A oposição à política feminista e às políticas de equidade de gênero não é algo novo. Contudo, o atual cenário de crescimento de espaço político de expressões conservadoras, populistas, da direita radical, da extrema direita e de fundamentalismo religioso no mundo tem elegido o gênero como um de seus principais alvos. Isso exacerba a necessidade de a academia olhar para o problema social da oposição. No sentido de contribuir para pesquisas futuras com este foco, a cientista política Mieke Verloo editou o livro Varieties of Opposition to Gender Equality in Europe. Verloo é uma das dez pessoas mais citadas no Google Scholar na temática de Estudos de Gênero e, entre seus onze trabalhos mais citados, estão seus três capítulos neste livro. Ela aponta que um dos objetivos desta obra é equipar as pessoas que lutam pelas pautas de gênero para o combate às novas e complexas dinâmicas da oposição, sejam elas explícitas e violentas ou menos visíveis, com efeitos igualmente nocivos, mobilizadas por uma grande diversidade de agentes, institucionais ou não.
Neste livro dividido em três partes, a autora apresenta teorias (pp. 1-54), casos recentes resultantes da análise empírica de pesquisadoras/es de diversos países (pp. 55-212) e desafios para melhor entender, avaliar e abordar a oposição (pp. 213-230). O contributo acadêmico e político do livro está em fornecer rotas de ação contra a oposição e os perigos de retrocesso através de caminhos eficazes (estratégias, ferramentas e técnicas) com potencial para mais progresso com base em teorizações sobre a interação entre agência e estrutura. Isto está representado na definição de oposição à equidade de gênero+ como “qualquer atividade na qual uma perspectiva oposta à política feminista e às políticas de equidade de gênero+ é articulada de uma maneira que se pode esperar que influencie ou esteja realmente influenciando a política ou a formulação de políticas em qualquer estágio” (p. 6)1.
Esta definição (introdução, pp. 3-18) é a espinha dorsal do livro e desenha um resumo das críticas e contribuições às teorias escolhidas como base da argumentação proposta nos capítulos 2 e 3. Ela traz uma visão mais ampla dos conceitos usualmente mobilizados e enfatiza o desafio e a necessidade de se combinar nas análises conceitos teóricos com pesquisas empíricas que levem em conta a interseccionalidade nas estratégias e dinâmicas da oposição. Por isso a escolha de utilizar o termo gênero+, para reforçar a interseccionalidade em suas políticas, bem como na política feminista que é “entrelaçada e engajada com outras desigualdades estruturais que moldam a desigualdade de gênero” (p. 7)2.
Nessa perspectiva, no capítulo 2 (pp. 19-37), Conny Roggeband apresenta a teoria dos movimentos sociais e elenca a dinâmica entre movimentos e contramovimentos para explicar os ganhos e perdas do feminismo. Ela salienta que não devemos negligenciar nuances importantes relacionadas à multiplicidade e formas menos palpáveis ou formalizadas de ação, tanto dos movimentos de mulheres e feministas quanto de suas oposições. Por isso, destaca que as oposições não são formadas apenas pelos grupos clássicos com poder político, que se sentem ameaçados pelas mudanças propostas e que de maneira intencional ou não têm interesse na permanência da desigualdade de gênero (partidos de direita e as elites conservadoras, religiosas e econômicas). Não podemos assumir os inimigos como “dados adquiridos” na luta pela manutenção do status quo e suas posições de poder, pois a oposição pode vir também de instituições governamentais, agentes individuais ou coletivos (mulheres conservadoras, movimentos de homens e pais, etc.) e até de “fogo amigo” - aliados/as que podem ver o feminismo como uma pauta disputando com seus interesses, algo “ultrapassado” ou um ataque ao Estado e ao capitalismo (p. 31).
Entre os efeitos da oposição, ela aponta como principal a possibilidade de os movimentos saírem de uma posição proativa e se colocarem em uma defensiva ou reativa para preservar ganhos anteriores. Isso faz com que deixem de ocupar e ser protagonistas de espaços anteriormente usados para promover as suas reivindicações. Esse e outros efeitos, aliados à ascensão de ações da oposição que usam de ameaças e violência contra organizações feministas e suas componentes, fazem com que haja uma desradicalização dos movimentos feministas - que passam a assumir posturas “mais cuidadosas” e algumas feministas passam a “censurar-se”, evitando falar em eventos públicos e na mídia com medo da violência e/ou de repercussões pessoais (p. 33). Esses efeitos podem ser pensados em analogia à teoria da espiral do silêncio de Elisabeth Noelle-Neumann (1995).
No capítulo 3 (pp. 38-54), Verloo apresenta emendas aos conceitos da teoria da complexidade social com foco nos estudos de Sylvia Walby. Esta teoria institucionalista estrutural fornece uma forma de analisar as dinâmicas e a complexidade de mudanças sociais e políticas de diferentes regimes ao olhar para a agência e as interações de várias pessoas em diferentes domínios (economia, política, violência, cultura, catexia e episteme). Ao focar os regimes de gênero (públicos e domésticos) e outros que interagem com ele (sexualidade, raça, etc.), ela destaca que as oposições precisam ser entendidas como dinâmicas, interseccionais e com interações entre agência e estruturas, mecanismos materiais e discursivos e com o contexto das sociedades analisadas.
A pluralidade e diferenças contextuais (foco, conteúdo e estratégia) ao longo do tempo e em diferentes espaços precisam ser levadas em conta nas análises. Principalmente porque identificam pontos de inflexão na trajetória de uma política (emergência, força ou resiliência), a velocidade de sua tramitação (loops de feedback negativos ou positivos) e a sua dependência de arranjos sociais anteriores fortemente ligados à qualidade da democracia. Ou seja, os estudos das ações da oposição devem olhar para as especificidades das sociedades, seus contextos (social, político e histórico), oportunidades e legados políticos e de formulação de políticas.
Esses apontamentos teóricos estão presentes nos capítulos empíricos, mas fazer um resumo deles parece até ingênuo diante do trabalho feito com maestria por Verloo, tanto na introdução quanto na parte final (capítulo 12, pp. 213-230), de levantamento dos contributos das pesquisas, suas relações com os conceitos teóricos e as lacunas que ainda precisam ser levadas em consideração. Nesse sentido, destaco abaixo alguns pontos que acredito que não podem ser desassociados e merecem atenção especial.
O primeiro é a importância de se olhar para as diversas interações nas dinâmicas de oposição, principalmente porque ela é multifacetada e ganha força na relação entre ações intencionais, não-decisões e em outras formas de inação de pessoas da oposição enquanto motores que podem ou não estar relacionados com estruturas. É necessária uma visão mais ampla tanto dos/as players que influenciam a política, quanto de suas ações, que podem ser diferentes em cada estágio dos processos. Além disso, o Estado pode sofrer influências da estrutura de oportunidades e restrições políticas aliadas à promoção de valores tradicionais pela direita ou pelas religiões. Essas influências acentuam as desigualdades entre movimentos feministas e oposição, que tem posição privilegiada na sociedade patriarcal, maior acesso e mobilização de recursos e estruturas, e que pode se tornar mais forte e eficaz quando forma redes e alianças, unindo atores institucionais e organizações da sociedade civil, intra ou entre países, como mostra o exemplo do debate da lei do aborto na Macedônia (Ana Miškovska Kajevska, capítulo 11, pp. 195-212).
Em específico, nas oposições diretas, a violência é uma de suas expressões que precisa ser vista como estrutural. Deve-se analisar essa reação do patriarcado, que busca manter a opressão, silenciamento e desempoderamento de mulheres, bem como suas consequências, e fazer proposições de soluções relevantes de resistência, produção e prevenção nos níveis sociais, institucionais e individuais nas esferas pública, privada e online (Sofia Strid, capítulo 4, pp. 55-76).
Quanto às oposições indiretas, é necessário entender que elas são uma característica enraizada e/ou “tolerada” em práticas políticas de instituições, partidos e personagens que têm a equidade de gênero+ como “valor incontestável”. Este é o caso da União Europeia, que impede progressos e gera brechas para as pessoas renunciarem às suas tarefas através da inércia, evasão e/ou degradação (Petra Ahrens, capítulo 5, pp. 77-97). O mesmo acontece nos julgamentos do seu Tribunal de Justiça, assentes em perspectivas restritivas, regressivas e estereotipadas causando obstruções legalistas (Elisabeth Holzleithner, capítulo 8, pp. 135-153).
O segundo destaque está na carência de análises que tenham uma compreensão mais complexa e multidimensional do sucesso da oposição para além de mudanças legais, como sua capacidade de mobilizar manifestações, a mídia e se tornar fonte e referência (David Paternotte, capítulo 9, pp. 154-171), e como estes sucessos estão associados ao uso de argumentos e seus enquadramentos nas lutas por dominação discursiva ou simbólica. Portanto, para as estratégias de reação à retórica da oposição, é essencial a análise da interação e relação simbiótica entre movimentos e oposição de forma longitudinal para propor reenquadramentos (Andrea Krizsán e Raluca Maria Popa, capítulo 6, pp. 98-116) e a integração da interseccionalidade como forma de reverter a lógica dos seus argumentos e de seus veto players (Christina Bergqvist, Elin Bjarnegård e Pär Zetterberg, capítulo 7, pp. 117-134).
Por fim, por mais que o foco do livro seja a Europa, diferentemente de Verloo, acredito que as conclusões possam ser vistas de maneira abrangente e generalizante. Como pesquisadora dos movimentos antigênero, entendo que os apontamentos do livro podem e devem ser aplicados e ampliados para estudos de outras regiões e contextos. Principalmente porque as características elencadas por ela para o declínio das questões de gênero na Europa têm sido percebidas ao redor do mundo. É ponto pacífico que o movimento antigênero é transnacional e marca o enfraquecimento da democracia que facilita e fortalece a oposição. É também evidente que este processo tem sido gerado pelo fortalecimento de religiões organizadas e pelo crescimento do neoliberalismo e das direitas, que têm restringido os espaços de atuação da sociedade civil e aumentado as desigualdades e violências de gênero, classe, raça e outras.
Nesse sentido, espero que este livro inspire mais pessoas a agregar em suas investigações esses desafios apresentados com análises que fujam de um viés progressista e etnocêntrico (Niels Spierings, capítulo 10, pp. 172-194). São necessárias pesquisas que pensem nas características comuns da oposição transnacional ao gênero sem esquecer as peculiaridades dos contextos sociais estruturantes e interdependentes dos países e das circunstâncias nas quais ocorrem mobilizações, gerando arranjos únicos de oportunidades para que a oposição cresça e ganhe apoio. E também investigações que, ao focar as oposições e os fatores que a viabilizam e fortalecem, possam sugerir e apontar caminhos de reação com análises efetivamente interseccionais.