1. Da difusão à confusão
A resistência articula e organiza a renovação dos discursos, que é onde se joga a ação comunicativa. Os espaços públicos organizam-se segundo esferas de mediação, com eficácia, ora modernista (a difusão), ora pós-industrial (a interação em rede). Entre um modo de significação e o outro, há um mesmo ardil: esconde-se a reprodução do poder, disfarçando-se de conforto, de consumo, de estilo de vida contemporâneo. A sedução é brilhante, as imagens são diferentes, apropriadas, possuídas. As imagens aderem aos consumidores como a sua pele e substituem-na, num mimetismo de virtualização da identidade. O processo é de fetichização da mercadoria, tal como Marx o descreveu. Os dispositivos tornam-se equivalentes ao tempo de vida, a carga do smartphone é uma metáfora da vitalidade, da comunicação, da vitalidade (Charréu, 2012; Queiroz, 2018).
2. O Corpo Metalizado
No cenário de uma comodificação inteira, em que o corpo se quer metalizado, semelhante a outros, na eternidade do ecrã, há espaço e muito caminho para uma interrogação fundamental: nunca houve tanto que fazer no campo das perguntas, na constatação dos absurdos, no questionamento da educação, da vida consumida, do pacote de experiências (Viladomiu Canela, 2018; Barachini, 2018; Venzon, 2018; Zanatta, 2018). A dúvida toma conta da totalidade da casca social: a superestrutura é agora mais oca, mais digital, feita linhas de código, complexas, mas que correspondem às mais triviais publicações, caixas de comentários, bots, falsas notícias, spam, memes imediatos e vídeos virais. Como viver a sério, como ter uma relação directa com os outros quando todos outros estão já mediatizados, quando a sua pele está carcomida e substituída pela pele OLED sempre brilhante e luminosa.
3. O Bom Consumidor
A realidade parece agora oferecer-se em dois ou três portais, que organizam os perfis, selecionam as afinidades, monetizaram o relacionamento, facilitam e valorizam o avatar, o eu substituto, sempre bem, viajante, bom consumidor, e sempre em ação. O avatar não dorme, o avatar tem de se mostrar, e organiza as atividades do seu humano, totalmente domesticado numa nova vida de sempre cheia de notificações e com muitos seguidores.
4. Qual o teu estado?
O desafio pode ser o de encontrar relações reais, emancipadas, verdadeiras, mas escasseiam os interlocutores, pois estão distraídos a verificar o seu "estado."
Aqui percebem-se algumas propostas que exigem a participação insubstituível e a relação com a natureza, como Jorge Menna Barreto (Rauscher, 2018). Também se pesquisam as identidades fundas, meio indígenas, meio caboclas (Nascimento, 2018), e percebe-se uma busca original pelo primordial, verdadeiro, autêntico, não reproduzido, em primeira pessoa.
5. Os Seguidores
Na armada virtual, interroga-se cada vez mais o papel das artes, ontem plásticas, hoje apenas visuais, pelo sim, pelo não. Talvez as propostas de uma crítica permanente sejam desiguais, e a demanda por uma educação de cidadãos críticos esteja com problemas difíceis. Parece haver uma ruptura geracional: a nova geração não tem livros, consome para a foto no "insta", de há meia hora, e persegue os mais fracos pela supressão de seguidores, por não dar "vista" no WhatsApp.
6. Arte e Pedagogias Críticas
A reação pelas pedagogias críticas pode ser um caminho a trilhar, pelo artista, pelo agente artístico. A proposta pedagógica da Cultura Visual propõe a formação de subjetividades críticas, e tem em Fernando Hernández, da Universidade de Barcelona, propostas talvez atentas e informadas. A perspetiva crítica e desconstrutora oferece novas possibilidades para projetos de intervenção. São pedagogias críticas, construcionistas (Efland, 2002; Eisner, 2004), que alargam a sua base de sentido dentro de uma renovação procurada neste contexto de capitalismo virtualizado: o espetáculo oferece todos seus espetadores, aderentes e dependentes (Hernández, 2000).
7. Estúdio: invisibilidades
É entre invisibilidades inquietas que se lançam os artigos reunidos neste número 28 da Revista Estúdio.
Almerinda da Silva Lopes (Vitória, Espírito Santo, Brasil) no artigo "A pintura metafórica e paradoxal de João Câmara e o insólito jogo do visível" debate as obras de João Câmara (n. 1944, Pernambuco) com especial destaque para as duas pinturas digitais, denominadas 'Comédia Parisiense' (2O17) e 'Pedro Sonha' (2018). Através delas são referidos dois acontecimentos traumáticos da história político-social brasileira, e a autora estabelece paralelos com outros episódios da História brasileira, como o "Baile da Ilha Fiscal", a 9 de novembro de 1889, no Rio de Janeiro, oferecido pela família Real a 550 convidados, no castelo da Ilha Fiscal, que culminou com a queda do Império e o exílio Real. As camadas de sentido são sobrepostas com oportunidade e alguma erudição, mercê da justaposição das referências artísticas e históricas na motivação crítica e satírica.
O artigo "Expansión espacial en el (Selfi) de Darya Von Berner" de Iratxe Hernández Simal (Bilbau, Espanha) aborda a instalação intitulada (Selfi) de 2016 na antiga câmara frigorífica do Matadero de Madrid, inserida no projeto 'Abierto por Obras,' de Darya von Berner (n. 1960, México) artista radicada em Madrid. O espelho desafia o espectador a repetir a monomania dos tempos recentes, a selfie, num ambiente onírico e algo hiperbólico, um espaço de ressonância lúdica e infinita.
Armando Jorge Caseirão (Lisboa, Portugal) no artigo "Blaufuks & Molder contra o império das selfies: Auto retrato, auto representações e selfies no universo da fotografia" traz uma reflexão sobre as intervenções na linguagem fotográfica de Jorge Molder e de Daniel Blaufuks, fotógrafos de génese argêntica que questionam, cada um a seu modo, os tempos da imediatez e do desaparecimento das provas fotográficas, através de percursos em que o auto-retrato foi explorado de modo sombrio e algo premonitório sobre um anoitecer da fotografia e da modernidade.
O artigo "La fascinación por lo oculto en la pintura figurativa actual: el caso de Alain Urrutia" de Sheila Rodríguez & Javier Garcerá (Málaga, España) apresentam a obra pictórica de Alain Urrutia (n. 1981, Bilbao), especialmente a série 'Tierra y cemento (Sentarse y esperar),' serie negra de ressonâncias históricas, oníricas e uncanny. Num pastiche consciente, Friedrich ressurge agora como destroços de betão armado, os panejamentos escondem possíveis corpos que já não são divinos, mas que já o foram.
Ariane Daniela Cole (São Paulo, Brasil) no artigo "O Sólido e o Etéreo na Obra de Sérgio Niculitcheff" debruça-se sobre a obra de Niculitcheff (n. 1960, São Paulo) que apresenta objetos quase pop numa atmosfera grandiosa de deslocamento semântico e cromático a par com um lirismo que se aproxima de alguma poesia pictórica e transvarguardista.
O artigo "A Arte de Roberto Evangelista: Uma Ritualística na Floresta Amazônica" de Orlando Maneschy (Belém, Pará, Brasil) & Sávio Luis Stoco (São Paulo, Brasil) apresenta as intervenções de Roberto Evangelista (n. 1946, radicado em Manaus), vídeo-artista que salienta relações entre arte, ecologia e transcendência, em busca de uma essencialidade e de uma reconciliação profunda, natural e simbólica, convocando também as identidades das culturas populares, ou a permanência dos crimes da história no processo de dominação territorial.
Ana Lesnovski (Curitiba, Paraná, Brasil) no artigo "Souke, de Kennia Passos: a arte como pesquisa e o método como criação" debruça-se sobre a mediação eletrónica através de dispositivos vestíveis e sensíveis às proximidades e às relações. A obra Souke, de 2018, corresponde a um trabalho que utiliza uma costura eletrónica - linha condutora, diodos (leds) e uma placa Arduino Lilypad - para traduzir uma aproximação do corpo a uma sensitividade biónica e vestível.
O artigo "Discursos artísticos de Rui Mourão vis-à-vis noções indígenas: o corpo-manifesto no diálogo multicultural" de Letícia Larin Platzeck Senra (Lisboa, Portugal) coloca em questão os discursos coloniais e os seus dispositivos narrativos. No projeto de Filipa Cordeiro (n. 1988, Portugal) e Rui Mourão (n. 1977, Portugal), 'O Tempo das Huacas,' entrecruza-se a musealização etnográfica e arqueológica do começo do século XX e o confronto com a crítica e a defesa identitária que constitui um dos assuntos pós-coloniais. Os contextos da apresentação ameríndia são cenicamente ora valorizados ora desvalorizados, numa fábula de exageros e de vazios despojados, aqui repensados coo um guia alternativo à coleção Chancay do Museu Arqueológico do Carmo, onde são expostas múmias conservadas e integrais em vitrines. Provoca-se um diálogo com artistas ameríndios contemporâneos e constrói-se um novo discurso para uma leitura descentrada, um guia não oficial do Museu do Carmo, em Lisboa.
Joaquim Cantalozella (Barcelona, Espanha) no artigo "Jonathan Millán: la intimidad sobreexpuesta, ejercicios artísticos de exterioridad" apresentam a singular abordagem de Jonathan Millán (n. 1988, Colômbia) onde o mundo da arte é tomado como assunto para o discurso, dentro de uma aproximação irónica, mas desapaixonada. É exemplo a obra «Reproducción a escala 1:2,773 del momento en mi inauguración en que Quim me dijo: «Creo que con tu trabajo tratas de protegerte»" (2016), onde se reencena de modo tridimensional e hiper-realista, o momento vago e informal em que o artista no espaço da galeria um pouco alternativa recebe uma crítica de outro artista. Tudo é reproduzido em escala miniatural, escadas, paredes, corpos, roupas, cabelos, pinturas na parede. A metalinguagem debruça-se sobre as contingências ideológicas e irónicas dos restos modernistas do cubo branco, onde o mínimo pode ser máximo e o máximo pode ser também insignificante.
O artigo "Instalações Comestíveis de Marisa Benjamim" de Teresa Palma Rodrigues (Lisboa, Portugal) apresenta a aproximação de Marisa Benjamim (n. 1981, Portugal) À utilização das flores na alimentação, explorando vertentes culturais e antropológicas, assim como as assume como proposta estética performativa e relacional. As performances e instalações comestíveis interrogam a liberdade profunda de uma relação conflituante entre o indivíduo e a natureza.
Oscar Padilla (Barcelona, Espanha), no artigo "Paradojas y desplazamientos: fricciones en los objetos de Luis Bisbe" aborda a obra de Luis Bisbe (n. 1965, Málaga, Espanha). Abrem-se buracos nas paredes do museu descobrindo-se as suas estruturas de apoio, cablagem, fusíveis, quadros técnicos, estruturas de segurança, objectos operacionais, escadotes. Depois da curatorial turn de Harald Szeemann, nos anos 80, abre-se o caminho para a integração de uma auto-curadoria nos discursos artísticos, num aprofundamento da meta-linguagem do Museu e do Centro de Arte.
O artigo "Las semillas del olvido de Luis Marco" de Joaquín Escuder (Teruel, Espanha) apresenta o trabalho do espanhol Luis Marco Burillo (n. 1953, Zaragoza, Espanha) que reinterpreta as obras realizadas pelo seu pai sob a doença de Alzheimer. A pintura, o desenho e a escrita assumem um brutalismo de desespero e de serenidade: na doença do esquecimento a arte proporciona uma âncora de ajuda escrita e pintada.
Mário Linhares (Lisboa, Portugal) no artigo "Nuno Branco, um padre jesuíta que desenha" apresenta o trabalho gráfico de Nuno Branco (n. 1977, Portugal) arquiteto e padre jesuíta. Apresentam-se os desenhos realizados durante três dias na zona de Ourém revelando-se uma reflexão gráfica e contemplativa que parte de textos bíblicos e outros. No desafio do não descritível ancora-se o significado, adensa-se a expressão, para se arriscar uma outra e nova comunicação.
O artigo "SELF-HELP de Maia Horta: a autorrepresentação como dispositivo de empoderamento e autodefinição" de Cecília Corujo (Lisboa, Portugal) introduz o trabalho de Maia Horta (n. 1974, Timor, Portugal) e a sua série de autorretratos "SELF-HELP" (2014-2016). Aponta-se, na sua diversidade e variedade, uma apropriação crítica da representação unidimensional sujeito feminino nas redes sociais: é uma representação de uma hegemonia iconográfica contemporânea, construída de resistências, e ao mesmo tempo denunciadora do poder que se reproduz rente aos novos quotidianos. As mulheres de Maia Horta são seres sozinhos, mas ameaçados pelos olhares e pelas exposições omnipresentes.
Raquel Sampaio Alberti (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil) no artigo "José Patrício e seus jogos infinitos" aborda a plasticidade modular de José Patrício (n. 1960, Recife, Brasil) que tem explora como material as peças de dominó, apresentando um silêncio longo profundo e cifrado no seu trabalho.
O artigo "Lo que queda por ver: silencio, demora y renuncia en la obra de Javier Garcerá (2008-2018)" de Ana Esther Santamaría (Madrid, Espanha) & Sheila Rodríguez (Málaga, Espanha) debruça-se sobre o universo plástico de Javier Garcerá (n. 1967, Espanha), a propósito da sua exposição de 2016 'Que no cabe en la cabeza,' ou de suas séries anteriores, como 'Si el ojo nunca duerme' (2011-2012). É uma obra intertextual, ancorada em referencialidades literárias e artísticas.
8. A invisibilidade globalizada
Nunca como agora se conviveu com tanta invisibilidade, e talvez nunca também como agora os espectadores menos valorizaram as imagens: tomada com um valor leve, evocativo, as imagens não são dramáticas, são quase gratuitas: muito baratas, omnipresentes, coloridas, retocadas, perfeitas, atraentes o suficiente para uma atenção menor, mais ou menos instantânea. Parece que as próprias imagens se preocupam em não ser demasiado interessantes, demasiado profundas, para não perturbar a economia da circulação das restantes imagens. As imagens parecem dar lugar uma s ás outras num entendimento auto-regulado. Cada imagem é menos valorizada, perde a sua verdade testemunhal, ou indexical, para ocupar o lugar da ficção do mentiroso da aldeia. Ao mesmo tempo a imagem, aceite no seu valor micro, ou nano, é monetizada, transformada em liquidez, numa espécie de feitiçaria atualizada: são os nativos que consomem, e mais pagam, pelas imagens cada vez mais visíveis, e por isso invisíveis.