Introdução
A relação conjugal surge de um processo de organização contínuo, complexo e dinâmico entre duas pessoas com uma identidade própria, ou seja, estas apresentam características únicas que advêm de significados, valores, crenças e experiências históricas e culturais, provenientes das suas estruturas e dinâmicas familiares (Figueiredo, 2012; Goulart, 2019; Porreca, 2019; Rizzon, 2013). Esta relação resulta em sensações e sentimentos de bem-estar, segurança, intimidade e compreensão, surgindo a satisfação conjugal (Cerqueira-Santos, Silva, Rodrigues & Santos, 2016; Hernandez, 2020; Porreca, 2019).
Constantes flutuações surgem na relação conjugal por influência de diversos fatores, nomeadamente a paixão, a intimidade, o compromisso, o contexto real para as pessoas que formam o casal e os recursos internos para dar resposta às pressões (Rizzon, 2013). Outro fator que influencia a qualidade do relacionamento é a interação sexual, pois esta resulta de uma relação de atributos pessoais que se correlacionam com os valores e comportamento dos indivíduos que levam à revelação da sexualidade (Figueiredo, 2012).
A sexualidade é uma característica central do individuo que engloba o sexo, identidade, papéis de género, orientação sexual, erotismo, prazer e intimidade (Relvas, 2001). É uma pedra basilar na relação íntima do casal, influenciando o indivíduo e o funcionamento do casal, pois compreende problemas de distância e de proximidade fulcrais na relação do casal (Relvas, 2001). Tem por base várias dimensões que podem não ser todas vivenciadas e expressas (crenças, valores, desejos, fantasias, práticas, relacionamento e pensamentos) e é afetada pela relação dos fatores biopsicossociais, económicos, políticos, culturais, jurídicos, históricos, religiosos e espirituais (Caceres et al., 2010; World Health Organization, 2022).
Sendo a sexualidade um dos atributos para atingir a satisfação conjugal e com uma forte ligação e influência bidirecional, é importante conhecer os fatores que influenciam a sexualidade que têm implicação na qualidade do relacionamento.
Como ponto de partida foi realizada uma pesquisa preliminar de revisões na MEDLINE (via Pubmed), CINAHL (via EBSCOhost), Cochrane Database of Systematic Reviews, JBI Evidence Synthesis, Repositório Científico de Acesso Aberto Portugal (RCAAP) e PROSPERO no dia 14 de Abril de 2022, que não revelou qualquer tipo de revisão que mapeasse os fatores da sexualidade que influenciam a satisfação conjugal, encontrando-se dispersos na literatura.
Diante do exposto, neste estudo realizou-se uma Scoping Review com objetivo de identificar os fatores associados à sexualidade que influenciam a satisfação conjugal dos casais sem disfunções sexuais e cujos membros sejam saudáveis.
Procedimentos metodológicos de revisão
O presente estudo consiste numa scoping review e foi realizado de acordo com a metodologia proposta pelo Joanna Briggs Institute (Peters et al., 2020). Antes de iniciar a pesquisa exploratória sobre o tema foi desenvolvido um desenho provisório de pesquisa que incluiu os objetivos do estudo, a questão de revisão e o método de pesquisa. Foi realizada uma pesquisa preliminar nas bases de dados MEDLINE (via PubMed) e CINAHL Complete (via EBSCOhost), de modo a identificar as palavras usualmente utilizadas nos títulos e abstracts dos estudos, assim como os termos de linguagem natural.
Foi elaborada a questão de investigação: “Quais os fatores da sexualidade que influenciam a satisfação conjugal dos casais sem disfunções sexuais e cujos membros sejam saudáveis?”. Esta questão teve como base a mnemónica PCC (População, Conceito e Contexto), que é específica para este tipo de revisões. Relativamente à População (P) foram considerados os casais formados por indivíduos sem disfunções sexuais, saudáveis, de qualquer orientação sexual, casados ou em unidos de facto, em regime de coabitação ou não, com idade compreendida entre os 18 e 65 anos de idade. Em relação ao Conceito (C) foram incluídos estudos cujo foco fosse a sexualidade, o sexo e a satisfação sexual, com exclusão de estudos que focavam a relação conjugal disfuncional. Por fim, no Contexto (C) foram incluídos estudos realizados no âmbito da relação conjugal.
A pesquisa de dados foi realizada durante o mês de Abril de 2022, utilizando os seguintes termos como linguagem natural: “sexual satisfaction", "sex satisfaction", "sexual satisfaction", "sexuality", "marital satisfaction", "relationship satisfaction", "couple satisfaction". As estratégias de pesquisa foram adaptadas consoante as bases de dados, nomeadamente MEDLINE via PubMed, CINAHL Complete via EBSCOhost, Scopus by Elsevier, Web Of Science by Clarivate, Psychology & Behavioral Sciences Collection via EBSCOHost, MedicLatina via EBSCOHost e o Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal.
Foi balizado um espaço temporal de 2017 a 2022 com o intuito da aquisição de evidência atualizada e considerados os idiomas português, inglês e espanhol. A pesquisa não incluiu a idade da adolescência por esta ser caracterizada pela instabilidade inerente por transformações biopsicossociais, incluindo a nível da sexualidade (Domingues, 2020). Também as pessoas que se encontram a vivenciar o processo de envelhecimento apresentam alterações biológicas e psicológicas características desta fase que interferem na sexualidade (Mota, 2015). Por este motivo, foram incluídos apenas os indivíduos entre 18 e 65 anos de idade. Na fase final, foi realizado um processo de seleção de estudos, seguido da extração e síntese de dados. Os dados extraídos, nomeadamente título do artigo, ano de publicação, país, autores, tipo de estudo, população, objetivo do estudo e principais resultados, foram registados no programa de Editores de Documentos Google, a Google Sheets. Por fim, foi efetuada a análise descritiva e síntese temática que permitiu dar resposta às questões norteadoras do estudo.
Resultados
Da pesquisa realizada nas bases de dados foram encontrados 704 estudos no total. Foram excluídos 37 estudos duplicados, ficando um total de 667 estudos. De seguida, foram lidos todos os títulos e resumos e excluídos 623 artigos por não ser mencionada a população, o contexto ou por não cumprirem os critérios de inclusão definidos. Foram selecionados 44 estudos que encontravam-se com corpo de texto íntegro e não existia necessidade de serem recuperados.Após a leitura integral dos artigos, 30 artigos foram excluídos por não cumprirem os critérios de elegibilidade como são apresentados na Figura 1, sendo incluídos nesta revisão 14 artigos no total.
Seguidamente são apresentadas as características dos estudos incluídos, nomeadamente os títulos dos estudos e os respetivos autores, o ano de publicação, os países onde foram realizados, população incluída no estudo, o tipo de estudo e os objetivos do estudo (Tabela 1).
Os estudos selecionados têm como base os indivíduos numa relação conjugal com idade entre 18 e 65 anos com diferente orientação sexual, ou seja, homossexual (Calvillo et al., 2020; Sutherland et al., 2020), heterossexual (Brown & Weigel, 2018; Dwulit & Rzymski, 2019; Floyd et al., 2020; Muise et al., 2017; Peters & Meltzer, 2021; Rosen et al., 2018; Veit et al., 2017; Vowels & Mark, 2020; Willoughby & Leonhardt, 2020; Wood et al., 2021) ou homossexual e heterossexual (Mark et al., 2018; Pereira et al., 2019).
Os estudos desenvolvidos por Peters & Meltzer (2021), Wood et al. (2021), Vowels & Mark (2020), Floyd et al. (2020), Willoughby & Leonhardt (2020), Brown & Weigel (2018), Rosen et al. (2018) e Muise et al. (2017) tiveram origem nos Estados Unidos da América. Dois estudos incluídos foram desenvolvidos por Sutherland et al. (2020) e Mark et al. (2018) no Canadá. Os restantes estudos foram realizados em Espanha, Polônia, Portugal e Croácia, desenvolvidos respetivamente por Calvillo et al. (2020), Dwulit e Rzymski (2019), Pereira et al. (2019) e Veit et al. (2017).
Após a análise e interpretação dos resultados dos estudos incluídos foi possível mapear sete fatores da sexualidade que influenciam a satisfação conjugal (Tabela 2).
No estudo desenvolvido por Calvillo et al. (2020) foram identificados dois fatores, nomeadamente a auto-revelação sexual e o apego. Anteriormente, o fator auto-revelação sexual já tinha sido identificado por Brown & Weigel (2018) e o fator apego por Mark et al. (2018).
O conteúdo explícito de atividade sexual foi outro fator distinguido pelos estudos realizados por Dwulit e Rzymski (2019), Floyd et al. (2020) e Willoughby e Leonhardt (2020). Outros fatores como motivação sexual intrínseca e extrínseca, motivação para entender as necessidades do parceiro e a sensibilidade foram assinalados pelos estudos desenvolvidos por, respetivamente, Wood et al., (2021), Muise et al., (2017) e Peters e Meltzer (2021).
O fator discrepância do desejo sexual foi reconhecido por um maior número de estudos, nomeadamente de Pereira et al. (2019), Rosen et al. (2018), Vowels e Mark (2020) e Sutherland et al. (2020).
Na seguinte tabela estão representados os fatores da sexualidade que influenciam a satisfação conjugal associados aos estudos que os descreveram.
Discussão
Os elementos do casal quando referem um sentimento de baixa satisfação conjugal e intimidade, procuram estratégias para aumentar a satisfação sexual. O uso de conteúdo explícito de atividade sexual é uma das estratégias e um fator da sexualidade (Dwulit & Rzymski, 2019; Floyd et al., 2020; Willoughby & Leonhardt, 2020). Este é abordado em alguns casos como uma influência negativa na sexualidade e consequentemente na satisfação conjugal, contudo tudo depende do contexto, das características individuais, da religião, do índice de massa corporal, do uso individual ou em conjunto e da desaprovação moral que conduz a um sentimento de vergonha (Dwulit & Rzymski, 2019; Floyd et al. 2020; Willoughby et al., 2020). No entanto, quando é usada como estratégia acompanhada com uma comunicação sexual eficaz entre os elementos docasal tem uma influência positiva na satisfação conjugal (Willoughby et al., 2020). Um outro fator da sexualidade é a discrepância do desejo sexual entre os elementos do casal. Quando existe esta discrepância, a forma como os indivíduos procuram dar solução tem implicações na satisfação conjugal (Muise et al., 2017; Pereira et al., 2019; Rosen et al., 2018; Sutherland et al., 2020). Vowels e Mark (2020) identificam estratégias para mitigar a discrepância de desejo sexual entre os elementos do casal e verificaram que não fazer nada como estratégia para reverter a discrepância sexual promove uma desvinculação entre os elementos e a diminuição da satisfação conjugal, contudo a masturbação, a prática de uma atividade diferente e a comunicação tiveram um efeito positivo.
Muise et al. (2017) caracterizam outro fator da sexualidade: a motivação para atender às necessidades dos parceiros. Os autores referem existir associaçãoentre a motivação para entender e atender a necessidade do parceiro para fazer ou não fazer sexo a maiores níveis de satisfação conjugal.
A auto-relevação sexual, outro fator que é identificado, refere-se à comunicação e à partilha entre os elementos do casal sobre as suas preferências sexuais, promovendo uma influência positiva na interação sexual e na satisfação conjugal, contudo esta revelação está dependente de um contexto seguro e do apoio existente (Brown & Weigel, 2018; Cavillo et al., 2020). O enfoque dado à comunicação no relacionamento é essencial nos relacionamentos diádicos e é um tema abordado de forma transversal em muitos dos estudos (Brown & Weigel, 2018; Cavillo et al., 2020; Pereira et al., 2019; Rosen, et al., 2018; Sutherland et al., 2020; Veit et al., 2017; Vowels et al., 2020).
Outro fator identificado foi o apego que é influente e importante na satisfação conjugal (Mark et al., 2018). Os elementos do casal apresentam melhores níveis de satisfação conjugal quando existe apego seguro, isto é, a presença de confiança e intimidade (Cavillo et al. 2020; Mark et al., 2018), porém, um apego ansioso (insegurança, a comunicação de sentimentos negativos, necessidade de atenção e sentimento de ambivalência) e um apego evitativo (independência emocional, a dificuldade em distinguir emoções, angústia na intimidade) têm um efeito negativo na satisfação conjugal (Cavillo et al. 2020; Mark et al., 2018).
A sensibilidade à aversão sexual, ou seja, a repulsa de vários conceitos, atos ou situações sexuais (como por exemplo, assistir a conteúdo explícito de atividade sexual), foi um fator da sexualidade abordado por Peters e Meltzer (2021). Os indivíduos que apresentavam uma sensibilidade de aversão sexual semelhante mantiveram maior satisfação conjugal (Peters & Meltzer, 2021).
Por último, foi identificado o fator motivação sexual intrínseca e extrínseca, ou seja, razões motivantes internas ou externas que incentivem a pessoa a praticar o sexo (Wood et al., 2021). Foi abordado por Wood et al. (2021) como impulsionador para maiores níveis da satisfação das necessidades sexuais e, consequentemente, à maior satisfação conjugal, pois a motivação sexual tem efeitos positivos sobre as necessidades sexuais do parceiro.
Conclusão
A satisfação conjugal é considerada um pilar fundamental no bem-estar mental, físico e social dos elementos do casal, sendo a sexualidade um dos atributos para alcançar a qualidade na relação. Os fatores da sexualidade têm implicações sobre a satisfação do casal em diferentes níveis de intensidade e de diferentes formas, dependendo das características individuais de cada pessoa e da interação entre os elementos do casal, pelo que se tornou essencial aprofundar os conhecimentos nesta área.
A presente scoping review permitiu dar resposta à questão de investigação, ou seja, identificar os diferentes fatores estudados nos últimos cinco anos que estão associados à sexualidade e que influenciam a satisfação conjugal.
Na identificação dos fatores da sexualidade que influenciam a satisfação conjugal e, considerando que a satisfação conjugal é uma área de atenção crucial, este estudo permite melhorar a qualidade de cuidados e aperfeiçoar o ensino em enfermagem de saúde familiar.
Por este motivo, é fundamental a realização de novas revisões que permitam aprofundar as implicações dos fatores da sexualidade no contexto da relação conjugal, bem como a realização de estudos de investigação primários com objetivo de identificar novos fatores da sexualidade que influenciam a satisfação conjugal, tendo em conta a atualidade e o contexto cultural familiar português.