1. Introdução
A linguagem e a comunicação são veículos através dos quais os indivíduos navegam na infância e na transição para as etapas seguintes, no contexto das suas experiências relacionais, educacionais e profissionais (Luft, 2017). Crianças surdas recorrem a uma língua diferente, que pode condicionar as suas interações comunicativas (Marschark et al., 2012).
De acordo com os últimos dados disponíveis na base de dados de Portugal Contemporâneo (PORDATA, 2011), existiam 84.172 indivíduos surdos no ano de 2015. Por sua vez, o relatório do Estado da Educação de 2018 refere que no ano letivo de 2016/2017 existiam 609 alunos surdos, dos quais 388 frequentavam Escolas de Referência Bilingue para Alunos Surdos (EREBAS) (Conselho Nacional de Educação, 2019).
A surdez é um conceito dinâmico que pode ser definido através de duas perspetivas diferentes: a perspetiva médica (Hawkins & Arbor, 2009) e a perspetiva linguística e cultural (Holcomb, 2013; Lane, 1992). Sob a perspetiva médica, são consideradas as caraterísticas sensoriais que afetam o sentido da audição e que a comunidade médica pretende resolver através de ajudas tecnológicas como próteses e implantes cocleares (Hawkins & Arbor, 2009). Sob a perspetiva linguística e cultural, são consideradas a língua e a cultura que integram o indivíduo surdo numa comunidade surda, face às suas diferenças biológicas (Holcomb, 2013; Lane, 1992).
A maioria dos pais das crianças surdas apresenta uma audição normal (85% a 95%) e não tem consciência das barreiras substanciais que existem para o estabelecimento de uma comunicação eficaz com os seus filhos (Hall et al., 2018). Desta forma, estas crianças passam menos tempo a interagir com os seus familiares ouvintes e mais tempo a brincar de forma solitária. Esta interação mais restrita pode interferir de forma negativa no seu desenvolvimento socioemocional, independentemente dos contextos educativos (Hintermair, 2006; Mekonnen et al., 2015), e, por conseguinte, nas relações que estabelecem com as pessoas que as rodeiam (Mekonnen et al., 2015). Estes obstáculos acarretam outros ao nível da expansão de uma língua natural – a língua gestual. Ainda que a arquitetura cerebral compreenda áreas específicas para a linguagem, crianças que não adquiriram, no período de maior sensibilidade neurológica, fluência e estruturas gramaticais mais complexas terão dificuldades acrescidas (Mineiro et al., 2014).
Vários estudos estabelecem diferenças entre crianças surdas e ouvintes e mostram-nos resultados que se complementam entre si. Por exemplo, os estudos de Cawthon et al. (2018) e de Stevenson et al. (2015) mostram que crianças surdas vivenciam experiências diferentes das crianças ouvintes ao nível da identidade, da comunicação, da educação, da cultura e das relações sociais. Ketelaar et al. (2015) referem que as crianças surdas apresentam uma maior dificuldade no reconhecimento das expressões faciais e na compreensão de conversas com colegas ouvintes, principalmente em ambientes mais ruidosos, como o recreio das escolas (Punch & Hyde, 2011). Mostram ainda dificuldade na manutenção de relações de amizade (Mekonnen et al., 2015), no pensamento alternativo, na descentração do seu querer (Johnson et al., 2018) e na aquisição de valores, conhecimentos e competências (Hall et al., 2018). Mekonnen et al. (2015), num estudo levado a cabo com crianças surdas e ouvintes em diferentes graus de ensino, mostraram que os problemas emocionais e comportamentais das crianças surdas têm um impacto maior na aprendizagem em sala de aula.
A educação e o ensino desta população trazem desafios acrescidos para os pais ouvintes, que relatam dificuldades em melhorar a comunicação, gerir a frustração, incentivar a socialização e melhorar a autoestima dos seus filhos (Wright, 2008). Torna-se, assim, fundamental promover estas e outras competências que ajudem as crianças surdas a enfrentar os diferentes desafios com que se deparam quotidianamente.
A resiliência pode definir-se como a capacidade de um sistema se adaptar com sucesso aos desafios que surgem ao longo da vida, em diferentes momentos e contextos (Masten & Barnes, 2018). É um processo dinâmico, desenvolvimental, interativo e multissistémico, que integra caraterísticas individuais e contextuais (Masten & Wright, 2010; Southwick et al., 2014; Ungar, 2012, 2018; Windle, 2011; Zimmerman & Brenner, 2010). As caraterísticas individuais relacionam-se com competências cognitivas, emocionais e relacionais (Wright et al., 2013). Por sua vez, as caraterísticas contextuais relacionam-se com os diferentes contextos em que a criança se insere, nomeadamente a família, através do apoio afetivo e das boas práticas parentais; a escola, através da promoção de fatores de resiliência; e a comunidade, através das oportunidades de participação nas atividades comunitárias (Wright et al., 2013). A este respeito, a Organização Mundial de Saúde (World Health Organization, 2017) sublinha que a resiliência compreende em si uma combinação de competências pessoais e sociais que permitem lidar com a adversidade e proteger a saúde e o bem-estar de cada indivíduo.
A literatura tem demonstrado que a promoção da resiliência na infância diminui o risco de diferentes problemas e perturbações que ocorrem na idade adulta, tais como ansiedade, dificuldade no controlo do impulso, ou abuso de substâncias (Kessler et al., 2007). Deste modo, fomentar competências de resiliência em idades precoces pode ser um fator protetor fundamental na prevenção de problemas variados, especialmente em contextos de maior adversidade.
2. Currículo Rescur: Caminhos Que Se Trilham Com Búsula
Nos últimos anos a literatura tem demonstrado o impacto positivo de vários programas preventivos focados na aquisição e promoção de competências socioemocionais e de resiliência em crianças e jovens (Dray et al., 2017; Durlak et al., 2011; Fenwick-Smith et al., 2018). A investigação realizada no âmbito de programas de Aprendizagem Socioemocional (ASE) e da promoção da resiliência enfatiza a necessidade de implementar programas de prevenção universal que envolvam a comunidade escolar (Collaborative for Academic, Social, and Emotional Learning [CASEL], 2015; Durlak et al., 2011; Greenberg et al., 2017; Osher et al., 2016; Ungar et al., 2019)
No caso particular das crianças surdas, uma revisão da literatura, que englobou estudos de 1990 a 2015 (Cawthon et al., 2018), mostrou que o campo de investigação está atualmente direcionado para a promoção de competências socioemocionais. Neste sentido, e apesar de escassos, destacamos alguns estudos relativos a programas de intervenção neste campo com crianças surdas. O programa de curta duração de Naeini e colaboradores (2013), realizado com 69 estudantes surdas em contexto escolar, mostrou uma melhoria significativa na autoimagem, competências socioemocionais, comunicação e ajuste escolar. Também Greenberg e Kusche (1998), numa implementação do currículo PATHS com crianças surdas, verificaram um aumento significativo das competências de resolução de problemas, compreensão emocional, desempenho cognitivo, comportamento, e das competências sociais. Um outro exemplo é o programa “The play breaks the silence mask”, que utiliza o jogo e o drama com o objetivo de promover os fatores associados à resiliência e que mostrou um aumento de estratégias de comunicação entre crianças surdas e ouvintes (Cernea et al., 2014).
Com o intuito de promover competências associadas à resiliência na infância, foi criado o Currículo Europeu para a Resiliência – RESCUR, desenvolvido no âmbito de um consórcio europeu (Cefai et al., 2014). O currículo RESCUR pode ser definido como um programa de caráter preventivo e universal, desenhado para ser implementado na escola por educadores e professores do pré-escolar ao 2.º ciclo (Cefai et al., 2014; Simões et al., 2016). Este currículo tem como objetivo a promoção e o desenvolvimento de competências cognitivas, sociais e emocionais, para capacitar as crianças não só na superação das adversidades, mas também no crescimento e prosperidade a nível académico, social e emocional (Cefai et al., 2014). Os resultados decorrentes de um estudo nacional que incluiu 1692 crianças dos 3 aos 17 anos de idade revelou que as crianças e jovens apresentavam melhorias em várias dimensões no plano individual e relacional, no contexto escolar e no contexto familiar, após a realização do programa (Simões et al., 2020). Apesar de os resultados serem mais expressivos nas idades precoces, estes parecem transversais aos vários grupos etários, de outros países parceiros do consórcio (Cavioni et al., 2018; Cefai et al., 2018; Matsopoulos et al., 2020). Contudo, este e outros programas semelhantes não foram ainda adaptados e aplicados a crianças e adolescentes surdos. Deste modo, permanece uma lacuna significativa de programas adaptados a esta população, com necessidades específicas ao nível da língua utilizada, da comunicação e das relações socioemocionais.
Por este motivo, este estudo procurou avaliar o impacto do RESCUR adaptado e implementado com crianças e adolescentes surdos, ao longo de 14 semanas, a partir das perspetivas dos alunos, respetivos pais e professores.
Para abranger um maior número de sujeitos e criar abordagens dinâmicas e interativas num contexto que pertence a todos – a escola –, o conceito de surdez utilizado ao longo deste estudo compreendeu ambas as perspetivas já descritas: a perspetiva médica e a perspetiva linguística e cultural. Este conceito não é abordado de forma monolítica e abrange não só o tipo de surdez, a identidade surda e a forma como o surdo utiliza a língua gestual, mas também a oralidade e as respostas tecnológicas que utiliza. É nesta interação de perspetivas que surgem os resultados deste estudo.
Constitui-se objetivo deste estudo: analisar o impacto da implementação do currículo RESCUR adaptado para crianças e adolescentes surdos, em contexto escolar e familiar, a partir das perceções dos alunos, dos respetivos pais e professores, em três escolas de referência para o ensino bilingue de alunos surdos do país.
3. Metodologia
3.1. Desenho
Neste estudo foi utilizada uma metodologia qualitativa e descritiva para aferir e analisar diferentes perspetivas acerca do impacto da adaptação e implementação do RESCUR. Desta forma, foram utilizados dois métodos diferenciados: grupo focal e entrevista. O primeiro foi utilizado com os alunos. O segundo foi utilizado com professores/educadores de cada uma das turmas, na modalidade de entrevista individual, e com os encarregados de educação, na modalidade de entrevista escrita.
Constituíram-se critérios de inclusão: crianças e adolescentes surdos, sem restrição de género e de nacionalidade, que integram uma das três escolas selecionadas, nas zonas norte, centro e sul de Portugal, respetivos pais e professores, sem qualquer tipo de restrição.
3.2. Participantes
Participaram neste estudo 37 alunos surdos, 19 dos quais eram do género feminino (51.4%) e apresentavam idades compreendidas entre os 3 e os 15 anos de idade (M = 9.21; DP = 3.06). O número de elementos por turma variou entre os dois e os 10 alunos. A Tabela 1 mostra as caraterísticas dos alunos da amostra deste estudo. Estes alunos eram de diferentes regiões de Portugal (norte, centro e sul) e frequentavam turmas bilingues para alunos surdos, usufruindo, por isso, de uma resposta educativa especializada, sendo a Língua Gestual Portuguesa (LGP) a primeira língua utilizada e a Língua Portuguesa (LP) a segunda língua utilizada. Desta forma, todos os alunos desta amostra sabiam comunicar em LGP. Contudo, nem todos os alunos utilizavam unicamente esta língua para o fazer. Alguns alunos oralizavam, gostavam de oralizar e preferiam estabelecer uma comunicação oralista, enquanto outros oralizavam, mas preferiam uma comunicação em LGP, e ainda outros não oralizavam, só comunicavam em LGP.
No estudo, participaram também 36 pais ouvintes (97.3%) e um surdo, representando um encarregado de educação por cada criança/adolescente. Destes, 75.68% eram de género feminino, mães dos alunos que integraram o estudo. A idade média destes participantes era de 39.60 anos. Relativamente ao nível de escolaridade, é de referir que 20.3% tinham habilitações de 1.º ciclo, 26.6% de 2.º ciclo, 29.5% de secundário e 23.6% de licenciatura.
Participaram ainda neste estudo, através de um trabalho colaborativo com a investigadora, duas educadoras e nove professores, sendo, destes: seis professores titulares de turma (cinco com especialização em educação especial), um diretor de turma, uma professora de educação especial e uma professora de apoio.
Deste universo, oito docentes lecionavam turmas bilingues de alunos surdos (72.73%) e os restantes lecionavam turmas regulares, com alunos surdos integrados. Salienta-se, ainda, que oito eram de género feminino (81.82%) e a média de idades era de 48.73 anos. Relativamente ao nível de escolaridade, 36.36% tinha licenciatura, 45.46% pós-graduação e 18.18% mestrado.
Na dinamização de sessões pontuais do pré-escolar e de 1.º ciclo, assim como na exploração de conceitos/vocabulário desconhecido para os alunos, foi estabelecida uma parceria com os docentes de LGP e terapeutas da fala de cada escola.
O presente estudo foi aprovado pela Comissão de Ética do Centro Académico de Medicina de Lisboa (Universidade de Lisboa), Portugal.
3.3 Instrumentos
A realização das entrevistas e dos grupos focais obedeceu a um conjunto de questões orientadoras. O guião dirigido aos grupos focais foi composto por oito perguntas abertas, relacionadas com o bem-estar e com as aprendizagens.
O guião de entrevista aos professores foi composto por 14 perguntas, das quais 12 eram abertas. Estas questões relacionavam-se com as adaptações realizadas, o impacto das atividades, o bem-estar e as aprendizagens adquiridas pelos alunos.
O guião de entrevista escrita dirigido aos pais foi composto por quatro questões abertas relacionadas com o impacto das atividades e com as aprendizagens adquiridas pelos alunos.
Os guiões utilizados com as três fontes encontram-se em apêndice.
3.4 Procedimentos
Os participantes deste estudo foram recrutados do pré-escolar e de escolas do 1.º, 2.º e 3.º ciclos, de três regiões diferentes do país (norte, centro e sul). O processo de recrutamento decorreu durante os anos letivos de 2016/2017 a 2018/2019.
Realizou-se uma reunião individual com cada uma das direções das escolas e, numa fase posterior, com os professores. De seguida, foi enviada uma carta aos encarregados de educação apresentando os objetivos deste estudo e um convite para uma reunião, a realizar-se na escola, com o intuito de lhes fornecer informações detalhadas sobre o projeto. Dos convocados, compareceram 67.6%. Aos restantes foi-lhes dada a mesma informação via telefone, pela investigadora.
Posteriormente, foram explicados aos alunos todos os procedimentos e informações relativos ao RESCUR.
Para a autorização deste estudo, os diretores das escolas e os pais envolvidos preencheram o documento de consentimento informado, livre e esclarecido. Os alunos a partir do 2.º ano de escolaridade preencheram o documento de assentimento informado, livre e esclarecido.
Durante 14 semanas os alunos participaram nas sessões adaptadas do RESCUR. O primeiro tema “Desenvolver Competências de Comunicação” contemplou os seguintes subtemas: Atenção eficaz; Compreender as emoções na comunicação; Comunicar ideias, negociação e cooperação; Expressar sentimentos; Defender-se a si mesmo; Resolução de conflitos assertiva. O segundo tema “Estabelecer e Manter Relações Saudáveis” integrou os seguintes subtemas: Fazer e ter amigos; Comportamento pró-social; Promover relações e clima escolar positivos; Partilha, cooperação e trabalho de equipa; Empatia; Comportamento ético e responsável.
Cada uma das sessões foi implementada com uma regularidade semanal e teve uma duração média de 90 minutos. As atividades de cada sessão foram desenvolvidas em duas línguas: LGP e LP, em todas as turmas, atendendo à preferência linguística de cada aluno. No pré-escolar e no 1.º ciclo, numa parceria entre a investigadora e o docente da turma. No 2.º ciclo, através da mediação de uma intérprete de LGP entre o investigador, o professor e os alunos. Este procedimento distinto para cada ciclo está relacionado com a organização de recursos humanos das escolas.
Cada sessão teve a estrutura do currículo RESCUR, com adaptações significativas. Salientam-se algumas relativas à estrutura de cada sessão:
As atividades de mindfulness passaram a focar-se nos sentidos da visão, tato, olfato e paladar;
Na apresentação das personagens, ao longo de todas as histórias, uma das personagens principais teve próteses ou implantes, com o intuito de promover uma maior identificação dos alunos com as personagens. A cada personagem atribuiu-se um nome gestual;
As histórias foram reduzidas e dramatizadas pelos professores e, posteriormente, pelos alunos, com o respetivo cenário e acessórios;
As estratégias de role-play tiveram sempre um lugar de destaque ao longo dos vários temas, para a exemplificação de situações variadas do quotidiano das crianças, permitindo que elas percebessem que diferentes atitudes/comportamentos têm por consequência diferentes respostas;
Alguns dos trabalhos de casa foram simplificados e adaptados ao contexto das crianças, de forma a que entendessem o pretendido e se identificassem com a atividade proposta.
Nas escolas situadas nas zonas centro e sul, o currículo adaptado foi desenvolvido em turmas bilingues de alunos surdos. Na escola situada na zona norte, o currículo adaptado foi promovido num contexto inclusivo, sendo já prática deste Agrupamento desenvolver atividades conjuntas com crianças surdas e ouvintes.
No final da implementação de cada um dos temas foram dinamizados grupos focais com os alunos. A avaliação foi realizada através das duas línguas, tal como a implementação do currículo. No pré-escolar e no 1.º ciclo, com a investigadora e a docente de turma; no segundo ciclo, com o apoio da intérprete de língua gestual. Os recursos materiais utilizados para a realização do grupo focal foram: a) uma sala de aula com as cadeiras dispostas em U, à semelhança das sessões de implementação do currículo, para que todos se conseguissem ver uns aos outros; b) guião do grupo focal; c) canetas e folhas de papel. A moderação foi realizada pela investigadora e teve o apoio das respetivas educadoras/professoras1. Cada uma das sessões teve uma duração de 90 minutos.
De seguida procedeu-se à realização de entrevistas individuais aos professores, no final da implementação de cada um dos temas. Cada entrevista teve uma duração média de 45 minutos. Os recursos materiais utilizados para a realização das entrevistas foram: a) uma sala; b) o guião de entrevista; c) canetas e folhas de papel; d) um gravador de voz.
Com os pais foi realizada uma entrevista escrita no final da implementação dos dois temas.
3.5 Análise De Dados
Para este estudo foi realizada uma análise temática (Braun & Clarke, 2006). Todas as respostas recolhidas através das entrevistas e dos grupos focais foram transcritas e posteriormente submetidas ao processo de codificação. Numa primeira fase, os autores realizaram várias leituras atentas das entrevistas transcritas com o intuito de recolher ideias-chave, através de palavras, expressões repetidas e ideias idênticas, identificando também potenciais temas. Numa segunda fase, identificaram os códigos, de forma independente. De seguida, reuniram, para debater os códigos identificados. Foi tida em consideração a diversidade dos códigos e, através destes, foram criados subtemas. Numa terceira fase, foram identificadas, citações congruentes com os subtemas abrangentes. Depois, em última análise, os temas foram reavaliados e foi feita a nomeação e definição dos mesmos. Deu-se, por fim, a escrita da análise realizada.
4. Resultados
Os resultados obtidos a partir das três fontes identificaram vários aspetos idênticos nas respostas analisadas (ver Figura 1). Pais, professores e alunos referiram que a adaptação e respetiva implementação do RESCUR teve um impacto positivo ao nível das aprendizagens nos temas sugeridos por este currículo, nomeadamente “Estabelecer e Manter Relações Saudáveis” e “Competências de Comunicação”. Estas aprendizagens promoveram outras, de forma indireta, tais como competências académicas. A implementação revelou também ser desencadeadora de bem-estar, a nível individual e social. Neste último, através da relação com a família e com os colegas. Pais e professores referem a importância das competências promovidas em crianças e adolescentes surdos, de forma a colmatar algumas das suas lacunas a nível comunicacional e relacional. Enfatizam a continuidade da adaptação e consequente implementação deste currículo, assim como a integração destas sessões num tempo definido, na mancha horária dos alunos, ao longo do ano letivo.
4.1. Bem-Estar
O bem-estar está relacionado com várias dimensões do indivíduo (física, psicológica e social). No presente estudo, esta categoria está subdividido em duas subcategorias: Bem-Estar Individual e Bem-Estar Social.
4.1.1 Bem-Estar Individual
O Bem-Estar Individual apresenta mais ênfase na dimensão psicológica. Esta dimensão integra as emoções positivas, a perceção de felicidade, o otimismo, a satisfação com a vida e o equilíbrio emocional.
Neste campo, os alunos referiram que estas aulas lhes transmitiram calma, felicidade, confiança e bons sentimentos, atribuindo principalmente esta satisfação às atividades de mindfulness. Nesta subcategoria, os termos mais frequentes foram: ‘calma’, ‘felicidade’ e ‘motivação’. “Eu agora sinto-me melhor, agora estou melhor” (aluno 20, 15 anos); “O mindfulness deixa as pessoas calmas e relaxadas” (aluno 17, 14 anos); “Estas aulas são importantes para a nossa vida, para o nosso futuro, para sermos felizes” (aluna 19, 12 anos); “Aprendi a ajudar, a respirar fundo quando estou nervosa ou chateada; quando respiramos ficamos mais calmos” (aluna 35, 9 anos).
Os professores enfatizaram a importância de os alunos aprenderem a acalmar-se sozinhos e de forma autónoma, para posterior utilização destas estratégias em diferentes situações e contextos. Explicaram que esta calma tem um impacto positivo nos alunos relativamente à concentração em sala de aula. Com exceção de um professor, todos referiram que foi possível observar a motivação, a curiosidade e o empenho dos alunos na realização das atividades propostas no âmbito deste projeto.
Nas primeiras vezes era difícil os alunos conseguirem acalmar-se, era muito difícil eles fecharem os olhos, porque estão a isolar-se completamente do mundo que os cerca, porque também não ouvem, e penso que neste momento, para além de já estarem a conseguir fazê-lo com muito mais facilidade, também já sentem essa necessidade. Eu também tenho feito todos os dias e, se me esqueço, são eles que me lembram. (professor 1)
Eu acho que é muito importante. Eu notei, depois, em situações fora da atividade, e mesmo quando tu já não estavas, que os alunos procuravam essas estratégias de mindfulness para relaxarem; principalmente o J., que é dos alunos mais difíceis a nível comportamental. Ele próprio respirava, fazia o relaxamento para se sentir bem. Eu acho que eles adoraram. (professor 3)
4.1.2 Bem-Estar Social
O Bem-Estar Social está associado às relações interpessoais vivenciadas em diferentes contextos. Neste artigo esta subcategoria está dividida em: Relação Com a Família; e Relação Com os Colegas.
4.1.2.1 Relação Com a Família
A Relação Com a Família é referida pelos alunos, pais e professores e está associada ao sentido de proximidade, diálogo, interação com a criança e envolvimento com a escola. Esta relação é construída através das propostas de trabalho enviadas para casa, para as crianças desenvolverem em conjunto com as suas respetivas famílias. Nesta subcategoria, as palavras/expressões mais frequentes foram: ‘ajudar’, ‘falar/conversar’, ‘vida’ e ‘partilhar’.
A maioria dos alunos referiu que os trabalhos de casa eram importantes para estar, dialogar, partilhar, interagir e serem ajudados pela família. Explicaram que, através deste diálogo e interação, conseguiam perceber acontecimentos relacionados com a vida deles e com a vida familiar. “Os trabalhos ajudam a estar com a família, a respeitar a família” (aluna 3, 6 anos); “É bom para haver uma partilha entre os pais, uma partilha sobre a vida deles e a minha” (aluno 18, 13 anos); “É um momento de carinho, onde falamos de coisas importantes” (aluno 34, 6 anos).
Dois alunos referiram que não consideram os trabalhos de casa importantes e um deles explicou que perturba os pais: “Acho que não é importante, porque os pais estão ocupados” (aluna 16, 15 anos).
Relativamente a este tema, os professores expuseram que as propostas realizadas em família constituíram uma forma de aproximação das famílias e uma oportunidade para os pais conhecerem melhor os seus filhos, as aprendizagens que realizam e o que pensam acerca de vários temas. “De ressaltar que todos os aspetos foram interessantes [na implementação deste currículo], mas o facto de os temas serem trabalhados na escola e em família proporcionaram um ambiente seguro para a criança. Hoje em dia é uma das mais-valias a escola e a família caminharem ‘juntas’ para ajudarem a criança a crescer mais forte emocionalmente” (professor 11).
Os pais mencionaram a reflexão sobre determinados temas de que raramente se fala, um maior conhecimento acerca dos seus filhos, a criação de uma ligação mais próxima entre pais e filhos: “Trabalhos muito interessantes! Têm sido assuntos que estimulam a reflexão da M. e a nossa, pais e irmãos” (pai 10); “Os trabalhos são ótimos, falamos de vários temas e é muito bom” (pai 12).
Três pais referiram que os trabalhos de casa eram difíceis de realizar por questões de tempo e/ou por questões relacionadas com a falta de vocabulário e a dificuldade de comunicação com a criança: “Para nós, família, os trabalhos de casa eram difíceis para fazer por causa das horas da escola e do transporte. Eu não entendo bem os jogos e as instruções” (mãe 13).
4.1.2.2 Relação Com os Colegas
A Relação Com os Colegas está associada à interação, afeto, proximidade, aceitação e ajuda que é estabelecida entre pares. Esta relação é menos consistente, quando comparada com a anterior, por haver um número inferior de respostas relativas ao tema.
A este nível, os alunos referiram o ‘estar juntos’, a ‘partilha’, a ‘aceitação das ideias’ dos colegas e a ‘afetividade’: “De estarmos juntos e de partilharmos as coisas que nos acontecem” (aluno 17, 14 anos); “De estar em grupo” (aluna 22, 15 anos); “Estas atividades dão amigos, carinho, e aprendemos a respeitar” (aluno 32, 10 anos).
Os professores afirmaram que a turma se tornou mais unida, gerando-se uma relação de amizade mais estreita e mais prestável: “O grupo tornou-se um grupo muito mais unido, mais coeso; e notou-se uma mudança de comportamento em alguns alunos, como, por exemplo, na ajuda mútua, em preocupar-se com o outro, no respeito pelo outro” (professor 7); “Os alunos mostraram-se mais amigos uns dos outros, mais prestáveis e até mais calmos” (professor 7).
4.2. Aprendizagens
Entende-se por aprendizagens todas as aquisições realizadas pelos alunos no âmbito do desenvolvimento deste currículo adaptado, nomeadamente: relacionais, emocionais, comunicacionais e académicas.
A categoria Aprendizagens está subdividida em duas subcategorias: Temas do Currículo e Competências Académicas.
4.2.1 Temas Do Currículo
O RESCUR está organizado em seis temas. Contudo, só fazem parte desta subcategoria dois temas, os que foram promovidos de forma explícita ao longo das sessões, nomeadamente: Desenvolver Competências de Comunicação; e Estabelecer e Manter Relações Saudáveis.
4.2.1.1 Desenvolver Competências de Comunicação
O tema Desenvolver Competências de Comunicação está subdividido em dois subtemas: Comunicação Eficaz e Assertividade.
A Comunicação Eficaz diz respeito à atenção eficaz, à compreensão de emoções na comunicação e à comunicação de ideias, cooperação e negociação. Nesta subcategoria as palavras/expressões mais frequentes foram: ‘comunicação’ e ‘expressão’.
Os alunos explicaram que foi importante perceberem as falhas na comunicação, aprenderem a observar as expressões nas outras pessoas e perceberem o que sentem quando elas comunicam: “Foi importante para mim perceber o impacto da expressão facial” (aluna 21, 15 anos); “Eu aprendi a estar com atenção, olhar para a pessoa quando estamos a falar com ela e conhecer os sentimentos” (aluna 24, 7 anos).
Os professores referiram que estas atividades dirigidas para a aquisição de competências conducentes a uma comunicação eficaz são fundamentais e permitiram desencadear aprendizagens significativas nos alunos: “São ferramentas que eles podem ter para resolver os problemas que vão surgindo ao longo da vida, do dia a dia” (professor 4); ”Este projeto deveria ter continuidade, é muito interessante o diálogo e a comunicação que promove entre todos” (pai 5).
A Assertividade implica a expressão de sentimentos e pensamentos de forma adequada, respeitando e reconhecendo os seus próprios direitos e os dos outros. Este subtema foi associado à expressão de sentimentos e necessidades, ao saber defender-se a si mesmo e à resolução de conflitos assertiva. Nesta subcategoria as palavras/expressões mais frequentes foram: ‘resolver problemas’, ‘expressão’ e ‘saber dizer não’. “Eu mudei, eu consigo expressar-me, dizer o que penso e o que sinto” (aluna 21, 15 anos); “A compreender que partes do corpo expressam os sentimentos” (aluna 28, 9 anos); “Aprendi a dizer ‘não’ quando não concordo com alguma coisa, mesmo que seja meu amigo” (aluna 19, 12 anos); “Que me posso sentir: feliz, zangada, triste e com medo” (aluna 26, 10 anos); “Que não se deve bater, gozar e obrigar a fazer a nossa vontade” (aluno 27, 11 anos).
Os professores e os pais referiram que notaram diferenças nos alunos ao nível da identificação de sentimentos, no pensar antes do agir de forma impulsiva e no cumprimento de regras: “Notei diferenças a nível da expressão de sentimentos” (professor 7); “Eu acho que houve uma assertividade maior dos alunos, ao longo do tempo” (professor 3); “A alteração comportamental mais visível foi no conseguirem expressar aquilo que estão a sentir” (professor 2); “Este programa ajuda as crianças a melhorar a sua maneira de ver as coisas, a sentirem-se bem, cumprindo regras” (mãe 6); “É importante para a comunicação entre uns com os outros, a estarem em sociedade e a expressarem as suas ideias” (mãe 8).
4.2.1.2 Estabelecer e Manter Relações Saudáveis
O tema Estabelecer e Manter Relações Saudáveis está subdividido em dois subtemas: Relações Saudáveis; e Cooperação, Empatia e Ética.
As Relações Saudáveis dizem respeito à conquista e à manutenção de relações de amizade, ao comportamento pró-social e à promoção de relações e clima escolar positivos. Neste subtema as palavras/expressões mais frequentes que surgiram foram: ‘ajudar’, ‘amigos’, ‘respeito’.
Os alunos referiram que aprenderam a respeitar a opinião dos outros, a ajudar, a confiar, a brincar, a abraçar e a estar junto dos amigos, a agradecer, a serem simpáticos e a aceitarem a opinião dos outros.
“Aprendi coisas sobre os amigos, por exemplo, a respeitar a opinião dos outros” (aluno 7, 11 anos); “A dizer aos amigos a minha ideia para os ajudar” (aluno 11, 10 anos); “Eu estou mais atenta, mais desperta para as outras pessoas” (aluna 15, 16 anos); “Aprendi que posso pedir ajuda à mãe, pai, avô, avó, tios e funcionários” (aluno 23, 7 anos); “Que é importante partilhar, aceitar as pessoas e ter calma” (aluna 29, 11 anos); “A conversar com os amigos” (aluna 30, 11 anos); “A agradecer” (aluna 12, 10 anos); “A ser carinhosa” (aluna 36, 10 anos).
Os professores e os pais referiram que conseguiram observar evolução nas crianças e adolescentes ao nível do respeito pelo outro, na demonstração de preocupação e em saber agradecer.
Eu notei uma evolução, em termos de preocupação, nos dois alunos surdos; a preocupação que eles têm para com os outros, nas relações que estabelecem; têm mais cuidado naquilo que pode ou não ferir/ magoar o outro. As mudanças que notei foram com os restantes alunos [ouvintes] e os restantes alunos para com eles. Eu acho que o interessante do projeto é mesmo esse, eles conseguirem neste contexto, surdos e ouvintes, trabalharem em conjunto, interagirem… Nota-se ali uma evolução, há uma sensibilidade diferente” (professor 9)
Como as crianças surdas têm dificuldade em comunicar com os outros, é importante que elas aprendam a conhecer-se a si próprias, saibam relacionar-se com os outros colegas, aprendam a pedir ajuda e a identificar os amigos. (professor 7)
Notei mais segurança em situações novas, em particular nas que envolvem pessoas que conheço mas com as quais ela não lida habitualmente. (mãe 1)
Notei algumas diferenças no comportamento dele, como, por exemplo, em saber dizer obrigada quando pede alguma coisa. (mãe 8)
O subtópico Cooperação, Empatia e Ética está relacionado com a cooperação, com o trabalho de equipa, a empatia e o comportamento ético e responsável. Neste subtema as palavras/expressões mais frequentes foram: ‘trabalhar em conjunto’, ‘sentimentos’, ‘pedir desculpa’, ‘regras’ e ‘grupo’.
Os alunos referiram que através destas atividades aprenderam a pedir desculpa, a perceber o significado e a importância das regras, a compreender o comportamento das outras pessoas, a trabalhar em conjunto, a mostrar que estão preocupados com os outros e a identificar as emoções nas outras pessoas. “Aprendi a ver/identificar sentimentos nas outras pessoas” (aluna 28, 9 anos); “Estas aulas apoiam-me, às vezes ajudam-me a perceber os sentimentos dos outros” (aluna 29, 11 anos); “Eu aprendi a perguntar: “Está tudo bem? Precisas de ajuda?” (aluno 15, 14 anos); “Aprendi a pedir desculpa” (aluno 37, 11 anos); “Aprendi que era importante as pessoas trabalharem juntas” (aluno 25, 8 anos) “Aprendi a não bater, a pedir desculpa, a agradecer; aprendi as regras e a não mentir” (aluno 7, 11 anos).
Os pais e os professores revelaram que notaram diferenças nas crianças e adolescentes em várias dimensões, nomeadamente: no reconhecimento dos erros, no respeito pelos outros, na interajuda, a saberem esperar e a aceitar a opinião dos outros. “Este currículo promove muitas aprendizagens, como, por exemplo, a serem mais pacientes, a saberem relacionar-se uns com os outros, a aceitarem muitas coisas do dia a dia” (professor 6); “Nota-se que, por exemplo, quando estão a trabalhar em grupo, os alunos utilizam mais as palavras ‘obrigada’, ‘por favor’, ‘desculpa’…” (professor 4); “Noto também diferenças em relação à interajuda, uma melhoria nas relações entre os colegas” (professor 6); “Este currículo promove aprendizagens de relacionamento, os alunos aprendem a relacionar-se uns com os outros, a saberem esperar, saberem aceitar. Acho que estas competências são muito importantes” (professor 6); “Notei diferenças no meu filho no reconhecimento dos erros” (mãe 1).
4.2.2 Competências Académicas
Esta subcategoria está relacionada com os fatores que facilitam o processo de ensino-aprendizagem, como: atenção, responsabilidade, concentração e autonomia. Alunos, professores e pais utilizaram as palavras/expressões ‘atenção’, ‘responsabilidade’, ‘concentração’ e ‘comportamento’ para descreverem estas mudanças comportamentais nos alunos. “Estas aulas ajudaram-me a evoluir, a controlar-me, a ter atenção” (aluno 17, 14 anos); “Aprendi a ser responsável” (aluna 12, 10 anos); “Aprendi a não estar distraída e a ter atenção aos comportamentos” (aluna 9, 10 anos); “Este projeto desenvolve nas crianças a autonomia” (professor 4); “As crianças estão mais concentradas” (professor 6 e professor 8); “Em termos de comportamento, eu também percebi que no grupo eles iam ficando cada vez mais empenhados e mais atentos” (professor 2); “Através deste programa há estratégias que os alunos aprendem para saberem lidar com determinadas situações, nomeadamente para controlar a ansiedade e estarem mais concentrados” (professor 7); “A J. está mais responsável e com muitas mais capacidades para fazer tarefas” (mãe 3); “Estas atividades ajudam-na a ser uma criança mais autónoma” (mãe 9).
De salientar que o impacto do RESCUR adaptado ao nível do bem-estar e das aprendizagens foi trilhado através de um trabalho conjunto, em estreita parceria entre a investigadora e os educadores/docentes que fizeram parte deste estudo, através da dramatização de histórias, de conversas informais sobre temas e atividades e da partilha de documentos orientadores de todo este processo: conteúdos, objetivos, aprendizagens.
“Acho que é muito importante esta parceria, ou qualquer outra, com o professor titular de turma, faz todo o sentido” (professor 6); “Tem que haver essa colaboração, essa articulação entre os diferentes intervenientes e os alunos” (professor 3).
5. Discussão
A estrutura, as competências e as atividades propostas pelo RESCUR, Currículo Europeu para a Resiliência, constituem uma ferramenta de grande valor para crianças e adolescentes. Contudo, quando dirigimos a nossa atenção para indivíduos surdos, são várias as adaptações que necessitam de ser realizadas para que este currículo seja inclusivo, ao nível da comunicação, das atividades propostas e das estratégias utilizadas.
Este estudo teve como principal objetivo a análise do impacto da implementação do currículo RESCUR adaptado para crianças surdas a partir das perceções dos alunos, dos respetivos pais e professores, em três escolas bilingues do país. Os resultados alcançados demonstraram várias melhorias significativas em duas grandes áreas. Alunos, pais e professores referiram que a articulação entre os vários intervenientes, as atividades de mindfulness com enfoque nos sentidos, as estratégias de role-play, a dramatização, as dinâmicas de partilha, as propostas de trabalhos de casa, o acesso à informação através de duas línguas (Língua Gestual Portuguesa e Língua Portuguesa) constituíram-se como desencadeadores de bem-estar e de aprendizagem. O primeiro referente ao próprio indivíduo e à relação que este estabelece com os outros, nomeadamente família e colegas; o segundo referente a aprendizagens ao nível da comunicação, das relações saudáveis e de competências académicas. Acerca das competências académicas, Bransford et al., (2000) mencionaram que a aprendizagem feita socialmente, resultante da interação com adultos e pares, torna-se a base sobre a qual muito do conteúdo curricular é construído. Egbert et al. (2014) explicam que o desenvolvimento da resiliência em crianças surdas é uma ferramenta crucial para o alcance de sucesso académico. Por sua vez, Kushalnagar et al. (2014) referem que a resiliência do indivíduo surdo está relacionada com a sua qualidade de vida.
A revisão compreensiva da literatura acerca da resiliência em crianças surdas (Freitas et al., 2022) destaca a comunicação e as relações interpessoais – os temas adaptados e promovidos neste estudo – como fatores cruciais de proteção para esta população, sendo por isso fulcral a sua promoção.
É consensual que a promoção de programas preventivos de competências socioemocionais tem um impacto positivo nas crianças (Masten & Barnes, 2018; Naeini et al., 2013; Punch & Hyde, 2011).
Os resultados do presente estudo vão ao encontro dos resultados de outros estudos desenvolvidos neste campo, que mostram melhorias significativas ao nível do ajuste escolar (Naeini et al., 2013), competências de resolução de problemas, compreensão emocional, desempenho cognitivo, comportamento adaptativo (Greenberg & Kusche, 1998), competências sociais (Greenberg & Kusche, 1998; Naeini et al., 2013), e ainda ao nível da comunicação (Cernea et al., 2014). Tal como referem Naeini et al. (2013), a aquisição e manutenção de habilidades sociais é crucial para o desenvolvimento do relacionamento social com os pares e serve como base para a aquisição de uma gama de competências fundamentais para um desenvolvimento saudável.
Este é o primeiro estudo que visa avaliar a adaptação e a implementação do Currículo Europeu para a Resiliência – RESCUR com crianças surdas, não sendo, por isso, possível estabelecer uma comparação entre este e outros estudos. Contudo, estes resultados de melhoria em diferentes dimensões estão de acordo com os que foram obtidos com crianças ouvintes, em diferentes partes do país (Simões et al., 2020) e da Europa (Cavioni et al., 2018; Cefai et al., 2018; Matsopoulos et al., 2020), em contexto escolar.
Desta forma, pais, professores e alunos, com base nos indicadores de impacto a nível do bem-estar e das aprendizagens, referiram que seria fundamental a continuidade de adaptação e respetiva implementação deste currículo, para que estas aprendizagens possam dar origem a outras, mais complexas.
As escolas e as famílias têm em si um enorme desafio, o de proporcionar a cada criança a oportunidade de se tornar uma cidadã autónoma e independente, capaz de comunicar as suas ideias, emoções e opiniões, mantendo uma relação saudável e cordial consigo próprio e com os outros, com atitudes pró-sociais e pró-ativas, de forma a viver com satisfação e qualidade de vida.
5.1. Limitações
Neste estudo foram apenas implementados dois temas dos seis que fazem parte do RESCUR, sendo estas as primeiras etapas de um percurso mais abrangente que pretendemos alcançar ao longo do tempo.
Os resultados não são apresentados em função dos vários níveis de ensino, nem da implementação com alunos integrados em turmas bilingues e em turmas mistas, dado o reduzido número de participantes em cada um destes grupos.
5.2. Conclusão
Durante a infância, a resiliência pode ser observada através de comportamentos académicos e sociais positivos, tais como o bom desempenho académico, o estabelecimento e manutenção de relações saudáveis, a sensação de bem-estar e a ausência de problemas de internalização ou externalização (Masten, 2011). A noção de que a presença de competências socioemocionais é uma pré-condição para a manifestação da resiliência é consistente entre os pesquisadores (Masten & Tellegen, 2012; Reyes et al., 2013; Rutter, 2013). Desta forma, é fundamental criar momentos de aprendizagens significativas, adaptados ao contexto da surdez, que possibilitem também a estas crianças e adolescentes uma aprendizagem integral, através da promoção de competências académicas, emocionais, sociais e comunicacionais, tornando-os cidadãos mais resilientes. Estas intervenções deverão ser promovidas precocemente, de modo a diminuir as lacunas na comunicação ao nível social e impedir o desenvolvimento de padrões desfavoráveis (Jung & Short, 2002), através de um trabalho em rede, cooperativo e sempre de forma transversal.