Introdução
A violência autoprovocada é a violência que uma pessoa provoca a si mesma, sendo classificada em comportamento suicida e autoagressão (Ribeiro, Castro, Scatena & Haas, 2018). Pensamentos suicidas, tentativas de suicídio e o suicídio de fato englobam o comportamento suicida, enquanto que a autoagressão envolve diversos atos de automutilação, como arranhaduras, cortes, mordidas e, até mesmo, amputação de membros (World Health Organization [WHO], 2002).
No ano de 2016, o suicídio foi a segunda causa de morte no mundo entre jovens de 15 a 29 anos. Além disso, foi a segunda causa de morte entre meninas e a terceira causa de morte entre meninos de 15 e 19 anos (WHO, 2019). Apenas no Brasil, de 2000 a 2015, ocorreram 11.947 mortes por lesões autoprovocadas intencionalmente entre adolescentes, o que representou 8,25% do número total de mortes por suicídio em todas as faixas etárias nesse mesmo período (Cicogna, Hillesheim & Hallal, 2019).
Esses dados reforçam que o suicídio é um grave problema de saúde pública entre os jovens de todo o mundo. O comportamento suicida é multidimensional e provoca grandes prejuízos econômicos, sociais e psicológicos para os indivíduos, suas famílias e a sociedade como um todo. Por essa razão, pesquisadores de áreas diversas têm buscado investigar o tema sob diferentes aspectos, incluídas pesquisas sobre a epidemiologia das tentativas de suicídio, métodos utilizados, representações sociais do suicídio e, principalmente os aspectos relacionados a identificar estratégias adequadas para a prevenção e redução de mortes por essa causa (Claumann, Pinto, Silva & Pelegrini, 2018).
Tendo em vista a importância desse agravo como causa de óbito entre adolescentes, este artigo tem por objetivo analisar a tendência de mortalidade por lesões autoprovocadas em adolescentes no Brasil, no período de 2010 a 2018.
Métodos
Estudo ecológico de séries temporais sobre a mortalidade por lesões autoprovocadas em adolescentes de 10 a 19 anos de idade no Brasil, no período de 2010 a 2018.
Os dados sobre óbitos foram obtidos no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), disponibilizados pelo Ministério da Saúde por meio do sítio eletrônico do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS). As informações relativas à população residente no Brasil e suas regiões foram obtidas por meio de projeções populacionais informadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) segundo unidades da federação (UF) e grupos de idade referentes ao período de 2010 a 2018.
Foram selecionados os óbitos cujas causas básicas foram codificadas como lesões autoprovocadas intencionalmente, identificadas pelos códigos X60 a X84 da 10ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10). Os óbitos foram analisados segundo as variáveis: faixa etária (10 a 14, 15 a 19 anos), sexo (masculino, feminino), regiões geográficas e UF de residência.
As taxas de mortalidade foram calculadas para cada 100.000 habitantes. A taxa ajustada por idade foi calculada pelo método direto, tendo como base a população padrão da OMS, segundo projeções da população mundial para 2000-2025 (Ahmad et al, 2001). Foram utilizados os valores 0,0860 e 0,0847 para ajustar as taxas para as faixas etárias de 10 a 14 e de 15 a 19 anos, respectivamente.
Os dados foram organizados em planilhas do Microsoft Office Excel®. Para a análise de tendência temporal foi aplicado o modelo de regressão linear de Prais-Winsten utilizando o programa Stata versão 14 (StataCorp LP, College Station, EUA). Foi calculada a variação percentual anual (VPA) e seus intervalos de confiança a 95% (IC95%). As tendências das taxas foram consideradas crescentes quando coeficiente da regressão foi positivo com p<0,05, decrescente quando coeficiente da regressão foi negativo com p<0,05, e estável quando p>0,05 (Antunes & Cardoso, 2015).
As UF Acre e Espírito Santo possuíam dados insuficientes para realizar análise de tendência na faixa etária de 10 a 14 anos. O Acre não registrou óbitos nos anos de 2011, 2012, 2015 e 2016, e Espírito Santo não registrou nenhum óbito no ano de 2010 e nos anos de 2013 a 2016. Portanto, não foi possível realizar a análise de tendência para essas UF.
As informações obtidas para a análise são de acesso público sem a possibilidade de identificação dos indivíduos, não necessitando, dessa forma, da aprovação do comitê de ética em pesquisa.
Resultados
De 2010 a 2018 foram registrados 7.677 óbitos por suicídio em adolescentes no Brasil, o que correspondeu a 7,8% do total de óbitos por suicídio no país. Nesse mesmo período, a taxa de mortalidade por suicídio em adolescentes brasileiros apresentou tendência crescente (VPA: 6,8%; IC95%: 4,59;9,07). A média da taxa bruta foi de 2,43/100.000 habitantes, enquanto a média da taxa ajustada foi de 2,40/100.000 habitantes (Tabela 1).
* Variação Percentual Anual; ** Intervalo de Confiança a 95%. Nota: Foi utilizado o valor 0,0860 e 0,0847 para ajustar as taxas para faixa etária 10 a 14 e 15 a 19 anos, respectivamente.
A taxa de mortalidade por suicídio apresentou tendência crescente em ambos os sexos, mas o incremento médio anual foi superior no sexo masculino (VPA: 6,39%; IC95%: 4,56;8,26). Houve tendência crescente na taxa de mortalidade por suicídio nos dois grupos etários. Embora o grupo de maior risco para o suicídio tenha sido o de jovens de 15 a 19 anos, o incremento médio anual foi superior no grupo de 10 a 14 anos de idade (APC: 6,80; IC95%: 4,59;9,07) (Tabela 1,Figura 1).
No grupo de 10 a 14 anos, verificou-se incremento na taxa de mortalidade por suicídio nas regiões Sul (VPA: 18,85; IC95%: 6,79;32,27), Sudeste (VPA: 9,68; IC95%: 1,64;18,36) e Nordeste (VPA: 5,00; IC95%: 1,15;8,98). As UFs que apresentaram incremento na taxa de mortalidade por suicídio foram: Santa Catarina (VPA: 34,78; IC95%: 24,32;46,12), Amapá (VPA: 28,10; IC95%: 5,78;55,13), São Paulo (VPA: 9,84; IC95%: 4,24;15,74), Minas Gerais (VPA: 9,50; IC95%: 2,11;17,43) e Piauí (VPA: 5,86; IC95%: 1,10;10,85) (Tabela 2).
* Variação Percentual Anual; ** Intervalo de Confiança a 95%; ***Dados insuficientes para realizar análise de tendência.
Entre os adolescentes de 15 a 19 anos, verificou-se incremento em quase todas as regiões, exceto na região Sudeste, que apresentou taxas estacionárias. A região Norte apresentou maior aumento na taxa de mortalidade (VPA: 8,09; IC95%: 4,49;11,81). As UFs com maior incremento médio anual na taxa de mortalidade por suicídio foram: Acre (VPA: 23,29; IC95%: 18,21;28,58), Mato Grosso (VPA: 12,27, IC95%: 2,61;22,84), Goiás (VPA: 12,20; IC95%: 9,52;14,95) e Rio Grande do Norte (VPA: 11,06; IC95%:1,14;21,97) (Tabela 3).
Discussão
Existe uma tendência de crescimento nas taxas de óbitos por suicídio em adolescentes brasileiros entre os anos de 2010 e 2018, o que pode também ser constatado em outros estudos realizados no Brasil (Fernandes et al, 2020; Cicogna, Hillesheim & Hallal, 2019). Os números elevados de mortes por suicídio em adolescentes podem estar relacionados ao fato de a transição da infância para a adolescência representar um momento crítico. Essa fase apresenta peculiaridades que aumentam o risco de tentativas de suicídio, como mudanças biopsicossociais próprias da idade, maior impulsividade e comportamentos depressivos, términos de relacionamentos, brigas com familiares, formação da identidade, entre outros (Bahia, Avanci, Pinto & Minayo, 2020). Surgem, também, muitos questionamentos e, quando as respostas encontradas não correspondem ao esperado ou quando não encontram respostas, o adolescente pode querer recorrer ao suicídio (Abreu & Souza, 2017).
A mortalidade por suicídio variou entre as regiões brasileiras. Nordeste e Sul foram as únicas que apresentaram tendência de crescimento em ambas as faixas etárias, assim como em pesquisa que avaliou o comportamento suicida no Brasil (Júnior, 2015). A região Nordeste apresenta dados alarmantes possivelmente por fazer parte das regiões subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, onde ocorre 75% dos casos de suicídio, o que indica uma forte relação entre situação socioeconômica e as taxas de suicídio (Gomes et al, 2020). Já na região Sul, a maior parte dos casos ocorre entre agricultores e nos municípios de pequeno e médio porte apresentando intensa relação com a fumicultura, agrotóxicos e depressão (Meneghel & Moura, 2018).
As taxas de mortalidade se apresentaram maiores entre 15 e 19 anos, informação que coincide com o encontrado em uma revisão integrativa da literatura (Schlichting & Moraes, 2018). O maior número de casos nesta faixa etária pode estar relacionado ao fato de que, nesse período, o adolescente está na pós-puberdade, fase em que ocorrem mudanças no corpo e definição da identidade. Além disso, teoricamente é uma fase que provoca conflitos e frustrações, pois é quando se iniciam as escolhas profissionais, algo que poderá promover sua independência financeira e, consequentemente, passará a ter autonomia (Erickson, 1976).
Embora meninas tenham maiores prevalências de pensamento, planejamento e tentativas, existe um maior número de óbitos por suicídio entre adolescentes do sexo masculino. Esse dado coincide com outro estudo que constatou excesso de mortalidade por suicídio entre homens, os quais se utilizam de métodos com alto grau de letalidade como enforcamento, uso de arma de fogo e precipitação de lugares elevados (Vidal, Gontijo & Lima, 2013). Além disso, é possível que a maior ocorrência de suicídio entre os homens possa ser atribuída ao desempenho da masculinidade, o que envolve comportamentos que predispõem ao suicídio, incluindo a competitividade, a impulsividade e o maior acesso às tecnologias letais e às armas de fogo (D’eça et al, 2019).
Diversos fatores podem estar associados às altas taxas de mortalidade entre adolescentes, dentre eles a presença de problemas de saúde mental, como depressão, ansiedade, autopercepção negativa e sentimento de hostilidade, muito comuns nessa faixa etária (Akca, Yuncu & Aydin, 2018). Um fator desencadeador desses problemas de saúde mental é o bullying, pois essa prática está relacionada a danos emocionais como a baixa autoestima, sintomas depressivos e alto grau de ansiedade, o que pode resultar em tentativas de suicídio (Pimentel, Méa & Patias, 2020).
A depressão durante essa fase da vida é tida como uma condição comum nos dias de hoje, diferente do que acontecia até a década de 70. Isto porque os adolescentes estão mais propensos a tê-la devido às transformações biopsicossociais e de identidade que ocorrem durante esse período (Meine, Cheiram & Jaeger, 2019). São muitas as inquietações que eles vivem, como a preocupação com seu corpo, com os estudos e sobre que futuro lhe aguarda, sendo possível refletir o quanto são afetados e consumidos por sentimentos desagradáveis, como de culpa e de incapacidade, o que pode gerar estados de tristeza que podem culminar no suicídio (Pasini et al, 2020).
Apesar de os resultados encontrados já demonstrarem tendência de crescimento nos óbitos por suicídio entre os adolescentes, tem-se ainda a provável subnotificação desse tipo de óbito, pois, em alguns casos, mesmo que a morte seja registrada, a causa nem sempre é citada, visto que ainda é um acontecimento muito estigmatizado, principalmente em indivíduos que fazem parte de classes econômicas mais altas. Dessa forma, os dados devem ser vistos com cautela. Como limitações do estudo, citam-se: utilização de dados secundários, com informações restritas sem detalhar a ocorrência de todos os fatos relacionados ao suicídio; provável subnotificação por falta de informação válida sobre a causa de morte; falta de detalhamento sobre os meios utilizados para a autolesão fatal, o que limita as ações de prevenção e torna necessário realizar estudos específicos sobre os principais meios utilizados para cometer suicídio na população de adolescentes.
Conclusão
A partir deste estudo, foi possível reforçar que o suicídio constitui importante problema de saúde pública entre os adolescentes brasileiros, principalmente no público masculino, com idades entre 15 e 19 anos e nas regiões Norte e Sul. Frente à tendência de aumento da mortalidade é necessário adotar medidas efetivas para a reversão desse preocupante cenário epidemiológico e, também, minimizar o estigma ainda existente sobre o assunto.
Implicações para a prática clínica
As elevadas e crescentes taxas de mortalidade por lesões autoprovocadas na adolescência evidenciam que medidas efetivas para o combate desse problema precisam ser adotadas de forma permanente, com a ampliação da rede assistencial aos adolescentes que vivenciam algum tipo de sofrimento psíquico. Ressalta-se a necessidade de capacitar os profissionais de saúde no sentido de identificar precocemente e acompanhar os adolescentes em risco. Neste contexto, destaca-se a Enfermagem que, constantemente, está envolvida com atividades de promoção da saúde de adolescentes e jovens no âmbito da Atenção Primária à Saúde. Além disso, é importante estimular a resiliência entre os jovens e buscar estratégias de enfrentamento das frustrações e problemas do dia a dia.