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Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187

Rev. Port. de Educação vol.29 no.1 Braga jun. 2016

https://doi.org/10.21814/rpe.6820 

ARTIGOS

 

Efeitos da intensificação do trabalho no ensino superior: da fragmentação à articulação entre investigação, ensino, gestão académica e transferência de conhecimento

Effects of work intensification in higher education: from work areas fragmentation to the nexus between teaching, research, leadership and knowledge exchange

Les effets de l’intensification du travail dans l’enseignement supérieur: dès la fragmentation jusqu’à l’interconnexion entre recherche, enseignement, gestion académique et transfert de connaissance

 

Carolina Costa Santosi, Fátima Pereirai & Amélia Lopesi

i Universidade do Porto, Portugal

 

RESUMO

O ensino superior português, atualmente, é marcado por transformações, em consequência da adaptação da educação às mudanças políticas, económicas e sociais do país. Fatores externos, portanto, reconfiguram as preocupações, as estruturas e os objetivos da universidade. Os professores sofrem o impacto dessas mudanças, respondendo a novas exigências e reconstruindo a sua identidade. Este artigo discute a identidade académica e as dimensões do trabalho do professor universitário – ensino, investigação, gestão académica e prestação de serviços à comunidade/transferência de conhecimento – face ao cenário atual de transformações. Recorrendo a narrativas de tipo biográfico e a um grupo de discussão focalizada, o caráter empírico do estudo centra-se na voz de professores da área da Educação de uma universidade pública portuguesa. Os resultados destacam a identidade académica delineada pela intensificação do trabalho e o desejo da articulação entre as dimensões do trabalho docente, visando romper a fragmentação da profissão.

Palavras-chave: Identidade académica; Transformações do ensino superior; Intensificação do trabalho docente; (Re)construção da identidade profissional

 

ABSTRACT

Contemporary higher education is characterized by continuing alterations, as the educational system tends to follow economic, political and social changes in Portugal. In consequence, external factors reconfigure universities concerns, structures and goals. These changes have a considerable impact on academic work while higher education teachers have to respond to new tasks. Therefore, academic identity may be reconstructed. This study aims at understanding the academic identity related with the four areas of academic work – teaching, research, leadership activities and knowledge exchange – in the current changing higher education context. Focus group and biographical narratives were conducted as methodological strategies. The participants were academics of a Department of Education in a Portuguese public university. Results highlight work intensification as a defining feature of academic identity. Through data analysis, it is also possible to identify the desire of articulating the four areas of academic work in order to break up with the work fragmentation.

Keywords: Academic identity; Higher education changes; Academic work intensification; Professional identity (re)construction

 

RÉSUMÉ

L’enseignement supérieur portugais subit actuellement des transformations, conséquences de l’adaptation de l’éducation supérieure aux changements politiques, économiques et sociales du pays. Ces facteurs externes redéfinissent en effet les préoccupations, les structures et les objectifs de l’université. Les professeurs subissent l’impact de ces changements en répondant à de nouvelles exigences et en construisant une nouvelle identité. Cet article vise à discuter l’identité professionnelle des professeurs universitaires et les dimensions du travail (enseignement, recherche, gestion académique et transfert de connaissance) dans le contexte de transformations actuel. À l’aide des entretiens biographiques et d’un groupe de discussion focalisé, les participants de l’étude sont professeurs du département d’Éducation d’une université publique portugaise. Les résultats mettent en évidence une identité académique caractérisée par l’intensification du travail et la volonté de connecter les différents aspects du travail de professeur.

Mots-clé: Identité académique des professeurs ; Transformations de l’enseignement supérieur ; Intensification du travail du professeur ; (Re)construction de l’identité professionnelle

 

Introdução

Ninguém sabe que coisa quer,

Ninguém conhece que alma tem,

Nem o que é mal nem o que é bem.

Que ânsia distante perto chora?

Tudo é incerto e derradeiro

Tudo é disperso, nada é inteiro.

Ó Portugal, hoje és nevoeiro…

É a Hora!

Fernando Pessoa

Novos imperativos económicos e políticos condicionam o ensino superior português. Ainda que esta situação não seja exclusiva dos novos tempos, podemos assumir que, hoje em dia, a relação entre objetivos económicos e universidade está mais explícita. A educação superior muda de cenário por transformações políticas, económicas e sociais que interferem, indireta e diretamente, na organização e gestão das universidades. Estas mudanças relacionam-se, sobretudo, com políticas neoliberais legitimadoras de uma lógica de mercado e de competitividade no ensino superior, que passa a ser regulado pela economia e controlado pelas mãos invisíveis do mercado (Magalhães, 2011). Sendo a economia baseada no conhecimento e o conhecimento baseado na economia, nesta sociedade da informação, procura-se desenvolver, paralelamente, economia e conhecimento, de forma que este contribua para o aumento da produtividade.

Reconhecemos que são exigidas novas competências e novas respostas da universidade ao mercado de trabalho e ao desenvolvimento da economia do país. Se, nesta esteira, podemos identificar mudanças do conhecimento, das dinâmicas, da estrutura e do papel da universidade, é inevitável observar transformações no trabalho do professor do ensino superior e, em consequência, na sua identidade. Sendo a universidade um espaço de transações e interesses políticos (Zabalza, 2004), compreendemos que o trabalho dos professores, no contexto português, é, indubitavelmente, controlado por lógicas burocráticas e tem a sua autonomia cerceada pelas condições históricas, sociais, políticas e económicas em que se encontra.

É neste cenário que se situa o estudo aqui apresentado, cujos objetivos gerais se concentram em compreender a (re)construção da identidade académica face às transformações do ensino superior em Portugal. Considerando a (re)construção da identidade como um processo social em constante movimento, envolvido pela dialética entre sujeito e sociedade ao longo da vida (Berger & Luckmann, 2003), reconhecemos que as interações do sujeito com os diversos aspetos que o rodeiam são fundamentais.

Com o objetivo de identificar os lugares que as dimensões da carreira – ensino, investigação, transferência do conhecimento e gestão académica – ocupam no quotidiano docente e os sentidos que a elas são atribuídos pelos protagonistas da profissão face ao cenário de transformações que se vive hoje em dia, a estratégia metodológica que configura a investigação é constituída por um grupo de discussão focalizada e quatro narrativas do tipo biográfico. Os conceitos organizadores do artigo e nucleares na investigação são a identidade académica e as transformações do ensino superior, de forma a sustentarem a discussão dos resultados a respeito das dimensões do trabalho do professor universitário. Neste artigo, apresentamos e discutimos os resultados da investigação, envolvendo, por um lado, a intensificação do trabalho docente e a caracterização da docência universitária e, por outro, a importância de cada dimensão no quotidiano dos professores.

O artigo, primeiramente, expõe o quadro teórico do estudo, destacando-se a discussão das transformações do ensino superior, o conceito de identidade e as dimensões da atividade docente. Em seguida, é apresentado o percurso metodológico da investigação, de forma a clarificar os procedimentos adotados para o estudo e os seus pressupostos. O texto termina com a apresentação e a interpretação dos resultados a respeito da caracterização da docência, hoje em dia, e sobre as dimensões do trabalho docente no ensino superior.

 

Transformações do ensino superior e identidade académica

As transformações que vêm acontecendo na sociedade implicam alterações no sistema educativo, no trabalho do professor e nas identidades académicas. Afetando profundamente a identidade docente, ao impor novos encargos e sobrecargas de trabalho ao magistério, as políticas neoliberais significam a assunção do mercado como regulador da atividade universitária (Magalhães, 2004). Como refere Magalhães (2011), as mãos visíveis e invisíveis do mercado e um "capitalismo académico" podem promover uma esquizoidia da identidade da universidade. Descrevendo um momento de crise na identidade do ensino superior, há uma pluralidade de discursos que abordam a universidade, destacando a narrativa empreendedora e empresarialista que fortalece relações de mercado no meio universitário e promove a performatividade e o pragmatismo (Magalhães, 2011).

No contexto europeu, com destaque aqui para a situação portuguesa, o Processo de Bolonha1 relaciona-se com interesses económicos em que a universidade se torna a possibilidade de afirmar um espaço europeu de compatibilidade, comparabilidade e coerência entre os países, garantindo a mobilidade de estudantes e profissionais e garantindo à Europa a possibilidade de afirmar-se como competitiva e dinâmica no mercado (Amaral, 2005).

Destacamos que a intensificação do trabalho não é um problema exclusivo dentro das fronteiras portuguesas. O produtivismo académico segue, em diferentes contextos, a lógica do mercado e incentiva uma pressão incisiva, por exemplo, sobre a publicação por parte dos professores. A liberdade e a autonomia, que caracterizavam a profissão docente na universidade, foram cerceadas pela necessidade de dar respostas à pressão do mundo académico, em que há a cobrança de publicações numa cultura do imediato e da urgência. A ciência acaba se configurando como uma fast science que não aceita um tempo para pensar, refletir, produzir e até mesmo falhar (Candau, 2010).

Sendo a universidade objeto de transações políticas, cria-se em torno dela uma luta de interesses, e a sua identidade pode vir a diluir-se pela sua função económica. Santos (1994) refere a crise da legitimidade, da hegemonia e da instituição do ensino superior. Cowen (1996) salienta a atenuação, a dissolução e o desaparecimento da universidade em diferentes níveis: ao nível financeiro, ao admitir os estudantes como clientes; ao nível pedagógico, pela massificação do ensino, que pode transformar o professor em transmissor de informações, pelo elevado número de alunos; ao nível do espaço, visto que as relações entre as instituições (e a internacionalização) estão sendo cada vez mais conduzidas pelo interesse económico; e ao nível da qualidade, considerando as demais atenuações.

Para Becher e Trowler (2001), o ensino superior caracteriza-se, atualmente, como pós-industrial, passando por turbulências e transformações ligadas à competitividade, promovidas pela globalização e pela massificação do ensino, assim como pela fragmentação do conhecimento, em que o Estado se fortalece como regulador e aproxima a universidade da indústria privada. Instaura-se uma lógica managerialista, valorizando a economia, a eficiência e a eficácia, sendo considerações comerciais a ditarem as necessidades da universidade, sob o imperativo do crescimento económico (Delgado, 2007; Paraskeva, 2009; Slaughter & Rhoades, 2004).

Identifica-se, assim, que as finalidades sociais e culturais da universidade se deslocam para a economia do conhecimento e para a sociedade da informação (Santiago, Magalhães, & Carvalho, 2005). Desse modo, a universidade passa a se preocupar, por exemplo, com a empregabilidade dos seus estudantes e com a utilidade do conhecimento, em situações específicas que promovam o desenvolvimento da economia, no curto-prazismo denunciado por Beck e Young (2008), focando a economia, a eficiência e a eficácia. A aproximação entre o mundo dos negócios e o mundo universitário valoriza, nos professores – que podem vir a ser comparados a gestores –, habilidades para vender um produto educacional e atrair consumidores – como os alunos podem passar a ser vistos. Esta lógica preocupa-se com a necessidade de flexibilidade da formação, através da qual o aluno deve aprender a ser moldado pelos interesses do mercado. A empregabilidade entra na pauta do trabalho do professor como uma das principais preocupações universitárias. As funções da universidade passam a ser condicionadas pelo mercado, o que pode vir a promover um esvaziamento das identidades académicas (Bernstein, 2000).

A respeito das transformações da universidade, Gibbons et al. (1997) discorrem sobre as mudanças da relação com o conhecimento, indicando que há uma passagem do conhecimento como bem público, com vista à emancipação do ser humano e à contribuição para a sociedade, para o conhecimento valorizado de acordo com a sua aplicabilidade em situações específicas e pela sua utilidade (Reed, 1999). Para Gibbons (1997), a sua base passa a ser transdisciplinar e não mais disciplinar, e a sua organização hierárquica passa a ser heterogénea, visto que a produção do conhecimento procura o envolvimento de diferentes disciplinas, competências e pessoas, com grupos de trabalho mais flexíveis e temporários, por exemplo. Assim, percebemos que, além das mudanças nas condições do trabalho do professor, altera-se, também, a centralidade da profissão, que é a relação com o conhecimento. Por isso, estas transformações podem implicar mudanças diretas nas identidades académicas.

Whitchurch (2008a) explora novos espaços profissionais que estão emergindo no ensino superior, criando novos conhecimentos e relações na profissão, num cenário de mudanças das identidades académicas (Barnett & Di Napoli, 2008). Pode-se perceber, hoje em dia, a erosão da autonomia académica, enquanto as instituições precisam responder ao mercado competitivo (Whitchurch, 2008b). As práticas managerialistas (Deem & Brehony, 2005), por exemplo, podem promover tendências que se focam na performatividade do professor e envolvem sentimentos de perda de autenticidade e de confiança, instaurando insegurança na profissão. Observa-se, então, que as identidades académicas estão sendo ativamente remodeladas e são desenvolvidas, hoje, em resposta aos desafios e às mudanças impostas às estruturas da universidade (Clegg, 2008).

Um dos exemplos de mudanças nas atividades do professor universitário é o facto de atividades que antes poderiam ser consideradas como secundárias ou periféricas serem agora tarefas obrigatórias (Musselin, 2007) que dividem tempo com o ensino e a investigação. Para Musselin (2007), o trabalho do professor universitário está cada vez mais diversificado e especializado. As tarefas administrativas, por exemplo, passam a ser obrigações, assim como a necessidade de explorar a produtividade científica. Kogan (2007) alerta para o facto de que há o sentimento de uma gradual perda da autonomia, uma forte pressão de expetativas externas e um crescente controle da profissão, por exemplo, modificando as relações de poder dentro da universidade, visto que novas estruturas implicam novas relações (Henkel, 2007). Assim, os professores passam a reconhecer que não possuem o monopólio para determinar os propósitos e as definições futuras do trabalho académico (Henkel, 2007).

 

Identidade em discussão

Na nossa discussão sobre a identidade, reconhecemos que ela não é fixa, não pode ser reduzida a uma essência, tampouco é um produto acabado, definitivo ou permanente. A identidade constrói-se num processo social dinâmico, num constante movimento dialético entre o sujeito e a sociedade (Berger & Luckmann, 2003). Os sujeitos apresentam uma predisposição para se integrar, interiorizar e fazer parte de uma sociedade. Essa integração é mediada pelas socializações ao longo da vida, num processo constante de (re)construção da identidade.

A socialização primária, primeira forma de interiorizar o mundo, acontece na infância e permite a integração do sujeito na sociedade. A família e a escola destacam-se como principais instituições responsáveis por este processo. Esta interiorização da realidade e da identidade do sujeito, entretanto, não ocorre definitivamente. Tendo um caráter de interação cultural e social, as relações que o sujeito estabelece com a sociedade e com o outro possibilitam que a identidade seja remodelada. O processo de reconstrução da identidade afirma-se, por isso, constante ao longo da vida.

A formação profissional e a inserção no contexto de trabalho implicam um processo de socialização secundária, introduzindo saberes especializados relativos a um campo profissional na vida do sujeito. A identidade profissional, portanto, é uma identidade social especializada (Dubar, 1997), com funções sociais marcadas, ligadas a um campo específico do trabalho. Os saberes desta segunda socialização não substituem, mas articulam-se com os saberes de base, adquiridos na socialização primária. Destacamos que, no caso dos professores, os saberes de base reúnem representações sobre a profissão, que devem ser analisadas e refletidas na construção da identidade profissional (Dotta, 2011).

Relacionada intrinsicamente com o conceito de alteridade, a identidade envolve o reconhecimento do outro e o reconhecimento de si, concentrando duas dimensões (Dubar, 1997): uma transação biográfica, interna ao indivíduo, subjetiva, em que há a identidade para si próprio; e a transação relacional, externa ao indivíduo, objetiva, em que se estabelece a identidade para o outro. Compreendemos, então, que a identidade se constrói na relação entre estas duas dimensões, ou seja, a partir da articulação entre a identidade que é proposta externamente, pelos contextos de trabalho, por exemplo, e a identidade que o indivíduo estabelece como sua identidade real, a partir da sua trajetória individual.

Pela trajetória individual do sujeito, podemos entender que a identidade é envolvida por três sentimentos em interação: a unidade, a continuidade e a participação (Erikson, 1976). O sentimento de continuidade, núcleo da identidade do sujeito, garante a singularidade do sujeito em termos de passado, presente e futuro, ainda que a sua identidade seja reconstruída pelas diversas interações ao longo da vida.

Identificamos que a identidade profissional docente, podendo ser vista como uma montagem compósita (Derouet, 1988), tem fontes diversas para a sua reconstrução e sofre influência de diversas dimensões, como, por exemplo, a formação inicial e a instituição onde se trabalha, assim como o contexto em que se vive. As transformações do ensino superior, como, a saber, os aspetos negativos das políticas neoliberais (Harris, 2005), provocam efeitos na identidade profissional, construída social e historicamente.

Para Clegg (2008), a identidade académica é entendida, não como uma propriedade fixa, mas como parte da complexidade do projeto de uma pessoa, sendo constituída por múltiplos aspetos, como a relação com os colegas, com a disciplina, com o departamento (Henkel, 2002) e com as atividades que o professor tem. A identidade académica é um projeto situado no tempo e no espaço, não uma essência (Henkel, 2000). Desta forma, a reconfiguração das dinâmicas na universidade e das relações académicas promove novos desafios ao ensino e aos professores, obrigando-os a reconfigurarem esta identidade. As crises sugerem questionamentos sobre a identidade que se constrói, num processo de mudanças, fazendo parte do processo de construção da identidade. É na crise que o sujeito é obrigado a refletir, tentar superar e inventar-se a si próprio (Dubar, 2006). Nesta esteira, acreditamos que o momento de mudanças pode ser um espaço para reflexão sobre a profissão, repensando esta identidade académica.

Desta forma, entendemos que a identidade do professor universitário pode se reconstruir, face às transformações do ensino superior, no quotidiano em que o professor enfrenta estas mudanças e, também, na articulação entre as dimensões da carreira e as atividades do seu trabalho, que passamos a discutir neste artigo.

 

As dimensões do trabalho do professor universitário: investigação, ensino, gestão académica e transferência do conhecimento

As dimensões institucionais da atividade do professor do ensino superior são muito importantes quando se investiga a identidade académica, visto que é entre estas atividades e as suas particularidades que o professor desenvolve as suas competências e concretiza o quotidiano da profissão. Assim, é importante compreender como é realizada a articulação entre as atividades que são exigidas ao professor, e identificar as dimensões que são por ele mais valorizadas e aquelas que são preteridas.

Apoiamo-nos no Estatuto da Carreira Docente Universitária, a partir do Decreto-Lei 205/2009, para reconhecer as quatro dimensões da docência universitária em Portugal: a investigação, o ensino, a transferência do conhecimento e a gestão universitária. De acordo com as definições do decreto, o professor deve participar em atividades a ele distribuídas e que se incluam no âmbito do trabalho do docente universitário, além de responder às quatro atividades essenciais, elencadas a seguir: a) Investigação: atividades de investigação científica, de criação cultural ou de desenvolvimento tecnológico; b) Ensino: serviço docente atribuído e acompanhar e orientar os estudantes; c) Extensão: tarefas de extensão universitária de divulgação científica e de valorização do conhecimento; e d) Gestão académica: gestão das instituições. São estas as dimensões que se multiplicam em diferentes atividades e tarefas, no quotidiano dos professores, e entre as quais eles concretizam o seu trabalho e reconstroem a identidade académica.

Ylijoki e Ursin (2013) estudam a multiplicidade e diversificação das identidades académicas e reconhecem que as mudanças no contexto institucional quebram a estabilidade da profissão e impõem a necessidade de redefinir o trabalho do professor do ensino superior. Para os autores, há a continuidade de alguns valores, como um compromisso académico e uma autonomia, que se mantêm. Se, por um lado, há uma perda com o trabalho administrativo e com uma insegurança que se instala, por outro, as possibilidades de financiamento e de mobilidade giram em torno de uma ideia de progressão. Guzmán-Valenzuela e Barnett (2013) realçam a existência de um excesso de trabalho marcado pela pressão do relógio. Com uma diversidade de tarefas sem conexão entre elas, os professores vivem, simultaneamente, uma expansão do tempo, pelo aumento de papéis e funções que assumem, e a sua fragmentação, pela falta de tempo para cumprir as suas atividades, confirmando-se, assim, um tempo descontinuado, fraturado e irregular.

Compreendendo a importância da trajetória do sujeito e reconhecendo que a identidade do professor é uma construção que guarda as marcas das opções feitas e das experiências vividas, assim como das práticas desenvolvidas e das continuidades do seu trabalho, recorremos às entrevistas semiestruturadas, para recolha de narrativas de tipo biográfico, como principal estratégia metodológica do estudo. Elas permitem revisitar os momentos de socialização vividos pelos professores em suas trajetórias e respeitar a subjetividade inerente a esta temática. Discorremos a seguir sobre as escolhas metodológicas da investigação.

 

Notas metodológicas sobre a investigação

Sendo a investigação um processo em que as etapas se complementam, as nossas opções teóricas implicaram decisões metodológicas que fossem coerentes para o estudo. Assim, reconhecemos que os sujeitos da investigação interpretam suas experiências e são capazes de atribuir sentido àquilo que ocorre na sociedade, podendo construir-se na narrativa que tecem sobre o quotidiano. Por isso, considerando a (re)construção da identidade académica como um processo social, procurámos escutar a voz daqueles que protagonizam a profissão: os próprios professores universitários.

Desta forma, como estratégias metodológicas, escolhemos o grupo de discussão focalizada e as entrevistas semiestruturadas de tipo biográfico. Estas estratégias foram escolhidas pela possibilidade de interação entre investigador e participante, e por serem complementares entre elas, garantindo uma maior discussão sobre o objeto de estudo. No grupo de discussão focalizada participaram cinco professores, tendo sido realizadas entrevistas de tipo biográfico a quatro professores da mesma instituição. Os sujeitos desta investigação são professores da área da Educação de uma universidade portuguesa. Discutimos aqui as experiências narradas por um grupo de professores que pertencem a diferentes áreas de investigação em Educação e apresentam tempos de carreira também diferentes.

Num primeiro momento, para contribuir para delinear o objeto de estudo desta investigação, foi realizado o grupo de discussão focalizada. A articulação entre o grupo de discussão focalizada e as entrevistas de tipo biográfico afirma-se pelo facto de que os resultados da discussão em grupo contribuíram, inicialmente, para indicar temáticas pertinentes a serem aprofundadas no segundo momento da pesquisa, as entrevistas.

A adequabilidade das narrativas biográficas é explicitada através da oportunidade de escutar a voz do professor, de respeitar a sua subjetividade, e por permitir a ressignificação da experiência, acompanhada de uma reflexão sobre passado, presente e futuro (Clandinin & Connelly, 1990). Através das narrativas podemos nos informar sobre momentos importantes para a construção da identidade, como os processos de socialização, ainda que estes sejam recontados e reinterpretados pelo sujeito. O exercício de colocar o percurso em palavras exige uma organização do discurso e pode conferir-lhe um significado social, podendo permitir aos participantes refletirem sobre os seus percursos profissionais e as suas carreiras, o que, de certa forma, possibilita a compreensão de uma profissão que "precisa de se dizer e de se contar" (Nóvoa, 1995, p. 10).

Estes encontros foram gravados, transcritos e submetidos a análise de conteúdo. A análise permitiu identificar algumas categorias, emergentes da leitura do material, mescladas com outras categorias previamente estabelecidas. As categorias de análise do grupo de discussão focalizada são recorrentes na análise das narrativas e constituem-se em: a) Dimensões do trabalho do professor no ensino superior (investigação, ensino, gestão e transferência do conhecimento); b) Percurso como professor do ensino superior – passado, presente e futuro (entrada no ensino superior, ruturas ao longo do processo, o trabalho hoje e expetativas para o futuro); e c) Identidade académica (identidade do ensino superior, perfil do professor e influência da instituição de trabalho). Para a análise das narrativas, acrescemos mais uma categoria: d) Percurso de vida até ao início do exercício da profissão (seio familiar, relação com a escola básica, curso de ensino superior, relação educativa ao longo da vida, experiência profissional anterior e momentos marcantes).

Ressaltamos que o estudo privilegiou uma categorização que não fosse uma submissão dos enunciados a categorias pré-estabelecidas, mas que estas pudessem representar os seus significados, apresentados abaixo.

 

Apresentação e discussão dos resultados

A fim de apresentar com clareza os resultados desta investigação, fazemos uma breve introdução sobre a construção da identidade ao longo da vida – momentos marcantes ao longo da vida do professor que possam contribuir para a construção da sua identidade profissional (cf. Santos, Pereira, & Lopes, 2014). Posteriormente, com mais detalhes, abordamos os resultados que interessam ao presente artigo: 1) a caracterização do trabalho do professor universitário em Portugal hoje, marcado pela intensificação do trabalho; e 2) os sentidos atribuídos, pelos professores participantes do estudo, às dimensões da carreira, discutindo, separadamente, o papel do ensino, da investigação, da gestão académica e da transferência de conhecimento.

Podemos referir, entre os resultados, a influência, na construção da identidade, de experiências desde o contexto familiar, através da valorização da escola como ascensão social, por meio de exemplos e de pessoas de referência no convívio familiar ou a partir de uma valorização exposta por verbalizações, o que nos leva, por exemplo, ao percurso escolar com direção ao ensino superior. Reconhecemos, assim, que um projeto de vida não tem origem abstrata, mas é dialogado, negociado e influenciado pela vida em grupo (Bertaux, 2010).

A formação inicial, por sua vez, destaca-se como referencial incontornável da identidade profissional dos professores que participaram no estudo, convergindo com outros estudos (cf. Pereira, 2010). Significando o contacto com saberes especializados da profissão, a formação inicial pode representar a projeção do sujeito, enquanto profissional, no futuro. Por muitas vezes, a importância da universidade está além da aquisição de saberes profissionais especializados inerentes à construção da identidade profissional (Dubar, 1997), mas encontra-se com outros espaços, como as experiências da juventude e as lutas estudantis, por exemplo, interferindo em escolhas futuras.

O exercício profissional anterior destes professores também se afirma como definidor da sua identidade profissional, evidenciando a construção social da identidade como processo contínuo que acontece nas interações entre os indivíduos e os contextos em que estão inseridos (Berger & Luckmann, 2003). Identificámos, ainda, que as experiências profissionais podem determinar diretamente as áreas de estudo e os interesses de investigação dos professores. Também são as experiências noutros níveis de ensino que, aliadas à vontade de investigar mais sobre a realidade, fazem o professor procurar a transição para o ensino superior.

Assim, podemos perceber o processo da (re)construção desta identidade, que carrega experiências anteriores, particulares a cada professor, mas que as articula com a instituição de trabalho, com o contexto e o cenário em que a profissão se desenvolve e que não está somente relacionada com os papéis como investigação, ensino, gestão académica ou transferência de conhecimento, apesar de perpassar essas atividades.

 

1) A caracterização do professor universitário hoje: a intensificação do trabalho

Intitulamos como intensificação quotidiana uma das consequências mais sentidas das mudanças no trabalho do professor: imensa carga de trabalho, inúmeras atividades e tarefas para desenvolver e acúmulo de responsabilidades. Os professores deparam-se com maior carga horária letiva, acumulada com a obrigatoriedade de internacionalização e de publicação de trabalhos, número elevado de estudantes para acompanhar e orientar, e recorrência de tarefas burocráticas para resolver. Este tempo cada vez mais escasso para cumprir as tarefas faz parte da lógica de curto-prazismo denunciada por Beck e Young (2008).

A gente tem muito pouco tempo para respirar. Temos a cabeça sempre muito ocupada, com muitas tarefas. (P12)

As críticas feitas pelos professores centram-se na diferença entre a identidade desejada e a identidade forçada, que lhes é imposta por este ritmo de trabalho. Há um abismo entre as expetativas sobre o que os professores esperam que seja o trabalho deles e o que na realidade se consegue desenvolver como trabalho docente. De acordo com Ylijoki e Ursin (2013), há, nesse sentido, uma narrativa da perda que revela uma identidade vulnerável, fraca e sem defesas.

Encontramos, entre os prejuízos desta intensificação do trabalho, a falta de tempo no dia-a-dia, aquilo a que chamamos de intensificação quotidiana e também o que nomeamos de trabalho coletivo isolado. Podemos constatar que há uma coletividade de professores que reivindica um trabalho entre os pares com maior qualidade, denunciando que os professores precisam trabalhar, cada vez mais, de forma isolada, em seus gabinetes, sem espaços para o debate e o trabalho em pares e em grupo, que é um trabalho por eles valorizado.

Havia muito esta questão da interação, do apoio e do suporte que é importante. Eu estou aqui a decidir os tópicos de um programa, "vamos decidir em conjunto". (...) Isto dava-nos outra segurança e é uma forma de trabalho de que eu gostava muito. Eu acho que aprendemos bastante um com o outro. (...) Eu tenho algumas saudades desse trabalho, dessa discussão. Acho que falta isso. Mesmo em termos de investigação, acho que falta essa parte da discussão. Sinto-me sozinha a trabalhar. (P2)

O trabalho coletivo, a reflexão em equipa ou a troca de experiências cedem lugar a um trabalho solitário. Segundo Nóvoa (1992) e Marcelo (2009), a arquitetura escolar, como a divisão do tempo e do espaço, contribuem para o isolamento da atividade do professor e podem desencorajar a partilha do conhecimento profissional. Entendemos que, no meio de um cenário de cobranças, de tarefas e de prazos, podemos ver esta lógica transferida para o ensino universitário, que se vê, atualmente, num contexto em que os professores podem ser imersos em inúmeras tarefas, favorecendo o seu isolamento. Para Hargreaves (1999), o isolamento dos professores faz com que eles possam não conhecer o conhecimento que não possuem. Este individualismo dos professores aumenta a distância entre expetativas e realidade e contribui para a solidão na profissão.

Utilizamos a expressão trabalho docente administrativo para revelar um dos problemas que emerge do discurso dos professores a respeito do acúmulo de tarefas a serem cumpridas num âmbito não docente, isto é, de caráter administrativo. O tempo dedicado à burocracia é um tempo invisível que parece não acabar e consumir o que é dedicado às outras dimensões (Guzmán-Valenzuela & Barnett, 2013).

Nesses tempos estamos afogados em gestão académica e há coisas que poderiam ser muito mais facilmente realizadas, exclusivamente ou quase exclusivamente, pelos serviços administrativos. (P7)

Como aliado nesta intensificação burocrática do trabalho docente está o uso da tecnologia. Por exemplo, os profissionais indicam que a necessidade de dar resposta ao sistema administrativo informatizado, e de o atualizar constantemente, consome muito tempo.

Somos muito chamados à responsabilidade de publicar e nomeadamente às questões das burocracias, das tecnologias, das fichas de unidades curriculares, sumários, avaliações... Tudo isso nos gasta imenso tempo e eu diria que essa parte eu dispensava. (P1)

O correio eletrónico também pode ser visto como uma plataforma de comunicação que rouba tempo aos professores e, inevitavelmente, se apresenta como uma forma de controle e de pressão para que o professor esteja conectado constantemente e, segundo Gornall e Salisbury (2012), aceda a seus trabalhos e atividades a partir de qualquer lugar.

Percebemos, deste modo, que pode acontecer uma burocratização da carreira docente. O destaque que essas tarefas de cunho administrativo têm entre as reclamações da intensificação do trabalho deve-se ao facto de estas atividades não provocarem nenhuma satisfação no professor, visto que não estão vinculadas às atividades assumidas como preferenciais da profissão. Em suma, "A profissão tende, assim, a ser encarada como uma soma de afazeres que ocupa um tempo que preocupa os profissionais que a exercem" (Correia & Matos, 2001, p. 163).

 

2) Os sentidos atribuídos à investigação, ao ensino, à gestão académica e à transferência do conhecimento pelos professores

2.1. Os sentidos da investigação

A investigação ocupa um lugar de grande destaque entre as atividades do professor do ensino universitário, afirmando-se como dimensão específica do trabalho do professor, na universidade, e como aquilo que o caracteriza. Surge como principal motivação para a entrada na docência do ensino universitário, como fator conducente à escolha da profissão neste nível, pela possibilidade de aprofundamento de conhecimentos, e como principal eixo de articulação entre as outras dimensões. Ao longo da análise dos resultados, fica claro que esta dimensão é o principal motivo de entrada no ensino universitário.

O que me traz cá é poder ter condições de fazer investigação, de aprofundar questões de educação, que era o que eu fazia, mas sem grandes condições. (P6)

De facto tenho que ser clara: eu precisava vestir-me intelectualmente, queria saber mais, queria estudar, queria! (P5)

Presente no histórico profissional de todos os professores participantes, a investigação não se mostrou como uma experiência anterior ou presente, mas revelou-se uma experiência contínua para o professor do ensino universitário.

Dentre as articulações entre as dimensões da profissão, destaca-se o nexo ensino-investigação, intensamente marcado e com várias formas de articulação.

Obviamente que eu não distingo essas duas dimensões. (P1)

(A docência) é só "ensino superior" justamente porque nós a inventamos com a investigação. (P5)

A questão da intensificação do trabalho também surge como prejudicial à investigação. Guzmán-Valenzuela e Barnett (2013) referem que o tempo da investigação aparece como descontínuo, visto que a necessidade de mudar de tarefas constantemente implica uma interrupção prejudicial ao trabalho, que dificulta a concentração para as múltiplas atividades que investigar concentra em si, como ler, escrever, fazer trabalho de campo, participar em encontros científicos. Entretanto, ligada ao prestígio académico (Leite & Ramos, 2007), esta dimensão recebe destaque na dedicação dos professores.

O prestígio da investigação aumenta devido à sua importância para o professor construir e mobilizar conhecimentos e metodologias, melhorando as condições de aprendizagem do aluno, isto é, afetando diretamente o ensino (Pimenta & Anastasiou, 2002). A identidade do professor do ensino superior, portanto, configura-se na relação estreita entre ensino e investigação, que prevê o desenvolvimento das duas atividades de forma articulada para uma formação de melhor qualidade.

2.2. Os sentidos do ensino

O ensino aparece: no passado, como experiência anterior; no presente, enquanto dimensão imprescindível do trabalho universitário; e no futuro, pela expetativa em torno de mais valorização da docência, mais qualidade no processo de ensino-aprendizagem e mais tempo para a relação educativa. A experiência anterior como professor num outro nível de ensino provoca efeitos, fazendo os professores entenderem as particularidades da docência no ensino superior e revelando a exigência de diferentes competências.

Atualmente, afirma-se o medo de que a disputa de tempo entre ensino e investigação faça com que os "docentes pouco valorizem aquilo que a própria instituição não valoriza, isto é, tem feito desviar as atenções do modo como se comunica, se ensina, se avalia e se organiza o trabalho com os estudantes em formação" (Leite & Ramos, 2007, p. 31). Para os professores, estas transformações fazem com que se perca qualidade diretamente no ensino.

Pegando aquelas quatro dimensões, claramente a parte da docência fica – e tem todas as condições para que fique – prejudicada. (P7)

Mudanças como a diminuição da carga horária das disciplinas podem prejudicar a relação educativa, visto que não há tempo para aperfeiçoar o processo de ensino-aprendizagem e para a construção de um vínculo afetivo que potencialize o trabalho de ensinar (Battini & Vagula, 2011). A ideia do professor do ensino superior não está vinculada, para os participantes no estudo, ao especialista sobre um assunto, mas legitima-se na relação com o outro e na preocupação e valorização do ensino, enquanto um processo com o estudante.

Porque as coisas não se seguram só com a investigação, mas com a articulação com a docência e com a possibilidade de trabalhar com pessoas que trabalham connosco, continuar a fazer formação de jovens investigadores e etc. Passa essencialmente por aqui o meu desejo. (P5)

O ensino confirma-se, ainda, como um compromisso essencial do professor no ensino superior, principalmente na mencionada articulação entre ensino e investigação.

2.3. Os sentidos da gestão académica

Ainda que a transferência de conhecimento seja a dimensão menos comentada, o lugar ocupado pela gestão académica é marcado pelo conflito entre a sua obrigatoriedade e o pouco interesse em manter as suas funções. Os professores denunciam que esta rejeição à gestão surge pela própria estrutura universitária que legitima uma hierarquia afuniladora, sem participação efetiva de todos, restringindo cargos a uma minoria, não permitindo a renovação da gestão e mudanças efetivas. As funções acessíveis aos professores são de caráter mais administrativo e burocrático. Podemos identificar, também, nestas tarefas burocráticas, o managerialismo académico (Santiago et al., 2005), ao perceber a linha ténue, muitas vezes, entre o professor e o gestor.

Houve uma concentração num grupo de pessoas das capacidades de decisão ou mesmo da possibilidade de participação em órgãos de gestão que pulveriza a possibilidade de uma parte alargada do corpo docente e mesmo dos outros participantes da universidade e da faculdade tomar parte. E, assim sendo, há uma clivagem, uma fissura óbvia. (P7

Para os professores participantes no estudo, da área da Educação, os sentidos positivos da gestão estão ligados aos órgãos que possibilitam também a participação dos estudantes, como o Conselho Pedagógico. Além do diálogo com os estudantes, outra vantagem da participação na gestão relaciona-se com a visão ampla sobre a organização e o contacto com setores diferentes da instituição.

Dá uma visão muito concreta do funcionamento da instituição e o quão difícil é gerir uma instituição ao nível dos serviços e das pessoas que fazem parte desses serviços. (P1)

Saber como funcionam, como se articulam as coisas, a gestão financeira, funcionamento, serviços, as relações humanas. (P2)

Guzmán-Valenzuela e Barnett (2013) observam que é nos papéis relacionados com a gestão académica que há um forte alinhamento entre os valores da instituição e os valores dos professores. É nesta linha que os cargos de gestão surgem como um trabalho que vale a pena para o bem da instituição e que permite ao professor aprender sobre o seu funcionamento e as suas configurações e crescer. Todavia, alguns professores envolvem-se num sentimento de nostalgia, por perder tempo de investigação e ensino.

2.4. Os sentidos da transferência de conhecimento

Para os participantes no estudo, a transferência de conhecimento pode ser feita através de projetos de intervenção, de consultoria, formação contínua e divulgação científica, por exemplo. Nesta linha, as áreas de investigação cujos estudos se centram na escola, como a formação de professores e o currículo, são privilegiadas nesta relação com a transferência do conhecimento.

Nestas áreas, a transferência do conhecimento, a investigação e a docência podem estar entrelaçadas em si próprias. (P5)

Ainda que seja a dimensão menos comentada pelos participantes, a transferência de conhecimento tem importância significativa no trabalho académico, revelando a necessária articulação das investigações com a realidade e com o meio social além dos muros da universidade.

Acho que se nós perdermos o contacto com o mundo real – porque o mundo académico é um bocado irreal em alguns aspetos... –, se não sairmos, a certa altura estamos a dizer coisas, a fazer coisas que não aderem à realidade. Nós dizemos que as nossas ciências são sociais e ciências sociais não é estar fechado a ler livros e pensar sobre as coisas; ter a realidade exterior a comunicar connosco, a fazer-nos pensar em coisas concretas. (P4)

Esta preocupação com o meio social leva-nos diretamente para o papel da universidade e para a essência do trabalho do professor do ensino superior. O sentido da investigação surge como possibilidade de aprofundar conhecimentos e devolvê-los para a sociedade. Investigar para melhor conhecer não é o ponto de chegada, mas de partida para outro trajeto que passa pela divulgação dos resultados e pela devolução do saber, quando é possível, ao campo.

O que faz sentido na ciência é a potencialidade de um saber ser transferido para os seres humanos. (P2)

O significado do ensino também integra a ideia de compartilhar conhecimentos e saberes que possam ser mobilizados na comunidade; é aproximar-se da realidade, através do diálogo com o estudante e pelo investimento na formação dos estudantes, de forma a promover uma futura intervenção na sociedade mais adequada e qualificada. Assim, identificamos que o trabalho do professor universitário guarda mais relações intrínsecas que o destaque da relação entre ensino e investigação. Identificamos que, numa situação complexa, em que a ideia do académico reúne inúmeras tarefas e múltiplas identidades, num mundo instantâneo, de rápidas interações e do controle do mercado nelas, há, ainda, a continuidade do compromisso com os estudantes e com a sociedade.

 

Reflexões finais: o desejo de sair da fragmentação em direção à articulação

Podemos perceber que o trabalho do professor do ensino universitário está marcado, fortemente, pela intensificação do trabalho e, em consequência, pela fragmentação das suas atividades. Vivemos um período em que, ao professor português, são impostas novas exigências, de cunho docente e, também, de caráter administrativo.

A distância entre as expetativas que os professores têm sobre a profissão e o que eles realmente conseguem fazer no quotidiano pode ser responsável por um sentimento de desrealização e desvalor. O trabalho parece constantemente em atraso e insatisfatório.

Mas é um sentimento de uma certa frustração e incapacidade de dar resposta a tudo e dar resposta com o mínimo de qualidade, com a qualidade que eu gostaria de dar, mas com a qualidade que eu acho necessário ter, porque é humanamente impossível. (P3)

Surge, no meio deste contexto, uma preocupação com a qualidade do trabalho, que pode ser traduzida como um medo da redução da qualidade do trabalho:

Eu gostava de ter mais tempo. Reduziram-me, a mim e aos outros. (P4)

Eu faço muitas coisas. Onde é que se vai refletir fazendo essas coisas todas? (P3)

Por muito que eu trabalhe muito para além do que era minimamente exigido, (...) eu tenho sempre imensas coisas em atraso; eu estou sempre a falhar em alguma coisa e isso é uma situação insuportável. (P3)

A relação educativa fica prejudicada, assistindo-se, também, ao risco de diminuição da qualidade que os professores podem dispensar para a investigação e para o ensino. Destaca-se, de forma clara, o desejo de articulação entre ensino e investigação, por parte do professor, que, se por um lado tem a investigação como fator essencial do ensino superior e específico de sua profissão, pelo outro considera o ensino como dimensão fundamental de todo o seu trabalho.

Assim, os professores procuram estreitar os laços entre investigação e ensino, de forma a potencializar as duas dimensões. Para os participantes do estudo, a articulação entre investigação e ensino pode contribuir para o processo de ensino-aprendizagem, para melhorar o ensino e aproximar a relação entre estudante e professor. Segundo Visser-Wijnveen, Van Direl, Van der Rijst, Verloop, e Visser (2010), essas possibilidades de influência entre ensino e investigação podem ocorrer de diferentes formas; por exemplo: quando o professor ensina os resultados da investigação e os divulga, quando exemplifica o que é ser um investigador, quando orienta estudos e quando oferece a possibilidade de experiência em investigação para o estudante. Dessa forma, ao investigar, o professor pode viver um processo de melhoria da sua prática docente.

A respeito dos lugares que as dimensões das atividades ocupam na identidade docente, podemos perceber que as expetativas dos professores se centram no desejo de aproximar, cada vez mais, a relação entre a investigação e o ensino, de modo a tornar mais coerente o trabalho do professor, melhorar a prática docente em sala de aula, permitir maior qualidade na relação educativa e, como efeito destas mudanças, potencializar o processo de ensino-aprendizagem dentro da universidade. Como foi discutido, a gestão é deslocada dos interesses centrais da profissão, por não contribuir para esta articulação entre atividades que potencializem o trabalho do professor. Destacamos que esta articulação não é desejada apenas entre o ensino e a investigação, apesar do destaque que recebe este nexo. A importância da transferência do conhecimento como papel da universidade, passando pelas demais dimensões da atividade docente, também nos faz compreender que as relações entre as dimensões são mais intrínsecas do que se mostram no dia-a-dia universitário.

Assim, os desejos para o futuro da profissão passam pela situação da fragmentação do trabalho docente para a articulação das dimensões das suas atividades. Esclarecemos que esta articulação se trata de um desejo dos professores participantes no estudo, reforçando que, no contexto português, essa não é uma realidade, ainda, dado que a profissão é marcada por uma fragmentação entre as atividades docentes.

Compreendemos que, movida pela interação humana com o outro que aprende, a profissão (e os lugares que as dimensões ocupam nela) está sempre voltada para o estudante e para a transferência do conhecimento. Ainda que esta seja uma dimensão pouco comentada, reúne os interesses da profissão. Ainda que haja mais tarefas de caráter burocrático e menos tempo para a relação educativa ou para assegurar a qualidade da docência, podemos concluir que se trata da essência que guarda a noção de identidade académica: a sua relação com o conhecimento, a sua produção e divulgação.

 

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Legislação

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Financiamento

Estudo financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH/BD/98812/2013)

 

Recebido em abril/2015

Aceite para publicação em agosto/2015

 

Notas

1 O Processo de Bolonha prevê a construção de um espaço europeu de ensino superior harmonizado com o objetivo de aumentar a competitividade e promover a mobilidade e a empregabilidade dos estudantes no espaço europeu.

2 As transcrições das falas dos professores participantes do estudo são identificadas por um número de 1 a 7 (P1 – P7) para garantir o anonimato dos participantes.

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