INTRODUÇÃO
As espécies de pimentas do género Capsicum L. são oriundas das Américas e já eram consumidas há mais de 7000 anos no México. Atualmente, são cosmopolitas e consumidas por um quarto da população mundial, principalmente como condimentos (Soares et al., 2020). Desde 2010, a Península de Yucatán no México possui a denominação de origem da Capsicum chinense Jacquin, conhecida vulgarmente como pimenta-habanero. A região produz fruto com aroma e pungência característicos, que são preferidos por consumidores e pela indústria alimentícia, e também são apreciados pela multiplicidade de formas, cores, tamanhos e sabores (Fabela-Morón et al., 2020).
Sabe-se que há limitação na disponibilidade de sementes de alta qualidade de Capsicum chinense Jacquin devido uma adaptação evolutiva conhecida como dormência, característica intrínseca que impede a germinação, pois, ainda que existam condições ambientais e climáticas adequadas, elas continuam o processo de maturação após a colheita (Bewley et al., 2013). Enquanto as sementes de pimenta permanecem dentro dos frutos, mesmo após colhidos, continua havendo translocação de reservas às sementes, permitindo que elas alcancem a maturação tardiamente (Murugesam e Vanangamudi, 2005). Por isso, na mesma planta podem ser encontrados frutos em diversos estágios de maturação (Justino et al., 2010). Deste modo, durante a extração das sementes deve-se observar a coloração do fruto para determinar a melhor época de colheita e o ponto de maturidade fisiológica (Gonçalves et al., 2018).
Diversos autores propõem que seja feito o armazenamento dos frutos antes da extração das sementes, para que possam atingir a maturação e a máxima acumulação de matéria seca (Kameswara Rao et al., 2017; Singkaew et al., 2017; Medeiros et al., 2020). Além disso, o armazenamento das sementes após a extração dos frutos é importante para a redução do teor de água e, consequentemente, a redução da ocorrência de fungos e outros microrganismos (Bianchini et al., 2021).
Uma técnica estatística para predição da germinação de sementes e, consequentemente, seleção adequada de fatores para maior germinação é a regressão logística. Esta técnica é utilizada quando se deseja calcular ou prever a probabilidade de um evento envolvendo variáveis dicotómicas (Hosmer Jr. et al., 2013). Em problemas envolvendo tais variáveis, uma das maneiras mais completas de se analisar o desempenho de um modelo de classificação é por meio da análise da curva ROC (Receiver Operating Characteristic).
Face ao exposto, o objetivo deste trabalho consistiu em avaliar, utilizando o modelo de regressão logística e curva ROC, a germinação de sementes de pimenta-habanero Capsicum chinense Jacquin sob o efeito combinado dos fatores: cultivar, período de armazenamento dos frutos, método de extração e período de armazenamento das sementes.
MATERIAL E MÉTODOS
Material vegetal
Frutos de pimenta-habanero - Capsicum chinense Jacquin, cultivares ‘Mayapan’ e ‘Calakmul’ - foram colhidos, em maio de 2016, numa plantação localizada na Península de Yucatán (Motul), México, no sítio Hermanos Hernández (21° 05’ 42’’ N; 89° 16’ 59’’ W), com uma altitude de 6 metros.
Colheita e armazenamento dos frutos
Na colheita, os frutos foram retirados das plantas com base na coloração externa, a cultivar ‘Mayapan’ com cor laranja ou a cultivar ‘Calakmul’ com cor vermelha, totalizando aproximadamente 1200 frutos de cada cultivar. Após a colheita, os frutos foram divididos em três grupos e armazenados em ambiente de laboratório (23 °C e UR 72%) por 1, 7 e 14 dias até a extração das sementes.
Extração das sementes
Depois de cumprido cada tempo de armazenamento, as sementes foram extraídas de forma manual e mecânica com a ajuda de um liquidificador doméstico, cujas hélices foram cobertas com fita isolante afim de evitar danos nas sementes durante a extração. Para separar as sementes, de boa qualidade, vazias e menos desenvolvidas, foi utilizado o método de densidade em água, que consistiu em submergir as sementes em água, selecionando aquelas que ficaram submergidas e descartando as sementes que flutuaram.
Secagem das sementes
Depois da extração, as sementes de boa qualidade foram desinfestadas com cloro ao 3% (v/v) por 3 minutos e, em seguida, foram lavadas com água para eliminar os resíduos de cloro. Posteriormente, as sementes foram colocadas em sacolas de tecido com furos até alcançar o conteúdo de água recomendado para a espécie (9% ± 3%) (Sagarpa, 2014). Para acelerar a secagem, foi colocado um ventilador direcionado para as sacolas com sementes. Uma vez atingida a porcentagem de umidade recomendada, as sementes foram armazenadas a 10ºC em embalagem plástica hermética, para evitar a alteração da umidade durante o período de armazenamento que foi de um ano.
Testes de germinação
Em laboratório, foi realizado o teste de germinação utilizando placas de Petri com duas folhas de papel germitest® umedecidas com água (em duas vezes o peso seco do papel). As sementes (25 por repetição) foram colocadas de maneira equidistante dentro da placa, depois foram arranjadas dentro de uma sacola na BOD, sob temperatura alternada de 20-30 °C/8-h noite e 16-h dia (Brasil, 2009).
A germinação foi contabilizada a intervalos de 24 horas durante 14 dias em quatro períodos trimestrais (3, 6, 9 e 12 meses). Foi estabelecido como critério de semente germinada quando a radícula atingiu 1 mm de comprimento (Hernández-Verdugo et al., 2001). Cada semente foi categorizada com o valor 1 (um), quando germinadas, e 0 (zero), caso contrário.
Delineamento e análise estatística dos dados
O delineamento experimental utilizado foi o inteiramente casualizado (DIC), com quatro repetições de 25 sementes. Os fatores estudados foram a cultivar, período de armazenamento dos frutos, método de extração das sementes e período de armazenamento das sementes.
Uma vez que a germinação contempla resposta dicotómica (germina ou não germina), os dados foram submetidos a regressão logística, ajustada pela função de ligação logit, e pertencente ao modelo linear generalizado (Gianinetti, 2020). A modelagem foi feita com base nas combinações dos fatores significativos, considerando o teste de Wald a um nível de significância de 0,05.
O ajuste dos diferentes modelos foi comparado por meio do critério de informação de Akaike (AIC) e análise da curva ROC, selecionando aquele modelo que apresentasse o menor AIC e a maior área sob a curva (AUC) (Harrison e Riinu, 2020). Todas as análises estatísticas foram realizadas utilizando o software estatístico R versão 4.1.3 (R Core Team, 2022).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
No estudo foram analisadas 4800 sementes, das quais 4165 (86,8%) germinaram e 635 (13,2%) não germinaram. A análise de regressão univariada indicou significância da variável resposta germinação (p<0,05), de acordo com o teste de Wald, para todos os fatores considerados, com exceção do método de extração (Quadro 1), o qual não será incluído nas análises posteriores.
A coloração de frutos em pimentas do tipo habanero sofre variações de acordo com a época de plantação, adubação, qualidade sanitária e região de cultivo (Medeiros et al. 2020). Neste estudo, verificou-se que cultivares de diferentes colorações afetaram significantemente (p<0,05) a porcentagem de germinação. Sementes advindas de frutos de coloração vermelha, quando comparadas as de coloração laranja, propiciam maior percentual de germinação (Quadro 1), o que também foi observado por Caixeta et al. (2014).
Como a espécie Capsicum chinense possui um fruto carnudo (baga), a extração de suas sementes pode ser realizada manualmente ou com auxílio de equipamento mecanizado. Os resultados da germinação não apresentaram significância estatística (p>0,05) entre os métodos de extração, o que pode ser explicado pelo fato de as sementes estarem cobertas por mucilagem, um envoltório gelatinoso e rico em pectina, que pode protegê-la de possíveis danos do processo de extração mecânico (Carvalho e Nakagawa, 2012). Desta forma, o método mecânico pode ser utilizado sem perda da qualidade fisiológica das sementes. Tais resultados são vantajosos para o produtor, permitindo maior agilidade do processo através da mecanização, ao mesmo tempo que a qualidade das sementes se mantém satisfatória para a comercialização.
Entre os períodos de armazenamento do fruto após a colheita, houve maiores valores de germinação para as sementes armazenadas nos frutos por 14 dias, corroborando com os resultados de Medeiros et al. (2020). Estes autores recomendaram 14 dias de repouso dos frutos de Capsicum chinense antes da extração das sementes, a fim de que elas completem a maturação ainda dentro dos frutos. Esta recomendação deve-se à imaturidade das sementes no período da colheita e ao seu processo de desenvolvimento irregular, causando dormência das sementes (Caixeta et al., 2014; Medeiros et al., 2020).
O período de armazenamento da semente pós-extração afetou a germinação significantemente (p<0,05). As sementes armazenadas por 9 meses tiveram o maior percentual de germinação em relação aos outros períodos, porém as sementes armazenadas até os 12 meses obtiveram o percentual de germinação abaixo de 80% (Quadro 1). O aumento da germinação aos 6 e 9 meses de armazenamento pode ser consequência da quebra da dormência, pois ocorre a diminuição dos níveis de ácido abscísico (ABA) e aumento da concentração do fitohormônio giberelina (GA) (Matilla et al., 2015). Por sua vez, a queda da germinação (78,5%) aos 12 meses de armazenamento da semente está relacionada ao início do seu processo de deterioração (Ratajczak et al., 2019).
Sementes com | Sementes sem | Teste de Wald | Valor P | ||
germinação (%) | germinação (%) | ||||
Cultivar (CULT) | |||||
‘Mayapan’ | 2054 (85,58) | 346 (14,42) | - | - | |
‘Calakmul’ | 2111 (87,96) | 289 (12,04) | 2,425 | 0,0153* | |
Armazenamento do fruto (AF) | |||||
1 dia | 1241 (77,56) | 359 (22,44) | - | - | |
7 dias | 1402 (87,63) | 198 (12,38) | 7,413 | <0,0001* | |
14 dias | 1522 (95,12) | 78 (04,88) | 13,248 | <0,0001* | |
Método de extração (ME) | |||||
Manual | 2065 (86,04) | 335(13,96) | - | - | |
Mecânico | 2100 (87,50) | 300 (12,50) | 1,49 | 0,1360 | |
Armazenamento da semente (AS) | |||||
3 meses | 988 (82,33) | 212 (17,67) | - | - | |
6 meses | 1110 (92,50) | 90 (7,50) | 7,307 | <0,0001* | |
9 meses | 1125 (93,75) | 75 (6,25) | 8,276 | <0,0001* | |
12 meses | 942 (78,50) | 258 (21,5) | -2,363 | 0,0181* |
*Teste de Wald significativo a 5% de significância.
A interpretação dos fatores simples (CULT, AF e AS), sem considerar as interações entre eles, pode levar a conclusões equivocadas sobre o modelo (Hosmer Jr. et al., 2013). Pelo valor de F obtido na análise da variância (Quadro 2), observou-se que a interação de CULT×AF×AS foi significativa, podendo indicar a existência de um efeito diferenciado de CULT, para cada combinação dos níveis de AF com os níveis de AS. As interações duplas entre os efeitos principais também foram significativas pelo valor do teste F.
Pereira et al. (2014), ao estudarem a germinação de sementes de pimenta-dedo-de-moça (Capsicum baccatum L.), também encontraram interação significativa entre os estágios de maturação e o armazenamento pós-colheita das sementes. Penfield e MacGregor (2016), estudaram interações entre genótipos, estágios de maturação e tempos de armazenamento entre os fatores ambientais. Os autores observaram que a origem de determinados genótipos, combinado com diferentes condições edafoclimáticas, afetou o desempenho das sementes devido à adaptação delas ao ambiente. Ricci et al. (2013) verificaram a combinação significativa entre a coloração e armazenamento nos frutos de pimenta-jalapenho (Capsicum annuum L. 'Jalapeño'), em que o armazenamento de frutos verdes por 28 dias aumentou a qualidade das sementes, enquanto os frutos vermelhos não necessitaram de armazenamento.
GL | Desvio | Desvio residual | F | Valor P | |
Cultivar (CULT) | 1 | 6,49 | 3327,60 | 6,49 | 0,0108* |
Arm. do Fruto (AF) | 2 | 225,99 | 3524,90 | 112,99 | < 0,0001* |
Arm. da Semente (AS) | 3 | 190,84 | 3334,10 | 63,61 | < 0,0001* |
CULT×AF | 2 | 31,75 | 3114,30 | 15,87 | < 0,0001* |
CULT×AS | 3 | 134,63 | 3146,00 | 44,88 | < 0,0001* |
AF×AS | 6 | 46,95 | 3280,60 | 7,83 | < 0,0001* |
CULT×AF×AS | 6 | 22,35 | 3091,90 | 3,73 | 0,0010* |
*Teste F significativo a 5% de significância.
A análise de regressão logística mostrou que o modelo com a interação CULT×AF×AS descreveu melhor os dados para a variável germinação (Figura 1), para o qual se obteve valor de AIC de 3140 e AUC de 0,79. Hosmer Jr. et al. (2013) afirmam que o poder de discriminação aceitável de AUC deve estar acima de 0,70. Assim, todos os modelos estudados, com e sem interação, obtiveram AUC satisfatórios.
Observou-se que o modelo com a interação CULT×AF×AS apresentou o melhor poder de discriminação em todo o espaço ROC, evidenciando a importância da interação tripla para explicar a germinação.
No Quadro 3, pode ser observado, para a cultivar ‘Mayapan’ (coloração laranja), que houve maior chance de germinação para as sementes extraídas logo após a colheita (1 dia) e armazenadas durante 6 meses (OR: 29,28; p<0,0001). Para as sementes que foram armazenadas por 7 e 14 dias nos frutos, houve aumento da chance de germinação após 6 e 9 meses da extração. Observou-se também que ocorre uma queda da chance (OR<1) de germinação aos 12 meses quando comparado aos 3 meses. Medeiros et al. (2020) observaram que sementes de ‘Mayapan’ extraídas com 7 e 14 dias de armazenamento obtiveram porcentagem de germinação de 65% e 73%, respectivamente.
No que diz respeito à cultivar de pimenta-habanero ‘Calakmul’ (coloração vermelha), o comportamento foi diferente. As sementes que foram armazenadas nos frutos por 1 dia após a colheita obtiveram maior chance de germinação no 9º mês após a extração (OR: 15,47, P<0,0001). Entretanto, aqueles armazenados por mais tempo até a extração (7 e 14 dias) tiveram melhor potencial germinativo quando as sementes foram armazenadas por 3 meses (OR<1). Estes resultados estão de acordo com os encontrados por Caixeta et al. (2014), que verificaram que a cultivar‘Calakmul’ tem maior chance de germinação quando não ocorre o processo de maturação dentro do fruto.
Interação CULT×AF×AS | OR | IC 95% | Valor P | |||
‘Mayapan’ | ||||||
1 dias | 3 meses | - | - | - | ||
6 meses | 29,28 | 13,11-65,38 | <0,0001 | |||
9 meses | 5,37 | 3,38-8,56 | <0,0001 | |||
12 meses | 5,79 | 3,61-9,29 | <0,0001 | |||
7 dias | 3 meses | - | - | - | ||
6 meses | 4,17 | 2,12-8,18 | <0,0001 | |||
9 meses | 2,15 | 1,23-3,76 | 0,0072 | |||
12 meses | 0,87 | 0,54-1,39 | 0,548 | |||
14 dias | 3 meses | - | - | - | ||
6 meses | 2,06 | 0,76-5,61 | 0,1557 | |||
9 meses | 2,06 | 0,76-5,61 | 0,1557 | |||
12 meses | 0,45 | 0,22-0,92 | 0,028 | |||
‘Calakmul’ | ||||||
1 dias | 3 meses | - | - | - | ||
6 meses | 4,13 | 0,88-19,3 | 0,0713 | |||
9 meses | 15,47 | 5,46-43,81 | <0,0001 | |||
12 meses | 0,43 | 0,28-0,66 | 0,0001 | |||
7 dias | 3 meses | - | - | - | ||
6 meses | 0,59 | 0,21-1,65 | 0,3125 | |||
9 meses | 0,16 | 0,03-0,9 | 0,0369 | |||
12 meses | 0,09 | 0,04-0,21 | <0,0001 | |||
14 dias | 3 meses | - | - | - | ||
6 meses | 0,14 | 0,02-1,14 | 0,0655 | |||
9 meses | 0,25 | 0,03-2,22 | 0,2116 | |||
12 meses | 0,05 | 0,01-0,41 | 0,0048 |
CONCLUSÕES
A combinação entre a cultivar, período de armazenamento pós-colheita e período de armazenamento pós-extração apresentou melhores resultados para modelagem da germinação de sementes Capsicum chinense Jacquin.
O método de extração das sementes não interferiu na capacidade germinativa, de modo que a extração mecânica pode ser utilizada sem perda na qualidade da germinação, permitindo maior agilidade do processo por meio da mecanização, ao mesmo tempo em que a qualidade das sementes se mantém satisfatória para a comercialização.
Foi possível observar que as sementes da cultivar ‘Mayapan’ necessitam de mais tempo de armazenamento para haver maior chance de germinação, devido ao processo de dormência. Por outro lado, as sementes da cultivar ‘Calakmul’ perdem a capacidade germinativa com o aumento do tempo de armazenamento pós-extração, e não devem passar pelo processo de quebra de dormência dentro dos frutos após a colheita, podendo ser armazenadas por até 9 meses fora do fruto.
Por fim, conclui-se que a análise da curva ROC foi eficiente para a comparação de modelos de regressão logística aplicados a dados de germinação de sementes. Assim, a metodologia de curva ROC pode ser testada e aplicada em outros estudos em ciências agrárias, como alternativa para os métodos de avaliação de modelos tradicionais.