1. Introdução
A justiça permeia nossa vida cotidianamente. Em certa acepção, ela deve ser o fundamento que precede e lastreia a criação de normas que irão organizar o funcionamento da sociedade e as relações entre os indivíduos. Igualmente, se uma ou outra concepção de justiça prevalece em certo grupo social, bens jurídicos diferentes vão ser protegidos por meio de sancionamentos, na esfera administrativa, cível e, finalmente, penal.
Justiça pode ser considerada como algo fundamental, “absolutamente irredutível, da ética, da filosofia social e jurídica, bem como da vida política social, religiosa e jurídica”3, além de se verificar, no interior de uma sociedade, como ela divide aquilo que valoriza, como “renda e riqueza, deveres e direitos, poderes e oportunidades, cargos e honrarias”4.
Foi o pensamento grego que inaugurou as reflexões acerca da justiça. Apesar de os gregos serem muito recordados por suas incursões filosóficas, seu saber sempre esteve vinculado ao modo de viver, nunca constituindo, portanto, um saber puramente teorético. Se é certo que a cultura e o pensamento de uma época estão diretamente vinculados a um contexto social, o mundo grego foi uma das expressões mais notáveis dessa associação. A título de ilustração, mencione-se que, naquela época, inexistia uma palavra que designasse “direito”, fazendo-se uso, para tanto apenas do conceito de “justiça” (diké)5.
Dentre os pensadores que conceberam a ideia de justiça, encontramos Pitágoras, que influenciou fortemente as noções de Aristóteles nesse campo. Pitágoras partiu de uma noção dualista, mediante a divisão entre matéria e números, segundo a qual os números traduziriam a essência do ser. Além de concebê-la como a virtude fundamental, relacionava a justiça com a igualdade. Para tanto, expressava sua teoria sobre justiça como tríada ou “tetraktys”, representação, por excelência, da harmonia dos contrários6.
Interessa ressaltar a importância do surgimento das leis escritas para toda a construção do saber e do desenvolvimento das concepções sobre justiça. Nesse sentido, as primeiras leis escritas se deram com Drácon (sec. VII a. C), e foram mais fortemente desenvolvidas por Sólon (final do século VII e início do século VI), que, assim, diminuiu as revoltas sociais e instaurou a isonomia entre os cidadãos da polis, princípio que constitui um dos pilares da Democracia:
A Ordem e o Direito tornaram-se elementos de primordial importância no governo instituído por Sólon, estadista, legislador, pensador e poeta que compõe a parte mais nobre da tradição helênica. (...) realizou os equilibrismos sociais, procurando estabelecer a harmonia entre os integrantes classiais, antagônicos e favorecer o desenvolvimento de uma classe média forte, assim, como de toda a sua obra intelectual (...). Foi com Sólon que se efetivou a subsunção do homem ao Estado, erigindo-se, desde então, a verdadeira responsabilidade cívica dos indivíduos participantes da conjuntura político-social7.
Já em fins do século VI a.C., na Grécia, houve a transformação do governo aristocrático em democrático, apesar de muitas cidades ainda estarem sob o jugo da tirania. Essa mudança foi relevante para o avanço das instituições democráticas e do pensamento que as fundamentava. Péricles (século V a.C.), notável e influente estadista, orador e estratego, auxiliou decisivamente na consolidação da democracia ateniense e no sentido de se pensar a justiça. Foi em tal contexto que o homem passou a ser o centro das atividades cívicas, e a praça pública, o local de discussões de deliberação8.
Nesse caldo de transformações, em que se destacavam os sofistas, surgiu Sócrates. Aqueles compreendiam a lei como algo mutável e a oratória enquanto forma de alterar as leis, diferenciando-se as leis do homem das leis da natureza. Sócrates buscava a verdade, não de uma verdade mutável, como os sofistas apregoavam. Este percebia a justiça como algo que objetivava o bem comum, que seria o pleno desenvolvimento das pessoas. Visando a manter a postura diante da inderrogabilidade da lei, negou-se a fugir quando foi condenado à morte9.
Em Platão, percebemos uma mudança de eixo em relação aos pensadores que o antecederam. A justiça passou a ser percebida não como algo proveniente dos deuses ou da natureza, mas algo criado pelo homem. Trata-se, portanto, de uma visão antropológica de justiça10.
Contrapondo-se a tanto, Pitágoras previa que a conduta humana deveria ser interpretada segundo as coisas divinas. Assim, a justiça estava acima de tudo, para ele, a ponto de dizer que entre sofrer injustiça e praticá-la, era melhor sofrê-la. Influenciou Platão no sentido de ver a justiça como igualdade e comunhão de bens, organicamente. Para Pitágoras, cujos conceitos de justiça determinaram muito o pensamento platônico e, posteriormente, aristotélico, eram fundamentais as seguintes premissas: justiça como respeito aos deuses; justiça como ato de juízes, de corrigir ilegalidade anteriormente praticadas; justiça normativa, ou seja, as normas que vão definir comportamentos; justiça como obediência à ordem; como piedade; justiça é humana, pois trata de comportamentos das pessoas11.
Com base em Pitágoras, mas também seguindo a metodologia socrática, Platão definiu os alicerces para compreensão da justiça, o que o levou a estabelecer a justiça como virtude universal, ou virtude das virtudes, condição sine qua non para a convivência social. O filósofo, na sua concepção, teria a tarefa de alcançar o Bem Comum por meio da dialética, chegando à Justiça-Ideia, que ocorrerá por meio da lei e da ordem12.
Isso porque Platão concebe as leis da pólis como meio para se aproximar das virtudes, para que os cidadãos tenham uma vida virtuosa. Essa conduta definida pelas leis a todos os cidadãos, que a devem seguir, é o real agir cívico, coincidindo a virtude do cidadão com a virtude do Estado, pois teriam o mesmo escopo: o Bem Comum. Estariam ligados, portanto, o homem, a cidade e o cosmos. Por meio das leis, o Estado criaria bons e virtuosos cidadãos, pois, se a cidade é maior do que o indivíduo, à justiça da primeira assemelha-se a justiça do menor13. Além disso, a justiça, para Platão, é universal e boa por essência.
Aristóteles aprofundaria a fundamentação antropológica da justiça concebida por Platão, inserindo-a na esfera do agir humano que não se submete inteiramente nem a leis invariáveis e nem ao acaso. Tal agir, portanto, constitui a práxis, a iniciativa ética que depende da liberação e, quando perfeita, contém em si mesma sua finalidade14. Centra-se, destarte, na justiça política, ou seja, naquela que torna os cidadãos bons, e que se estabelece pelas leis e instituições do Estado15.
O desenvolvimento e o aprimoramento das virtudes éticas e políticas, em Aristóteles, se estabelecem pelo hábito e pela educação, de modo que a ação boa e justa ocorre nas próprias relações sociais16. Nesses termos, Aristóteles considera que a polis deve se encarregar da educação dos cidadãos por meio da coerção e coação das leis:
(...) é papel do homem político e do legislador assegurar a virtude de seus concidadãos, e também sua felicidade, pois, ao organizar uma cidade ou os cidadãos, eles poderão, por um lado, efetivamente ser educados de modo a tornar-se virtuosos e, por outro, assegurar no seio da cidade a possibilidade de ócio que permita aos filósofos ascender à vida teorética. Eis porque Aristóteles não sonha em fundar um moral individual sem relação com a cidade (...)17.
Mais especificamente quanto à justiça, o Estagirita apresenta duas concepções: justiça como télos, enquanto finalidade, e justiça como virtude, enquanto honra18.
Para ele, “justiça significa dar às pessoas o que elas merecem, dando a cada um o que é lhe é devido”. Dito de outro modo, divisões ou distribuições devem ocorrer de acordo com o mérito, isto é, a aptidão de alguém para desempenhar algo de forma melhor. Por isso sua análise é teleológica, pois, para se dar o ideal de distribuição de bens, dever-se-á averiguar a razão de ser do próprio objeto que está sendo distribuído19. No que tange às ações de justiça social, pode-se tentar exemplificar a lógica da argumentação aristotélica pela seguinte questão: qual é o sentido ou a razão de ser de uma casa? Seria o de abrigar pessoas. Mas dar uma casa a quem já a tem não cumpriria o sentido teleológico de tal bem da vida. Portanto, essa casa deveria ser dada a quem não a tem, justamente para cumprir a finalidade do domicílio, ou seja, seu propósito enquanto ser.
Por outro lado, a justiça como virtude particular é vista como a relação entre as pessoas, estando, portanto, associada à igualdade. É nessa perspectiva que se faz a distinção entre justiça distributiva e justiça corretiva. Se a justiça distributiva se refere à distribuição dos bens entre os homens, segundo seus méritos, a corretiva, por sua vez, constitui a análise objetiva das ações e danos causados, para que ninguém receba mais do que venha a dar20.
Como se pode observar, as acepções de justiça em Aristóteles são bastante amplas e basilares. Talvez por isso constituam uma referência válida para analisar o problema da aplicação da justiça nos tempos atuais. Assim, a despeito das transformações evolutivas pelas quais as noções semânticas de justiça passaram ao longo da história, suas aplicações recentes foram alvo de ataques, seja em contexto nacional ou de outros países. É o que se verifica, por exemplo, em relação a conquistas adquiridas com a Constituição Brasileira de 1988 e às consagrações posteriores dos direitos fundamentais. Ora, é possível sustentar que tais conquistas se deveram, em grande parte, a noções de justiça distributiva segundo a qual os iguais devem ser tratados igualmente, enquanto os desiguais, desigualmente21.
Portanto, a hipótese da presente investigação entrevê, mediante uma arqueologia conceitual da concepção de justiça em Aristóteles, um dos fundamentos subjacentes a parte significativa das atuais teorias do Direito Penal, sobretudo no que tange à justiça corretiva, isto é, o princípio da voluntariedade do agente moral em sua conduta já explicitado em Ética a Nicômaco. Além disso, como já enunciado, a concepção de justiça em Aristóteles joga luz sobre um problema contemporâneo, qual seja, o da fundamentação da estrutura jurídica das sociedades sobre noções fundamentais de justiça que abranjam efetivamente o conjunto universal de cidadãos.
Para tanto, proceder-se-á com um enquadramento histórico-conceitual das filosofias ética e política de Aristóteles na tradição do pensamento grego até sua época constituído. Sobre este esclarecimento, proceder-se-á, em segundo momento, a análise semântica da concepção de justiça em Aristóteles a partir do instrumental metodológico da análise conceitual de textos, em articulação com pesquisa de natureza bibliográfica.
2. Contexto e Pensamento
Aristóteles viveu entre 384 a.C e 322 a.C. Descendente da estirpe de Asclépio, nasceu em Estagira, que pertencia à Macedônia. Seu pai, Nicômaco, era médico do Rei Amintas III da Macedônia, com quem tinha forte amizade. Essa situação influenciou a visão sistêmica de Aristóteles, voltada para as ciências naturais, notadamente pelo modelo empirista da escola hipocrática22.
Aos dezessete anos foi para Atenas estudar23, ingressando na Academia de Platão. Nessa época, já possuía grande destaque. Foi um importante discípulo de Platão, apesar de divergir de seu mestre em diversos aspectos, recebendo deste o apelido de “o leitor”24. Esse atributo ocorria pelo fato de, na época, a obtenção do conhecimento derivar basicamente da tradição oral, enquanto Aristóteles ocupava muito de seu tempo na leitura dos pensadores gregos25.
Quando Platão faleceu, em 347 a.C, Aristóteles esperava ser seu substituto. Suas expectativas, contudo, foram frustradas não só pelas divergências teóricas com seu mestre, mas também pelo fato de ser estrangeiro ou meteco26. Apesar de os estrangeiros serem bem acolhidos na sociedade ateniense, Aristóteles não podia liderar a Academia de Platão, pois somente os cidadãos poderiam ser proprietários de imóveis. Por conseguinte, a escolha recaiu sobre o sobrinho de Platão27.
Decorrente dessa razão e por haver certa animosidade dos atenienses contra os macedônicos devido às conquistas de Felipe II, Aristóteles foi para Atarneus, na Ásia Menor, onde ficou até os persas invadirem o país. Em seguida, foi para Macedônia, em Pela, a convite de Felipe II, tornando-se preceptor de Alexandre, cujo espírito se dedicou a talhar com conteúdos morais e políticos28.
Com a morte de Filipe II, e a partida de Alexandre para a conquista do oriente, em 335/4 a.C., Aristóteles voltou para Atenas e fundou sua escola, denominada “Liceu”, em homenagem ao deus Apolo Lício, local onde ofereceria aulas a seus alunos e, também, ao público29.
Costumava ministrar suas aulas caminhando pelos jardins. Por isso, ele e seus alunos ficaram conhecidos como peripatéticos30, palavra que deriva do grego “peripatetikós” e significa “andar ao redor”31.
Pela proximidade com Alexandre, o Liceu muito se engrandeceu com auxílios financeiros para sua manutenção e, também, por diversos materiais que Alexandre lhe enviou de várias partes do mundo, principalmente da Ásia, para seus estudos32.
Com a morte de Alexandre Magno, Aristóteles, por ter sido seu preceptor e amigo, foi perseguido em Atenas. Conseguiu fugir, alegando que não deixaria que se cometesse um segundo atentado contra a filosofia33. A referência era claramente à condenação de Sócrates pelos atenienses. Morreu em Cálcia, na Eubéia, em 322 a.C., tendo definido em seu testamento a libertação de seus escravos34.
Para melhor compreender as ideias aristotélicas, mister se faz analisar o contexto histórico em que se encontrava, na época, a Grécia, e sobretudo Atenas, especificamente no que diz respeito à evolução do pensamento. Sócrates, antes de Platão, transpusera a investigação filosófica para as questões éticas, inserindo o homem em um contexto “sócio-político-cultural”35. Trata-se também do movimento de conferir centralidade ao conhecimento do homem pelo homem, sentido subjacente ao aforismo “conhece-te a ti mesmo”, uma das máximas délficas inscritas no pronau do Templo de Apolo, em Delfos, de acordo com o escritor Pausânias. A reviravolta protagonizada por Aristóteles foi também referida como a passagem do “pensamento cosmológico ao antropológico, não mais se examinando a natureza, mas o homem, sua organização política e suas relações”. Desse modo, Sócrates deslocou o “ponto arquimediano das preocupações filosóficas para o campo da moral”36.
Em Platão, observa Bittar, seus discípulos, inteirados dos problemas políticos que assolavam a pólis, em meio aos jardins da Academia, se dedicavam ao pensamento e à volta “da cultura cívica, por meio da educação (paideia) filosófica, cultivo das capacidades espirituais mais elevadas do ser”. Exigia-se, da filosofia da época, a concepção de novos modelos pedagógicos para a cidade. “A razão instaura a ordem e o faz por meio da lei”37, reunindo pensamento racional e experiência prática para análise da estrutura da pólis.
A Academia, nesse desiderato, buscava, por meio da teoria, formar os cidadãos para a atuação na vida política38, para, enfim, governarem a pólis.
Interessa apontar que em Atenas, desde o surgimento das primeiras aldeias até a vida na cidade-estado, o cidadão deliberava acerca das atividades inerentes à polis, detendo poderes para definir a direção da coisa pública. Os cidadãos desenvolviam essa função por meio de sua capacidade discursivo-persuasiva voltada à discussão dos problemas da sociedade, diferenciando-se, nesse ínterim, dos ditos bárbaros, povos que ainda viviam sob o estilo aldear39.
Tanto em Sócrates quanto em Platão já se observa o arcabouço teórico que iria fundamentar a obra do Estagirita. Suas teorias se entrelaçam indissociavelmente40.
Ora, como Platão, Aristóteles também se questionava acerca de como se deve viver. Sua resposta específica se centrava na busca da felicidade41.
É de se mencionar, entretanto, que a felicidade para Aristóteles advinha da palavra “eudaimonia”, que costuma significar prosperidade ou sucesso. Importa ressaltar que felicidade, no sentido usado, não se relacionava a sensações em nível individual de alegria ou congêneres, mas a algo diverso. Aristóteles sustentava haver uma natureza humana, e, vinculado a ela, haveria uma forma de vivermos que se adequaria melhor a essa natureza42.
A fim de se chegar à “eudaimonia”, seria necessário desenvolver certas virtudes, certo caráter, “Bons padrões de comportamento são virtudes; padrões ruins são vícios”43. Para tanto, era preciso promover essas virtudes por meio da vida em sociedade e pela política. As virtudes estariam ligadas inexoravelmente à polis, pois nessa havia a instituição de leis e os vínculos entre as pessoas dentro de uma cidade44 e, ao final, o respeito à justiça.
Segundo Bittar, a felicidade para Aristóteles consiste no “sumo bem, ou seja, o bem bastante por si só”45. Para alcançar tal desiderato, o homem vive de acordo com a racionalidade, faculdade que, por diferenciá-lo dos demais seres vivos, capacita-o a realizar a sabedoria prática mediante a escolha dos meios adequados. Nesse sentido, a virtude seria uma disposição de caráter, não ínsita aos humanos, que a educação realizaria, condicionando as pessoas ao comportamento ético. Dessa forma, a razão sobrepor-se-ia às paixões como determinante ao agir.
Para o bem agir, Aristóteles prevê que deve haver a conjunção de dois fatores, a saber, o conhecimento teórico da virtude e a ação, isto é, a “práxis” identificada como virtude enquanto habitualidade. Ética e teoria estão juntas para se chegar à felicidade, pois há que se agir eticamente embasado em um saber prévio46. De outra parte, o ser humano é, por essência, social e, consequentemente, político, munido de linguagem e de razão. Dito de outro modo, é na pólis que o ser humano realiza sua dimensão de ser social47:
A palavra, porém, tem por fim fazer compreender o que é útil ou prejudicial, e, em consequência, o que é justo ou injusto. O que distingue o homem de um modo específico é que ele sabe discernir o bem do mal, o justo dos injustos e assim todos os sentimentos da mesma ordem cuja comunicação constitui precisamente a família do Estado48.
Aristóteles concebe, não poucas vezes, que tanto a felicidade do indivíduo isoladamente considerado quanto a do sujeito atuante na vida política são da mesma espécie. Contudo, a despeito da equivalência no que se refere à causa final, nos inícios da Ética a Nicômaco é possível observar o estabelecimento de uma hierarquização entre os dois contextos segundo a qual a finalidade da cidade parece maior e mais completa49, porquanto, neste caso, o homem realiza plenamente sua disposição natural.
Para Aristóteles, os seres naturais realizam sua natureza na medida em que atualizam sua própria causa final. O mesmo princípio é válido também para a pólis. A pólis constitui uma comunidade completa, autossuficiente, a mais ampla forma de associação natural do homem, composta, em seu nível mais fundamental, pelas famílias, o domínio da casa, cujo objetivo é a satisfação das necessidades quotidianas. Em instância intermediária, da reunião dos clãs resulta uma colônia de lares, isto é, a aldeia ou o povoado, a primeira das comunidades que constituirá a base imediata da cidade50. É claro que a finalidade da pólis não se esgota na sobrevivência material do cidadão, pois, do contrário, a natureza humana em nada se distinguiria dos animais. Mais do que propriamente assegurar a vida, a existência da cidade, como comunidade de cidadãos livres, possibilita a consecução da felicidade, da vida melhor. Sem a cidade e suas instituições, a essência humana não se realiza, pois não há vida ética. Fora da pólis o homem será sempre um ser decaído.
A necessidade de associação derivaria diretamente da natureza. O governo seria considerado político quando houver constituição que torne o governante senhor e súdito. “É evidente, pois, que a cidade faz parte das coisas da natureza, que o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade”51. Mas mais do que apenas uma necessidade, viver em sociedade é uma aspiração humana. “Ora, o governo ou a constituição política não passam de certa ordem estabelecida entre os que habitam a cidade”52.
O que é uma cidade para Aristóteles? Para se responder a essa indagação, faz-se mister averiguar o que o filósofo entendia por cidadão, já que é a associação dos homens livres que constituirá o corpo da pólis. Cidadão seria aquele que pode participar da administração da justiça e de cargos públicos. Assim, o cidadão só o será plenamente na forma de governo da democracia:
(...) aquele que tem uma parte legal na autoridade deliberativa e na autoridade judiciária - eis o que chamamos cidadão da cidade assim constituída. E chamamos cidade à multidão de cidadãos capaz de bastar a si mesma, e de obter, em geral, tudo que é necessário à sua existência53.
E, assim como esse grupo constitui a cidade, o que configura a comunidade é a forma do governo. Diante disso, a virtude do cidadão deve estar em consonância com a forma política vigente54.
A educação, por sua vez, vai ter papel preponderante em tal objetivo, e, como tal, depende da execução dos que definem a condução da coisa pública na pólis, isto é, dos governantes. Nessa perspectiva, a educação deverá ser pública, estabelecendo o Estado unicidade quanto às virtudes que almeja desenvolver nas pessoas55.
Dentro da polis e havendo homogeneidade das virtudes dos cidadãos, a justiça vai se realizar pela criação e cumprimento da legislação, entendida aquela como “virtude social por excelência”. Logo, se a organização política que visa aos fins da sociedade estiver em conformidade com os interesses dos cidadãos, é considerada boa e adequada a consagrar o bem comum. Na legislação define-se a igualdade, em que todos são iguais, cada qual em sua situação perante a cidade, ou seja, como cidadãos, metecos (estrangeiros) ou escravos. Igualmente, vista como manifestação do bem comum, as penas e sanções derivadas da lei são justas na medida em que representam o que é melhor para todos56.
A função do legislador seria de suma importância, pois realizaria a orientação dos fins do Estado. Formularia as leis que conduziriam ao bem comum e desenvolvimento do corpo social. “Assim, a lei é expressão da racionalidade do homem, capaz de, pelo exercício dessa faculdade, trazer ordem à comunidade política”, cabendo ao legislador o conhecimento das virtudes e a sabedoria, e ao juiz, ao aplicar a lei, realizar “a justiça em sua materialidade, imergindo na realidade e aplicando a atividade formal do legislador objetivando a própria justiça política”57.
Aristóteles considera evidente que as legislações que se propõem à utilidade geral são essencialmente justas, e reputa que governo e constituição significam a mesma coisa58, no sentido de busca do interesse geral. Nesse sentido, igualdade significa justiça, mas somente para os iguais. Para aqueles que forem desiguais, a desigualdade parece também justa. “O escopo do Estado é a felicidade na vida”59, mas bem viver seria viver feliz e virtuoso. Por isso o objetivo da sociedade política seria não só a vida em comum, mas ações honestas e virtuosas. “O bem em Política é a justiça, isto é, a utilidade comum”60, sendo a justiça uma virtude social.
Quando discorre sobre o problema da justiça, o filósofo primeiramente a compreende como uma virtude que comporta diversas subdivisões, conforme o significado que se quer enfatizar. A justiça seria uma virtude porque se relaciona com a ética, campo da filosofia que precisamente examina o comportamento humano. De acordo com Aristóteles, a ética não era dividida entre a ética privada e a social, pois ambas convergiriam na finalidade máxima do Estado, além do próprio existir humano. Por conseguinte:
(...) o que é justo na coletividade também o será, de certa forma, para o indivíduo, tendo-se em vista a sua inserção nesta perspectiva maior de vida social. Trata-se de uma ética da convivência humana (...)61.
Desse modo, política e ética estariam intimamente relacionadas, pois visam a administrar o que é comum a todos, sendo o ingresso do homem na sociedade um subordinado à esfera pública. Exatamente por isso, a justiça, como uma virtude geral, se encontra relacionada à justiça política, aquela que cria bons cidadãos e é determinada pelas leis, instituições e usos práticos do Estado62.
Recorde-se que, na Atenas da época, a forma política era a Democracia. Contudo, tratava-se de uma democracia restrita: “A cidadania era exclusiva dos homens adultos livres nascidos no território da Cidade”63, estando excluídos das decisões políticas e dos espaços públicos de deliberações as mulheres, os escravos, os estrangeiros e os miseráveis64.
Em que pesem as restrições havidas, os cidadãos podiam livremente debater e deliberar acerca das melhores direções da organização da cidade, e o fato de existirem constantes debates públicos mostra que as decisões sobre ética e condução da polis estavam constantemente em transformação, em uma ideia de “criação contínua da realidade social”65.
O exame sobre a justiça repousa não em um saber puramente teorético, mas no conhecimento das realidades cujos fins se confundem com o próprio agir humano enquanto agir justo. Assim, deve haver o conhecimento acerca de ações que levem à efetivação do bem comum66.
Nessa perspectiva, Aristóteles afirma:
Notamos que todos entendem por justiça aquele estado que torna os indivíduos predispostos a realizar atos justos e que os faz agir justamente e desejar aqueles atos; e, analogamente, por injustiça o que torna os indivíduos predispostos a agir injustamente e desejar os atos injustos67.
Para haver compreensão do que seria o agir justo, há de se averiguar a concretude do agir humano, isto é, a esfera em que se efetiva o convívio das pessoas, a relação entre elas. Genericamente, a justiça como virtude deve aspirar ao justo meio, não como uma localização espacial, mas enquanto o equilíbrio entre os vícios do excesso e da deficiência68. Mas, em que pese a aproximação entre justiça e virtude, Aristóteles estabelece uma distinção entre ambas: a justiça seria o agir em relação ao próximo, enquanto virtude consistira em uma predisposição que se encontra no interior da pessoa, não sendo necessariamente demonstrada em ações69.
Consequentemente, a justiça seria a virtude perfeita, por ser a prática ou a exteriorização da virtude maior, de algo que se deseja e exista potencialmente na interioridade subjetiva. Por corresponder, portanto, a ações condizentes com a mais excelsa predisposição, a justiça é considerada a melhor das virtudes. “Na justiça está toda a virtude somada”70.
À justiça se opõe a injustiça, que pode ser injustiça por excesso ou por defeito: a injustiça “estando semelhantemente associada ao injusto, constitui excesso ou deficiência de alguma coisa benéfica ou nociva, ferindo a proporção”71. Por excesso, haveria a pessoa que obteve êxito com o ato; enquanto por defeito encontra-se quem foi injustiçado: “No ato injusto, ter demasiado pouco é ser vítima de injustiça, ao passo que ter demasiado é infligir injustiça”72. O meio-termo seria o ponto de equilíbrio harmônico entre os dois extremos. Em vista disso, é pela análise do seu contrário que o filósofo busca examinar a conceituação de justiça. Também é certo que se há dúvidas ou ambiguidades quanto ao significado de injustiça, o mesmo ocorrerá com o seu contrário, a justiça73.
Para precisar as várias espécies de justiça, Aristóteles examina, inicialmente, o que denomina de justo total. Essa acepção consiste na obediência à lei, do que é previsto na legislação e que garante o bem de todos. Considera que o legítimo é, também, justo, isto é, o que corresponde à atuação que não infringe normas estabelecidas, de modo a beneficiar, consequentemente, o todo. Tal noção parte da ideia de que o legislador já cria leis que respeitam e condizem a um fim que favoreça a comunidade, qual seja, o bem comum. Esse tipo de justiça é igualmente designado de justiça universal ou justiça integral, porquanto é a mais extensa possível74.
Como a justiça está vinculada à virtude, agir conforme seus mandamentos significa um valor por si. “O pior dos homens é aquele que pratica sua deficiência moral, tanto em relação a si mesmo quanto em relação aos outros, e o melhor dos homens é aquele que coloca em prática sua virtude em relação aos outros, e não em relação a si mesmo”75. Destarte, conduzir-se segundo as leis significaria realizar a própria justiça, pois “justiça e legalidade são uma e a mesma coisa”76. Atuar conforme a lei e não desobedecer às suas proibições seriam atos justos, na comissão e na omissão. A contrario sensu, há a injustiça total quando se transgride a legislação. Com efeito, somente quando a lei normatiza as relações entre as pessoas é que existirá a justiça, porquanto “a administração da justiça implica a distinção entre o justo e o injusto”77. Daí a necessidade de as pessoas serem governadas pelas leis e não por tiranos.
Com menos extensão ou abrangência, há a justiça particular, que seria uma parcela da virtude e não na sua totalidade, como se dá no caso anterior. Trata-se da relação com o outro de forma particular e que diz respeito às partes diretamente envolvidas (BITTAR, 2005).
Mas, no interior da justiça particular, Aristóteles encontra a justiça distributiva e a corretiva78. Na distributiva há a repartição, segundo o mérito, de bens, honras, entre outros. Trata-se da igualdade que se concretiza de forma proporcional mediante a repartição equitativa de bens de acordo com os méritos existentes79. Se no regime oligárquico os méritos são estabelecidos pela riqueza, na democracia, associam-se à liberdade80. Ora, a justiça de tipo distributivo é aquela que se estabelece de forma vertical, entre os governantes e os governados, ou, dito de outro modo, decorre da relação público-privada. Há subordinação entre os que distribuem os bens, honras, cargos, deveres, responsabilidades, e os que recebem. Essa justiça, então, atinge seu corolário “dentro de uma razão de proporcionalidade participativa, pela sociedade, evitando-se, assim, qualquer um dos extremos que representam o excesso (...) e a falta (...)”81.
Ao revés, ocorrerá a injustiça quando pessoas desiguais recebem os mesmos benefícios ou quando iguais os recebem desigualmente. O critério para aferição de igualdade e/ou desigualdade recaía no mérito dos indivíduos, cabendo aos iguais a mesma quantidade de benefícios e aos desiguais as partes que correspondam à sua desigualdade.
Interessa ressaltar a influência matemática na teoria da justiça aristotélica, já que o filósofo concebia a igualdade como algo geométrico, argumentação que derivava do exame acerca da proporcionalidade da atuação de cada um segundo os critérios estabelecidos nas leis. A justiça era vista como relação tetrática, claramente inspirada em Pitágoras: “o justo, portanto, necessariamente, é, no mínimo, quádruplo. Com efeito, envolve dois indivíduos para os quais existe justiça e duas coisas que são justas”82.
De outra banda, pela justiça corretiva Aristóteles analisa objetivamente ações e valores negativos. Também repartida de forma proporcional, a justiça corretiva, em contrapartida, não leva em conta méritos pessoais83, sendo aplicada de forma horizontal, entre membros da sociedade, em relação de coordenação, e não de subordinação, como se dá no caso da justiça distributiva. Diferentemente desta, pautada em critérios de ordem subjetiva, quais sejam, os méritos, a justiça corretiva funda-se em bases objetivas e tem por fim a busca do equilíbrio nas relações entre particulares, sobre fundamentos inspirados na igualdade aritmética, uma condição lastreada pela impessoalidade. Justamente por não se estabelecer com base no mérito, a justiça corretiva deve sua perfeição à impessoalidade da lei, segundo a qual os sujeitos não seriam distinguidos por suas características singulares. Sua introdução se verifica quando há um ato injusto que causa desigualdade, ou seja, na ocasião em que alguém recebe mais do que deveria ganhar em detrimento de outro, que, por sua vez, proporcionalmente ganha menos. A fim de se retornar ao estado anterior, aplica-se o princípio igualdade aritmética para que se atinja o meio intermediário, o justo, que não padeceria do excesso, nem da privação. Para tanto, o juiz aplica a justiça corretiva, determinando que as partes em conflito retornem ao estado que havia antes da desigualdade irrompida, um estado marcado pelo equilíbrio e pela paridade. Seria, então, sua função retirar de quem se apropriou do a mais que não lhe era devido para o dar ao prejudicado. Nesse caso, a redistribuição dos bens traduziria a retomada da situação que existia anteriormente entre as partes, conforme a legislação84. Como a injustiça gera a desigualdade, o juiz determina o retorno à igualdade e, desse modo, o restabelecimento do equilíbrio. Além disso, a restauração da igualdade dependerá também da punição aplicada àquele que agiu injustamente. O juiz é “como se fosse a justiça dotada de alma”, pois vai “estabelecer a mediania”, o justo85.
A justiça corretiva divide-se em dois tipos: comutativa, que se aplica de forma voluntária; judicial, que é imposta por um juiz, de maneira involuntária86.
A voluntária ou comutativa é aquela que se estabelece entre contratos de compra e venda, empréstimo, dentre outros, em que o critério de relação é a liberdade em convencionar ou contratar, estando as partes, ao menos em tese, em situação de igualdade quanto à vontade de estabelecer vínculos, de forma bilateral. Caso haja uma situação de injustiça, ou seja, quando comprado algo não correspondente ao que foi pactuado, deverá o juiz reestabelecer a situação de equilíbrio, seja por meio de divisão e retorno ao anterior, seja por meio de indenização quando não se pode retornar ao status quo ante de forma natural.
Aristóteles se distancia quanto à equivalência proposta por Pitágoras entre justiça e reciprocidade. Nesses termos, o filósofo de Samos seguia a lei de Talião, enquanto Aristóteles não acreditava que se resolveria uma injustiça com outra injustiça, já que essa solução endossaria o princípio de vingança, levando à não-resolução do conflito. O Estagirita funda sua justiça na reciprocidade proporcional, tanto a distributiva quanto a corretiva87.
A justiça reparativa ou involuntária corresponde a uma situação de desigualdade entre as partes, gerada não por acordos bilaterais, mas por atos involuntários, se não para ambas, ao menos para uma das partes88. Nesse caso, uma das partes é chamada de sujeito ativo da ação, enquanto a outra, a que sofre a injustiça, é o sujeito passivo. Na hipótese, caberá também ao juiz estabelecer uma solução aritmética para o caso, objetivando retornar à situação que existia antes de haver a injustiça. Acaso isso não seja possível, que haja ao mínimo a devida retribuição pelo indivíduo que perpetrou a desigualdade, intentando a reparação da perda89.
Também distingue a justiça legal da justiça natural. Distinta do que é justo por si só, a justiça legal pressupõe a própria justiça política, pois só é definida como tal na medida em que é definida por uma lei ou disposição de autoridade. A justiça natural, por sua vez, seria aquela cuja justiça se dá por si mesma. Contudo, para Aristóteles esta justiça, possível de ser concebida idealmente, não existe na esfera fática, porquanto também se encontra sujeita às transformações inerentes ao tempo. As duas justiças referidas são fundamentalmente distintas pelo grau de mutação que se atesta nelas. A legal, por exemplo, mudaria mais rapidamente do que a natural90. Há de se advertir, contudo, que o justo natural para Aristóteles não corresponde a Direito Natural91.
A propósito, o filósofo considera que:
A justiça política é em parte natural, em parte convencional: natural a que vigora do mesmo modo em todos os lugares e não depende da aceitação ou não aceitação; convencional aquela que originalmente é possível ser estabelecida deste ou daquele modo indiferentemente, mas que uma vez estabelecida, deixa de ser indiferente92.
Desse modo, a justiça convencional se exterioriza por meio de fórmulas gerais, não compreendendo, portanto, casos concretos. Resolver casos concretos seria fazer uso da equidade, princípio que, de fato, diria respeito à justiça natural. Justamente por ser revestida da necessária plasticidade em termos de aplicação fática, a justiça natural apresenta a característica de se adaptar a situações existentes93.
Aristóteles concebe a escravidão como algo natural, com um ideal abstrato, sem levar em conta as condições reais. Isso porque, para a produção de bens, sejam alimentos ou outros, é necessário que alguém o faça, pois tais serviços são imprescindíveis para se viver. Além dessa perspectiva, a escravidão é aduzida como algo natural pelo fato de certas pessoas possuírem naturalmente propensão natural a executar trabalhos manuais e a se submeter a outrem. Para chegar a tal conclusão, Aristóteles analisa características físicas, psíquicas e intelectuais dos escravos. Assim, a condição de escravo seria vantajosa tanto para o senhor e quanto para o próprio escravo. Seria, portanto, justo que um mandasse e o outro obedecesse. Já a escravidão oriunda da guerra é justificada pelo fato de ser natural que o mais forte (o vencedor da guerra) submeta a seu poder o mais fraco (aquele que se fez escravo)94.
É curioso perceber que o filósofo faz, ainda, observações acerca de atos voluntários e involuntários para a configuração de justiça ou injustiças. Somente a prática voluntária é que poderá levar à injustiça. Não age de maneira injusta quem, ao revés, comete um ato involuntariamente. Logo, para a caracterização do ato justo ou injusto, há de se levar em conta a voluntariedade da ação que gerou o ato. Aristóteles compreende como voluntário aquilo que está sob o controle do indivíduo, enquanto involuntário é o ato:
(...) realizado na ignorância, ou, ainda, que não realizado nessa condição, aquele que ocorre na falta do controle do agente ou que é realizado sob coação. Com efeito, existem muitos processos da natureza que são executados ou sofridos cientemente e, no entanto, nenhum deles é voluntário ou involuntário, a exemplo o envelhecer ou o morrer95.
Da mesma forma, a voluntariedade do ato é essencial para defini-lo como justo: “Do mesmo modo, alguém que se conduz justamente segundo prévia escolha é um indivíduo justo. Mas sua conduta será justa somente se agir voluntariamente”96.
Assim, considera o ato justo sempre voluntário, já que depende da vontade do indivíduo em realizá-lo. Agir corretamente, sem que decorra da vontade de assim fazê-lo, não configuraria o agir com justiça.
Tem-se em conta que o justo é definido como tal por lei ou pela natureza, conforme já examinado, argumentação que pressupõe a busca por certa objetividade. No entanto, o ato justo ou injusto, quando praticado voluntariamente, decorre da subjetividade do agente, não sendo, portanto, objetivo: “O que se revela aqui é exatamente o elemento volitivo como caracterizador ontológico dos conceitos na esfera subjetiva”97.
Assim, como ato voluntário, entende o Estagirita:
(...) aquilo que está na esfera do próprio controle e que é manifestado cientemente, isto é, sem desconhecer a pessoa que sofre a ação, o instrumento empregado na ação e o resultado a ser atingido (por exemplo, é imperioso saber quem agride, com qual instrumento e qual o propósito), sem que cada uma dessas circunstâncias ocorra incidentalmente ou mediante força. Exemplo: se alguém se apoderou da mão de outra pessoa e com ela golpeou uma terceira pessoa, a segunda pessoa não foi um agente voluntário; de fato, essa ação não esteve sob seu controle. Outro caso: um agressor, embora ciente de que está agredindo alguém e que se trate, talvez, de uma das pessoas ao seu redor, desconhece que o agredido é seu pai. Ademais, de modo semelhante pode ser estabelecida essa distinção tomando-se como referência o propósito e as circunstâncias da ação como um todo98.
Assim, o filósofo diferencia o homem injusto do ato injusto, já que, para o homem ser, de fato, injusto, deverá ocorrer uma vontade de ação injusta, com adesão subjetiva àquela conduta. O ato final deve estar no domínio do agente, de sua livre vontade e consciência, tanto da conduta, quanto do resultado.
À vista disso, há a distinção entre o homem justo e injusto, uma vez que ambos não praticam atos de justiça ou de injustiça de forma acidental, mas com dolo99.
Nesse sentido:
(...) é justo aquilo que assim o for por imposição legal ou como decorrência da própria natureza. Portanto, é algo que, objetivamente, seja por disposição legal, vontade do legislador, seja por natureza, pode ser definido de uma ou de outra maneira. A coisa justa (to díkaion) e a coisa injusta (tò ádikon), ao serem praticadas por um agente que obra voluntária e conscientemente, convertem-se em atos de justiça ou em atos de injustiça. Aqui, tanto o justo como o injusto, ganhando dinamicidade com o advento de uma ação, revestem-se da voluntariedade proveniente da esfera subjetiva do agente, recebendo a denominação de atos de justiça ou de injustiça; trata-se de algo inerente à esfera da ação subjetiva, na qual imperam e concorrem a razão e a vontade100.
Aristóteles concorda com Platão no sentido de que deva haver leis gerais (escritas ou consuetudinárias) que governam as pessoas da cidade. Isso porque lhe parece mais justo as pessoas serem governadas por leis abstratas do que por governantes que imponham regras segundo sua vontade. Tais comandos confeririam mais liberdade e igualdade às pessoas101.
Quanto às leis consuetudinárias, Aristóteles as considera mais importantes do que as escritas, mais essenciais, e, por isso, as denomina de constituição, que seria, em realidade, a essência do Estado102.
Como já mencionado, Aristóteles confere grande importância ao Estado para instituir a educação e os bons hábitos que levam à virtude, elementos estes que se encontram acima da riqueza. Para tanto, as relações interpessoais da comunidade devem se pautar em amizade. Tanto mais comum será o uso dos bens quanto mais a interação dos agentes transcorrer como se ocorresse entre amigos. De outra parte, os tipos de cidadãos são estabelecidos segundo o tipo de virtude que devam respectivamente ter, conforme suas funções sociais103.
Relativamente aos tipos de Estado, Aristóteles os diferencia segundo seu regime de governo. Assim, aponta a existência de seis regimes de governo como decorrentes de três basilares que se dão e pelas proporções quantitativas de sua composição, isto é, por uma minoria ou pela maioria. Para as formas corretas, haveria a monarquia, a aristocracia e a república (democracia). Já como formas desviadas ou deturpadas de Estado, tem-se a tirania, a oligarquia e a demagogia (que Aristóteles chama de democracia). São consideradas desviadas por terem como meta auferir fins particulares104.
Aristóteles defende a forma da república (que seria a democracia), pois nesse regime vigoraria a lei, considerada a “razão sem paixão”. Aqui, o filósofo contraria a necessidade, apontada por Platão, em A República, de o Estado ser governado por técnicos ou filósofos (na modalidade aristocrática), exatamente porque a lei os substituiria em sua justiça. Ademais, na democracia, os cidadãos devem tomar parte das decisões do Estado, e, para tanto, é necessário que exerçam o poder de alguma forma. Ainda que nem todos estivessem aptos para o poder, os cidadãos deveriam ter o poder decisório sobre os assuntos do Estado e sobre a justiça105.
Quanto ao fato de que a forma de governo proposta colocaria os cidadãos acima dos governantes, pois caberia àqueles as decisões mais importantes, pontua:
(...) é justo que a massa exerça a soberania sobre assuntos mais importantes, já que o povo, a assembleia e o tribunal estão compostos de muitos e a propriedade, (o valor) de todos eles juntos é maior que a do que desempenham as magistraturas principais individualmente ou em pequeno número106.
O controle do governo estaria, de fato, nas leis e na Constituição. O filósofo aceita todas as formas de governo, diz que cada uma tem sua razão de ser e isso acarretaria visões sobre as leis e a justiça107.
Tem mais importância para ele a participação ativa de todos os cidadãos nas decisões do governo. Mas percebe que o regime político deve estar de acordo com a situação real de cada Estado108. “O poder político deve ter preferência para aquele que privilegia a educação para o ‘mando’ e a virtude para os cidadãos”109.
Para Aristóteles, há relação entre a forma de Estado de certo local, que irá instituir as leis desse local e, assim, vincular-se à justiça. Por meio das normas e pela educação se criarão atos justos, bem como homens justos.
3. Considerações Finais
Aristóteles foi um fundamental pensador do século IV a.C., da Grécia. Suas ideias, oriundas dos conceitos advindos de seus antecessores, em especial Pitágoras, Sócrates e Platão, em muito influenciaram e ainda influenciam a humanidade, em diversas construções acerca do saber. Foi um estudioso de diversas áreas, tendo desenvolvido seu trabalho com alunos, como Alexandre, o Grande, e no Liceu, sua escola de filósofos, os peripatéticos.
A época em que o grego viveu, a Democracia ressurgia em Atenas, após ter perdido a Guerra do Peloponeso e viver o Governo dos 30 Tiranos. Em que pese certa desconfiança com a Democracia (a que chamavam de República), pois tirara a vida de Sócrates, o filósofo acredita em sua metodologia de funcionamento.
Seu estudo sobre a justiça relaciona-se com a maneira como os governos são compostos, o tipo de governo de cada Estado (ou cidade-Estado) e os valores que são, consequentemente, apregoados por esse Governo. Em suas obras, examina a Aristocracia, Oligarquia, Tirania, Monarquia, Democracia e República. Considera a República a melhor forma de governo. Aparentemente, opõe-se à Democracia. Contudo, falava, em verdade, da Demagogia. Ao defender a República, descreve um sistema democrático de governo, em que os cidadãos diretamente decidem o futuro do Estado, por meio de Assembleias e o voto.
Pelo contexto político e social em que está situado, Aristóteles aprofundou a reviravolta do pensamento filosófico já iniciada por Sócrates e Platão, que deu fim à etapa centrada na reflexão cosmológica e inaugurou o período antropológico. As leis não vinham mais de deuses, mas são feitas pelo homem para o homem. Tal deslocamento do pensar fundou diversos alicerces de notável importância para o florescer das conceituações do Grego, que atravessaria séculos na influência teórica.
Ao contrário de Platão, Aristóteles não tinha a intenção de formar cidadãos para assumirem a política. Objetivava formar pensadores, verdadeiros filósofos que apenas indiretamente viessem a fomentar as discussões assembleares.
Para chegar à justiça, o filósofo pesquisa as instituições do Estado e sua prática, bem como as interações entre os cidadãos e outros componentes da cidade. Diante disso, perquire-se sobre o que quer o homem, chegando à resposta que seria a felicidade. Não imagina que é possível chegar-se à felicidade sendo um eremita, vivendo longe da cidade, pois é por meio da interação entre as pessoas que o ser humano poderá atingir suas potencialidades. Aduz não ser possível viver sozinho, longe da sociedade, pois o homem é um ser social, um ser político, necessitando do convívio com os demais para se realizar enquanto pessoa.
Logo, definiu que haveria a necessidade de convivência social, dentro da polis, ou seja, em uma sociedade politicamente organizada, passando a apontar quais critérios devem ser seguidos em um Estado para essa realização do todo e de suas partes constituintes, os indivíduos.
A polis se organizava por meio de leis, criadas pelos governantes e pelos cidadãos conjuntamente na praça pública. Essas leis deveriam mirar no bem comum, ao que é melhor para todos, pois é a virtude a ser desenvolvida e valorizada em uma comunidade política. A justiça vai, portanto, se observar a partir da criação da legislação e de sua obediência, dentro da lógica de que as leis são criadas por governantes que objetivam o bem de todos e a melhor condução do Estado.
De se mencionar que Aristóteles entende, como acima foi mencionado, que a legislação deriva da racionalidade, não sendo oriunda dos deuses ou de abstrações metafísicas. Portanto, de acordo com a vontade racional dos sujeitos que a concebe, poderá levar à ordem do corpo político. Tais leis que intentam o bem comum e a utilidade de todos são consideradas justas, devendo ser cumpridas.
A justiça vincula-se com a ética, vista como a virtude maior por excelência, virtude geral, acima das demais virtudes, pois traduzia a ética privada e a pública, concebidas com um mesmo fenômeno, sendo, assim, o objetivo maior do Estado.
Estuda a justiça não como uma abstração, algo teórico, mas como prática, como ações humanas. Examina, assim, para definir ações justas ou injustas, o resultado e a voluntariedade de tais condutas humanas.
Entende justiça de uma forma mais geral, chamada de universal, como aquela correspondente à obediência à lei, já presumida que esta é justa e boa. Nessa linha, agir justamente seria agir em consonância com a legislação.
De outra banda, aponta a existência da justiça particular, onde estariam a distributiva e a corretiva.
Na distributiva, a relação é verticalizada. Trata-se do vínculo entre o indivíduo e o Estado, pois este vai distribuir os bens de acordo com o mérito de cada um. A divisão ocorrerá equitativamente, conforme os méritos existentes. A igualdade, nesse ponto, adquire importância, mas, observe-se, Atenas era um local com grandes desigualdades, havendo cidadãos, metecos (estrangeiros), escravos e mulheres, que não eram consideradas cidadãs. A igualdade, aqui apregoada, dava-se dentro das divisões sociais existentes, e, é claro, pelo mérito havido. A justiça recairia sempre no meio, como algo matemático, inspirada em Pitágoras.
A justiça corretiva é horizontalizada, pois importa a análise das relações entre as pessoas. Nessa forma, a subjetividade do mérito perde espaço à objetividade, e a matemática terá maior evidência.
Busca-se o equilíbrio que fora quebrado pelo ato de injustiça operado, em retornar ao status quo ante. Quem aplica a justiça corretiva é o juiz, que tenta encontrar a igualdade anteriormente existente entre as partes em conflito.
É muito interessante observar que Aristóteles, na análise da justiça, em especial da corretiva comutativa, já prevê fundamentos que até hoje são utilizados na teoria do Direito Penal. Nesse sentido, frise-se a ideia da voluntariedade na conduta do agente ou sujeito ativo. Examinando casos concretos, distingue um ato involuntário como alguém usar a mão de outrem para a prática de algo contra a lei como não podendo ser considerado um ato injusto, por faltar voluntariedade daquele que executou o ato.
Em Ética a Nicômaco, faz estudo minucioso sobre o que seria um ato voluntário e um involuntário, usando-se de muitos exemplos para tanto.
A pesquisa acerca das concepções de justiça em Aristóteles se mostra muito atual. É fascinante perceber que há mais de dois mil e trezentos anos já se pensava o agir humano de forma tão atual. As bases do conhecimento criadas por Aristóteles de fato podem auxiliar a compreender o que é humano na atualidade, seu comportamento, do que se espera dele no convívio social e sua relação com a sociedade e com o outro.