Introdução
A hemólise decorrente do trauma mecânico dos eritrócitos entre as superfícies ósseas e musculares com uma superfície de contacto dura é uma causa reconhecida de hemólise intravascular extracorpuscular. Surge mais frequentemente associada a traumatismo dos pés na marcha e corrida de longa distância.1,2Este fenómeno está inerentemente associado a hemoglobinúria, notada quando a coloração da urina se torna vermelho escura ou acastanhada, e daí chamar-se “hemoglobinúria do maratonista” ou “hemoglobinúria do marchador”.
Apesar de em menor número, têm sido descritos casos de hemólise com hemoglobinúria decorrentes de trauma repetido das mãos em músicos que tocam instrumentos de percussão com as mãos por longos períodos sem interrupções, como o djambé ou o tambor.1,3Este termo foi rotulado como “hemoglobinúria do percussionista”.1
A lesão renal aguda associada à nefropatia por pigmen-to é uma causa conhecida de lesão renal, seja o pigmento mioglobina ou hemoglobina, como consequência de rabdomiólise ou de hemólise.4,5A lesão renal aguda no contexto de hemoglobinúria do percussionista também tem sido descrita na literatura, e habitualmente deve-se quer à toxicidade direta do pigmento quer à desidratação e à utilização de anti-inflamatórios não esteróides (AINE) antes e durante o evento hemolisante.6-11
Apresentamos um caso de um doente com hemoglobinúria do percussionista, desencadeada após um longo concerto de percussão, que foi internado por lesão renal aguda.
Caso Clínico
Descrevemos um caso de um doente do sexo masculino, com 30 anos de idade, percussionista, sem história médica patológica ou medicação habitual, fumador ativo de 10 unidades maço/ano.
O doente foi admitido através do Serviço de Urgência onde recorreu por quadro com 36 horas de evolução de dor abdominal peri-umbilical, de tipo cólica, e alteração da coloração da urina (descrita como vermelho-acastanhada).
Esta sintomatologia surgiu poucas horas após ter realizado um concerto de percussão de elevada intensidade com quatro horas de duração, sem pausas. Adicionalmente, o doente encontrava-se medicado com ibuprofeno 600 mg de 8/8 horas por odontalgia após um procedimento dentário, não tendo realizado hidratação adequada antes e durante o concerto no contexto desse mesmo procedimento. O doente referia ainda a ocorrências de múltiplos episódios prévios de alteração da coloração da urina após concertos de percussão, no próprio e em outros elementos do grupo. Um destes episódios, em 2017, já tinha sido acompanhado de lesão renal aguda, com creatinina sérica máxima 2,6 mg/dL, tratada apenas com terapêutica de suporte e com recuperação completa.
O exame físico à admissão mostrou pressão arterial 123/57 mmHg, frequência cardíaca 61 bpm, sem icterícia. À palpação abdominal objetivou-se desconforto à palpação abdominal difusa, sem dor ou sinais de irritação peritoneal, sem massas ou organomegálias.
Analiticamente havia lesão renal aguda (creatinina 4,17 mg/dL; ureia 45 mg/dL; taxa de filtração glomerular estimada de 19 mL/min pela fórmula CKD-EPI), sem alterações iónicas ou ácido-base de relevo. Destacava-se ainda anemia normocítica e normocrómica com hemoglobina (Hb) 11,9 g/dL (última avaliação em 2019 14,8 g/dL), sem outras citopé-nias; lactato desidrogenase (LDH) 312UI/L, sem citocolestase ou hiperbilirrubinémia; creatina quinase (CK) 89 UI/L; proteína C reativa 4 mg/dL.
O exame sumário de urina mostrou densidade 1,010, hemoglobinúria ++, alguns eritrócitos (5-10/campo) e pro-teinúria vestigial, sem qualquer outra alteração.
Ficou internado para terapêutica de suporte com hidra-tação endovenosa e esclarecimento etiológico.
O estudo de anemia mostrou tratar-se de anemia hipopro-liferativa (nadir 11,8 g/dL; índice reticulocitário baixo 0,7), sem défice de fatores hematínicos ou alterações do esfregaço de sangue periférico, nomeadamente esquizócitos. O teste de Coombs direto foi negativo, o doseamento de haptoglobina foi 89 UI/L (intervalo de referência 39-308 UI/L).
Realizou ecografia renal e vesical em que não se objetivaram quaisquer alterações (rins de tamanho normal, sem litíase ou ureterohidronefrose), assim como urocultura que foi negativa.
Assim, o quadro foi interpretado como hemoglobinúria do percussionista, com hemólise intravascular associada ao trauma repetitivo das mãos no decorrer de concerto de percussão, e lesão renal aguda multifatorial (nefropatia associada ao pigmento, terapêutica com AINE e desidratação).
Ao longo do internamento, apenas sob hidratação endovenosa, objetivou-se melhoria clínica significativa da dor abdominal e normalização da coloração da urina (ao terceiro dia de internamento), assim como melhoria laboratorial - no dia da alta (quinto dia de internamento, sétimo dia pós concerto) com creatinina sérica 2,11 mg/dL e Hb 14,6 g/dL.
sete dias após a alta havia resolução praticamente completa da lesão renal com creatinina sérica de 1,28 mg/dL, assim como da anemia com Hb 15,2 g/dL. Na reavaliação às seis semanas após a alta a creatinina sérica era 0,8 mg/dL e o doente estava totalmente assintomático.
Discussão
A hemólise intravascular e hemoglobinúria decorrentes de trauma repetido das mãos tem sido descrita com frequência crescente, em alguns casos em associação com lesão renal aguda, principalmente em indivíduos que inte-gram grupos musicais que toquem instrumentos de percussão manual como tambores ou djambés por períodos prolongados.1,3,6-11Recentemente, foi atribuída a esta síndrome o nome de “hemoglobinúria do percussionista”.1
O mecanismo fisiopatológico para a sua ocorrência infere-se de estudos mais robustos relativos à “hemoglobinúria do maratonista / marchador”, em que se demonstrou a existência de hemólise intravascular extracorpuscular decorrente de microtrauma mecânico repetitivo sobre os eritrócitos durante a sua passagem pelos capilares, com consequente hemólise e libertação de hemoglobina.6,12A hemoglobina livre liga-se à haptoglobina sérica até esta ficar saturada, altura em que se torna livre sérica e é filtrada no glomérulo causando hemoglobinúria.6,12
Do ponto de vista laboratorial, são típicas as alterações compatíveis com hemólise, como anemia ligeira a moderada, elevação da LDH e bilirrubina, com diminuição de haptoglobina (por vezes até valores indetetáveis) e, pontualmente, alguns sinais de destruição eritrocitária intravascular como esquizócitos no esfregaço de sangue periférico, mas em menor quantidade do que nas anemias hemolíticas microangiopáticas.1,6
A CK também pode estar ligeiramente aumentada decorrente de trauma muscular durante a percussão, mas com expressão muito inferior ao habitualmente objetivado na rabdomiólise.3,6
Estas análises devem sempre ser relacionadas temporalmente com o evento causador uma vez que, tratando-se de um evento isolado e limitado no tempo, as alterações serão mais expressivas nas primeiras horas após o mesmo, habitualmente com posterior melhoria espontânea.3,6A interpretação do doseamento da haptoglobina sérica deve ainda ter em conta que se trata de uma proteína de fase aguda, por vezes falsamente normal no contexto inflamatório ou infecioso.6 Por estes motivos, estão descritos padrões laboratoriais diversos, incluindo doseamentos da haptoglobina sérica muito variáveis.3,7,9No nosso doente, o doseamento da haptoglobina sérica encontrava-se dentro dos valores de referência, o que pode ser explicado pelo seu doseamento apenas no quinto dia após o concerto, numa fase em que estaria em normalização, e também pelo facto de se apresentar com uma inflamação dentária aguda.
A lesão renal associada à hemoglobinúria é multifatorial, associada a obstrução tubular por cilindros de pigmento, lesão tubular direta pelo componente heme, depleção hídrica ou vasoconstrição local / isquémia renal.6,11Os fatores de risco que mais se associam à lesão renal aguda são o tempo prolongado de percussão, a utilização concomitante de AINE ou drogas recreacionais, a desidratação e a deteção de hemoglobinúra.1,10
Assim, no caso do nosso doente, foi assumido o diagnóstico de hemoglobinúria do percussionista e lesão renal aguda multifatorial, na sequência de um concerto prolongado de percussão manual, associado ao consumo de AINE e reduzida ingesta hídrica.
A dor abdominal foi interpretada no contexto de distonia do músculo liso decorrente da depleção de óxido nítrico, consumido pela hemoglobina sérica livre, fenómeno estudado em outras patologias em que existe hemólise intravascular, nomeadamente a hemoglobinúria paroxística noturna.13
O papel das doenças enzimáticas ou da membrana eritrocitária na fisiopatologia da hemoglobinúria do percussionista não é claro. Apesar de existirem casos descritos em doentes com esferocitose hereditária e défice de glicose-6-fosfato desidrogenase, a grande maioria dos doentes estudados não apresenta nenhuma patologia eritrocitária subjacente.1,3,9,11Neste caso do nosso doente não havia história de nenhum episódio de hemoglobinúria que não estivesse associado a longos períodos de percussão, incluindo outras situações de stress fisiológico ou doença. Neste contexto, optou-se pela não realização de estudos de fragilidade eritrocitária ou de hemoglobinúria paroxística noturna.
A frequência deste fenómeno de hemólise traumática está seguramente subdiagnosticada uma vez que, em múltiplos artigos científicos sobre o tema, são descritos grupos musicais em que a quase totalidade dos seus elementos relata alteração da coloração da urina após períodos prolongados de percussão. Também o nosso doente relatou que, entre músicos percussionistas, este fenómeno é conhecido.
Desconhece-se ainda qual o impacto que a hemoglobinúria e os vários episódios de lesão renal aguda podem ter na função renal, nomeadamente no desenvolvimento de doença renal crónica. Assim, alterações comportamentais devem ser sugeridas a todos estes doentes, tais como evicção de drogas recreacionais, AINE ou álcool antes dos concertos, a adequada hidratação antes e durante os eventos e, se possível, a utilização de luvas protetoras.1,8,10