Introdução
A integração de cuidados de saúde é atualmente uma questão central dos sistemas de saúde, de modo a garantir que os utentes têm acesso aos cuidados de que necessitam, no lugar e tempo mais adequados. Na Lei de Bases da Saúde (Base XIII, nº 2) encontra-se descrito que deve ser “promovida a intensa articulação entre os vários níveis de cuidados de saúde, reservando a intervenção dos mais diferenciados para as situações deles carecidas e garantindo permanentemente a circulação recíproca e confidencial da informação clínica relevante sobre os utentes”.1
Sendo o médico de família frequentemente o primeiro contacto do utente com o sistema de saúde, este assume um papel fundamental na abordagem e avaliação inicial do utente, devendo avaliar se e quando existe necessidade de referenciação para os cuidados de saúde secundários (CSS).2 É, assim, crucial que exista uma articulação eficaz e eficiente entre os cuidados de saúde primários (CSP) e secundários.
Pode definir-se neste contexto articulação como uma “organização deliberada de atividades entre dois ou mais participantes envolvidos nos cuidados do utente de modo a facilitar uma prestação adequada dos serviços de saúde”.3 Esta articulação deve incluir uma ação conjunta a nível da coordenação clínica, do planeamento, da informação, do financiamento e da gestão dos recursos humanos e tecnológicos disponíveis, de modo a permitir a melhor resposta possível aos utentes e uma melhoria da acessibilidade e da qualidade geral dos cuidados prestados.4
É, assim, imprescindível abordar a importância da comunicação entre profissionais de saúde quando se fala sobre qualidade em saúde e nos cuidados prestados aos utentes. Uma ineficaz ou inexistente comunicação entre profissionais de saúde pode comprometer a continuidade da prestação dos cuidados, a segurança do utente, a utilização ineficaz de recursos, a duplicação de meios complementares de diagnóstico e a sobrecarga dos profissionais de saúde, entre outros.5-6
Algumas das soluções atualmente utilizadas são as reuniões de consultadoria ou a teleconsulta, o contacto telefónico e a comunicação através do programa de referenciação. Contudo, são ainda soluções que carecem de algum refinamento.7-8
Para a comunicação entre profissionais de saúde ocorrer de um modo mais eficiente são fundamentais os sistemas de informação na saúde. Os sistemas de informação na saúde permitem a cooperação, a partilha de conhecimentos e informação, bem como o desenvolvimento de atividades de prestação de serviços nas áreas dos sistemas e tecnologias de informação e comunicação. Estes sistemas desempenham um papel importante na reforma do sistema de saúde, tendo como principais objetivos a melhoria da acessibilidade, a eficiência, a qualidade e continuidade dos cuidados e o aumento da satisfação dos profissionais e cidadãos.9
Este trabalho tem, por conseguinte, como objetivo avaliar a satisfação dos médicos especialistas e internos de medicina geral e familiar (MGF) relativamente à articulação com os CSS.
Material e métodos
Foi realizado um estudo multicêntrico, observacional transversal, através da aplicação de um questionário.
Os dados foram recolhidos através do preenchimento de um questionário em plataforma digital (Googleforms®), que esteve disponível de 20 de setembro de 2019 a 20 de dezembro de 2019. A população incluiu todos os médicos especialistas e internos de MGF em Portugal, no período do estudo, com exclusão dos não assinantes do consentimento informado digital na plataforma Googleforms®, redigido de acordo com a Declaração de Helsínquia e a Convenção de Oviedo. De acordo com o BI-CSP, o número de médicos de MGF em setembro de 2019 era de 6.507,10 sendo neste caso o tamanho amostral pretendido, considerando um intervalo de confiança de 95% e uma margem de erro de 5%, de 363 participantes.
O convite aos médicos foi realizado pessoalmente em reuniões de serviço, através de e-mail, tendo sido pedida a divulgação aos diferentes coordenadores de internato das diversas Administrações Regionais de Saúde (ARS) e Secretarias Regionais de Saúde (SRS), à Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar e à USF-AN, e através da partilha do questionário nas redes sociais.
As variáveis analisadas foram: idade, sexo, categoria profissional (médico interno, médico recém-especialista, médico especialista), área de trabalho (ARS Norte, ARS Centro, ARS Lisboa e Vale do Tejo, ARS Alentejo, ARS Algarve; SRS da Madeira e dos Açores), local de trabalho (Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados [UCSP], Unidade de Saúde Familiar modelo A [USF-A] ou modelo B [USF-B]), classificação do acesso e qualidade dos registos das consultas hospitalares e do serviço de urgência, classificação da informação de retorno dos CSS quanto à disponibilidade e à qualidade, classificação do acesso aos resultados dos exames complementares realizados em meio hospitalar, acesso a informação de recusa de pedido a referenciação hospitalar e grau de satisfação global relativamente à articulação entre os CSP e CSS. Na Tabela 1 estão descritas as perguntas presentes no questionário e respetivas opções de resposta.
A análise dos dados foi realizada com recurso ao programa Statistical Package for the Social Science® v. 25. Ao nível da estatística descritiva, as variáveis quantitativas foram sintetizadas através da média, mediana, desvio-padrão (DP), mínimo e máximo. As variáveis qualitativas foram descritas através das frequências absolutas (n) e relativas (%). A análise estatística inferencial foi realizada com recurso ao teste de Kruskal-Wallis. Foi considerado existir uma associação estatisticamente significativa quando p inferior a 0,05.
Este estudo foi autorizado pela Comissão de Ética da ARS Centro.
Resultados
Foram obtidas 229 respostas ao questionário, não se tendo atingindo o tamanho amostral definido pelo estudo de 363 participantes. Foi excluída uma resposta pela ausência de concordância com o consentimento informado digital.
Na amostra estudada (n=228), a média etária foi de 35,09±9,96 anos (mínimo: 26 anos; máximo: 68 anos) e 79,1% era do sexo feminino. Relativamente à categoria profissional, 47,8% dos respondentes eram médicos internos de MGF e 46,1% trabalhavam numa USF-B. Foram obtidas respostas das cinco ARS e das duas SRS, sendo que a maioria das respostas foi da ARS Centro (36%).
A caracterização sociodemográfica da amostra encontra-se descrita na Tabela 2.
Nas Tabelas 3 a 5 encontram-se descritos os principais resultados do questionário aplicado, sendo que a média de todas as respostas variou entre 2,2 e 3,6 numa escala de 1 a 5.
Acesso aos CSS na área geográfica
Relativamente ao acesso aos CSS na área geográfica da unidade de saúde em que o respondente trabalha, 53,1% respondeu «razoável», sendo a média das respostas de 2,88±0,86. Existiu uma diferença estatisticamente significativa nas respostas de acordo com o local e área de trabalho.
Os médicos que trabalham numa USF-B e na ARS Centro pontuaram em média mais alto, em comparação com os médicos trabalham numa UCSP e na ARS Algarve.
Referenciações
A média das respostas relativamente ao tempo de resposta de referenciações com prioridade normal foi de 2,18±0,74, com 47,8% dos respondentes a classificar como «mau». Existiu uma diferença estatisticamente significativa de acordo com a área de trabalho, sendo a média das respostas mais elevadas na ARS Centro e mais baixa na ARS Alentejo.
Nas referenciações de prioridade urgente 38,2% respondeu «razoável», sendo a média de 2,94±0,9, com diferença estatisticamente significativa de acordo com categoria profissional, local e área de trabalho. As médias das respostas foram superiores para os médicos recém-especialistas, para os que trabalham em USF-B e para quem trabalha na ARS Centro, sendo inferiores para as respostas dos médicos especialistas, quem trabalha numa UCSP e na ARS Alentejo.
A nível nacional, as especialidades com tempo de resposta mais elevado às referenciações foram a oftalmologia, a ortopedia e a dermatologia. Na Figura pode-se verificar quais as especialidades com tempo de referenciação mais elevados por área de trabalho.
Registos das consultas dos CSS
Em relação ao acesso dos registos das consultas, a maioria dos médicos considera o acesso como «razoável» (média 2,64±1,2; moda 3), existindo uma diferença estatisticamente significativa nas respostas consoante a área de trabalho, com médias superiores para as respostas dos médicos que trabalham na SRS Madeira e inferiores para os da SRS Açores.
Na qualidade dos registos das consultas, a média das respostas foi 2,9±0,91, sendo que 41,2% dos médicos a classificou como «razoável». Não existiu diferença significativa das respostas de acordo com categoria profissional, área e local de trabalho.
Registo das idas ao serviço de urgência
A nível do acesso aos registos das idas ao serviço de urgência, a maioria dos profissionais (30,3%) classifica como «péssimo», sendo a média das respostas 2,57±1,25. Existe uma diferença estatisticamente significativa nas respostas de acordo com área e local de trabalho, com valores mais elevados para os médicos que trabalham numa USF-A e na SRS Madeira e mais baixos para quem trabalha numa UCSP e na SRS Açores.
A qualidade dos registos é classificada por 28,9% dos médicos como «razoável», com uma média de classificação de 2,69±1,11, existindo diferença significativa na classificação de acordo com a área de trabalho. As médias das respostas foram superiores para quem trabalha na SRS Madeira e inferiores para os médicos da ARS Algarve.
Consideração pelas patologias dos utentes
Quando questionados sobre se os médicos dos CSS têm em conta as patologias dos utentes (nomeadamente as que são do foro de uma diferente especialidade), a média das respostas foi de 2,86±0,84, com 46,5% dos respondestes a classificar a questão com «às vezes», não existindo uma diferença estatisticamente significativa nas respostas.
Carta de alta das consultas hospitalares
Em relação ao acesso a carta de alta das consultas hospitalares, a média das respostas foi de 3,25±0,83, com 40,4% a referir que tem acesso às cartas de alta hospitalares «às vezes». Existiu uma diferença estatisticamente significativa nas respostas de acordo com a área de trabalho, sendo a média das respostas mais elevada na ARS Centro e mais baixa na SRS Madeira.
A nível da qualidade das cartas de alta, 51,3% dos respondentes classificou como «bom», sendo a média das respostas de 3,57±0,68. Verificou-se uma diferença estatisticamente significativa nas respostas de acordo com a categoria profissional, sendo a média das respostas dos médicos recém-especialistas superior e a dos médicos especialistas inferior.
Exames complementares de diagnóstico realizados nos CSS
Quando questionados sobre o acesso aos exames realizados nos CSS, a maioria responde que tem acesso «às vezes» (média 2,71±1,03), com uma diferença estatisticamente significativa nas respostas pela área de trabalho. As médias das respostas foram superiores para os médicos da SRS Madeira e inferiores nos médicos da SRS Açores.
Informação de recusa da referenciação
Em relação ao acesso a informação relativa à recusa de uma referenciação aos CSS, 35,5% dos médicos respondeu que recebia informação «às vezes» (3,33±0,99), não existindo diferenças estatisticamente significativas nas respostas.
Classificação global
Na questão em que era pedido para classificar na globalidade a satisfação relativamente à articulação entre os CSP e CSS, 50% dos profissionais respondeu «razoável» (média 2,6±0,74), sendo que não existiu nenhuma classificação de «muito bom». Existiu uma diferença estatisticamente significativa nos resultados de acordo com a área de trabalho. As respostas da ARS Centro tiveram uma média mais elevada e as da ARS Algarve uma média mais baixa.
Discussão
Este trabalho teve como principal objetivo avaliar o grau de satisfação dos médicos de MGF relativamente à articulação entre os CSP e os CSS.
Os resultados obtidos neste trabalho revelam que ainda existe um longo caminho a percorrer relativamente à articulação entre os CSP e os CSS, dado que todas as respostas tiveram uma média entre 2,2 e 3,6. A maioria das respostas apresentou diferenças estatisticamente significativas quando comparadas por área de trabalho, verificando-se menos esta diferença quando comparadas por categoria profissional ou local de trabalho.
Relativamente ao acesso aos CSS existe disparidade de acordo com a área de trabalho. Contudo, no presente estudo não foi avaliada a assimetria existente dentro de cada ARS/SRS, nomeadamente a possibilidade de diferenças de acesso entre unidades de saúde de áreas rurais em comparação com as unidades de áreas urbanas.
Atualmente existem diversos sistemas de informação na área da saúde em Portugal, quer nos CSP quer nos CSS.11 Como se pode verificar neste estudo, a maioria dos médicos de MGF não tem acesso aos registos e exames complementares de diagnóstico realizados a nível hospitalar (médias de 2,64±1,2, 2,57±1,25 e 2,71±1,03 para o acesso aos registos das consultas, ida ao SU e MCDT, respetivamente). Um dos fatores que podem ter impacto nesta variável é a interoperabilidade, fundamental para permitir a integração entre os diferentes sistemas operativos.3,12-13
No entanto, também é fundamental que os profissionais que utilizam os sistemas de informação os usem de modo eficaz. A maioria dos participantes classifica a qualidade da informação registada como «razoável» (médias de 2,9±0,91 e 2,69±1,11 para a qualidade dos registos das consultas e das idas ao SU, respetivamente). Seria importante a realização de estudos para compreender o motivo do não registo ou de registos de baixa qualidade quando existem sistemas informáticos disponíveis. Para além disso, é importante investir na formação dos profissionais de saúde ao nível da utilização dos sistemas de informação, de modo que sejam utilizados do modo mais correto e eficiente, bem como na adaptação dos sistemas existentes para que a sua utilização seja mais simplificada e acessível.
Ao nível das referenciações, o tempo de resposta às referenciações com prioridade normal e urgente teve uma média inferior a 3, embora mais elevada para as referenciações urgentes (2,18±0,74 e 2,94±0,9, respetivamente). De acordo com a Portaria n.º 153/2017, que define os tempos máximos de resposta garantidos (TMRG) no Serviço Nacional de Saúde, o tempo para uma primeira consulta de especialidade hospitalar referenciada pelas unidades funcionais do ACeS é de 120, 60 ou 30 dias após a realização do pedido, se prioridade for normal, prioritária ou muito prioritária, respetivamente.14 Em dezembro de 2019, a percentagem de primeiras consultas hospitalares realizadas em tempo adequado variava entre 48 e 99,6%, de acordo com o hospital avaliado.9 Como nos resultados obtidos no presente questionário constata-se uma grande variabilidade dos tempos de resposta às referenciações hospitalares, sendo que neste estudo se observou uma diferença estatisticamente significativa nas respostas por área de trabalho. Deste modo, era importante efetuar uma avaliação interna em cada ARS/SRS, de modo a perceber quais as especialidades com maiores tempos de resposta às referenciações e que medidas se poderiam implementar para otimizar estes tempos.
Seria também interessante a realização de um estudo complementar para avaliar o grau de satisfação dos médicos dos CSS relativamente à articulação com os CSP, para se compreender, por exemplo, se estes tempos elevados se devem a problemas ao nível da resposta dos CSS ou ao nível dos motivos de referenciação por parte dos CSP. Também necessário é o aumento do número e qualidade de informação de retorno dos CSS à recusa das referenciações e, por exemplo, a partilha de uma forma pedagógica dos motivos mais frequentes de referenciação de modo a aumentar a qualidade das referenciações realizadas pelos CSP. Esta partilha pode também permitir a perceção de necessidades formativas ou de recursos que assegurem a orientação de alguns dos casos referenciados a partir dos CSP. Uma outra forma de redução do número de referenciações seria a existência de consultores ao nível dos CSS nas diversas especialidades, permitindo o esclarecimento de dúvidas na orientação ou na necessidade de referenciação do utente.
Comparando os resultados obtidos com outros trabalhos realizados na mesma área em Portugal, em 2001 foi publicado um artigo na Revista Portuguesa de Clínica Geral sobre o acesso aos CSS.15 Os autores constataram a existência de problemas de acessibilidade e baixa percentagem de resposta de retorno dos CSS. Em 2005 e em 2006 foram publicados dois estudos na mesma revista relativamente à referenciação para os CSS,7,16 tendo-se verificado a existência de algumas falhas na articulação entre os dois níveis de cuidados, com necessidade de melhoria das cartas de referenciação e de retorno, bem como dos tempos de resposta às referenciações.
Em 2019 foi publicado um artigo sobre a opinião médica relativamente à articulação entre CSP e CSS no sistema de saúde catalão.17 Os autores deste estudo concluíram que os médicos consideravam existir globalmente uma boa articulação entre os dois níveis de cuidados nas três áreas avaliadas (fatores organizacionais, fatores profissionais e fatores que influenciem a coordenação clínica). Contudo, também foram identificados alguns obstáculos, sendo o mais relevante a falta de coordenação clínica entre os diferentes níveis de cuidados.
Uma das limitações do presente estudo foi a utilização de um questionário que não está validado, o que limita as conclusões do trabalho e a comparação com outros realizados na mesma área. Outra limitação foi o número total da amostra, dado não se ter atingido o valor do tamanho amostral calculado, e a sua distribuição pelas diferentes ARS e SRS, sendo que as frequências relativas de participantes de cada ARS e SRS variaram entre 2,6% e 36%. Era, assim, importante a realização do estudo com uma amostragem maior e mais equitativamente distribuída pelas sete áreas.
Como é possível constatar através dos resultados obtidos, a articulação entre os CSP e secundários tem ainda potencial de melhoramento, sendo fundamental a realização de investigação nesta área, de modo a perceber quais as mudanças necessárias para melhorar a articulação entre os CSP e os CSS. A otimização da articulação entre estes dois níveis de cuidados de saúde permitiria um melhor seguimento partilhado e uma melhor continuidade dos cuidados ao doente no sistema de saúde, o que aumentaria a efetividade dos cuidados.8 É um processo que se deve enquadrar numa estratégia centrada no doente e não nas instituições, conduzindo a uma utilização mais racional dos recursos existentes e, consequentemente, com redução de custos associados.