1. O ponto de partida de uma educação Religiosa nas escolas públicas: a modernidade e suas implicações
A educação moral e religiosa foi um dos campos permeáveis às múltiplas transformações do panorama social, cultural, político, religioso e educativo em Portugal. Como consequência da modernidade, a educação moral religiosa (católica) passou a ser ministrada nas escolas/liceus públicas/os e a sua pertinência nestes estabelecimentos de ensino tornou-se um campo de disputas.
Apesar de não ser consensual, a modernidade emergiu na Europa e pode ser datada por volta do final do século XVII1, principalmente por duas influências: o iluminismo e a revolução francesa. A partir desta altura, inicia-se uma rutura com a ordem tradicional e consequentemente uma reorganização da vida social (Giddens, 2013). Destaque para a industrialização e desenvolvimento do capitalismo; o aparecimento do Estado-nação moderno (secular) com controlo em muitos dos aspetos políticos e sociais que estavam ao encargo das Igrejas, nomeadamente, da Católica Romana (Woodhead, 2002; Asad, 2018); o desafiar do monopólio das verdades religiosas por parte do desenvolvimento científico (Furseth & Repstad, 2006); a emergência do pensamento racional e as suas consequências nas crenças e práticas religiosas (Thomas & Walsh, 1998: 363); e o alargamento da educação do conhecimento para espaços institucionalizados.
A modernidade acarretou um conjunto amplo de consequências e um conjunto de “novas incertezas, novos riscos e mudança ao nível da confiança das pessoas noutros indivíduos e nas instituições sociais” (Giddens, 2013: 14). Nas instituições religiosas isto é notório pelo seu progressivo afastamento por parte dos indivíduos e pelo aumento da procura individualizada de sentido. No entanto, como é demonstrado adiante, isso não significa necessariamente uma perda de influência da religião no nível social (Davie,1990).
De forma elucidativa, tome-se como exemplo, as implicações da modernidade para as ruturas e adaptações do catolicismo, que são demonstradas, de forma notável, no metafórico desaparecimento do modelo de civilização paroquial pós-tridentino (Lambert, 1985). A civilização paroquial marcada por uma prática religiosa estável, regulada pela instituição, canonizada, comunitária, repetida, obrigatória e onde havia uma “conceção cristã totalizante da vida” (Bobineau e Tank-Storper, 2008: 83) sofreu alterações a vários níveis. No domínio cognitivo, refira-se a passagem de um conhecimento geracional, tradicional, local e clerical para uma intromissão do pensamento técnico-científico no interior da Igreja Católica Romana2 e abertura para uma educação ministrada por professores; no domínio material assiste-se à passagem de uma influência direta nas políticas sociais e económicas para uma quase exclusivamente moral, transmitida nomeadamente pela escola e a política; e no domínio afetivo, uma transformação da religião como reguladora coletiva para uma relação mais individualizada com o transcendente.
O entendimento sociológico das alterações religiosas na modernidade, incluindo do caso português, está intimamente ligado às teorias da secularização (Casanova, 1994: 18). A secularização, segundo Bryan Wilson (1969), é um processo, particularmente percetível na Europa, “por meio do qual, o pensamento, prática e instituições religiosas perdem significado social” (Wilson, 1969: 11)3. De forma similar, Peter Berger (1967) foca-se na perda de significado social e cultural destas instituições, seus símbolos e na diminuição de importância da religião nas consciências individuais. Perante a racionalização, a pluralização e o aumento da oferta religiosa, o autor introduz a metáfora do mercado religioso, onde as religiões são expostas às preferências dos consumidores (Berger, 1963). Numa tentativa de romper com os paradigmas unilaterais da secularização, Dobbelaere (1981; 2004) propõe uma distinção entre três níveis de secularização, a macro-societal ou social, mesossocietal ou organizacional e a nível microssocietal ou individual. A secularização social segundo Berger (1967), um dos importantes teóricos da secularização, é a perda de significado de referenciais dos sistemas religiosos na amplitude dos subsistemas sociais, isto é, uma substituição de um universo de normas transcendentais por um conjunto de ideologias racionais na esfera institucional, há́ um “desencantamento do mundo” (Weber, 2001). A organizacional, ou como Luckmann (1967) refere, a nível interno, é a perda de ortodoxia nas organizações religiosas, nos valores moral, no universo de crenças e nos rituais. Por fim, a secularização individual é entendida como a perda e a transformação das crenças e sistemas de significados das religiosidades individuais. A medição da interiorização desta secularização é desenvolvida pela teoria da compartimentação (Dobbelaere, 1999). Esta mede, “no plano da consciência individual, o grau de diferenciação entre os valores e as normas religiosas e os valores e normas políticas, económicas, familiares ou científicas” (Vilaça, 2004: 93).
A proposta de Dobbelaere foi essencial porque permitiu perceber que a redução da importância da religião num dos níveis não implica necessariamente a mesma direção noutro nível. Vejamos a título de exemplo o que refere Willaime (2006):
...de facto, é concebível que a diminuição da importância social da religião, em particular após a diferenciação funcional das instituições e atividades, não implique em si mesma uma diminuição das práticas e compromissos individuais.Por outro lado, um declínio nas práticas e compromissos individuais não significa forçosamente uma perda de influência da religião no nível social (Willaime, 2006: 764).
A este propósito, Grace Davie (1990) defende que esta persistência da influência religiosa nos indivíduos afastados das práticas nas instituições religiosas, é denominado believing without belonging.
O conceito de secularização que se adota, contrariamente ao que David Martin propunha em Towards eliminating the concept of secularization (1969) não está vinculado a ideias de um declínio inevitável da religião e muito menos ao desaparecimento dos fenómenos religiosos. Pelo contrário, é entendido como o “rearranjo social e cultural do religioso e não de seu desaparecimento, um rearranjo que afeta seu status tanto do ponto de vista institucional quanto do ponto de vista cultural...” (Willaime, 2006: 766), logo como um processo de transformações. É na soma destes rearranjos com o aumento do pluralismo religioso, mais especificamente, do ressurgimento público de minorias religiosas já existentes e a emergência de novos grupos religiosos, que a maioria dos sociólogos abandonaram as teorias da secularização. No entanto, como José Casanova refere, ainda existem alguns old believers (Casanova, 1996: 11), tais como Bryan Wilson (1969), Steve Bruce (2001) e Karel Dobbelaere (1981; 2004), que defendem que a teoria da secularização tem valor explicativo nas sociedades mundiais atuais. Principalmente no mundo ocidental, a teoria da secularização continua a fazer sentido, incluindo em Portugal. O nível de escolaridade e a idade são dois indicadores que sustentam isso: os indivíduos mais escolarizados, de modo particular na Europa representam uma elite cultural globalizada com baixo grau de religiosidade, especialmente com formação nas ciências sociais (Berger, 1999). Extrapolando a exception européenne (Willaime, 2006: 755) a teoria da dessecularização proposta por Peter Berger (1999) e seguida com notoriedade por Danièle Hervieu-Léger (2005) parece enquadrar-se melhor no panorama religioso mundial - “eligioso como sempre e em alguns locais mais religioso do que nunca.” (Berger, 2002: 292) -, dando conta do aumento da pluralização cultural e religiosa.
2. O caso português: o deambular de tensões entre Igreja Católica e Estado na educação religiosa escolar
O desenrolar da modernidade em Portugal e a relação com a educação religiosa escolar torna-se patente desde o início do constitucionalismo português. A primeira constituição portuguesa, em 1822, já nasce com tensões entre o Estado e a Igreja Católica. A oposição liberal ao poderio do monopólio católico português movido por um espírito anticongregacionalista e anticlerical manteve uma relação intrinsecamente paradoxal pois não pôs em causa o comprometimento dos cidadãos e órgãos de poder com a religião católica. Apesar disto, na área educativa iam-se criando esforços para fomentar uma instrução pública gratuita, desprovida de doutrina religiosa e que contribuía para uma situação mais confortável das minorias religiosas (Carta constitucional de 1826, art.145º).
A ideia de conjugar a liberdade com uma igualdade que levasse à consciência moral dos cidadãos injustiçados e à crescente vontade de emancipação da monarquia alimentaram a formação de um pensamento republicano. A nível religioso, as manifestações de secularização individual que influenciavam os liberais, alargam-se e disseminam-se no pensamento republicano. Assim, a crença da “morte do Deus transcendente” (Catroga, 1991: 212) influenciada pelo antropocentrismo, levou a uma ética (republicana) justificadora de uma moral sem Deus e, consequentemente, à completa laicização do Estado (Lei da separação do Estado das Igrejas de 20 de abril de 1911).
Existia um clima de tensão entre duas instituições fragilizadas no século XIX e inícios do século XX, a Igreja Católica e o Estado. A queda da monarquia, a falta de autonomia, o crescimento da sociedade civil e a defesa de valores conservadores, também associados a um papado, politizado, que tentava restaurar a ordem tradicional, numa luta contra a modernidade 4 vão marcar a decadência da Igreja Católica.
A educação, vista como essencial para a modernização da sociedade, tinha de espelhar o combate ao obscurantismo intelectual católico e assim lutar contra o analfabetismo; defender a liberdade e obrigatoriedade do ensino; valorizar bons métodos de ensino e organização para as ciências naturais; e fomentar o conhecimento para a formação dos mais jovens através de uma ética e moral secular. O ensino religioso nas escolas públicas é extinto (Diário do Governo, 1910) e é proposta uma disciplina que, à semelhança da educação moral religiosa, transmitisse uma moral unificante, coesa, solidária e benevolente, mas laica. Assim, segundo Catroga (1991), dando continuidade às lições de civismo que vinham da monarquia, incentiva-se a educação cívica nas escolas primárias.
Com a primeira guerra mundial, a aproximação do sidonismo e com Fátima como afirmação pública, as tensões entre a Igreja Católica e o Estado iam-se esmorecendo e, passo a passo, a influência católica na educação pública voltava. Com o Estado Novo e com Salazar no poder estas acentuaram-se. A 23 de maio de 1935 o ensino, financiado pelo Estado laico, volta a ser orientado pelos princípios da doutrina moral católica. A educação cívica, a partir desta altura, era ministrada por compêndios de educação moral e cívica que veiculavam tanto os interesses do Estado como da Igreja Católica, até 22 de Outubro de 1948, quando é aprovado o programa de Religião e Moral. Atualizado em 1960, o programa antecede, segundo Bobineau e Tank-Storper (2008), um dos maiores marcos de secularização organizacional católico, o concílio Vaticano II (1961). Segundo Helena Vilaça (2006) as reformas litúrgicas, culturais e da organização interna, tal como a abertura a outras confissões, entraram em choque com a estrutura tradicional católica.
Na vertente educativa, o concílio derivou num documento - o Gravissimum educationis (1962) - que retificava as valorizações educativas no panorama nacional, nomeadamente, a formação (física, intelectual e moral) dos educadores escolares e a importância da escola.
A entrada na democracia, a 25 de abril de 1974, deu origem a novas dinâmicas para a Educação religiosa. Ênfase para a parelha da religião com a liberdade, que permitiu no plano coletivo o ensino religioso no âmbito da respetiva confissão, a proibição de propaganda de crenças religiosas na educação e a abolição da confessionalidade do ensino público.
Em 1983, a disciplina de ciência moral e religiosa vai ser substituída pela de Religião e Moral Católica. Apesar de ser opcional e ter uma orientação católica, o estatuto da disciplina, a par do restante currículo escolar, estava sujeito às regras e aprovação do ministério. Seis anos mais tarde a disciplina de Educação Moral Religiosa além de opcional torna-se alternativa e facultativa a desenvolvimento pessoal.
Entretanto, a entrada de Portugal na União Europeia (1986) e o aumento das imigrações permitiam o aparecimento de “novos grupos religiosos e o aumento de visibilidade das confissões antigas” (Vilaça, 2006: 152), levando ao acompanhamento e reconhecimento do fenómeno religioso, a novos protagonismos e reivindicações, nomeadamente sobre a igualdade dos grupos religiosos e concorrência dos bens religiosos. O culminar destes fatores abriu portas a que a 22 de junho de 2001 fosse aprovada a Lei da liberdade religiosa. Ao abrigo desta, os grupos religiosos tais como, cristãos não católicos (evangélicos e ortodoxos), judeus, islâmicos, budistas e hindus passam a estar em pé de igualdade. Assim, no caso do ensino religioso, se houver acordo entre a comunidade religiosa, aprovação do governo e número mínimo de alunos inscritos na disciplina5, pode ser ministrado nas escolas públicas o ensino moral e religioso dessa confissão. A concordata de 2004, vai assegurar tanto os termos da lei da liberdade religiosa, como o do ensino da religião moral católica. As preocupações com o ensino moral e religioso católico levou a uma (re)afirmação e reformulação do regime jurídico da disciplina, nomeadamente, do estatuto, regime de avaliação e revisão dos programas; elaboração, edição e divulgação dos manuais e suportes didáticos; e certificação das habilitações para os docentes da disciplina.
2.1. As transformações do panorama religioso português
Como demonstrámos acima, a modernidade afetou amplamente o campo da educação religiosa. Ficou claro que as principais causas derivaram de alterações sociopolíticas, mas também de alterações e transformações do panorama religioso português, nomeadamente, a partir da democracia. Apesar disso, o contexto religioso nacional já sofria alterações significativas resultantes dos diversos ciclos de industrialização, terciarização e urbanização (Teixeira, 2019).
Mesmo no Estado Novo, onde havia uma valorização da tradicionalidade nacional - campesina e católica - não foi evitado um êxodo rural crescente, a passagem para um estilo de vida urbano e, consequentemente, uma destabilização das comunidades paroquiais.
A partir da democracia começa progressivamente a notar-se uma valorização das redes de afinidade que ganham terreno sobre as redes homogéneas dos grupos sociais, por exemplo as paroquiais. A alteração nas relações, do modo de vida urbano e do impacto da secularização, também teve implicações na erosão das práticas semanais da eucaristia. Em 2008, já mais de metade dos que se diziam católicos praticavam pouco ou nada (EVS, 2010) e dos que praticam, há um aumento do que Charles Taylor (2007) chama de crentes buscadores - peregrino de religiosidade modular, temporário, com mobilidade, adesão pessoal, individualizada e desregulada. Fátima torna-se lugar privilegiado para estes crentes, mas nesta nova dimensão, também prova de destradicionalização. Independentemente da prática eucarística há uma recomposição individual do crer (Teixeira, 2019). A partir da democracia, as recomposições do catolicismo andaram a par com um conjunto de fatores que permitiram o ressurgimento público de minorias religiosas já existentes no país e a emergência de novos grupos religiosos (Vilaça, 2006). Destaque para o crescimento das imigrações.
Na Figura 1 é possível visualizar o crescimento do número de imigrantes com título de residência em Portugal, apresentado, no último ano (2019), o valor mais elevado registado.
Segundo Donizete Rodrigues, “a importância da religião aumenta quando as pessoas aos poucos migram” (Donizete, 2016: 134), mas a diversidade religiosa em Portugal, apesar de continuar a aumentar, apresenta-se muito baixa. As projeções mais recentes apontam para uma manutenção ou ligeira subida das minorias religiosos, um aumento significativo dos sem religião (crentes e não crentes) e diminuição da população católica (Pew research, 2015; ARDA, s.d; Teixeira, 2013). No entanto, segundo os Censos (1990-2011)6 e os dados do European Values Study (2010) esta última tendência parece ainda não se confirmar, demonstrando um crescimento da população que se autorreperesenta como católica, desde a última década do século XX.
De acordo com Teixeira (2019), apesar deste aumento, o aglomerar dos fatores apontados que transformaram o campo religioso nacional levaram a uma perda de articulação de referências identitárias católicas. No ensino de EMRC, esta perda é refletida no constante decréscimo de alunos a frequentar a disciplina, não só no concelho do Porto (Figura 2) e respetivo distrito, mas também em Portugal continental (Figura 3).
Tendo isto em conta, Vilaça e Oliveira (2019) ratificam precisamente que os fenómenos que definem a modernidade, nomeadamente a secularização individual, social e a pluralização do campo religioso, levaram a um declínio do peso normativo da Igreja Católica em Portugal. De facto, as antigas restrições morais “deram lugar à permissividade moral” (Wilson, 1995). Como Alfredo Teixeira aponta, “os dinamismos de pluralização conduziram ao incremento da não pertença religiosa, à afirmação do universo de pertenças religiosas minoritárias e à descompactação da identidade católica” (Teixeira, 2019: 56-57).
Com significância para o primeiro destes casos, em Portugal, entre 1990 e 2011, houve um aumento das pessoas que não pertencem a uma confissão religiosa (agnósticos, ateus, indiferentes e crentes sem religião) (Teixeira, 2019)7, mas são os crentes sem religião que são destacados para “responder à complexidade que enreda o crer e o pertencer” (Teixeira, 2019: 56), nomeadamente, as dinâmicas sociais emergentes e a diminuição percentual dos católicos em Portugal (Teixeira, 2019). Consequentemente, este grupo parece chamar a atenção dos professores de EMRC do concelho do Porto por representar, segundo os mesmos, grande parte das famílias dos seus estudantes. Apesar disso, somente 18,9% dos filhos dos crentes sem religião foram socializados num contexto escola (Teixeira, 2013: 144).
2.2. Os professores
Os professores de educação moral e religiosa, passaram desde a primeira constituição portuguesa, em 1822, por diferentes estatutos, funções e significações. À semelhança dos outros professores, tinham como incumbência experimentar, treinar, organizar, avaliar, motivar, exemplificar, modelar e corrigir os alunos, formando os jovens alunos numa moral que os preparasse para o futuro. Contudo, somente a partir de 1983 vão gozar dos mesmos direitos. Diferenciam-se por serem propostos pela Igreja Católica - em caso de idoneidade (Lei nº16/2001- art. 24º) - e por lecionarem uma disciplina opcional, dependendo assim do número de inscrições dos alunos. Ao longo do tempo, estes professores acompanharam principalmente as ideologias, as premissas e transformações do próprio catolicismo, logo, a sua representação estava em consonância com a relação da Igreja Católica com o Estado ao longo do tempo.
Na atualidade, os professores de EMRC são perfilados pela direção geral da educação (Decreto-Lei n.º 240/2001) e pela Comissão Episcopal da Educação Cristã e Doutrina da Fé (EDUCRIS). O perfil de professor, apresentado no Decreto-Lei n.º 240 de 2001, tem em conta o seguinte: ensinar, assegurar e promover a aprendizagem segundo as competências e as políticas educativas; promover a autonomia, inclusão, bem-estar e identidade individual e cultural do aluno; ser um exemplo na atuação, reflexão e na transmissão de valores éticos; e ter capacidades relacionais, de comunicação e de equilíbrio emocional. A EDUCRIS atribui especificidades aos docentes da disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica. Assim, consequência de uma triangulação, professor, educador e testemunha de fé, é indispensável que seja uma testificação da doutrina cristã, porque é esta “fé que professa a qual serve de ponto de orientação na sua ação enquanto professor” (EDUCRIS, s.d). 1) Como professor deve seguir o disposto no Decreto-Lei n.º240/2001. 2) Como educador é evidenciada a capacidade empática, possível através da aproximação aos alunos e das relações mais personalizadas, e a postura de mediador crítico com todos os atores envolvidos no plano educativo. 3) Como testemunho de fé e portador de uma missão evangelizadora, tem o dever de ser um exemplo de valor e moral cristã e de uma capacitação, nas diversas esferas sociais, de se adaptar à realidade cultural em que se insere.
Relembro que estes professores, para lecionar, têm necessidade de estar inseridos numa paróquia, pois é condição essencial um parecer de idoneidade do pároco ao secretariado de educação cristã. Este parecer pressupõe uma regularidade nas assembleias dominicais, logo, os professores de EMRC devem apresentar-se como “crentes residentes” (Taylor, 2007) ou de “sociabilidades paroquiais” (Teixeira, 2019) - de práticas semanais.
Apesar de estarem envoltos em dois perfis e de terem de ser idóneos para com a Igreja Católica, não são indiferentes à transformação, reconfiguração e reinvenção de sistemas de significados e crenças individuais - “identidade em trânsito” (Teixeira, 2011: 249).
3. Breve Nota metodológica
O estudo realizado tem como suporte empírico parte dos resultados recolhidos na dissertação de Mestrado do autor8, cujo objetivo foi o entendimento das representações programáticas dos professores de EMRC do concelho do Porto. De feição qualitativa, as técnicas utilizadas na recolha de dados foram a análise documental dos Programas de EMRC de 2007 e 2014 e a realização de entrevistas.
O entendimento dos dois últimos programas, selecionados por estarem ao abrigo da mesma jurisdição relativamente à regulação da religião no espaço público9, permitiu obter conhecimento sobre os seus conteúdos e sobre as exigências educativas da Comissão Episcopal da Educação Cristã e Doutrina da Fé, que supervisiona, acompanha e aprova os programas.
No caso das entrevistas, o foco foi entender o significado que os professores atribuem às suas experiências educativas relativamente ao programa atual de EMRC e como o seu sistema de crenças e valores moldam estes significados. Foram realizadas 6 entrevistas, em regime presencial, com duração média de 100 minutos, tendo em conta os seguintes critérios: diversidade de alunos inscritos, distribuição territorial por freguesias, tipo de autonomia (TEIP, TEIP/com autonomia e escolas com autonomia) e a preservação do anonimato dos professores10. De seguida, apresentam-se os principais resultados da pesquisa do autor.
4. Sistema de crenças e valores dos professores de EMRC do concelho do Porto
O guião das entrevistas realizadas, na vertente relativa às crenças e valores, foi parcialmente adaptado do inquérito “Identidades religiosas na Área metropolitana de Lisboa” (Teixeira, 2018)11. No entanto, outras questões12 foram acrescentadas pela sua pertinência para a conceptualização do universo de crenças e valores dos professores de EMRC do concelho do Porto.
Em relação às crenças, os professores entendem a religião como estruturante nas suas vidas e de forma individualizada, numa relação com a transcendência. Ainda assim, a orientação comunitária continua a deter um peso significativo, visto que todos os respondentes vão regularmente às assembleias dominicais. Como é possível ler na figura 4, a generalidade dos professores está em consonância com as crenças católicas mais liberalizantes do pós Concílio Vaticano II, onde a valorização da ciência, da técnica e da democracia, em diálogo como catolicismo, assumem um papel de destaque. Esta afirmação é confirmada pelo facto de referirem constantemente a complementaridade da ciência com a religião. A par disto, acreditam que a vida humana transcende a mundanidade. No entanto, há uma discordância sobre a ressurreição de Jesus, justificada pela atribuição de uma posição humanizada de Jesus e uma releitura bíblica deste fenómeno sobrenatural.
Além do referido, as crenças dos professores passam pelo seguinte13:
1. Recorrentes referências ao catolicismo pela figura de Jesus Cristo;
2. Referências a Deus como homem ou com caraterísticas humanas;
3. Preocupações éticas e ativistas fortes;
4. Crenças otimistas do progresso natural da humanidade.
Todas estas caraterísticas, segundo Woodhead (2002) permitem inferir que os professores apresentam uma influência humanista. Enquanto no universo de crenças há uma relativa homogeneidade entre os educadores, na vertente moral não se verifica o mesmo (figura 5).
Há três premissas aceites por todos os docentes: o uso de métodos contracetivos, a possibilidade de comunhão de divorciados e recasados e o ordenamento de padres casados. A primeira é consequência da influência científica na Igreja Católica e a transformação dos valores culturais referentes à sexualidade, nomeadamente no abandono da exclusividade das relações sexuais para procriação e posteriores ao casamento. A segunda é aceite por uma justificativa similar à do Papa Francisco no oitavo capítulo da Exortação Apostólica Amoris Laetitia - acolher, acompanhar, discernir as situações irregulares e integrar (Amoris Lætitia, 2016). Negam, assim, as tendências demasiado tradicionalistas que combatem esta premissa. Por último, na aceitação do ordenamento de padres casados, os educadores seguem uma lógica de abandono da herança cultural católica. Desta forma, contrariamente à tradição histórica da Igreja Católica e do Santo Padre14, os docentes recusam o celibato, desde que os párocos se mantenham um exemplo idóneo dos restantes valores católicos, de confiança e continuidade da postura de disponibilidade e missão com a comunidade. Semelhante a este caso, a ordenação sacerdotal de mulheres é aceite pela maioria dos professores, nomeadamente, em locais com falta de sacerdotes masculinos.
Em outras premissas morais que questionam a vida humana, como o caso do aborto e a eutanásia, há uma divisão clara entre aqueles que consideram o sofrimento humano uma contingência humana (recusando as práticas) e aqueles que aceitam mediante uma situação de sofrimento extremo. As circunstâncias extremas incluem abortos por violação e, no caso da eutanásia, situações vegetativas ou com dores prolongadas não suprimidas pelo uso de medicação. Encontramos, assim, uma dissociação entre a crença de que o ser humano não deve decidir quando deve morrer (Figura 4) e a aceitação, dentro de limites, dos valores morais das práticas de eutanásia e do aborto (Figura 5).
O caso da homossexualidade é o mais controverso e o que cria maior divisão entre os entrevistados. A maioria destes rejeita o casamento entre pessoas do mesmo sexo e, para os que o aceitam, este não pode ser realizado pela Igreja Católica (apontando, em alternativa, a união civil). Estão assim em consonância com a posição do atual Papa divulgada recentemente no documentário Francesco, no festival de Cinema de Roma a 21 de outubro de 2020 (Novais, 2020). No caso da adoção de crianças por casais homossexuais, apesar de ser permitido em Portugal, os professores assumem, ora uma atitude relutante, ora de condenação do ato. Em ambos os casos, consideram existir nas relações homossexuais falta de estabilidade para educar uma criança. No entanto, os que assumem uma atitude relutante admitem a existência de casos excecionais, não generalizando a todas as uniões homossexuais.
Apesar de os educadores não se apresentarem consensuais nos valores morais demonstram fazer parte de um processo de transformação interna da Igreja Católica, nomeadamente, no abandono da tradição e no afastamento dos valores pró-vida.
5. Os programas de Educação Moral e Religiosa Católica
Os programas de EMRC são registos institucionais escritos, comunicativos e metodologicamente desenvolvidos (Flick,2009) pela Igreja Católica, nomeadamente pela Comissão Episcopal da Educação Cristã e Doutrina da Fé, com o intuito pedagógico. Sendo um suporte essencial à lecionação da disciplina de EMRC, tem como fim ser utilizado pelos docentes da mesma disciplina e ser empreendido pelos alunos - aplicando os conhecimentos lá transmitidos. Essencialmente, o programa compreende uma representação dos valores do catolicismo a nível societal e individual.
Através da comparação dos programas de 2007 e de 2014 foi também possível um entendimento das adaptações da própria instituição católica. Essencialmente, o último programa é uma transposição e reorganização do programa anterior 15. No entanto, foi possível detetar transformações nos conteúdos do 2º e 3º ciclo16, tais como: um maior reconhecimento da diversidade religiosa e um aumento no diálogo religioso; uma valorização dos temas éticos e morais (apesar da diminuição abrupta dos seus ensinamentos como resposta ao mal) e da cultura e identidade cristãs; um aumento do uso de passagens bíblicas e uma valorização do processo da constituição humana e do pensamento crítico. A contagem de palavras17 e análise do vocabulário18 em ambos os programas permitiram demonstrar uma diminuição do peso das temáticas relativas ao catolicismo romano em prol de abordagens relativas às cinco grandes religiões mundiais (Cristianismo, Islão, Judaísmo, Hinduísmo e Budismo). Ademais, há uma maior preocupação com o que não é de foro religioso, ou que está relacionado com a perda de significado religioso ou ausência deste significado - um exemplo é a introdução do conceito “secular”. Consequentemente, esta preocupação é combatida com o aumento de justificações relativas à importância da religião e do religioso para o social e para a formação individual.
Através do referido, é possível inferir que o programa de EMRC é produzido num esforço de apropriação às necessidades e alterações dos campos religioso, social e cultural. Este “ajustamento da religião a novas condições” (Dobbelaere, 2006, pp. 142) que Dobbelaere define de “secularização organizacional” (Dobbelaere, 2004), ou Luckman (1967) e Wilson (1969) definem de “secularização interna”, parece estar patente nos programas de Educação Moral e Religiosa Católica.
6. Representação programática dos professores de EMRC do concelho do Porto
Num conjunto de professores com um universo de crenças relativamente homogéneo, mas com morais diversificadas, foi necessário perceber como é que representam os programas e suas alterações de conteúdo.
A relação dos professores com os programas foi sofrendo um afastamento progressivo. Apesar de ser o recurso prioritário usado nas aulas, começa a ser menos utilizado em prol de outros materiais pedagógicos, como vídeos, filmes, pesquisas na internet, jogos, discussões de notícias atuais, etc. A sua maior ou menor utilização depende, principalmente, de como percecionam a motivação dos alunos.
Na avaliação da construção dos programas (que alegam conhecer na íntegra), os respondentes demonstram valorizar uma distinção com a catequese e a sua contextualização histórico-religiosa. Nos conteúdos dos 2.º e 3.º ciclo do Ensino Básico (ciclos onde os docentes lecionam ou lecionaram recentemente) os professores têm mais interesse pelos temas relacionados com a família, as outras religiões (diversidade e conflito), o relacionamento com os outros e a consciência cívica. Contrariamente, os pontos que consideram desadequados são os que apresentam uma perspetiva bíblica, do atual e anteriores Santos Padres e os que repetem o que é ensinado na catequese. Sintetizando, os pontos desadequados são os que estão demasiado ligados à religião.
No uso do programa, perante a perceção de que os estudantes têm uma educação com pouco significado religioso - afetos a uma secularização individual -, realçam a dificuldade de assimilação de alguns conteúdos programáticos tais como: os valores de colaboração e respeito; a estrutura familiar; a simbologia religiosa (fonte de curiosidade e de explicações morais); a importância para os católicos das suas festas e feriados religiosos; e a criação de chaves de leitura da realidade.
Neste seguimento, os professores propuseram alterar o programa, retirando a confessionalidade católica e o seu lado muito religioso e catequético (expressão usada por todos os entrevistados). Isto pressupõe um afastamento dos pressupostos do catolicismo relativos à interioridade humana; do ensinamento de valores do cristianismo em termos genéricos, através de um suporte mais histórico (mas sem repetir o programa de história), nomeadamente na abordagem sobre Jesus - do Jesus da fé para um Jesus mais histórico; e a diminuição do enfoque na Bíblia e nos documentos dogmáticos católicos.
A proposta dos professores é de uma aproximação do programa a uma visão cristã humanista e de adaptação à tendência de desagregação de vínculos religiosos dos seus alunos, mesmo que abdicando de elementos bíblicos, litúrgicos e espirituais no ensino. Esta sugestão de eliminação no ensino de “elementos místicos e sacerdotais do sistema religioso” (Wilson, 1976:261) é prova de que estes professores são parte de uma secularização institucional (Wilson, 1976), interna (Luckmann, 1967; Wilson, 1969) ou organizacional (Dobbelaere, 2004). Outro indício desta pertença e um importante indicador para a avaliação da compartimentalização (Dobbelaere,1999), neste caso, do modo como estes professores concebem a relação entre a religião e o subsistema educativo, é a proposta de um ensino moral religioso desprovido de qualquer confessionalidade.
Apesar do peso ainda elevado da identidade católica da população portuguesa, a maior preocupação de adaptação ao crescente pluralismo religioso e integração dos sem religião, justificam a proposta de um novo ensino moral e religioso e, em parte, uma atitude mais positiva em relação à compartimentação. Desta forma, os professores além de afirmarem uma necessidade de alteração de conteúdos e nomenclatura da disciplina, também explicitaram a necessidade de uma formação mais ampla, ministrada complementarmente por membros de outras confissões religiosas19.
7. Notas conclusivas
As alterações que presenciamos no panorama religioso nacional, tais como a perda de articulação de referências identitárias do catolicismo, o aumento da procura individualizada de sentido e o crescimento do pluralismo, afetaram em grande medida o ensino religioso nas escolas públicas. Na sequência disto, houve possibilidade de serem ministradas educações religiosas de outras confissões e presenciamos uma elevada diminuição de alunos em Educação Moral e Religiosa Católica. Os professores desta disciplina são os atores, em primeira mão, da presença da Igreja Católica na escola e, como tal, também uma resposta à perda de significado religioso por parte dos mais jovens. A antinomia entre as exigências programáticas da instituição católica e as necessidades reconhecidas pelos professores é verificável na flexibilização extensiva do programa e no abdicar das partes muito religiosas (como referido pela totalidade dos entrevistados), tais como elementos bíblicos, litúrgicos e espirituais. Além do uso do programa, as atitudes, opções pedagógicas e morais revelam uma perda de ortodoxia católica a favor de uma inclusão que não deixa de ser universalista.
Os professores de Educação Moral e Religiosa Católica são um conjunto de indivíduos valiosos para o entendimento das alterações no campo religioso nacional e, por se apresentarem como atores ativos no processo de secularização organizacional, também são indicadores de alterações nas opções da instituição católica a nível nacional e, quem sabe, para uma nova educação moral - uma educação moral sem exclusividade católica