Um texto de apresentação para este número da revista Vista, cuja secção temática é publicidade e cultura visual, exige um amplo olhar, breve que seja, capaz de tocar algumas das problemáticas associadas, as quais, por si só, são universos inesgotáveis. A imagem é uma dessas entidades sendo, nesse sentido, basilar neste texto. Talvez por isso, a necessidade sentida de lhe dar uma certa amplitude temporal; a fixar, dentro desse olhar histórico, indicar a sua importância na construção do indivíduo e, consequentemente, do social; sem esquecer o que talvez seja a questão mais determinante: afinal, o que é a imagem?
Face aos propósitos deste texto, no que concerne especialmente ao seu tamanho, daremos apenas umas breves notas sobre as problemáticas da imagem, num rendilhado que, de alguma forma, possa estabelecer bases para reflexão e tocar questões associadas, como a publicidade e a cultura visual.
“Ver é complexo como tudo”. É desta forma simples, despida de roupagens desviantes, que o poeta Fernando Pessoa abre as portas à imagem, na forma como a nós se dirige, na relação que com ela temos e o que nos diz, dentro da porosidade que a caracteriza. Ela é manifestação primeira, pois ver vem antes das palavras (Berger, 1972), e sempre nos quer contar, mostrar ou manifestar algo, por mais inalcançável que seja essa revelação.
A imagem marca o tempo da humanidade desde a mais remota ancestralidade, o que significa que desde sempre foi sustentáculo, capaz de estabelecer alguma ordem no caos, contendo as múltiplas amplitudes, as inesgotáveis extensões que a constituem. Platão, primeiro, Aristóteles, depois, lembrando aqui apenas dois olhares estruturantes da nossa civilização, bem “definiram” essa abertura angular sobre a semântica, os seus propósitos, a sua relação com quem a olha. Uma das mais antigas referências à “imagem” é fornecida por Platão, em A República: “chamo imagens em primeiro lugar às sombras, em seguida aos reflexos que vemos nas águas ou à superfície dos corpos opacos, polidos e brilhantes e todas as representações deste género” (como citado em Joly, 1994/1999, p. 13). Já Aristóteles, em complemento, elevou a imagem a patamares de hedonismo, libertação, informação e, até, de uma certa volúpia.
Numa dimensão complementar, a imagem espelho, imagem produto segundo um outro; “ligada a noções como semelhança, parecença, reflexo, representação, mimesis e imitação”, o que remete para analogia (Mota-Ribeiro, 2002, p. 95). Deste modo, conceção de “cópia”, “ainda que apenas aos olhos de uma consideração ingénua”, segundo Gian Paolo Caprettini (1994), uma vez que
a imagem não faria mais do que "aproximar" de algum modo um objecto longínquo no espaço e/ou no tempo, ( ... ) como se existissem algures modelos verdadeiros que depois são copiados (e estas cópias não poderiam ser senão exemplares empobrecidos desse modelo). (p. 177)
Olhares divergentes para uma tentativa de definição de imagem, levam-nos à premissa basilar de não conseguirmos circunscrever o seu significado, o que manifestamente nos leva à impossibilidade de uma nitidez que faça autoridade, na tensão acrescida e permanente entre analogia e código (Melot, 2007/2017). A imagem pode querer ser tudo, postura totalitária, ser tudo e o seu contrário - “visual e imaterial, móvel e imóvel, sagrada e profana, antiga e contemporânea, ligada à vida e à morte, analógica, comparativa, convencional, expressiva, comunicativa, construtora e desconstrutora, benéfica e ameaçadora” (Joly, 1994/1999, p. 27). Parece não ser conceito, mas sim uma das mais importantes formas de organização da sociedade (Francastel, 1988/2000), prevalece desde os tempos mais remotos. Talvez possamos afirmar com alguma propriedade que a imagem não nos representou, não nos representa, a imagem criou-nos e continua a criar-nos. Nós somos imagem, também!
Sobre as novas imagens, essas que nos chegam hoje em catadupa alucinante, elas “não ocupam o mesmo nível ontológico das imagens tradicionais, porque são fenômenos sem paralelo no passado” (Flusser, 2012, p. 16). As imagens de hoje, contrariamente às de outrora, resultam de pontos, píxeis, feitos por zeros e uns, o que, segundo o filósofo, as aproxima do abismo da zero-dimensionalidade. Num sentido diferente, Moisés Martins (2011) destaca a continuidade, a imagem que sempre ameaçou o logos ocidental, apontando para o facto de a imagem conter em si mesma “o virtus da separação”, uma virtualidade ligada à “força intrínseca de um mundo separado” (p. 71).
A impossibilidade de uma definição que faça propriedade, ou melhor, que balize a imagem na sua variedade, impossibilidade que, em bom rigor, acontece em muitas circunstâncias, e que, fixando-nos apenas no vasto campo da comunicação, nos revela, enquanto objeto do olhar, o seu poder. O poder no sentido da sua apropriação, por exemplo, não apenas em proveito do prazer que nos confere olhá-la, mas também enquanto entidade de manipulação, como já anotado. Toda a história das civilizações é também a história de influências, em grande parte nefastas e sub-reptícias, exercidas sobre os indivíduos. A história da propaganda, que muito vive da imagem, é profícua nessa demostração e como ela, a cada tempo, teve implicações profundas no curso da história. Alexandre Magno, por exemplo, fez-se retratar nas moedas, com a sua efígie, como se se tratasse de um deus grego; num tempo bem mais próximo, Goebbels demonstrou ser um poderoso conhecedor do potencial do espetáculo e da imagem, na Alemanha nazi (Thomson, 1999/2000). As estátuas, os ídolos, a arquitetura e múltiplas outras manifestações, sempre foram instrumentos poderosos e continuam a sê-lo na contemporaneidade.
Até nós, chegaram vestígios do tempo, inclusive, de uma das civilizações estruturantes da humanidade, a da Suméria. Os sumérios e os seus descendentes semitas demonstraram a importância relevante que as problemáticas do olhar já então possuíam, fixando-as em peças cerâmicas, combinando imagem e texto em composições gráficas bem equilibradas. Como nos refere Oliver Thomson (como citado em Mesquita, 2018), “as elaboradas inscrições feitas em lugares públicos, com o fim de glorificar as novas dinastias e diminuir os seus antecessores, de que é exemplo Urukagina e Lagash, de 2 350 a. C., constituem uma característica distintiva da propaganda suméria” (p. 24). No mundo mesopotâmico protohistórico existia já um complexo mecanismo de comunicação, que incluía a escrita e a organização estatal (Quintero, 1993/1993). Em suma, a imagem enquanto objeto representativo do tempo. O que até aqui se destaca é a pluralidade da imagem numa fenomenologia demonstrativa da sua complexidade, da presença e ação determinantes já nas sociedades mais recuadas, enquanto instrumento “persuasivo”, talvez por isso determinante de toda uma história que nos trouxe até aqui.
A propaganda, acompanhando todo esse tempo, enquanto técnica de persuasão, criou e desenvolveu os mecanismos mentais, sociais e tecnológicos dos quais a publicidade se apropriará, considerando aqui a diferenciação entre ambas. Situando-nos no tempo presente, e herdeira desse outro tempo, Sut Jhally (1987/1995) considera a publicidade a “mais influente instituição de socialização” (p. 13), quer seja na estruturação dos meios de comunicação, na construção de identidades, ou na criação da mercadoria sob a forma de significado, não enquanto reflexo, mas constituindo-o como tal.
Assim, como não pensar a imagem, construída, mas continuamente construtora na sua umbilical relação com a publicidade? Como refletir acerca da cultura visual, especialmente na pós-modernidade, como enformada por práticas de visualidade que simultaneamente estão na sua base e a vão constituindo, em cada evento comunicativo?
A nossa noção de imagem (ainda que nas suas referidas contradições) é aqui conciliadora, tomada no sentido mais lato. A obra de Matthew Rampley (2005), por exemplo, refere no seu resumo que a cultura visual inclui, não apenas imagens, referindo outros média visuais, como a moda, a arquitetura, o design, entre outros, aqui acrescentando também a publicidade. O que questionamos é se, em vez de dizermos que apenas as imagens estão incluídas na cultura visual, não deveríamos trazer ao debate diferentes média visuais e se não poderíamos pensar a cultura visual, como imagética e imaginário, como muito bem diz Nicholas Mirzoeff (1999), como um campo movido pela necessidade atual de “interpretar a globalização do visual como quotidiano” (p. 3). A cultura visual não depende das “imagens” em si, mas da tendência para representar visualmente e visualizar a existência (Mirzoeff, 1999). É também nossa convicção, na senda do que foi dito, que a cultura visual se baseia essencialmente no facto crucial - referido pelo autor - de que “a cultura disjuntada e fragmentada à qual chamamos pós-modernismo é mais facilmente e mais bem imaginada e compreendida visualmente” (Mirzoeff, 1999, p. 3).
Face a isto, é necessário um foco no papel da “imagem” e da cultura visual, na cultura mais vasta na qual se enquadram, entendida a última não como um conjunto de diferentes manifestações de caráter visual ou outro, mas como “práticas partilhadas por um grupo, comunidade ou sociedade, através das quais o significado é gerado ( ... ) a partir de um mundo de representações” (Sturken & Cartwright, 2001, p. 3). Tal como em Stuart Hall, a cultura como conjunto de processos ou práticas através do qual indivíduos e grupos produzem sentido acerca de variadas manifestações (Sturken & Cartwright, 2001). E se é no quotidiano, nas visualidades, nas práticas de visualização, nas especificidades de eventos comunicativos imagéticos, nas experiências de confronto com as imagens, que a cultura visual encontra o seu terreno, é talvez porque as práticas ligadas à imagem são o próprio quotidiano.
Este domínio avassalador da imagem, essencial no mundo pós-moderno, levou à sua demonização - o visual como “cancro” (De Certeau, 1980) ou como “pornográfico” (Jameson, 1990). A sobre-estimulação visual, a esquizofrenia da paisagem urbana, a incapacidade para a compreensão do mundo sem imagens, a imediatez que impede que se ergam filtros, são fatores que o justificarão, em especial para a publicidade. Seja online (redes sociais, especialmente o Instagram - o nome não nega a instantaneidade nem o seu desígnio imagético), ou offline (ecrãs gigantes em Times Square ou longos anúncios televisivos), a publicidade é um campo particularmente dado a críticas, vindo de imediato à memória a “poluição visual”.
Porém, a imagem de que falávamos acima, particularmente numa referência a Joly (1994/1999) e Martins (2011) é, em si, contraditória, simultaneamente esperançosa e ruinosa, celeste e demoníaca. A publicidade, tal como a “imagem” foi e é território vasto de críticas, mas também terreno de criatividade, de enlevo, de beleza sublime - talvez a “satisfação misturada com o horror” (Kant, como citado em Mirzoeff, 1999, p. 16). Se a publicidade não encantasse (“encantamento” no sentido estético), não “apertasse a garganta” (Delacroix, como citado em Huisman, 1961/1981), não contivesse em si a génese da sua própria ruína e do seu incrível fascínio, a absoluta necessidade de a enquadrar claramente no domínio da imagem e da cultura visual não seria tão premente.
Retomando a publicidade, sendo espelho e reflexo do tempo que mimetiza, deve ser também, no nosso entender, um farol capaz de indicar caminhos com futuro, através do seu discurso linguístico-icónico. Seja na evocação onírica de uma mensagem sobre determinado perfume; na retórica persuasiva de determinada commodity; no alerta para atitudes pró-ambientais; na construção imagética de imagens de síntese provenientes da inteligência artificial, entre muitas outras. Há desafios exigentes sobre os quais se impõe uma reflexão e onde, eventualmente, a publicidade pode e deve inserir o seu discurso. Um desses desafios é o tempo e a forma como lidamos com ele, na sua velocidade, balizada na vertigem da instantaneidade. Um outro, algo ausente, é a complexidade da vida e as narrativas contemporâneas que daí advêm. Inebriados que estamos com um tempo tumultuoso, à publicidade, caberia, assim, o equacionar de um papel no qual as novas gerações encontrassem um terreno confortável de esperança e construção, na partilha, cocriação, preservação ambiental e distribuição equitativa de recursos.
1. Este Número da Vista
A publicidade tem sido um campo particularmente explorado, não apenas nas ciências da comunicação, mas também, com relevância crescente na contemporaneidade, no âmbito lato da cultura visual, da estética e das visualidades, assim como dos estudos visuais, da semiótica e análise da imagem, nas suas diversas manifestações.
Esta edição da Vista propõe-se gerar discussão, tendo lançado na sua chamada tópicos como publicidade, design, imagem e outras pluralidades; publicidade, inteligência artificial e “digitalidades”; publicidade e velocidade do tempo complexo - narrativas contemporâneas; publicidade-espelho-reflexo, semiótica, retórica e processos cognitivos; publicidade e as novas gerações; diálogos marketing, publicidade e mercado. A temática “publicidade e cultura visual” parece-nos suficientemente ampla para, a partir dela, surgirem diversas reflexões e estudos, e, não menos importante, para permitir abordagens de natureza distinta, problemática, contraditória, num diálogo entre os universos relativos ao triângulo “imagem, cultura visual, publicidade”, que encerram fascinantes disjunções, fragmentações e estilhaçamentos, que não cessam de nos interrogar, de nos interpelar nas suas complexidades.
O espírito do tempo, zeitgeist, condensa um sem fim de dúvidas e paradoxos, que se alimentam de uma dinâmica própria, a qual, em grande medida nos escapa. Ou melhor, talvez consigamos entender um tal fragmento, moldado pela nossa experiência e conhecimento. Não invalida isto, porém, que a construção, neste frenético movimento do mundo, permita que a publicidade, nas suas pluralidades, seja, efetivamente, um observatório de tendência e, simultaneamente, um campo fervilhante de meditação, ação e construção na diversidade. Afinal, “quando consumimos bens estamos satisfazendo ao mesmo tempo necessidades materiais e sociais” (Vestergaard & Schroder, 1985/1988, p. 5). Nada de novo, evidentemente, nesta trajetória de superprodução e consumismo que tem definido o tempo e que parece, paradoxalmente, que se tem vindo a acentuar. A ser assim, o papel da publicidade, que se pode considerar mais relevante, é o de fornecer significados conscientes que enquadrem as questões essenciais do nosso tempo. Não querendo desvirtuar o seu propósito, cabe-lhe também em parte ser protagonista na criação do tempo, com reflexos de futuro...