaliam a autoperceção de saúde têm sido utilizados em pesquisas e considerados uma forma confiável de mensurar e monitorar o estado de saúde dos indivíduos, além de se tratar de uma aplicação de baixo custo e com praticidade para utilização em serviços de saúde.
Pesquisas têm apresentado que a autoperceção negativa de saúde tem associação com o risco aumentado de morbimortalidade (Alkaid Albqoor et al., 2019; Mavaddat et al., 2014; Ximena et al., 2014). Entretanto, atualmente pesquisadores tentam compreender quais dimensões os respondentes consideram quando avaliam sua saúde, pois fatores condicionantes podem ser influenciados por diferentes aspectos, como questões ambientais, culturais, sociais, psicossociais, de estilo de vida e qualidade de vida (Freitas et al., 2010; Jylhä, 2009; Ko & Boo, 2016; Pagotto et al., 2011; Silva & Menezes, 2007).
Em recentes publicações, considera-se que os estudos sobre autoperceção de saúde têm despertado o interesse para a monitorização de indicadores clínicos, comportamentais de risco, da mortalidade, de resultados clínicos e de programas de saúde pública (Petrelli et al., 2017; Šolcová et al., 2017; Visscher et al., 2017). Todavia, é relevante conhecer na literatura quais são os instrumentos que mensure a autoperceção de saúde em adultos, no intuito de sumarizar e verificar a existência de lacunas na avaliação e caso necessário a construção de um novo instrumento, aprimorando as dimensões constitutivas e operacionais de um determinado construto.
Estudos têm apresentando que a falta de compreensão da autoperceção de saúde é uma lacuna para os pesquisadores, principalmente pela subjetividade da avaliação e a relação dessa avaliação com associação positiva para a mortalidade preditiva em diferentes populações (Jylha et al., 1986).
Partindo disso, uma revisão de escopo foi conduzida para mapear os instrumentos de avaliação da autoperceção de saúde em adultos. Para isso, utilizamos a seguinte pergunta: “Quais instrumentos avaliam a autoperceção de saúde em adultos e como se caracterizam?”.
Método
A revisão de escopo foi conduzida com base em cinco estágios: 1)identificação da questão de pesquisa; 2) identificação dos estudos relevantes; 3)seleção de estudo; 4) categorização dos dados; 5) coleta, resumo e mapeamento dos resultados (Tricco et al., 2018). O protocolo foi reportado conforme recomendações do checklist PRISMA-ScR (PRISMA extension for Scoping Review), sendo registrado na Open Science Framework sob o DOI 10.17605/OSF.IO/8VGAW (https://osf.io/8vgaw/) e revisado pela equipe de pesquisa e membros do GRUPPECCE-CNPq (Grupo de Pesquisa Epidemiologia, Cuidado em Cronicidades e Enfermagem).
Os estudos foram selecionados a partir de pesquisas publicadas em revistas científicas, em qualquer idioma, de qualquer ano de publicação, dissertações e/ou teses defendidas. Foi adotada a estratégia PCC (População, Conceito e Contexto) (Peters et al., 2015). Para elegibilidade dos estudos foram escolhidos aqueles que, de alguma forma, mensurassem a autoperceção de saúde de adultos (18-65 anos) e apresentassem a referência do instrumento utilizado.
O conceito da autoperceção de saúde foi definido com base no auto relato do estado de saúde dos indivíduos, sendo analisados diversos componentes da vida (Jylhä, 2009). Assim, considerou-se instrumento de autoperceção da saúde os que assim se autointitularam e/ou que avaliaram características pessoais de saúde, apresentando a autoperceção do indivíduo sobre sua saúde (Terwee, et al., 2007). Por sua vez, foram definidos como instrumento aqueles que recolhem informações sobre diversas características ou desfechos em saúde.
A busca dos artigos compreendeu o período de Junho a Agosto de 2019. A identificação dos artigos se deu por meio de busca eletrônica em fontes primárias e secundárias, e em literatura cinzenta. As seguintes bases de dados, repositórios e diretórios foram estabelecidas para a busca: Web of Science (WoS) do Institute for Scientific Information, Scopus da Elsevier; MEDLINE - National Library of Medicine via PubMed; LILACS - Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde; SciELO - Scientific Electronic Library Online. Como recurso adicional, fez-se buscas manuais nas referências dos artigos selecionados, buscas em sites especializados (ResearchGate), além de contato com os respectivos autores.
Para estratégia de busca na identificação dos estudos utilizou-se o Medical Subject Heading (MeSH), os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e palavras chaves. Elegeram-se os seguintes descritores e palavras chaves: (“health status” OR “diagnostic self-evaluation” OR “health status indicators” OR “self-reported heath” OR “self-rated health” OR “perceived health” OR “self-evaluated health” OR “self-reported health” OR “self-ratings of health” OR “self-assessments of health” OR “self-perceptions of health”) AND (adult OR “young adult” OR men OR woman) AND NOT (child OR adolescent OR aged)AND (“Clinical Trial, Observational Study”). Para sensibilizar a busca por artigos, cada banco de dados teve sua estratégia.
Para a elegibilidade do estudo foi realizada uma busca por dois examinadores de forma independente, com base nas estratégias definidas. Caso houvesse divergência, um terceiro examinador foi solicitado. A gestão de referências e remoção de duplicidades foi realizada com o auxilio do Endnote web (https://www.myendnoteweb.com/EndNoteWeb.html) e os artigos foram gerenciados usando planilhas do Excel.
Na primeira etapa os examinadores realizaram uma triagem dos artigos com a leitura dos títulos e resumos, para assegurar a inclusão dos artigos conforme os critérios estabelecidos (SMM,DSP,KAF,VRSA). Ao findar as buscas, os revisores justificaram a exclusão dos artigos durante uma reunião de consenso para avaliar a seleção dos artigos selecionados para a segunda etapa. As discordâncias foram resolvidas em consenso pelos revisores (TMMM, SMM).
Na segunda etapa, os estudos foram lidos na íntegra (SMM,DSP,KAF). Como critério de permanência, adotaram-se os critérios: artigo deve ter um instrumento de avaliação da autoperceção de saúde e apresentar a referência de sua criação ou validação, para consulta do instrumento original. Em seguida, as listas de referências dos estudos incluídos foram analisadas pelos pesquisadores (SMM,DSP,KAF,VRSA) para inclusão de novos estudos não encontrados inicialmente nas buscas. Para a identificação da literatura cinza, analisaram-se as publicações não convencionais e não comerciais, semipublicadas, produzidas em número limitado de cópias e com normas variáveis de produção e edição ou publicadas em sites especializados (Botelho, 2017). A descrição final dos resultados da busca e seleção utilizou o diagrama PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Review and Meta-Analyses), conforme apresentado na figura 1 (Moher et al., 2009).
A extração e gerenciamento dos dados foram realizados em um mapeamento dos estudos com um formulário gráfico. Foram também extraídas informações relevantes dos estudos, como sexo da amostra incluída, referenciais teóricos, autor(es), ano de publicação, local da pesquisa, nome do instrumento, além de domínios, dimensões e itens. Ao final, foi elaborado um resumo crítico, sintetizando também os tipos de instrumentos, objetivo de criação, elementos constitutivos e operacionais.
Resultados
Constatou-se 429 artigos inclusos para o processo de análise de seleção, após a remoção dos duplicados 411 foram elegíveis para leitura do resumos completos e restando 117 para a leitura completa dos artigos, ao final da análise evidenciou-se 61 artigos para o processo final, sendo identificados 4 instrumentos.
As pesquisas foram predominantemente desenvolvidas nos continentes da Europa e América do Norte, como apresentado na Figura 2. Um dos estudos foi realizado em três continentes, enquanto três foram realizados em dois continentes.
O Quadro1 apresenta a caracterização dos estudos selecionados para a Revisão de Escopo. Averiguou-se que 43% das publicações foram realizadas nos últimos cinco anos (2014-2019), sendo publicadas em 55 periódicos diferentes, 90% em periódicos editorados fora do Brasil. Sobre o local de pesquisa, 72% se deram em ambiente clínico e/ou hospitalar. Em relação ao sexo, 82% dos estudos foram com indivíduos de ambos os sexos. O instrumento mais utilizado nas pesquisas foi o SF-36 (61%).
Para a descrição dos instrumentos, apresentamos no Quadro 2 as informações referentes à quantidade de itens, dimensões e subdimensões.
Para descrição da autopercepção de saúde em cada instrumento, foram apresentadas as dimensões e itens de cada instrumento no Quadro 3.
Discussão
O SF-36 (The Medical Outcomes Study 36-item Short-Form Health Survey) tem o objetivo de avaliar de forma genérica a saúde (Ware & Sherbourne, 1992). Sua construção foi oriunda de um questionário de avaliação de saúde com 149 itens, desenvolvido e aplicado em mais de 22000 pacientes, como parte de um estudo de avaliação de saúde (The Medical Outcomes Study - MOS)(Ware & Sherbourne, 1992). O questionário é multidimensional, com 36 itens agrupados em oito componentes: capacidade funcional (10 itens), aspectos físicos (4 itens), dor (2 itens), estado geral de saúde (5 itens), vitalidade (4 itens), aspectos sociais (2 itens), aspectos emocionais (3 itens), saúde mental (5 itens) e mais uma questão de avaliação comparativa entre as condições de saúde atual e a de um ano atrás. Sua avaliação engloba aspectos negativos da saúde (doença ou enfermidade) e aspectos positivos (bem-estar)(Ware & Sherbourne, 1992).
Este instrumento foi traduzido e adaptado para língua portuguesa do Brasil no ano 2000, sendo utilizado em mais de 200 doenças e traduzido em 40 países (Ferreira, 2000a, 2000b; Garratt, 2002). Segundo o instrumento, a dimensão saúde geral pretende medir o conceito de percepção holística da saúde, incluindo a saúde atual, resistência à doença e aparência saudável. Para a classificação da saúde geral, ela é avaliada de forma conjunta, somando-se o item 1 e 11 aos demais domínios, entretanto, há um item no qual não faz parte da classificação geral do instrumento e que avalia a saúde atual e comparada no período de um ano (Ferreira, 2000a; 2000b).
Em relação à pontuação, os itens possuem opções de resposta categórica com pontuação de 3-6 pontos. As pontuações de cada item são somadas e transformadas em uma escala de 0 a 100, onde valores mais altos denotam melhor saúde. O instrumento pode ser autopreenchido via entrevista ou mesmo administrado por telefone (Ware & Sherbourne, 1992).
O SF12 é um questionário com 12 perguntas que representa uma versão encurtada, porém válida, do SF 36 (Ware & Kosinski, 1996). Durante o processo de utilização do SF12, foram criadas duas versões com o intuito de melhoria do questionário. A primeira versão foi criada em 1994 e tem como única opção de pontuação o cálculo de dois domínios, o físico e o mental. Nesta versão, estudos apresentaram evidências que os domínios físico e mental deste questionário eram responsáveis por 80 a 85% da variância dos oito domínios originalmente descritos (Ware & Kosinski, 1996).
O instrumento genérico de qualidade de vida EQ‐5D-3L, foi desenvolvido por pesquisadores de cinco países da Europa para avaliar o estado geral de saúde da população (The EuroQol Group, 1990). O pesquisadores recomendam sua utilização em estudos de avaliação, pesquisa políticas e avaliação econômica. Pode ser auto administrado ou usado durante entrevistas. No seu desenvolvimento foram recomendadas seis dimensões com subdimensões distintos, abrangendo duas ou três categorias dentro de cada uma. A escolha das dimensões se deu com base nas medidas de saúde existentes, o TheRosser Index por Rosser e Watts (1972), Quality of Well Being Scale, por Patrick et al. (1973), The Sickness Impact Profile por Bergner et al., (1976) e Nottingham Health Profile por Hunt et al. (1986) (Bergner et al., 1976; Jenkinson et al., 1988; Patrick et al., 1973; Rosser & Watts, 1972; The EuroQol Group, 1990).
O EQ-5D-3L possui cinco dimensões para avaliar a saúde: ansiedade /depressão, mobilidade, dor/desconforto, autocuidado e atividades habituais. Para cada dimensão, existem três níveis de gravidade associados, sendo apresentado em “sem problemas” (nível 1), “alguns problemas” (nível 2) e “problemas extremos” (nível 3) (Ferreira et al., 2013).
Outra medição utilizada é o EQ-VAS, representado por um termômetro no formato de uma escala analógica visual vertical de 20 cm com intervalo de 0 a 100, onde 0 é o pior e 100 a melhor saúde imaginável. Está medição da autoperceção de saúde é avaliada de forma isolada para descrição da percepção do sujeito (Ferreira, et al., 2013).
O grupo EuroQuol no ano de 2009 desenvolveu o EQ-5D-5L, melhorando a sensibilidade do instrumento e reduzindo os efeitos de teto, quando comparados com o EQ-5D-3L. Este instrumento está disponível em mais de 130 idiomas em vários modelos de aplicação (Payakachat et al., 2015).
O Projeto de Informações da Cooperativa de Atenção Básica de Dartmouth desenvolveu a COOP gráficos no final da década de 1980 para fornecer uma ferramenta de triagem para uso pelos médicos na prática de rotina. Seus gráficos suportam a avaliação do estado de saúde do paciente (Nelson et al., 1987). O instrumento COOP foi desenvolvido nos EUA, constituindo nove gráficos, em cada domínio e possui uma única pergunta sobre saúde, funcionamento ou qualidade de vida durante o mês anterior. Os demais gráficos avaliam a dor corporal, atividades diárias, emocional condição / sentimentos, aptidão física, qualidade de vida, atividades sociais, apoio social e percepções atuais da saúde geral. Um gráfico adicional avalia a mudança na saúde geral (Nelson et al., 1987).
Entretanto, após um estudo de viabilidade multinacional, o instrumento passou a conter sete gráficos, sendo excluída qualidade de vida e apoio social, com um período de recordação reduzida de duas semanas (McHorney et al., 1992). O novo instrumento passou a ter a nomenclatura WONCA / COOP. É composto de uma pergunta e uma ilustração, com cinco opções de resposta no formato likert onde cinco é a limitação mais grave e não havendo uma pontuação geral (McDowell & Newell, 1996). A aplicação do instrumento pode ser autoadministrado ou não. Este instrumento avalia separadamente cada domínio, não gerando um desfecho de medida.
De forma geral foram identificados quatro instrumentos que abordam o assunto. Entretanto, os questionários não são específicos da autoperceção de saúde e somente o SF-36 possui uma dimensão da autoperceção de saúde que integra o desfecho do instrumento, que avalia a qualidade de vida. Os demais avaliam a autoperceção de saúde a partir da mensuração sem atribuir um resultado especifico ao individuo, como também as opções de resposta seguem o mesmo padrão.
Atualmente os instrumentos SF-36 e EQ‐5D-3L são predominantemente utilizados em pesquisas para avaliar a autoperceção de saúde em diversas pesquisas (Biswas & Chattopadhyay, 2018; Kruithof et al., 2019; Rodrigues et al., 2019).
Em relação as limitações deste estudo, apresentamos que não foi realizada a avaliação da qualidade metodológica dos instrumentos selecionados, pois, para revisão de escopo não é recomendando (Tricco et al., 2018). Não incluir o tipo de validade dos instrumentos, o que pode superestimar ou não a utilização do instrumento em pesquisas. Recomendamos para futuras pesquisas avaliar a qualidade metodológica dos instrumentos e seus tipos de validade.
Este estudo fornece uma visão geral dos diferentes instrumentos utilizados para avaliar a autoperceção de saúde em adultos. Os resultados podem ser adotados para informar os métodos existentes, como também os esforços desenvolvidos para elaboração de um conceito mais fidedigno para avaliar a saúde. Este estudo orienta novas propostas de pesquisas a serem desenvolvidas para a construção de instrumentos específicos da autoperceção de saúde na população em geral.