1. Introdução
Um livro é algo que nos é tão familiar que nem paramos para pensar sobre este artefacto tão comum que passa pelas nossas mãos vezes sem conta. Mas o que é um livro afinal? Associamo-nos à assunção do livro como objeto, conteúdo, ideia e interface (Borsuk, 2018), estas quatro perspetivas ajuda-nos a estabelecer a abordagem que nos propomos fazer e que priorizam o livro como objeto.
Vários estudos têm contribuído para a consolidação do conceito de livro-objeto (Borsuk, 2018; Ferreira, 2017; Ramos 2017), reconhecendo a relevância deste conceito quer no âmbito da educação literária, quer no que se refere aos aspetos artísticos e de materialidade deste objeto (Calvo, 2017). Nas diversas categorizações que são feitas em muitos dos estudos recentes, o livro como objeto estético surge como uma categoria que tem vindo a despertar interesse crescente, tanto na perspetiva artística como educativa.
Em outros trabalhos que temos realizado sobre o livro-objeto, temos privilegiado duas abordagens distintas. Por um lado, o estudo sobre Livros de Artista, assumindo a perspetiva artística associada à formação em Artes Plásticas e, por outro lado, o estudo sobre os livros Pop-Up associados à realização de experiências com crianças em jardins de infância (Loureiro & Regatão, 2019).
Para este trabalho, o nosso foco foi a criação de livros sensoriais no âmbito da Unidade de Curricular de Arte e Matemática, integrada no Mestrado em Educação Artística na edição de 2019-2020. Os créditos da inspiração desta proposta de trabalho são devidos a Munari (2018), que nos sensibiliza de modo muito especial para este tipo de artefactos e para a relação entre autor e mediador do objeto criado.
Ao realizar e apresentar este trabalho, um dos nossos propósitos é, como afirma Borsuk (2018), que nos continuemos a deixar fascinar por este artefacto num tempo em que a manipulação física do objeto-livro se debate com o interesse crescente pelo livro digital. Nós, que crescemos com livros físicos encaramos estes tempos de mudança com alguma inquietação. Perderá o livro objeto o seu papel de artefacto pedagógico de valor inquestionável? Que aspetos do livro-objeto poderão contrariar as perdas que o meio digital provoca? Que papel para o livro-objeto na escola, na aprendizagem e na educação?
Neste trabalho quisemos avaliar que aspetos da materialidade de um livro-objeto podem dar maior ênfase ao pensamento do seu criador, tornando mais ampla a sua significação. Procuramos saber como é que uma ideia, associada a outros fatores, pode ganhar protagonismo e, por isso, como é que os livros-objeto, para além das suas componentes sensoriais, desafiam e estimulam as aptidões cognitivas. Propomo-nos, assim, estabelecer ligações entre a criação de livros sensoriais e a sua utilização pedagógica, procurando caraterizar a sua natureza e as suas potencialidades como objeto didático a partir da sua conceptualização por um criador que é, simultaneamente, autor e mediador.
2. Problema
No início do século XX, a experiência sensorial como componente do processo de aprendizagem foi largamente trabalhada pela pedagoga italiana Maria Montessori que centrou boa parte da sua pedagogia na “educação dos sentidos”, recorrendo a atividades pedagógicas e à criação de materiais didáticos com forte sentido experiencial. Para Montessori, a exploração e manipulação de objetos sensoriais promove a descoberta e o conhecimento da realidade envolvente, mas também estimula o pensamento (Lillard, 1996).
Já na segunda década do mesmo século, Munari (2008) afirma que “a educação tátil ainda não foi tomada a sério” (p. 3), colocando de certa forma esta dimensão educativa a par da educação visual e da comunicação visual que assume já terem sido introduzidas na escola. Especialmente atento a todas as dimensões sensoriais e à sua inter-relação, Munari dinamizou nos anos 80, em Itália, laboratórios e workshops táteis nos quais explorou o sentido tátil a partir de diversas atividades pedagógicas. Para este autor, a componente tátil representa uma forma natural de conhecimento do mundo.
A compreensão do mundo pela criança é adquirida através da exploração de todos os sentidos. E entre todos os sentidos, o sentido tátil é o mais comum. O tato completa as sensações visuais e auditivas adicionando informação que ajuda a aprender mais sobre o que nos rodeia. (Munari, 2008, p. 3).
É neste contexto que o designer italiano virá a desenvolver os “pré-livros” como um objeto didático, sem texto, que visa o desenvolvimento da imaginação por meio dos sentidos. Para Munari (2018) “é preciso, enquanto se está a tempo, habituar o indivíduo, a pensar, a imaginar, a fantasiar, a ser criativo” (p. 235).
Depois de Munari, surgem outros autores que desenvolvem novas técnicas para reforçar os aspetos sensoriais dos livros, introduzindo diversas novidades ao nível da interatividade com o leitor, ao mesmo tempo que reforçam os aspetos sensoriais deste objeto.
O artista japonês Katsumi Komagata publicou dois livros táteis direcionados para invisuais, utilizando formas geométricas desdobráveis e um conjunto de efeitos surpresas que enriquecem a experiência tátil do leitor. Mais recentemente, o ilustrador inglês Stuart Lynch produziu uma série de livros de infantis, com cores vivas e de aspeto brilhante, intitulados “Nunca toques num…” (Dinossauro, Porco Espinho, Urso Polar, Monstro, entre outros), onde apresenta em cada página dupla uma textura para descobrir. Embora assuma uma abordagem comercial, este autor dá continuidade à pesquisa de livros sensoriais realizada durante o séc. XX, adaptando a linguagem a um mercado editorial em franco desenvolvimento.
Dentro da exploração sensorial importa, ainda considerar o legado dos livros Pop-Up, uma tipologia que combina a ilustração com a engenharia de papel através de formas tridimensionais que emergem de superfícies planas, convocando a participação ativa do leitor. Dentro desta tipologia de livros destacam-se os autores e ilustradores Vojtech Kubasta, Jan Pienkowski, David Carter, Roberth Sabuda, Marion Bataille, Philippe Huger. Os livros de David Carter, por exemplo, seguem uma abordagem experimental à engenharia de papel, criando formas com alguma complexidade que se destacam pela riqueza das composições e do uso da cor.
Importante referir ainda o importante papel que a ilustração e o design do livro tem desempenhado no desenvolvimento de um discurso autoral, potenciado pelo domínio de ferramentas tecnológicas e de um crescente interesse pelas áreas da Ilustração e do Design de Comunicação. Nos últimos vinte anos surgiram diversas editoras portuguesas que se especializaram na conceção dos designados “livros-álbuns”, alcançando uma identidade própria. Muitos dos designers são também ilustradores, por exemplo na Planeta Tangerina, uma das editoras portuguesas mais premiadas, os livros são “resultado de um trabalho de equipa e colaboração” (Ramos, 2017, p. 162). Existe uma clara evidência de que os ilustradores portugueses apresentam uma linguagem visual cada vez mais individualizada que os distingue dos seus pares. André Letria, Bernardo Carvalho, Catarina Sobral, Madalena Matoso, Teresa Lima, João Vaz de Carvalho, Marta Torrão são alguns dos nomes de referência de uma nova vaga da ilustração portuguesa que se tem afirmado pela qualidade da sua “marca autoral” (Mayor, 2016).
A criatividade e sistemática atitude experimental no âmbito da ilustração em Portugal, têm permitido propor discursos visuais que desafiam as convenções do livro infantojuvenil, contribuindo para uma valorização do papel do livro enquanto instrumento educativo. Na perspetiva de Mayor (2016), a ilustração portuguesa do Séc. XXI revela “o crescimento e desenvolvimento de publicações do tipo livro-álbum”, “a implicação do designer nas várias opções gráficas”, a prevalência da ilustração manual em detrimento da digital e “a diminuição do texto em favor da ilustração” (p. 475-476).
Esta prevalência da imagem perante o texto, foi também uma tendência assumida deste projeto experimental que aqui se apresenta. Entendemos os livros sensoriais como uma variante dos livros-objeto que privilegiam sobretudo o sentido tátil, através da exploração de materiais que são ricos em texturas e em relevo, funcionando como estímulos hápticos. Pode afirmar-se que este tipo de livro pretende provocar uma experiência sensorial, conduzido o leitor por vários estímulos que decorrem das propriedades matéricas dos materiais. Sabemos hoje que os materiais oferecem sensações visuais, térmicas, auditivas e olfativas, que poderão ser mobilizadas para fomentar a aprendizagem.
Para os criadores destes livros adotamos por vezes a designação de mediadores-autores aproveitando uma associação também estudada por BodenMuller (2019). Os livros sensoriais que estudamos são criados por mediadores que se assumem como autores de um livro sensorial.
Reconhecemos a ausência, ou o nosso desconhecimento, de estudos, realizados com crianças pequenas, sobre livros sensoriais sem narrativa e com incidência artística.
3. Metodologia
Este trabalho foi realizado no âmbito da UC de Arte e Matemática do Mestrado de Educação Artística da ESE de Lisboa. A UC é lecionada por dois docentes, um especialista de Artes Visuais e uma especialista de Educação Matemática, e no ano letivo de 2019-20 todas as aulas foram realizadas à distância via plataforma Zoom.
O último trabalho proposto nesta UC foi a criação de um livro sensorial, inspirado nas ideias pedagógicas de Bruno Munari. A produção dos livros sensoriais decorreu em cinco etapas:
Primeira Etapa - Apresentação do projeto e Pesquisa Visual: Iniciou-se com a visualização dos livros de Bruno Munari e a abordagem às potencialidades do livro enquanto instrumento pedagógico. Desenvolvimento de pesquisa visual autónoma.
Segunda Etapa - Criação de um conceito: cada estudante elaborou um conceito para o seu livro, através de um debate sobre os objetivos de cada trabalho tendo em conta o público-alvo;
Terceira Etapa - Execução do Livro: nesta etapa escolheram-se os recursos disponíveis tendo em conta as potencialidades expressivas de cada proposta. De seguida executaram-se os livros manufaturados aplicando várias técnicas;
Quarta Etapa - Atividade de mediação: realizou-se uma experiência de mediação com crianças que ficou documentada em vídeo;
Quinta Etapa - Apresentação e Avaliação: nesta etapa decorreu a apresentação dos trabalhos, seguida por um debate reflexivo com o grupo-turma sobre os resultados obtidos. Os docentes fizeram a apreciação crítica dos trabalhos e realizaram a avaliação da aprendizagem.
Embora inicialmente a intenção da criação dos livros sensoriais fosse apenas formativa, o envolvimento das estudantes e a qualidade dos trabalhos realizados desencadeou o interesse de os analisar e de aprofundar as experiências realizadas. As quatro criadoras foram convidadas a participar numa análise conjunta dos seis livros elaborados com vista à realização de uma investigação exploratória sobre estes documentos. Estas quatro mediadoras-autoras têm perfis profissionais muito distintos: duas educadoras de infância, uma artista plástica e uma professora de dança. O facto de terem em comum formação em educação artística torna estas criadoras mais atentas às potencialidades pedagógicas destes livros objeto.
Foram estabelecidos como objetivos deste estudo:
caraterizar os materiais, formas de materialização, de conceção plástica e de composição favoráveis à criação de livros sensoriais para exploração educativa por mediadores-autores;
identificar ligações ao raciocínio matemático possíveis de explorar na criação de livros-objeto de natureza sensorial;
identificar potencialidades pedagógicas decorrentes das experiências de mediação dos livros sensoriais criados.
O foco estabelecido, que combina a criação de um objeto físico com a realização de uma experiência de mediação com esse objeto, aponta para o recurso a uma metodologia de natureza qualitativa que permita também combinar duas orientações, a dimensão descritiva e a análise reflexiva (Coutinho, 2011). Evidencia-se, assim, um formato de estudo de caso, constituído pelos seis livros criados, em que a dimensão descritiva segue orientações de pesquisa de natureza artística e de natureza pedagógica.
Como componente significativa da metodologia, verifica-se o envolvimento das criadoras dos livros na análise conjunta e no estabelecimento de conclusões sobre os trabalhos realizados. Esta componente permitiu introduzir um caráter de reflexão pessoal sobre os respetivos trabalhos e um aprofundamento da análise.
Os instrumentos de recolha de dados são: os livros criados e respetivas memórias descritivas elaboradas pelas estudantes; os vídeos das experiências de mediação; os portefólios elaborados no âmbito da unidade curricular em que foram criados os livros; as notas de campo recolhidas em dois momentos de discussão conjunta, de natureza focus grupo.
A dinâmica de combinação de recolha de informação, em que se associaram duas dimensões de reflexão, a reflexão individual escrita com a reflexão oral de grupo, revelou-se muito produtiva e foi facilitada pela anterior experiência do grupo na vivência da UC. Embora os seis membros da equipa nunca tenham estado fisicamente juntos para a realização deste estudo, os vídeos realizados sobre as experiências de mediação constituíram um contributo significativo. Se por um lado, poderá parecer contraditório investigar sobre livros sensoriais sem ter manipulado os livros, por outro, o caráter concetual presente em cada um deles, as imagens recolhidas e a participação das criadoras esbatem totalmente essa lacuna.
4. Resultados
Os seis livros sensoriais são identificados com o nome que lhes foi atribuído por cada uma das respetivas criadoras: No Mundo dos contrários, de Vera Coelho Rita (VCR); Relações encontradas, de Marta Angelozzi (MA); Desconstrução das formas, de Ana Maria Almeida (AMA); Livro azul, Livro verde e Livro das cores de Céu Samagaio (CS).
4.1. Materiais, suportes e conceção visual
Na conceção destes livros procurou-se valorizar as propriedades táteis dos materiais, selecionando objetos e superfícies texturadas que funcionem como estímulos matéricos. A tela, a alcatifa, o feltro, a lã, o fio de couro, o cartão, o crochê e o plástico, entre muitos outros, são materiais com propriedades sensoriais que estimulam o sentido tátil de todos os indivíduos. Para além da densidade que resulta das suas propriedades específicas, os materiais também são dotados de temperatura. Percecionamos rapidamente o calor que emana de uma alcatifa ou a sensação de frio que sentimos ao tocar numa superfície de plástico. A materialidade do livro é uma questão de grande relevância na construção dos livros sensoriais, “o livro é, antes de tudo, um espaço físico no qual se produz um encontro entre autor e leitor” (Ramos, 2017, p. 185). Nesta perspetiva, a materialidade é também entendida enquanto “elemento discursivo”, uma vez que contribuiu para a perceção do conteúdo e da sua interpretação por parte do leitor-fruidor (Ramos, 2017).
As estudantes começaram por reunir os materiais que tinham à sua disposição dentro do contexto familiar, selecionando aqueles que iam ao encontro dos seus interesses percetivos e concetuais.
A sua experiência profissional refletiu-se, naturalmente, na escolha de alguns suportes para o livro, porém a sua atitude exploratória desencadeou a descoberta de outros materiais e objetos que nunca antes tinham sido usados na sua prática educativa. Neste sentido, as decisões em utilizar alguns materiais em detrimento de outros, decorreu da intenção de seguir um propósito específico e proporcionar uma experiência sensorial aos destinatários dos livros-objeto. Tal como defende Eisner (2004) “pensar em função de um meio supõe uma subtil apreciação das potencialidades de um material e dos passos que devemos seguir para que essas potencialidades se tornem reais” (p. 143).
A dimensão concetual dos livros revela-se no modo como cada estudante materializou a sua ideia, explorando diversas relações formais e visuais entre os diversos elementos que caracterizam cada livro. Seja pela exploração de relações de semelhança entre formas e cores, seja na exploração de formas opostas, todos os trabalhos apresentam uma forte componente visual e exigem a cooperação do leitor.
Como afirma Drucker (2004) “Todos os livros são visuais. Mesmo os livros que dependem exclusivamente na forma, ou de materiais fora do comum, ou aqueles que contêm apenas folhas brancas, têm um caráter e uma presença visual” (p. 197). A conceção plástica e visual de um livro-objeto abrange um conjunto de fatores que se relacionam com a sua estrutura, linguagem formal (figurativo, abstrato), propriedades técnicas (desenho, colagem), valores expressivos, entre outros. A proposta de criação do livro contemplou desde o início alguns requisitos mínimos, como o formato base de 15x15cm e o desenvolvimento de pelo menos seis páginas duplas. Igualmente se solicitou a não inclusão de elementos verbais, baseado na definição de pré-livro de Bruno Munari: “é preciso facilitar às crianças o contato com o livro. A criança deve fixar que o livro é uma coisa agradável sob todos os aspetos: vista, tato, peso, material, etc.” (Munari, 2018, p. 240)
Em termos de linguagem formal, observa-se o uso de linguagem figurativa e abstrata, os três livros das cores elaborados por Céu Samagaio apresentam formas geométricas e abstratas, dando ênfase a uma linguagem mais depurada. Pelo contrário, Ana Almeida e Marta Angelozzi, privilegiaram um registo de cariz figurativo, onde é possível identificar imagens do mundo natural e urbano. Por outro lado, Vera Coelho Rita explora o cruzamento de linguagens, com referências visuais abstratas e a presença de alguns elementos figurativos (pássaro, arco, carta).
Igualmente nos parece importante evidenciar as diferentes técnicas utilizadas na produção destes seis livros, na medida em que contribuíram para a criação de uma identidade visual, em que se destacam o uso da colagem, da pintura, do desenho, do cosido à mão, da impressão em tela e do recorte de formas. As técnicas mistas mobilizadas no decurso do trabalho, não só reforçam a plasticidades formal destes objetos como sugerem sentidos, indicam possibilidades de interpretação e estimulam o pensamento cognitivo.
A simplicidade das técnicas selecionadas é um indicador da sua acessibilidade de utilização por crianças, constituindo um apontamento de que poderão vir a ser ensinadas no âmbito de atividades de criação de livros manufaturados que se preveem realizar no futuro.
Sob o ponto de vista da cor, existem duas modalidades nestes trabalhos, a utilização da cor própria dos materiais e dos objetos que integram os livros, e, por sua vez, a alteração da cor do suporte através da pintura, da colagem e da fotografia.
Depois desta exploração das figuras em cartão, as crianças começaram a pintar cada uma das figuras com uma cor sólida. A enorme necessidade de realizar este tipo de atividades, levou a uma utilização excessiva de tinta, que saturou o cartão. Esta situação acabou por ser favorável pois conferiu textura às superfícies do livro. (Memória descritiva, CS).
A cor que dá um sentido particular aos três livros produzidos por Céu Samagaio constitui-se como elemento-chave na criação de um discurso visual.
Este livro, apesar de ter tido o contributo de duas crianças, na pintura do círculo de do quadrado que formam as páginas exteriores do livro, foi ideado e executado pela mão do adulto. Pretende-se que este livro não tenha uma orientação específica, podendo ser visualizado de ambos os lados. (Memória descritiva, CS)
O contraste provocado pela cor, também, desempenha um papel preponderante no livro No Mundo dos Contrários, no qual se observa um constante contraponto visual entre o fundo e as formas tridimensionais que se evidenciam nas páginas.
No livro tátil, esta situação das expressões por intermédio dos materiais foi mais sensível. Através do livro tátil tentei albergar um grande número de materiais, texturas e formas de modo a abrir espaço à imaginação e fantasia. (Porte folio, VCR)
4.2. Relação com formas de raciocínio matemático
Segundo Pombo, Guimarães e Levy (1994) não existe uma pedagogia da interdisciplinaridade e interessa destacar a procura de integração disciplinar como um processo em contínuo para o qual concorrem múltiplas experiências e investigações de natureza empírica. Para estes autores:
Por interdisciplinaridade, deverá entender-se qualquer forma de combinação entre duas ou mais disciplinas com vista à compreensão de um objeto a partir da confluência de pontos de vista diferentes e tendo como objetivo final a elaboração de uma síntese relativamente ao objeto comum. (p. 13).
Estabelecemos como foco de investigação a relação entre as artes visuais e a matemática que temos vindo a aprofundar no âmbito de outros projetos (Loureiro & Regatão, 2019). Um aspeto transversal a todas as experiências já realizadas tem sido o conhecimento sobre várias formas de representação e de estruturação de um mesmo objeto matemático, bidimensional ou tridimensional. Para a tridimensionalidade, a estruturação geométrica de sólidos de revolução e de prismas e pirâmides a partir de planos paralelos tem sido o aspeto mais aprofundado. Associado ao trabalho sobre estruturas geométricas, tem ganho atenção especial o desenvolvimento da visualização e do raciocínio visual em crianças pequenas. Registamos ainda a relevância para aspetos de comunicação oral e para a associação de trabalhos individuais em obras coletivas. A construção de uma identidade coletiva e partir de contributos individuais é um objetivo que privilegiamos no quadro da educação de infância. Um livro é um objeto com vários elementos, com um potencial interessante como objeto de construção coletiva.
As criadoras destes livros sensoriais assumiram explicitamente a interdisciplinaridade com a matemática como fator determinante para a conceptualização do livro. Nas suas palavras, as motivações para conceber um livro tinham que ter uma base de aprendizagem matemática.
Céu Samagaio afirma que estruturou “três livros que, não deixando de estimular a sensorialidade da criança, trabalham mais a desconstrução de conceitos artístico-matemáticos”. Esta educadora aponta os conceitos de “decomposição de figuras geométricas”, para conceber os livros que criou, relacionando com a exploração da cor. O processo criativo foi realizado junto das crianças que acabaram por se apropriar do trabalho.
As crianças foram observando a segmentação do quadrado em outras formas geométricas e manipularam os fragmentos obtidos, estruturando com eles outras figuras. (Memória descritiva, CS)
Ana Maria Almeida afirma que a ideia principal do livro se prende com “a desconstrução das formas, através da utilização de transparências, a repetição de certas formas ao longo das páginas e a exploração das diferentes texturas do papel”. A educadora utilizou vários tipos de papéis e cartolinas, com diferentes padrões, cores e texturas, utilizando as formas geométricas do jogo Tangram. O livro não segue uma ordem sequencial, podendo ser folheado de trás para a frente.
Para Ana Almeida a estratégia da manipulação é fundamental para a aprendizagem que se propõe promover com o livro-objeto construído. Nesta estratégia combinam-se a exploração das texturas e das transparências capazes de proporcionar surpresas desafiadoras ao longo do livro. Estamos perante um livro-jogo que nos interpela por via da composição visual e da manipulação (Martins, 2017).
O livro concebido por Vera Coelho Rita centra-se na descoberta dos opostos. Foi assim criado um livro-jogo de descoberta de opostos, em que se procura associar a “parte emocional” de natureza artística com a “arte racional” de natureza matemática. O raciocínio lógico, inerente à classificação, possibilita soluções diversas pois há vários critérios possíveis para a classificação em classes disjuntas e exclusivas. Aponta-se, assim, uma exploração aberta, acessível a qualquer leitor deste livro-objeto, como as experiências exploratórias de mediação confirmaram.
Marta Angelozzi criou um livro-jogo no qual se “propõe uma forma de criar relações por afinidades visuais estimulando o leitor de forma aberta e divertida”. Para a artista plástica “o sistema de relações visuais foi e continua a ser um processo de desconstrução e reconstrução com infinitas variantes”. Subjacente ao livro criado está uma combinatória de possibilidades que conferem ao livro uma grande abertura. Não há uma solução única para o desafio de refazer os elementos do livro e construir, o próprio leitor, a sua versão do livro. O leitor, em outro momento, poderá construir uma outra combinação e obter um novo livro.
Destacamos a natureza interdisciplinar da criação realizada por estas criadoras em que as artes visuais se articulam com a matemática, numa espécie de diálogo construtivo. Esta integração está patente em diversas afirmações do seu discurso.
Fui-me apercebendo de como é simples trabalhar a matemática e, associando estas duas áreas, o trabalho desenvolvido pode ser muito rico e estimulante para as crianças. (Porte folio, MA).
Evidenciamos também o caráter de livro-jogo inerente aos vários livros criados que revelam um forte potencial criativo que desafia o leitor.
4.3. A experimentação e as potencialidades de mediação educativa dos objetos criados
É preciso observar que um dos aspetos intencionalmente explorado pelas criadoras na construção destes livros-objeto foi a noção de obra aberta na qual se propõe uma nova organização que não tem um único princípio e fim. Isto significa, que o livro poderá ser experienciado da última página para a primeira e vice-versa. Cada leitor é livre de encontrar a sua própria lógica durante a manipulação do objeto, fator que torna a experiência mais enriquecedora e desafiante.
Para Umberto Eco (1989) as obras abertas “são caracterizadas pelo convite a fazer a obra com o autor” (p. 91), na medida em que “o autor oferece (…) ao fruidor uma obra para acabar (…)”, uma vez que este pode reorganizá-la e propor novas interpretações (p. 90). Foi este o espírito que orientou a concretização desta proposta de trabalho, como as autoras defendem e se pode observar pelas imagens dos livros.
Cada participante, sobretudo crianças entre os 5 e os 12 anos, manusearam o livro de forma espontânea com o acompanhamento das autoras, sem impor qualquer orientação prévia que condicionasse a experiência percetiva e sensorial inicial do objeto. Mais tarde, após esse primeiro contato espontâneo com o livro, as mediadoras colocaram questões e sugeriram possibilidades de exploração às crianças, facilitando a livre interpretação dos livros manufaturados.
Sendo o diálogo uma das etapas importantes da própria mediação, foram colocadas diversas questões pelas mediadoras-autoras: Qual é a sensação de ter esse livro nas mãos? O que te surpreendeu? O que gostaste mais? O que te faz lembrar este livro? entre outras. Com as respostas a estas questões foi possível compreender a atividade percetiva e sensorial das crianças, durante a fase de manuseamento dos livros e entender o impacto, sob diferentes aspetos, que cada livro produziu no leitor-fruidor. A variedade de respostas e interpretações que foram obtidas são relevantes para a análise e reflexão sobre os objetivos atingidos com o trabalho realizado.
Como defende Rosa Tabernero-Sala “Produz-se um contacto físico (…) com o qual o leitor deve colaborar ao nível das estratégias de manipulação existentes” (Ramos, 2017, p. 190). Na verdade, as crianças que participaram nestas experiências tiveram que tomar decisões de como interagir com o livro, ao abrir, virar, deslocar e transportar diversas formas no próprio espaço do livro.
É possível avançar que as crianças que participaram nesta experiência revelaram ter feito aprendizagens essenciais: i) interpretação e comunicação (através da construção de narrativas pessoais); ii) apropriação de conhecimentos e reflexão;
Na perspetiva da interpretação e comunicação, construíram narrativas a partir do manuseamento dos livros, veja-se o excerto da conversa com a criança, ao manipular o livro No Mundo dos Contrários, Ah! Então aqui é o mundo do lixo porque tem coisas usadas, como o cartão e o plástico, e aqui é o mundo da Natureza porque tem uma pena que vem de um pássaro.
Sob o ponto de vista da apropriação e reflexão, que promove a descoberta da intenção do autor. Ao explorar o livro Relações Encontradas, a criança afirma:
Senti que tinha que encontrar as cores e os objetos parecidos com as imagens e depois o desenho que tu fizeste … no princípio não percebi, mas depois comecei a olhar melhor e a perceber … cada imagem era para três coisas diferentes. (Porte folio, MA).
Sobre o Livro das Cores, a educadora descreveu a sua intencionalidade:
Pretende-se que a criança explore o livro de ambos os lados, uma vez que não existe qualquer distinção entre a capa e a contracapa. Como existe um orifício circular que atravessa todo o livro, com exceção da capa e contracapa, a criança sente-se impelida a espreitar pelo orifício, o que permite que observe todos os círculos que compõem o livro, com diferentes gradações de cor. (Memória descritiva, CS).
A associação da autoria com a mediação permitiu às criadoras recolher dados úteis para o desenvolvimento de livros sensoriais.
O pré-livro que criei foi uma experiência significativa para mim, um “work in progress” que pode ser melhorado e que tem potencial para explorar mais noções cognitivas, podendo tornar-se num livro mais desenvolvido. (Porte folio, MA).
O livro não precisa de palavras para comunicar. Através do livro tátil exploram-se as cores, os cortes, as formas e as texturas que as páginas vão construindo, revelando uma surpresa a cada descoberta. (Porte folio, VCR).
5. Conclusões
A análise dos seis livros criados no âmbito desta experiência permite-nos apontar um conjunto de conclusões.
Evidenciamos a variedade de soluções plásticas e de interações cognitivas e sociais proporcionadas pelos livros sensoriais criados. A descrição que fizemos ilustra de modo bastante completo a diversidade de soluções plásticas que possibilitam uma variedade das interações de natureza sensorial e que podemos designar por interações materiais. Os exemplos de livros-objeto apresentados e discutidos evidenciam o papel das texturas, das cores e das formas nessas interações.
As conceptualizações matemáticas exploradas pelas criadoras permitiram criar livros-jogo, desafiantes para crianças pequenas, a partir dos quais são experimentadas formas significativas de raciocínio matemático que apontam aprendizagens ligadas a raciocínios matemáticos fundamentais, como é o caso do raciocínio combinatório, do raciocínio de classificação e da decomposição de figuras geométricas. Estes objetos abrem espaço a experiências matemáticas relevantes como foi o caso das composições com as peças do tangram. O que está em jogo é a observação de variações significativas para a criança. A fase de mediação pelo adulto é fundamental pois pode apelar para a visualização e o raciocínio espacial através da formulação de questões como, por exemplo: Que figura vês em cada página? Que figura vês quando as duas páginas são sobrepostas? Consegues descobrir um quadrado?
Estas ideias vão ao encontro da afirmação de que “o livro pode ser entendido, desde idades precoces, como fonte de prazer, estímulo à curiosidade/descoberta e instrumento indutor de conhecimento veiculado informalmente e de forma fruitiva” (Martins, 2017, p. 38).
No que respeita às interações sociais, há dois aspetos que apontamos com especial interesse e que decorrem da natureza aberta dos livros sensoriais. As criadoras dos exemplares analisados são unânimes no reconhecimento da importância dessa abertura. Por um lado, o leitor é coautor no processo de construção de sentidos como reconhece Martins (2017). Por outro, o discurso verbal associa-se naturalmente ao discurso visual numa articulação sinergética como é referido por Silva (2017) ao defender que os dois tipos de discurso são indissociáveis.
Um livro sensorial constitui-se assim como um objeto vivo que proporciona um diálogo, por isso designamos estas interações como sociais. O mediador mantem este perfil no tempo de criação do objeto que prologa depois na situação de mediação. No caso das experiências realizadas, a presença do autor no momento de mediação confere ainda maior relevância às possibilidades pedagógicas destes livros-objeto.
A criação de livros sensoriais foi interessante e desafiadora para estas mediadoras-autoras. De uma forma geral, este interesse pode ser alargado a professores e educadores podendo os livros sensoriais ser um tipo de material pedagógico rico e desafiador em que o educador se assume como mediador-autor. Queremos destacar especialmente esta dupla valência, análoga a outras polivalências que têm hoje especial relevância na criação de livros-objeto (Ferreira, 2017).
A experiência que realizámos permite-nos apontar que para além do valor plástico destes objetos eles permitem uma abordagem experimental e interdisciplinar. Embora os seis livros criados e explorados tivessem privilegiado a interdisciplinaridade com a matemática, podemos imaginar outras possibilidades de integração nomeadamente ao nível da comunicação oral e escrita, das ciências sociais e das ciências naturais.
Por último, esta experiência aponta uma possibilidade pedagógica para o livro sensorial, a criação de livros por crianças e jovens, nas perspetivas de autoria individual e de coautoria de grupo. Aproximamos assim o livro sensorial ao livro de Artista ou livro de Autor como ferramenta pedagógica (Barreiros & Gomes, 2015). Assim, este tipo de livros-objeto poderão constituir-se como um recurso de valor inestimável no âmbito da Educação Artística.