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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231versão On-line ISSN 1646-6020

Aná. Psicológica vol.37 no.4 Lisboa dez. 2019

https://doi.org/10.14417/ap.1536 

Uma análise exploratória das relações entre as representações de vinculação do pai e o seu envolvimento em atividades práticas e lúdicas

The associations between father’s attachment representations and his involvement in care/management and play/leisure activities: An exploratory analyses

Lígia Monteiro1, Rita Maia2, Carla Fernandes3, Marília Fernandes3, Marta Antunes3, Manuela Veríssimo3

1ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, CIS-IUL, Lisboa, Portugal

2ISPA – Instituto Universitário, Lisboa, Portugal

3ISPA – Instituto Universitário, William James Center for Research, Lisboa, Portugal

Correspondência

 

RESUMO

Este estudo teve como principal objetivo explorar as relações entre as representações de vinculação (script de base segura) do pai, e o seu envolvimento em atividades práticas (relacionadas com a gestão e cuidados à criança) e em atividades com características lúdicas (brincadeira/lazer). Participaram 62 famílias nucleares, com crianças entre os 2 e os 5 anos, de estatuto socioeconómico médio e de duplo-rendimento. De modo a analisar os scripts de base segura utilizou-se as Narrativas de Representação da Vinculação em Adultos, aplicadas individualmente ao pai, tendo a mãe e o pai preenchido, de modo independente, um questionário sobre o envolvimento parental. Os resultados indicam que os pais possuem e acedem ao script de base segura em contextos onde este é elicitado; que participam mais nas atividades lúdicas, do que nas práticas; e que pais com valores mais elevados de script adulto/criança se encontram mais envolvidos nas atividades práticas, mesmo quando a idade da criança e as habilitações do pai são controladas.

Palavras-chave: Script de base-segura, Envolvimento, Atividades práticas e lúdicas, Pai.

 

ABSTRACT

The main goal of this study was to explore the associations between father’s attachment representations (secure base script knowledge) and his involvement in management and childcare, as well as in play and leisure activities. Sixty-two nuclear Portuguese families, with children between 2 and 5 years of age participated. Families were middle-class from a socioeconomical perspective, and both parents worked full time. In order to assess the secure-base script the Attachment Script Representation task was used individually with the father, and both mother and father independently reported on parental involvement. Results show that fathers access the secure-base script knowledge in contexts eliciting it; that fathers participate significantly more in play/leisure activities than in management/childcare. Finally, fathers with higher secure-base script scores in adult/child stories are more involved in management and childcare, even when child’s age and father’s education are controlled for.

Key words: Secure base-script, Involvement, Care and play activities, Father.

 

Uma visão mais igualitária nas oportunidades de acesso ao mercado de trabalho, e na partilha do poder e responsabilidades na família continua, na sociedade atual, a misturar-se com uma visão mais tradicional do homem como o pilar económico e de autoridade, e da mulher como esposa, responsável pelas tarefas domésticas e de cuidados à criança (e.g., Torres et al., 2018; Wall et al., 2016). Ao nível das políticas da família e das crenças sobre a parentalidade tem-se, contudo, verificado progressos interessantes, sendo comum a perceção de que quando o pai não participa na educação e cuidados aos filhos, isso terá implicações negativas para o bem-estar dos mesmos (e.g., Monteiro, Torres, & Salinas-Quiroz, in press; Wall et al., 2016).

O presente estudo visa contribuir para a compreensão da parentalidade no masculino, centrando-se na perspetiva do pai, dado que a distinção tradicional entre cuidador primário e secundário leva, muitas vezes, a que este seja excluído dos estudos, ou que o seu papel seja analisado através da perspetiva materna (Cabrera, Volling, & Barr, 2018). Por outro lado, é importante reconhecer que o modo como o homem define e vivência a parentalidade é influenciado por múltiplos fatores e níveis. Entre outros autores (e.g., Lamb & Tamis-Lemonda, 2004; Marsiglio, Amato, Day, & Lamb, 2000; Palkovitz, 2002), Parke (1996) identifica diferentes níveis de determinantes do envolvimento paterno: individual, familiar, extrafamiliar e cultural. Considerando o nível mais individual, visa-se explorar as relações entre a história do indivíduo, em termos das suas representações de vinculação, e o seu envolvimento em atividades relacionadas com a criança, e que de acordo com a literatura têm impacto no desenvolvimento e bem-estar infantil e dos próprios adultos (e.g., Lamb, 2010a; Palkovitz, 2002).

 

História do indivíduo – Scripts de base segura

No contexto das interações diádicas, reais e contínuas ao longo do tempo, entre a criança e as figuras parentais, esta vai construindo modelos internos dinâmicos das figuras de vinculação e do self, que guiam o modo como interpreta e prevê os comportamentos esperados do outro, e em função dos quais planeia as suas respostas presentes e futuras (Bowlby, 1973). No âmbito da teoria da vinculação, espera-se que estes modelos, formados nos primeiros anos de vida, passem a operar ao nível do inconsciente, tornando-se relativamente estáveis com os anos. No entanto, tal não significa que devam ser vistos como estáticos, mas antes como dinâmicos, passiveis de revisão e mudança face a novas experiências reais relevantes para a vinculação (Bowlby, 1973, 1988; Waters, Merrick, Treboux, Crowell, & Albersheim, 2000). Na idade adulta estas representações (abstratas e generalizadas) operam como guia implícito no estabelecimento e funcionamento em novas relações onde o fenómeno de base segura está presente, nomeadamente, nas relações românticas/casal (adulto/adulto) e na parentalidade (adulto/criança) (Bowlby, 1973, 1988; Bretherton & Munholland, 2008; Main, Kaplan, & Cassidy, 1985). Ao nível da parentalidade, espera-se que estas representações sejam expressas no envolvimento e qualidade dos comportamentos parentais, no contexto das interações com a criança, nomeadamente, ao nível da sensibilidade, responsividade e acessibilidade face aos sinais e comunicações da mesma (e.g., Bowlby, 1988; Bretherton & Munholland, 2008; Coppola, Vaughn, Cassibba, & Costantini, 2006; Main et al., 1985; van IJzendoorn, 1995).

No sentido de analisar a estrutura cognitiva destes modelos e compreender de que modo têm impacto ao nível dos comportamentos, emoções e cognições dos sujeitos, Waters e Rodrigues-Doolabh (2001) sugerem que a história das interações de base segura é representada/organizada, na memória, sob a forma de um script (para informação mais detalhada ver Monteiro, Veríssimo, Silva, Branco, & Santos, 2015; Vaughn et al., 2007; Waters & Waters, 2006). Na idade adulta, o conhecimento de tipo script, relativo a ter e/ou ser uma base segura, organiza-se do seguinte modo: (a) interação construtiva entre os membros da díade (adulto/criança ou adulto/adulto); (b) um obstáculo à continuação da interação; (c) um sinal de que é necessária ajuda; (d) deteção do sinal pelo parceiro; (e) oferta de ajuda efetiva; e a ajuda é sentida pelo recetor como reconfortante; (f) resolução e/ou regresso à interação construtiva com o meio físico ou social (Waters & Rodrigues-Doolabh, 2001). Diversos estudos confirmam que, as representações relativas às relações adulto/criança e adulto/adulto se encontram organizadas num script geral e abstrato para as mães (e.g., Coppola et al., 2006; Veríssimo, Monteiro, Vaughn, Santos, & Waters, 2005; Waters & Rodrigues-Doohlab, 2001), e pais (e.g., Monteiro, Veríssimo, Vaughn, Santos, & Bost, 2008). Espera-se, assim, que os processos mentais variem, tal como os processos comportamentais, em função de diferentes modelos internos (Main et al., 1985).

 

O envolvimento do pai

A análise do papel do pai e do seu envolvimento na vida da criança deverá variar em função do tipo de atividades (e.g., suporte financeiro, cuidados, brincadeira, instrução, disciplina), diferenciando-se assim contextos e tipos de interação, evitando o erro de minimizar ou estereotipar o envolvimento dos cuidadores. Tal distinção possibilita uma análise mais específica dos papéis parentais, dos seus preditores e efeitos no desenvolvimento da criança (e.g., Cabrera, Tamis-LeMonda, Bradley, Hofferth, & Lamb, 2000; Parke, 2000) e do próprio adulto (Palkovitz, 2002).

A literatura que compara ambos os cuidadores tende a salientar as diferenças, descrevendo as interações mãe/criança como caracterizadas pelos cuidados e as dos pais pela brincadeira. Para além dos contextos, os estilos comunicativos e de brincadeira tendem a ser descritos como distintos. Por exemplo, com as mães a terem maior tendência a pegar nos seus bebés ao colo no decurso das rotinas de cuidados, e os pais a fazê-lo quando solicitados ou enquanto brincam. As brincadeiras das mães são descritas como mais tranquilas e mediadas por objetos, e as dos pais como estimulantes, imprevisíveis, desafiantes e de natureza mais física, suportando uma exploração ativa do ambiente físico e social. As diferenças tendem a manter-se, mesmo quando os pais consideram que devem participar nos cuidados, contudo, são mais salientes numa divisão tradicional, entre homem/mulher, baseada no género. Porém, há que evitar o preconceito do pai como menos capaz, do que a mãe, para cuidar e ser sensível nas interações com a criança (Lamb & Lewis, 2010).

Bretherton, Lambert e Golby (2005), com base na análise de entrevistas realizadas a pais de crianças em idade pré-escolar, indicam que estes estão bastante investidos e envolvidos com os seus filhos. Os cuidadores mencionam, de modo claro, a proximidade emocional e a afetividade enquanto falam das rotinas de sono/deitar, de separações/reuniões entre si e a criança, ou em situações de disciplina. A maioria refere a proximidade física (e.g., a criança sentar-se ao seu colo, abraçar ou beijá-lo) e psicológica em momentos tranquilos de companheirismos, mais do que em momentos de atividades conjuntas caracterizadas como ativas e enérgicas. No estudo de Monteiro, Veríssimo et al. (2010) com famílias portuguesas, a participação do pai nas atividades práticas encontrava-se associada com a qualidade da relação de vinculação da criança com o progenitor. Para as atividades lúdicas a associação foi, apenas, marginalmente significativa. Sugere-se, com base na análise dos comportamentos observados, que uma maior participação nos cuidados facilita a comunicação harmoniosa entre os elementos da díade, as crianças aceitam sugestões, participam num dar e receber marcado por um tom emocional positivo. Associados à participação nos dois tipos de cuidados estavam comportamentos relacionados com o manter a noção da localização do pai, e o regressar para junto deste quando aborrecida ou a necessitar de ajuda. Estas relações são, ainda, caracterizadas pela satisfação da criança no contacto físico com o pai e pela capacidade deste a reconfortar, numa situação de aflição ou ansiedade, sendo marcadas por uma partilha afetiva entre ambos.

Apesar dos progressos identificados, estudos com famílias portuguesas indicam que as mães se encontram mais envolvidas tanto nos cuidados, como na brincadeira com os seus bebés (e.g., Fuertes, Faria, Beeghly, & Lopes-dos-Santos, 2016). Em famílias com crianças em idade pré-escolar (e.g., Monteiro, Fernandes, Torres, & Santos, 2017; Monteiro, Veríssimo et al., 2010; Torres, Veríssimo, Monteiro, Ribeiro, & Santos, 2014), os resultados indicam a existência de uma menor participação relativa do pai nas atividades de cuidados (e.g., dar banho ou vestir) ou de gestão (e.g., comprar roupas), enquanto na brincadeira (e.g., fazer jogos de tabuleiro ou brincadeiras com características mais físicas), lazer (e.g., ida ao parque), ou ensino/disciplina (ensinar competências ou estabelecer regras) há uma participação tendencialmente igualitária (com particular saliência para a brincadeira). Simões, Leal e Marôco (2010) verificaram, numa amostra com crianças entre os 5 e os 9 anos, que os pais se percecionavam como envolvidos nos cuidados aos filhos, sendo pouco saliente a participação na disciplina. Embora se descrevessem como disponíveis, os pais indicavam estar pouco presentes fisicamente em determinadas atividades diárias, resultado das dificuldades de conciliação com o trabalho. Em termos relativos, as mães continuam a passar uma percentagem de tempo mais elevada como cuidadoras primárias, comparativamente aos pais.

Os recursos e oportunidades socioeconómicas têm impacto no tipo e grau de envolvimento do pai; no presente estudo analisamos o papel das habilitações literárias. Em amostras portuguesas verificou-se que pais com habilitações mais elevadas participavam mais nas atividades de cuidados (e.g., Monteiro, Veríssimo et al., 2010), de gestão (e.g., Monteiro, Fernandes et al., 2010), ensino/disciplina (e.g., Torres et al., 2014) e brincadeira/lazer (e.g., Monteiro et al., 2017). Sugere-se que estes pais possuem mais recursos, competências e informação sobre as necessidades e características desenvolvimentais dos filhos, sentindo-se deste modo seguros e motivados a cuidar e interagir com eles (e.g., Bailey, 1994; Cabrera, Shannon, & Tamis-LeMonda, 2007). Estes pais poderão, ainda, possuir crenças sobre os papéis de género mais igualitárias, promovendo assim a sua participação, nomeadamente em domínios tradicionalmente associados à mãe (e.g., Jacobs & Kelley, 2006). Contudo, outros trabalhos não reportam associações entre as habilitações dos pais e seu envolvimento (e.g., Afonso, Veríssimo, Fernandes, Borges, & Monteiro, 2011; Simões et al., 2010).

Embora os resultados nem sempre sejam consistentes, o sexo e a idade da criança são descritas como variáveis que influenciam a variabilidade no tipo e grau de envolvimento paterno. Relativamente ao sexo, este parece ter atualmente menor impacto no envolvimento do pai, comparativamente com décadas anteriores (Pleck & Masciadrelli, 2004). No entanto, quando são reportadas diferenças são-no em favor dos rapazes, com os pais a passarem mais tempo e estarem mais envolvidos com os seus filhos em contextos de cuidados e/ou brincadeira (e.g., Lima, 2005; Monteiro, Fernandes et al., 2010; NICHD, 2000; Yeung, Sandberg, Davis-Kean, & Hofferth, 2001). No que concerne à idade, os anos pré-escolares trazem importantes ganhos em termos do desenvolvimento infantil (ao nível linguístico, cognitivo e socio-emocional) tornando a criança mais autónoma, competente e atrativa enquanto parceiro de interação. Este período, segundo diversos autores, representa um pico nos níveis de interações pai/criança, em particular, no contexto de brincadeira (e.g., Lamb & Lewis, 2010; Parke, 1996). Modo geral, estudos com amostras portuguesas não tendem a reportar associações com a idade das crianças (e.g., Lima, 2005; Monteiro, Fernandes et al., 2010; Monteiro, Veríssimo et al., 2010). Contudo, Torres et al. (2014) verificaram que quanto mais velhas as crianças, mais envolvidos se encontram os pais nas atividades de cuidados indiretos (gestão) e de brincadeira.

O presente estudo tem como principal objetivo analisar as relações entre as representações de vinculação do pai, organizadas num script de base segura, e o seu envolvimento (relativo à mãe), analisado enquanto participação nas atividades práticas e lúdicas. Explora-se, se será o script de base segura global, ou o conhecimento referente às relações adulto/criança que estará associado a um maior envolvimento do pai. Por outro lado, espera-se que este possa ter mais impacto na participação dos pais nas atividades práticas, do que nas lúdicas, dado que cultural e socialmente a definição do papel de pai tende a ser menos clara, do que o de mãe, particularmente no que se refere aos cuidados à criança (Peitz, Fthenakis, & Kalick, 2001). Dado que as habilitações literárias dos cuidadores podem ter impacto no seu envolvimento estas são controladas nas análises, assim como a idade e sexo da criança.

 

Método

 

Participantes

Participaram no estudo 62 famílias nucleares portuguesas (mãe, pai, criança-alvo). Os pais tinham idades compreendidas entre os 28 e os 63 anos (M=37.30, DP=6.05), e as suas habilitações literárias variavam entre os 7 e os 23 anos (M=14.57, DP=3.08). Relativamente às mães as suas idades encontravam-se entre os 24 e os 50 anos (M=34.90, DP=4.50), e as suas habilitações entre os 7 e os 23 anos de escolaridade (M=15.39, DP=3.19). Ambos trabalhavam a tempo inteiro. As crianças tinham idades compreendidas entre os 2 e os 5 anos (Mmeses=34.63, DP=7.07), sendo 34 do sexo masculino, e todas frequentavam Creche/Jardim-de-Infância. As famílias pertenciam a um nível socioeconómico médio, sendo oriundas do Distrito de Lisboa.

 

Procedimento/instrumentos

O estudo foi realizado de acordo com os padrões éticos da American Psychological Association, e aprovado pela comissão de ética do ISPA – Instituto Universitário, estando integrado num projeto mais amplo sobre o desenvolvimento sócio-emocional nos primeiros anos de vida. Os pais foram recrutados através dos jardins-de-infância que as crianças frequentavam (uma criança por família), tendo sido informados dos principais objetivos do projeto e assinado um consentimento informado, antes de qualquer recolha de dados.

Para 76% dos participantes as narrativas de vinculação foram recolhidas no contexto de uma visita a casa, combinada com o objetivo de observar as interações entre a criança e o cuidador (ver Monteiro & Veríssimo, 2010). Foi solicitado ao pai que realizasse a tarefa com um dos observadores, enquanto o outro brincava com a criança numa divisão adjacente. Para 24% dos participantes a tarefa foi realizada em contexto escolar, numa sala tranquila e adequada para o propósito, estando apenas presente o pai e um assistente de investigação. Esta tarefa foi gravada (áudio) e posteriormente transcrita para cotação. Os questionários foram enviados para casa, em momentos distintos (50% primeiro para as mães), e solicitado aos cuidadores que os preenchessem de modo independente.

 

Script de base-segura

As Narrativas de Representação da Vinculação em Adultos (Waters & Rodrigues-Doolabh, 2004, manual não publicado) é um instrumento constituído por quatro grupos de palavras sugestivas criadas com o objetivo de guiar a produção de narrativas relacionadas com cenários importantes para a vinculação e, deste modo, analisar o conhecimento e acesso ao script de base segura de adultos, em contextos de rotina e ansiogénicos (Waters & Rodrigues-Doolabh, 2001). Os dois primeiros, “A manhã do bebé” e “No consultório médico”, referem-se às interações adulto/criança (neste estudo pai/criança), enquanto que “O acampamento da Joana e do Pedro” e “O acidente da Susana” referem-se às interações adulto/adulto. As palavras sugestivas apresentadas em cada história dão apenas um possível enquadramento para a elaboração da narrativa, assim o mesmo conjunto pode desencadear diversas histórias, igualmente bem elaboradas, em torno do script de base segura (Waters & Waters, 2006). Para cada história as palavras apresentadas estão organizadas em três colunas: na primeira, as palavras apresentadas sugerem um possível cenário e os atores iniciais; na segunda alguns conteúdos e atividades e na última uma possível conclusão para a história. Foi pedido aos pais que lessem cada coluna de cima para baixo e da esquerda para a direita, de modo a terem uma ideia acerca de uma possível história a contar, sendo, no entanto, os pais livres de utilizarem as palavras como entendessem. Foram, ainda, informados que as histórias seriam gravadas e que, se assim o entendessem, poderiam parar de contar a história e reiniciá-la. À medida que os conjuntos de palavras foram sendo apresentados, um por um, o investigador identificava o tema da história e se as personagens eram o pai e criança, ou dois adultos. Estes foram apresentados em sequências diferentes, de modo a controlar possíveis efeitos de ordem. As histórias relativas à interação adulto/criança foram sempre apresentadas como um bloco e as referentes aos adultos como outro bloco. Na sua maioria os pais realizaram a tarefa em cerca de 20 minutos.

Após a transcrição das narrativas estas foram cotadas numa escala de 7 pontos, indicando a extensão em que a narrativa se encontrava organizada em torno do script de base segura, e a sua riqueza/detalhe relativa à relação entre as personagens. Um valor global sintetiza tanto a presença, como a qualidade do script para cada uma das narrativas. Os valores inferiores a 4 indicam a ausência geral do script de base segura. Os valores mais baixos (1- 2) são reservados para histórias em que, não só há ausência do script como, também, se verifica a existência de conteúdos bizarros. Os valores de 4 (indicador mínimo) ou acima na escala de 7 pontos, indicam a presença do script de base segura. Os valores mais elevados são atribuídos quando o script é elaborado, revela conhecimento e sensibilidade face ao estado emocional do outro, reformula o significado do obstáculo/conflito de um modo favorável e/ou integra a interação atual no contexto da relação entre os sujeitos (ver Waters & Rodrigues-Doolabh, 2004; Waters & Waters, 2006). A média das histórias, com conteúdo de base segura, indica o valor script de base segura global para cada sujeito. A cotação foi realizada por três investigadores, previamente treinados e com experiência nesta metodologia. Nenhum teve acesso a informação sobre as famílias. Os valores de acordo entre os investigadores (calculados como correlações intra-classes) variam entre .74 e .96, com cerca de 89% dos valores a situarem-se dentro de 1 ponto na escala de 1-7.

 

Sociodemográficos

As mães responderam a uma Ficha Sociodemográfica que visava recolher informação referente aos pais (e.g., idade, estado civil, habilitações literárias, trabalho), à criança (e.g., idade e sexo) e ao sistema familiar (e.g., estatuto socioeconómico).

 

Envolvimento parental

Ambos os cuidadores responderam de modo independente, e em momentos distintos, a uma escala sobre o envolvimento parental, analisado enquanto a participação na organização e realização de diferentes atividades relacionadas com as crianças (Monteiro, Veríssimo et al., 2010). É constituída por 17 itens, organizados em duas dimensões: (1) atividades práticas, composta por 11 itens, relacionados com a organização e realização dos cuidados à criança (e.g., “Quem fica em casa quando o seu filho está doente” ou “Quem dá banho ao seu filho”); (2) atividades lúdicas, composta por 6 itens, relacionados com a brincadeira e o lazer (e.g., “Quem lê histórias ao seu filho” ou “Quem leva o seu filho ao parque infantil”). O envolvimento é avaliado numa perspetiva relativa face à outra figura parental. É pedido às figuras parentais que respondam a cada item numa escala de 5 pontos: Sempre a mãe (1); Quase sempre a mãe (2); Tanto a mãe como o pai (3); Quase sempre o pai (4); Sempre o pai (5), apenas para a criança a participar no estudo. Valores mais elevados representam uma maior participação do pai. Os Alfa de Cronbach atingiram valores aceitáveis em todas as dimensões (atividades práticas: mãe=.70, pai=.71 e atividades lúdicas: mãe=.85, pai=.72. Com base nos coeficientes de correlação intra-classe verificou-se que as atividades práticas e lúdicas apresentavam valores muito elevados de concordância no casal (.78 e .79 respetivamente). Deste modo, calculou-se um valor compósito (através da média aritmética) das respostas de mães e pais, utilizado nas análises seguintes.

 

Resultados

 

Script de base segura do pai

As relações intra-histórias adulto/criança e adulto/adulto foram analisadas, verificando-se a existência de correlações positivas e significativas nas histórias adulto/criança (r=.61, p<.001), adulto/adulto (r=.64, p<.001), e entre os dois grupos de narrativas (r=.60, p<.001). Deste modo, calcularam-se valores compósitos (média aritmética) para as narrativas adulto/criança e adulto/adulto, bem como um compósito global de script de base segura. As médias e desvios padrão são apresentados na Tabela 1.

 

 

 

A análise das duas dimensões do questionário indica que, em média é “quase sempre a mãe” a realizar as tarefas práticas de organização e cuidados à criança, com os valores a variarem entre 1 e 3.25 (M=2.17, DP=.47). Nas atividades lúdicas (brincadeira/lazer) os valores variam entre 1 e 3.30 (M=2.69, DP=.39), indicando uma tendência para “tanto a mãe como o pai” participarem nestas atividades. Uma análise t-student para amostras emparelhadas indica que as figuras parentais partilham significativamente mais as atividades lúdicas, do que as práticas [t(61)=-10.4, p<.001].

 

Sociodemográficos

Com base em Correlações de Pearson testaram-se as associações bivariadas entre as variáveis sociodemográficas (medidas em variáveis contínuas) de pai, mãe (idade, habilitações literárias), e criança (idade), os scripts de base segura e o envolvimento do pai. Apenas foi encontrada uma correlação positiva e significativa entre a idade da criança e participação nas atividades práticas (r=.27, p=.034); e entre as habilitações literárias do pai e a participação nas atividades lúdicas (r=.31, p=.014). Assim, quanto mais velha a criança, mais o pai participa nas atividades práticas, e quanto mais elevadas as suas habilitações literárias, maior a participação nas atividades lúdicas. Análises one-way ANOVAS com o sexo da criança como variável independente indicam que não existem diferenças significativas entre rapazes e raparigas para o envolvimento do pai.

 

Script de base segura e o envolvimento do pai

As associações bivariadas entre as representações de vinculação do pai e o seu envolvimento nas atividades relacionadas com a criança são apresentadas na Tabela 2. Apenas o script de base segura nas narrativas adulto/criança se encontra positivamente associado com a participação paterna nas atividades práticas.

 

 

Quando se controla a idade da criança e as habilitações literárias do pai nas relações entre os scripts e o envolvimento, os resultados continuam a indicar uma associação positiva e significativa entre o script adulto/criança e as atividades práticas (r=.26, p<.04). As restantes associações mantêm-se não significativas.

 

Discussão

“Fathers are parents too!” (Cabrera et al., 2018), no entanto, existe ainda um caminho a percorrer no sentido da sua inclusão efetiva, quer ao nível da investigação sobre a parentalidade e do seu impacto no desenvolvimento de crianças e jovens, quer ao nível das políticas relativas à família. Procurando ser um contributo nesse sentido, o presente estudo teve como objetivo explorar, numa amostra de famílias nucleares portuguesas de duplo rendimento, as relações entre as representações de vinculação do pai e o seu envolvimento em atividades do dia-a-dia relacionadas com crianças entre os 2 e os 5 anos de idade.

Ao nível das representações de vinculação verificou-se que, face a diferentes conjuntos de palavras que remetem para contextos de rotina e ansiogénicos (Waters & Rodrigues-Doolabh, 2001, 2004), os pais ativam o script de base segura que guia a construção das suas narrativas. Estas reproduzem, assim, diferentes expectativas, mais ou menos consistentes acerca das interações adulto/criança e adulto/adulto (Waters & Waters, 2006). A ideia implícita ao uso deste tipo de metodologias é que os processos mentais variam, tal como os processos comportamentais, em função dos diferentes modelos internos, o que se reflete na linguagem (Main et al., 1985). Tal como para as mães (amostras maioritariamente utilizadas noutros estudos) os pais, nesta amostra, possuem um script generalizado de base segura, com os valores de correlação entre narrativas adulto/criança e adulto/adulto a assemelharem-se aos de outras amostras de diversos grupos socioculturais (e.g., Monteiro et al., 2015; Rodrigues-Doohlab, Zevallos, Turan, & Green, 2003; Vaughn et al., 2007; Veríssimo et al., 2005). Refira-se, ainda, que não existem correlações significativas entre as habilitações dos pais e os valores script de base segura. O facto de as histórias serem produções orais ajuda a minimizar possíveis diferenças individuais em termos de estilos e competência verbal (Waters & Waters, 2006).

Relativamente ao envolvimento paterno, analisado como a participação relativa do pai, em relação à mãe, em atividades práticas (gestão e cuidados diretos à criança) e lúdicas (brincadeira e lazer), verifica-se que as mães continuam a assumir “quase sempre” o papel cuidador e de gestão/organização na família, havendo uma tendência para a partilha nas atividades lúdicas (e.g., Monteiro et al., 2017; Monteiro, Veríssimo et al., 2010; Torres et al., 2014). Nestas famílias, a envolvimento continua, assim, a ser tendencialmente baseado no género, potencializando diferentes tipos de interação com a criança, embora não se possa inferir que os pais sejam menos competentes ou não sejam capazes de cuidar de modo sensível e responsivo dos seus filhos (e.g., Bretherton et al., 2005; Monteiro, Veríssimo et al., 2010). Será, ainda, importante não minimizar o envolvimento do pai (assim como o da mãe) em atividades de brincadeira, dado o seu papel no suporte à exploração do ambiente físico e social da criança, ou por exemplo nos domínios da regulação emocional e comportamental (e.g., Grossmann et al., 2002; Lamb & Lewis, 2010; StGeorge & Freeman, 2017).

Das variáveis sociodemográficas controladas apenas a idade da criança se encontra positivamente associada com o envolvimento do pai nas atividades práticas. É possível que com o aumento das competências e autonomia das crianças em idade pré-escolar, os pais se sintam mais à-vontade e competentes para participar nos cuidados aos filhos, comparativamente, por exemplo, com os cuidados no primeiro ano de vida (e.g., Bailey, 1994). Nas atividades lúdicas, e tal como noutros estudos (e.g., Monteiro et al., 2017; Monteiro, Fernandes, et al., 2010), pais com habilitações literárias mais elevadas estão mais envolvidos com os seus filhos. Este tipo de atividades pode ser visto pelos cuidadores não só como contextos de interações de partilha afetiva, mas também de aquisição e desenvolvimento de diversas competências (e.g., cognitivas, linguísticas), assim como de normas e valores do grupo de pertença (e.g., Parke, 1996; Parke et al., 2004).

Nesta amostra, as representações de vinculação, em particular as referentes às relações adulto/criança encontram-se positivamente associadas com o envolvimento do pai nas atividades práticas (controlando a idade da criança e as habilitações do pai). Apesar de se verificar que estes pais possuem um script de base segura global, é possível que face a contextos específicos de interação, seja o conhecimento do tipo script adulto/criança que seja ativado, influenciando expectativas, sentimentos e comportamentos no exercício da parentalidade. Por outro lado, esta associação apenas é significativa para as atividades práticas que remetem para cuidados à criança. Sugere-se que o conhecimento de tipo script adulto/criança possa ser mais relevante em domínios onde o papel do pai é menos bem definido cultural e socialmente (Peitz et al., 2001), como é o caso dos cuidados, comparativamente com a brincadeira e o lazer.

Os autores gostariam de indicar algumas limitações deste estudo, nomeadamente, o facto de ter um delineamento transversal e correlacional com as implicações daí inerentes às interpretações dos resultados, nomeadamente, ao nível da causalidade. Por outro lado, a amostra é reduzida e relativamente homogénea em termos sociodemográficos. Refira-se, ainda, a necessidade de estudos futuros incluírem outro tipo de atividades (e.g., instrução, disciplina), bem como integrar a componente da qualidade desse envolvimento (e.g., Ainsworth, Blehar, Waters, & Wall, 1978; Egeland, Erickson, Moon, Hiester, & Korfmacher, 1990; Grossmann et al., 2002; StGeorge & Freeman, 2017). Se um maior envolvimento do pai tem sido associado, de modo consistente, a resultados mais positivos para a criança, adulto e para o próprio sistema familiar, quando as características e qualidade do mesmo são descritas como negativas (e.g., abusiva) os resultados são distintos (ver Lamb, 2010b, 2012).

Apesar das limitações, este estudo contribui para a análise do papel do pai, considerando a sua perspetiva, e salientando a história do indivíduo (representações de vinculação) e do seu potencial impacto na idade adulta, nomeadamente, na parentalidade. As histórias das relações precoces dos cuidadores (pai e mãe) são uma das peças do complexo puzzle que é a parentalidade (Lamb, 2012), sendo que o trabalho a este nível com as famílias poderá contribuir para uma parentalidade mais saudável e consciente, particularmente em contextos de negligência ou maus-tratos (World Health Organization, 2004).

 

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CORRESPONDÊNCIA

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Lígia Monteiro, ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, CIS-IUL, Avenida das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal. E-mail: ligia.monteiro@iscte-iul.pt

 

Submissão: 03/02/2018 Aceitação: 04/11/2019

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