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Medicina Interna
versão impressa ISSN 0872-671X
Medicina Interna vol.23 no.4 Lisboa dez. 2016
PONTOS DE VISTA / POINTS OF VIEW
Clinical Research Bootcamp: Novas Formas de Aprender Investigação Clínica
Clinical Research Bootcamp: New Ways to Learn Clinical Research
Andreia Vilas-Boas1, João Firmino-Machado2,3
1Serviço de Medicina Interna, Hospital Pedro Hispano Unidade Local de Saúde de Matosinhos, Matosinhos, Portugal
2Unidade de Saúde Pública do ACeS Porto Ocidental, Porto, Portugal
3EPIUnit Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, Porto, Portugal
RESUMO
A investigação clínica assume um papel central no avanço médico e científico. A participação de jovens médicos nos estudos de investigação fica frequentemente comprometida quer pela multiplicidade de tarefas com que se deparam no quotidiano, quer pela escassez de formação direcionada às metodologias de investigação. O Clinical Research Bootcamp surge como uma tentativa de responder às necessidades reais dos jovens médicos que procuram aprender os princípios básicos da investigação clínica de forma concreta e pragmática. Estruturado de forma a guiar os formandos ao longo das várias etapas de planeamento, execução e comunicação científica de um estudo, este curso fornece uma visão integrada da investigação clínica.
Palavras-chave:Educação Médica; Investigação Biomédica
ABSTRACT
Clinical research is a major contributor to medical and scientific development. Young doctors frequently limit their participation in the clinical research setting due to their engagement in time consuming clinical issues, and due to the lack of proper education in research methodologies. Clinical Research Bootcamp was created to answer these questions and also to guide young doctors throughout the preparation of a clinical research study. This course helps young doctors to acquire practical skills that will motivate them to engage in research scenarios. Structured in order to guide the students throughout the various stages of planning, execution and scientific communication of a study, this course provides an integrated view of clinical research.
Keywords:Biomedical Research; Education, Medical.
O desafio de querer saber mais sobre a saúde e doença, bem como os seus determinantes, é natural da curiosidade do médico e torna inerente a nossa atitude de médico-investigador. Esta postura é galvanizada pelos currículos médicos que promovem a investigação como complemento da atividade assistencial, através da sua valorização na avaliação da especialidade ou progressão da carreira, mas também pelo reconhecimento em encontros científicos e estímulo de pares, sendo uma prática cada vez mais importante durante e após o processo de especialização dos médicos.
Apesar da atitude do médico-investigador ser indissociável da postura do clínico basta pensar nas etapas do raciocínio necessário para se chegar a um diagnóstico a investigação médica em Portugal continua a necessitar de um sério incentivo para o seu desenvolvimento. Parte deste problema prende-se no facto de os médicos não estarem treinados para lidar com as particularidades do raciocínio do investigador.
Aprender investigação clínica requer um ajuste na nossa forma de olhar os doentes e a Medicina que torne possível converter as nossas dúvidas clínicas em linguagem científica. Ainda que possa parecer intuitivo, o domínio desta linguagem é um dos pontos fulcrais no sucesso de um projeto de investigação e um dos primeiros passos do processo. A forma quase matemática como o pensamento de um cientista se organiza minimiza os erros de análise e interpretação de dados, e é fundamental para programar um estudo de forma objetiva. Este ajuste do pensamento não é complexo, mas requer ensino e treino.
Num mundo ideal, o contacto com a linguagem científica aconteceria ainda nos anos de formação pré-graduada. Vários estudos mostram que envolver os alunos do ensino superior em projetos de investigação original desenvolve o pensamento e um conjunto de competências distintas daquelas puramente clínicas mas que contribuem também para o nosso crescimento enquanto médicos.1 De facto, nas Universidades e Escolas médicas há já um esforço de incutir esta forma de pensar aos jovens médicos.
Num mundo ideal, todos os médicos teriam a possibilidade de integrar equipas de investigação e todos seriam conhecedores dos conceitos básicos de investigação clínica.
No mundo real, apenas uma pequena parte dos médicos participa ativamente em projetos de investigação.
A ideia do Clinical Research Bootcamp surge tentando responder às necessidades do mundo real, em que jovens médicos procuram aprender o A-B-C da investigação clínica num único curso. Esta iniciativa foi organizada por médicos internos, e decorreu na Secção Regional Norte da Ordem dos Médicos ao longo de sete dias. Ao contrário do formato mais convencional de um curso, os dias de formação foram distribuídos ao longo de dois meses, de forma a permitir uma aprendizagem passo a passo, garantindo consolidação dos conhecimentos adquiridos, bem como a sua aplicação em tempo real.
Ao longo do Bootcamp os formandos foram guiados pelas perguntas e dificuldades de quem quer começar a fazer investigação clínica como definir uma pergunta e objetivos de investigação, como escolher e aplicar um desenho de estudo, que questões éticas devem ser tidas em consideração, como realizar a análise de dados e finalmente como e onde comunicar os resultados obtidos.
A lógica de aprendizagem centrou-se na aquisição de competências capacitadoras do saber executar em contexto real, utilizando para o efeito problemas clínicos (problem-based learning). O programa foi estruturado de acordo com a cronologia de construção de um processo de investigação, dividido em seis fases Fig. 1.
No primeiro momento foram abordadas as técnicas de construção de uma pergunta de investigação, bem como o processo de definição de objetivos, segundo técnicas FINER (feasible, interesting, novel, ethical, relevant) e SMART (specific, measurable, achievable, relevant, time-bounded), respetivamente.2 A criação de perguntas originais, interessantes e aplicáveis pode parecer simples mas requer treino, sobretudo para um investigador menos experiente. Neste ponto é fundamental a discussão de ideias com mentores ou colegas mais experientes, uma boa revisão daquilo que já foi discutido na literatura e criatividade para identificar as falhas existentes no conhecimento atual.
Na segunda fase, foram abordados os principais desenhos de estudo: ensaio clínico, caso-controlo, coorte e transversal. Os formandos receberam ferramentas que permitem distinguir conceptualmente os tipos de estudo, mas foram também estimulados a desenhar estudos de investigação para responder a perguntas de clínicas reais, de forma a aplicarem os conceitos a situações concretas. Tentando demonstrar como a forma clara e objetiva da formular questões de investigação obedece a regras igualmente claras e objetivas, os formandos foram ainda treinados na aplicação da estratégia PICO (population, intervention, comparison, outcome). A estratégia PICO foi inicialmente introduzida em 1995 com o objetivo de simplificar as questões de investigação, tornando-as acessíveis a todos os leitores e contribuindo também para clarificar e organizar o trabalho do investigador.3
Estas duas primeiras etapas são fundamentais para que o jovem investigador defina uma boa pergunta de investigação, adequada ao tempo, recursos e energia investidos. Uma pergunta bem formulada e bem planeada é a chave para o sucesso do trabalho, da publicação e da divulgação científica, mas, paradoxalmente é a etapa na qual os clínicos despendem menos tempo.
A terceira fase envolveu compreender e discutir os princípios éticos mais importantes a considerar na investigação clínica, bem como uma análise dos processos de submissão de projetos à avaliação por comissões de ética, Administração Regional de Saúde e/ou Comissão Nacional de Proteção de Dados. As considerações e autorizações éticas são frequentemente esquecidas no processo de planeamento de um estudo e requerem tempo (muitas vezes longo) que deve ser despendido antes do início da colheita de dados clínicos. Estes pontos são desconsiderados sobretudo nos estudos não-experimentais, que tendemos a considerar inofensivos para o doente, mas que ainda assim implicam o uso de informação que pertence ao utente. Tentando clarificar os procedimentos a seguir e quais os projetos que devem ser alvo de cada uma das comissões os formandos tiveram a oportunidade de esclarecer todas as dúvidas com representantes de comissões de ética, da Administração Regional de Saúde e da Comissão Nacional de Proteção de Dados.
Na quarta fase foi realizada uma abordagem à medição em saúde, construção das bases de dados, bem como aos diferentes tipos de testes de análises estatística. Executar uma ideia de investigação implica também compreender de que forma podemos medir as exposições que são alvo de estudo, bem como o outcome com o qual pretendemos estabelecer associações. Além de noções básicas sobre escalas de medição de fenómenos em saúde, uma parte considerável do tempo foi dedicado à aplicação de testes em estatística, que continuam a constituir um entrave para os clínicos, tornando a análise de dados um processo moroso e complexo. Numa aprendizagem focada na aquisição de competências práticas, os formandos foram treinados a resolver problemas clínicos reais usando a visão da estatística. O foco incidiu na aplicação dos testes que qualquer médico deverá conhecer independentemente da área de especialização, seja com o propósito de aplicar à sua investigação clínica, seja para adquirir ferramentas para análise e interpretação de investigação clínica já publicada. Foram abordados os testes T independentes e emparelhados, a análise de variância (ANOVA), correlações lineares, qui-quadrado, modelos de regressão linear e logística e análises de sobrevivência (curvas de Kaplan Meier e regressão de Cox). A aprendizagem foi realizada com recurso a software de análise de dados SPSS e a resolução dos exercícios foi hands-on, exigindo a aplicação dos conhecimentos teóricos. As sessões foram estruturadas em cinco eixos: qual a pergunta clínica a ser respondida, de que forma deve ser organizada a base de dados, qual o teste(s) estatístico(s) que respondem à pergunta de investigação, como executar no SPSS o teste estatístico pretendido e por fim como interpretar e apresentar os resultados obtidos no software. A estatística fornece-nos um emaranhado de números e p-valores que requerem tempo e dedicação para converter em resultados coerentes e organizados ao ponto de serem comunicados, seja em congressos, seja como publicação. No Bootcamp os formandos foram desafiados com uma pergunta de investigação fictícia e uma base de dados que tiveram que analisar e procurar as respostas à pergunta. Este processo foi conduzido como trabalho de grupo, permitindo uma aplicação autónoma das competências adquiridas, bem como tomar consciência de dúvidas ao resolver novos desafios. Após a análise estatística o desafio seguinte foi analisar clinicamente os resultados e redigir algo semelhante a resultados cientificamente comunicáveis. Desta forma, puderam aplicar concomitantemente os conceitos aprendidos no âmbito da estatística mas também as competências de escrita científica. Este processo foi levado a cabo com a apresentação do raciocínio e respetiva análise de dados pelos formandos como forma de empowerment dos formandos, para que ocorresse partilha de dificuldades sentidas e soluções encontradas para um problema comum.
A etapa seguinte centrou-se na comunicação científica e em como escrever artigos de forma eficiente. A escrita científica é tão matemática e objetiva como o resto do processo de investigação. Se pensarmos num artigo científico como uma forma de comunicar de forma simples e direta os resultados que consideramos mais importantes no nosso estudo, conseguimos simplificar muito o processo de escrita. Além do recurso a exemplos práticos e concretos, os formandos foram desafiados a redigir um abstract a partir de um artigo real, de forma a treinarem quer a interpretação de resultados científicos, quer a seleção da informação mais relevante de um estudo.
A etapa final, como corolário de todos os pequenos passos de aprendizagem, consistiu na apresentação de um protocolo de investigação, que respondesse a uma pergunta clínica de relevo na área científica de cada participante (ou grupo de participantes) numa sessão denominada de Pitch Your Project. Nesta sessão todos os conceitos treinados ao longo do curso foram testados em simultâneo. Os projetos de investigação foram apresentados e discutidos com figuras de renome na investigação em Portugal, nomeadamente alguns responsáveis de revistas médicas portuguesas como a Revista da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, Revista Portuguesa de Cardiologia, Acta Reumatológica, Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, GE-Portuguese Journal of Gastroenterology. Estiveram igualmente presentes elementos do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, Sociedade Portuguesa de Cirurgia, Sociedade Portuguesa de Medicina Interna e Instituto Português de Oncologia do Porto. Esta sessão permitiu um contacto direto e troca de experiências com elementos de referência científica em várias áreas do conhecimento médico, constituindo uma oportunidade ímpar de aprendizagem e aperfeiçoamento de protocolos de investigação que podem e devem ser aplicados!
Após vários meses de trabalho e dois meses de sessões presenciais, o Bootcamp promete ter contribuído para incentivar os jovens médicos portugueses a fazerem mais e melhor investigação. A investigação é fundamental para o nosso crescimento científico a para contribuirmos para a prestação de melhores cuidados de saúde, o que é reconhecido não só pela comissão organizadora do evento, como pelas várias revistas médicas que o apoiaram, sociedades científicas ou organizações médicas como a Ordem dos Médicos, Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar, Sociedade Portuguesa de Cirurgia e Sociedade Portuguesa de Medicina Interna. No entanto, e apesar dessa opinião ser unânime (inclusive nos decisores em saúde) e de terem sido dados vários passos no sentido de melhorar, a investigação clínica em Portugal ainda se depara com vários entraves. Por um lado a formação médica tem ainda várias lacunas no que diz respeito à investigação clínica e sua capacidade translacional, por outro os incentivos à investigação têm que ser pensados e repensados, eventualmente com a alocação de tempo protegido à investigação durante o internato, que vá um pouco mais além do estatuto do interno doutorando, com a otimização da comunicação entre as instituições de saúde com maior componente académico e maior tradição de investigação com os centros de menores dimensões, mas com igual qualidade médica e científica, ou mesmo na disponibilidade de financiamento para a investigação clínica.1,4,5 Relativamente ao componente formativo, programas como o Clinical Research Bootcamp serão importantes para levar a investigação aos jovens médicos sobretudo pelo componente eminentemente prático e dirigido às dificuldades reais de quem dá os primeiros passos na investigação.
Referências
1. Sung NS, Crowley Jr. WF, Genel M, Salber P, Sandy L, Sherwood LM, et al. Central Challenges Facing the National Clinical Research Enterprise. J Am Med Assoc. 2003;289:1278-87. [ Links ]
2. Hulley S, Cummings S, Browner W et al. Designing clinical research 3ed. Philadelphia : Lippincott Williams and Wilkins; 2007. [ Links ]
3. Thabane L, Thomas T, Ye C, Paul J. Posing the research question: Not so simple. Can J Anesth. 2009;56:71-9. [ Links ]
4. Teo AR. The development of clinical research training: past history and current trends in the United States. Acad Med. 2009;84:433-8. [ Links ]
5. Lenfant C. Clinical research to clinical practice — lost in translation? N Engl J Med. 2003;349:868-74.
Correspondência: Andreia Vilas-Boas - andreiapvilasboas@gmail.com
Serviço de Medicina Interna, Hospital Pedro Hispano Unidade Local de Saúde de Matosinhos, Matosinhos, Portugal
Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho
Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo
Recebido:13.09.2016
Aceite:19.10.2016