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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.35 no.1 Lisboa fev. 2019

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v35i1.12137 

ESTUDOS ORIGINAIS

Prescrição de terapêutica anticoagulante por médicos de medicina geral e familiar e especialidades hospitalares, em utentes com fibrilhação flutter auricular de quatro Unidades de Saúde Familiar do distrito do Porto

Anticoagulant therapy prescription by family physicians and hospital medical consultants, in patients with atrial fibrillation/flutter enrolled in four Primary Health Care Units in the Porto district

João Pedro Vieira Antunes,1 Jorge Gonçalves,2 Ana Rodrigues,3 Sara Ferreira,4 Sofia Rodrigues,5 David Penas6

1 USF Brás Oleiro, ACeS Grande Porto II - Gondomar.

2 USF Portas do Sol, ULS Matosinhos.

3 USF Horizonte, ULS Matosinhos.

4 USF Infesta, ULS Matosinhos.

5 USF Novo Sentido, ACeS Grande Porto VI - Porto Oriental.

6 USF Portas do Sol, ULS Matosinhos.

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

Objetivo principal: Avaliar se a prescrição de anticoagulação oral (ACO) varia significativamente entre as especialidades responsáveis pelo diagnóstico de fibrilhação/flutter auricular (FA/FLA).

Objetivos específicos: Avaliar se a especialidade responsável pelo diagnóstico de FA/FLA é a especialidade responsável pela prescrição de ACO; analisar o tempo decorrido entre o diagnóstico de FA/FLA e a prescrição de anticoagulação.

Tipo de estudo: Observacional, retrospetivo e analítico.

Local do estudo: Quatro Unidades de Saúde Familiar (USF) localizadas no distrito do Porto.

População: Utentes com idade igual ou superior a 18 anos, com diagnóstico inaugural de FA/FLA efetuado entre janeiro de 2010 e dezembro de 2015.

Material e métodos: Identificação de todos os utentes da população e colheita das variáveis demográficas e clínicas de interesse para o estudo. Realizada uma regressão logística múltipla de modo a avaliar se a prescrição de ACO varia de forma significativa entre as especialidades responsáveis pelo diagnóstico. A concordância entre a especialidade que diagnosticou FA/FLA e a especialidade que prescreveu ACO foi avaliada através de coeficiente de concordância kappa. O tempo decorrido entre o diagnóstico e a prescrição correspondeu ao período de tempo, em dias, decorrido entre a data do primeiro registo ou codificação de FA/FLA e o momento da primeira prescrição de ACO.

Resultados: Incluídos 606 doentes: 60,6% mulheres, idade média 75,1 anos. Entre os diagnósticos de FA/FLA, 45,7% foram efetuados por medicina geral e familiar (MGF). Não foram encontradas diferenças significativas na prescrição de ACO entre MGF e as especialidades hospitalares de cardiologia (OR=2,14; IC95% 0,74-6,12; p=0,157) e medicina interna (OR=0,67; IC95% 0,40-1,11; p=0,123). O número reduzido de casos de FA/FLA diagnosticados por neurologia não permitiu estabelecer qualquer comparação conclusiva entre MGF e esta especialidade. Registou-se boa concordância entre a especialidade que diagnostica FA/FLA e a que prescreve ACO (kappa=0,740 e p<0,001). O tempo decorrido entre o diagnóstico de FA/FLA e a instituição de ACO foi significativamente superior (p<0,001) em doentes diagnosticados por MGF (mediana de 15,0 dias) em comparação com cardiologia e medicina interna (medianas de 0,0 e 3,0 dias, respetivamente).

Conclusão: Ao contrário de estudos internacionais, este estudo demonstrou que há grande concordância entre a especialidade responsável pelo diagnóstico de FA e a especialidade que prescreve a anticoagulação. Os médicos de família (MF) demoram, no entanto, mais tempo a prescrever anticoagulação. Será importante estabelecer estratégias que permitam ao MF prescrever a anticoagulação de forma mais célere, aproveitando, se possível, o momento do diagnóstico.

Palavras-chave: Fibrilhação auricular; Flutter auricular; Anticoagulação; Cuidados de saúde primários; Cuidados de saúde secundários.


 

ABSTRACT

Main purpose: To evaluate if the prescription of oral anticoagulants (OAC) varies significantly among the specialties responsible for the diagnosis of atrial fibrillation/auricular flutter (AF/AFL).

Specific purposes: To evaluate if the specialty responsible for the diagnosis of AF/AFL is the specialty responsible for the prescription of OAC; to analyse the time elapsed between the diagnosis of AF/AFL and the prescription of OAC.

Study: Observational, retrospective, and analytical.

Place: Four Family Health Units (FHU).

Target population: Users aged 18 years old or over, with a new-onset diagnosis of AF/AFL performed between 01/01/2010 and 31/12/2015.

Material and methods: Identification of all users and collection of demographic and clinical variables of interest for the study. Multivariate logistic regression was performed in order to evaluate whether the prescription of OAC varies significantly among the specialties responsible for the diagnosis. The agreement between the specialty that diagnosed AF/AFL and the specialty that prescribed OAC was evaluated through the kappa concordance coefficient. The time elapsed between diagnosis and prescription corresponded to the period of time between the date of the first registration or coding of AF/AFL and the moment of the first prescription of OAC, in days.

Results: 606 patients were included: 60.6% women, mean age 75.1 years. Amongst AF/AFL diagnoses, 45.7% were performed by general and family medicine specialists (GFM). There were no significant differences in the prescription of OAC between GFM and cardiology (OR=2.14; 95% CI 0.74-6.12, p=0.157) and internal medicine specialists (OR=0.67; 95%CI 0.40-1.11, p=0.123). The small number of cases of AF/AFL cases diagnosed by neurology did not allow any conclusive comparison between this specialty and FGM. There was good agreement between the specialty diagnosing AF/AFL and the one prescribing OAC (kappa=0.740 and p<0.001). The time elapsed between the diagnosis of AF/AFL and the start of OAC was significantly higher (p<0.001) in patients diagnosed by FGM specialists (median 15.0 days), compared to cardiology and internal medicine consultants (median 0.0 and 3.0 days, respectively).

Conclusion: Contrarily to international studies, this study demonstrated that there is great agreement between the specialty responsible for the diagnosis of AF/AFL and the specialty that prescribes anticoagulation. Family doctors, however, take longer to prescribe anticoagulation. It will be important to establish strategies that allow FGM specialists to prescribe anticoagulation more timely, and if possible, at the time of diagnosis.

Keywords: Atrial fibrillation; Atrial flutter; Anticoagulants; Primary health care; Secondary care centers.


 

Introdução

A fibrilhação auricular (FA) é a arritmia sustentada mais frequente na prática clínica, constituindo uma causa importante de morbi-mortalidade. Em Portugal, a prevalência é de cerca de 2,5% na população geral, aumentando progressivamente com a idade: 6,6% no grupo etário dos 70-79 anos e 10,4% no grupo com 80 ou mais anos.1-2 Vários estudos têm demonstrado o benefício da instituição de terapêutica anticoagulante na prevenção do acidente vascular cerebral (AVC) em doentes com FA. Desde 2010, com a publicação das orientações da European Society of Cardiology (ESC), a estratificação do risco de AVC tem sido efetuada com recurso à pontuação do CHA2DS2-VASc, permitindo identificar os doentes com «verdadeiro baixo-risco» (doentes com menos de 65 anos e FA isolada).2-3 A evidência da prevenção do AVC com antiagregantes plaquetários é fraca, com riscos hemorrágicos semelhantes aos anticoagulantes orais.4-5 A ESC recomenda a instituição de anticoagulação oral (ACO), com antagonistas da vitamina K (AVK) ou com anticoagulantes orais não antagonistas da vitamina K (NOACs), nos doentes com diagnóstico de FA ou flutter auricular (FLA) que apresentem o score CHA2DS2-VASc superior ou igual a 2. Aconselha ainda a instituição de ACO quando o score CHA2DS2-VASc é igual a 1 (com exceção de mulheres com menos de 65 anos e FA/FLA isolado).2 A ACO pode associar-se a um aumento do risco hemorrágico. A partir do HAS-BLED pode ser estimado esse risco e identificar causas corrigíveis de hemorragia.2,4

Estudos internacionais demonstraram que a prescrição de ACO em doentes com FA varia consoante a especialidade médica responsável pelo diagnóstico,6-7 o que se traduz em riscos diferentes para os doentes, sejam estes trombóticos ou hemorrágicos. O médico de família (MF) tem um papel importante no diagnóstico e orientação do doente com FA, uma vez que, em Portugal, é responsável pela deteção de cerca de 22% dos casos.1 Ainda que a decisão relativa ao controlo de ritmo/frequência possa ser gerida em conjunto com os cuidados hospitalares, a decisão da anticoagulação pode e deve ser tomada pelo MF, tão precocemente quanto possível. Estudos europeus têm documentado resistência, por parte dos MF, na adesão às orientações internacionais, nomeadamente na introdução de ACO em doentes com FA e critérios de risco de AVC.8-11 Um estudo realizado em Portugal, em 2014, numa população de 940 doentes com FA demonstrou que apenas 57% dos doentes com risco elevado se apresentavam sob ACO e que 63% dos que se encontravam medicados não teriam indicação para o fazer.12 De salientar, no entanto, as evidências recentes de que a comercialização dos NOACs se tem associado a um aumento das prescrições de ACO.13

Na presente investigação estudou-se a população de utentes com idade igual ou superior a 18 anos, com diagnóstico inaugural de FA/FLA efetuado entre janeiro de 2010 e dezembro de 2015. Pretende-se avaliar se a prescrição de ACO varia significativamente entre as especialidades responsáveis pelo diagnóstico de FA/FLA. Contabilizou-se a prescrição, ou ausência de prescrição, independentemente do tipo de ACO (dicumarínicos ou NOAC).

Como objetivos específicos, procurou-se: avaliar se a especialidade responsável pelo diagnóstico de FA/FLA é a especialidade responsável pela prescrição de ACO; analisar o tempo decorrido entre o diagnóstico de FA/FLA e a prescrição de anticoagulação.

Material e métodos

Este estudo observacional, retrospetivo e analítico foi realizado nas USF Porta do Sol e USF Infesta (ULS de Matosinhos), USF Brás Oleiro (ACeS Gondomar) e USF Novo Sentido (ACeS Porto Oriental).

A população-alvo incluiu os indivíduos com idade igual ou superior a 18 anos com diagnóstico inaugural de FA/FLA efetuado entre janeiro de 2010 e dezembro de 2015, inscritos nas USF identificadas. A população foi obtida a partir da plataforma Módulo de Informação e Monitorização das Unidades Funcionais (MIM@UF®), selecionando os utentes inscritos a quem tinha sido atribuída a codificação K78 (fibrilhação/flutter auricular) ou K79 (taquicardia paroxística) ou K80 (arritmia cardíaca NE) da Classificação Internacional de Cuidados Primários - 2ª edição (ICPC-2) na sua lista de problemas. A seleção dos utentes com os códigos K79 e K80 na fase inicial relacionou-se com a eventualidade de haver utentes com FA/FLA codificados incorretamente. Seguidamente foram excluídos os que não tinham o diagnóstico específico de FA/FLA objetivado em texto livre ou codificação nos programas SClínicoCSP®, Plataforma de Dados da Saúde® e Processo Clínico Eletrónico®. No caso de o diagnóstico ou tratamento ter sido realizado em meio hospitalar, consideraram-se apenas os hospitais públicos da área de referenciação das USF: Hospital Pedro Hispano (USF Porta do Sol e Infesta), Centro Hospitalar do Porto (USF Brás Oleiro) e Centro Hospitalar São João (USF Novo Sentido). Foram excluídos todos os utentes em que não foi identificada a especialidade responsável pelo diagnóstico de FA, utentes sob terapêutica anticoagulante prévia ao momento do diagnóstico e utentes com FA/FLA diagnosticada noutras instituições de saúde além das incluídas.

Foram recolhidas as seguintes variáveis: idade, género, USF, especialidades responsáveis pelo diagnóstico de FA e pela prescrição de terapêutica anticoagulante, datas de diagnóstico de FA e de prescrição de terapêutica anticoagulante e tempo decorrido (em dias) entre o diagnóstico e a prescrição de ACO. Considerou-se a data de diagnóstico como a data da primeira codificação ou registo em texto livre de FA/FLA e a data de prescrição como a data da primeira prescrição de ACO. Não foram analisados, da parte dos investigadores, os eletrocardiogramas individuais dos utentes. Colheram-se ainda as variáveis do CHA2DS2-VASc e HAS-BLED,14-15 à data do diagnóstico e à data de prescrição de ACO. Calcularam-se posteriormente os respetivos scores e, quando disponíveis, as pontuações registadas no processo clínico.

As variáveis foram inseridas numa base de dados em IBM SPSS Statistics for Windows® v. 23. As variáveis quantitativas foram resumidas através da mediana e amplitude interquartil e as variáveis qualitativas através de frequências absolutas (n) e relativas (%).

Inicialmente foi feita a caracterização dos utentes com FA/FLA segundo as USF e segundo as especialidades responsáveis pelo diagnóstico. Seguidamente foram efetuadas análises entre os grupos de utentes de cada USF e entre os grupos de utentes de cada especialidade de diagnóstico. Estas análises foram feitas no sentido de selecionar as variáveis que teriam interesse em inserir no modelo de regressão logística múltipla. Apenas as variáveis que apresentaram diferenças significativas entre os grupos foram inseridas nesse modelo. Utilizaram-se os testes de Kruskal-Wallis para as variáveis quantitativas e os testes de Qui-quadrado ou de Fisher para as variáveis qualitativas. As comparações múltiplas entre os grupos foram efetuadas com recurso ao teste de Bonferroni.

De modo a testar a hipótese de que a prescrição de ACO é influenciada pela especialidade responsável pelo diagnóstico de FA/FLA realizou-se uma regressão logística univariada, cuja variável independente foi a especialidade responsável pelo diagnóstico de FA/FLA e a variável dependente a existência ou não de prescrição anticoagulante. Foi realizada seguidamente uma regressão logística múltipla ajustada para as pontuações do CHA2DS2-VASc e HAS-BLED e para as variáveis que demonstraram diferenças estatisticamente significativas nas análises grupais. Obtiveram-se os odds ratio (OR) e os respetivos intervalos de confiança a 95%.

A concordância entre a especialidade que diagnostica e a especialidade que prescreve foi avaliada através do coeficiente de concordância kappa.

Foram considerados significativos valores de p<0,05.

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS

Foi garantida a confidencialidade dos dados dos utentes envolvidos no estudo, tendo sido concedido parecer favorável da Comissão de Ética.

Resultados

A população inicial abrangeu um total de 1.868 utentes. De entre os 584 utentes selecionados a partir da codificação K79 (taquicardia paroxística) ou K80 (arritmia cardíaca NE), 15 foram incluídos por apresentarem registos de FA/FLA em texto livre. Dos 1.284 utentes selecionados a partir da codificação K78 (fibrilhação/flutter auricular) foram excluídos: 25 utentes com diagnóstico incorretamente registado, três com idade inferior a 18 anos; 439 com o diagnóstico efetuado antes do ano de 2010; 12 sem qualquer registo; 80 por desconhecimento da especialidade responsável pelo diagnóstico; 39 por já estarem medicados com ACO no momento do diagnóstico e 95 por serem seguidos em instituições não contempladas no estudo. Foram, assim, incluídos 606 utentes (Figura 1).

 

 

A população estudada englobou 367 mulheres (60,6%) e a média de idades foi de 75,1 anos. A USF Porta do Sol foi a mais representada, com 30,4% das FA da população obtida. Seguiram-se a USF Brás Oleiro (24,9%), USF Novo Sentido (24,4%) e USF Infesta (20,3%) (Quadro I).

 

 

Do total de doentes estudados, 97,6% apresentavam uma pontuação de CHA2DS2-VASc igual ou superior a 1 e 70,8% pontuavam com um valor inferior a 3 no HAS-BLED. O número de doentes com HAS-BLED ≥ 3 na USF Novo Sentido [n=55 (37,2%)] foi significativamente superior (p=0,012) ao da USF Brás Oleiro [n=29 (19,2%)].

No que respeita à prescrição de anticoagulantes, 76,7% encontrava-se medicado com ACO, tendo existido diferenças entre unidades: o número de doentes anticoagulados inscritos nas USF Brás Oleiro e USF Novo Sentido [n=131 (86,8%) e n=131 (88,5), respetivamente] foi significativamente superior (p<0,001) aos das USF Porta do Sol [n=112 (69,9%)] e USF Infesta [n=91 (74%)]. Verificou-se ainda que o número de dias mediano decorrido entre o diagnóstico e a prescrição de anticoagulação nos doentes inscritos nas USF Porta do Sol (21,0) e USF Infesta (14,0) foi significativamente superior (p<0,001) ao da USF Brás Oleiro (0,0) e USF Novo Sentido (0,0).

Considerando a distribuição dos doentes por especialidades responsáveis pelo diagnóstico, constatou-se que a maioria dos doentes foi diagnosticada pela medicina geral e familiar (MGF) (45,7%) e pela medicina interna (28,7%), seguida de cardiologia (8,6%) e neurologia (1,5%) (Quadro II). Em cerca de 15% dos casos o diagnóstico foi efetuado por médicos sem especialidade ou de especialidades com um pequeno número de diagnósticos, motivo pelo qual esses doentes não foram considerados nas análises de grupo.

 

 

A distribuição por género não teve diferenças estatisticamente significativas entre especialidades, ao contrário da distribuição por idade, com a neurologia a apresentar uma população significativamente mais envelhecida (idade mediana de 83 anos, p=0,033).

A pontuação de CHA2DS2-VASc não apresentou diferenças significativas entre especialidades. Já no que respeita ao HAS-BLED, o risco hemorrágico foi significativamente superior nos doentes diagnosticados por neurologia (88,9%).

Quando analisados os dados relativos à anticoagulação, não foram encontradas diferenças entre as especialidades hospitalares e a MGF. Apenas o número de doentes anticoagulados quando a especialidade de diagnóstico foi a cardiologia foi significativamente superior ao número de doentes anticoagulados quando a especialidade de diagnóstico foi a medicina interna.

O tempo decorrido entre o diagnóstico e a instituição de ACO foi significativamente superior em doentes diagnosticados por MGF (mediana de 15,0 dias) em comparação com cardiologia e medicina interna (medianas de 0,0 e 3,0 dias, respetivamente).

A concordância entre a especialidade que diagnosticou FA/FLA e a especialidade que prescreveu ACO foi avaliada através de coeficiente de concordância kappa (Quadro III). Dada a existência de protocolos de referenciação para anticoagulação por imunohemoterapia em algumas das instituições abrangidas, as prescrições da especialidade de imunohemoterapia foram agregadas às prescrições das outras especialidades. Verificou-se uma boa concordância entre a especialidade que diagnostica e a especialidade que prescreve (kappa=0,740 e p<0,001). De facto, 86,6% dos doentes diagnosticados por MGF foram anticoagulados pela própria especialidade ou por imunohemoterapia.

 

 

Os resultados da regressão logística múltipla estão representados no Quadro IV. Neste modelo, o doente a quem é prescrita anticoagulação é considerado «anticoagulado», quer a anticoagulação tenha sido efetuada pela especialidade que diagnosticou quer por outra especialidade. De acordo com os resultados obtidos, a variável «especialidade de diagnóstico» não tem influência na existência de anticoagulação, mesmo quando se ajusta o modelo para as variáveis USF, idade, CHA2DS2-VASc e HAS-BLED. No entanto, o número reduzido de casos diagnosticados por neurologia não foi suficiente para permitir o cálculo do OR. O modelo encontra-se bem ajustado, segundo os valores de significância de Hosmer-Lemeshow e percentagem global.

 

 

Discussão

No presente estudo foi demonstrada grande concordância entre a especialidade responsável pelo diagnóstico de FA/FLA e a especialidade que prescreve a anticoagulação: o médico que efetua o diagnóstico é, regra geral, o mesmo que prescreve a anticoagulação. A concordância verificou-se quer com os MF, quer com as especialidades de cardiologia, medicina interna e neurologia. Este resultado contraria alguns estudos europeus que demonstraram resistência dos MF em introduzir anticoagulação após o diagnóstico de FA/FLA8-11 e contraria o estudo americano de Turakhia e colaboradores, que demonstrou que a especialidade que diagnostica a FA influencia a decisão de anticoagular ou não.7

Quando se analisou se os doentes diagnosticados com FA/FLA são ou não anticoagulados independentemente da especialidade prescritora (como, por exemplo, o MF diagnostica e referencia a uma especialidade) continuam a não registar-se diferenças significativas: ou seja, os doentes acabam por ser medicados, seja na própria especialidade que diagnostica seja noutra especialidade.

Por outro lado, verificaram-se algumas diferenças entre as USF onde o diagnóstico de FA é efetuado. Os doentes das USF Porta do Sol e Infesta foram menos anticoagulados do que os das USF Brás Oleiro e Novo Sentido. Ainda que estes dados devam ser interpretados com cautela, poderão refletir diferenças de anticoagulação entre as equipas médicas de diferentes USF, bem como diferenças de anticoagulação entre profissionais da mesma USF. Contudo, seriam necessários estudos adicionais para esclarecimento deste achado.

O tempo entre o diagnóstico e a prescrição de anticoagulação foi maior quando o diagnóstico foi efetuado pelo MF. Isto poder-se-á dever ao facto de, nos cuidados de saúde primários (CSP), o diagnóstico e seguimento dos doentes com FA ser efetuado em ambulatório: o MF poderá ter a necessidade de pedir estudos adicionais antes da prescrição de anticoagulação, de pedir aconselhamento a outras especialidades relativamente à indicação e segurança da anticoagulação ou mesmo referenciar os utentes. Constatou-se que as USF da ULS de Matosinhos apresentaram maior mediana de tempo diagnóstico-anticoagulação do que as outras USF abrangidas, o que poderá ser explicado pela frequente referenciação a imunohemoterapia naquela ULS para início de anticoagulação.

Como limitações do estudo apontam-se: a população estudada foi a de cada USF, não representando da melhor forma os utentes cujo diagnóstico foi efetuado pelas especialidades hospitalares; o número de doentes diagnosticados nas especialidades de cardiologia e de neurologia, ou a quem foi prescrita anticoagulação por estas especialidades, foi relativamente pequeno; e a colheita de dados a partir de dados informáticos, que esteve sujeita a vieses de registo.

Conclusão

Ao contrário de estudos internacionais, este estudo demonstrou a existência de grande concordância entre a especialidade responsável pelo diagnóstico de FA e a especialidade que prescreve a anticoagulação. A concordância verifica-se quer com os MF quer com as especialidades hospitalares.

O tempo decorrido entre o diagnóstico e a introdução de anticoagulação é, no entanto, maior quando o diagnóstico é efetuado pelo MF. Neste sentido, será importante estabelecer estratégias que permitam ao MF prescrever a anticoagulação, se indicada, de forma mais célere, aproveitando, se possível, o momento do diagnóstico.

Os doentes da ULS a quem foi diagnosticada FA apresentaram menor probabilidade de ser anticoagulados e maior mediana de tempo decorrido entre o diagnóstico e a introdução de anticoagulação.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

E-mail: joaopeantunes@gmail.com

 

AGRADECIMENTOS

A Vera Vicente pelo apoio na análise estatística.

 

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram não possuir qualquer tipo de conflitos de interesse.

 

FINANCIAMENTOS

Os autores declaram não ter recebido qualquer financiamento para a realização do estudo.

 

Recebido em 05-07-2017

Aceite para publicação em 11-12-2018

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