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Análise Psicológica
versão impressa ISSN 0870-8231
Aná. Psicológica vol.29 no.2 Lisboa abr. 2011
Fatores de risco e mecanismos de proteção nas narrativas das famílias em situação de violência conjugal
Marisol de Andrade Seidl*; Silvia Pereira da Cruz Benetti*
* Horta Comunitária Joanna de Ângelis, Novo Hamburgo, RS;
** Universidade do Vale do Rio dos Sinos, UNISINOS, São Leopoldo, RS
RESUMO
Tomando como referência a noção de resiliência familiar como um processo interativo e dinâmico, este artigo está voltado para a identificação dos processos de resiliência em famílias com história de violência conjugal. Para tanto, utilizando-se da técnica da narrativa, através do estudo de dois casos de famílias foram identificadas tanto as crenças familiares, os padrões organizacionais e as formas de comunicação em relação aos eventos violentos, como os mecanismos de proteção e as situações de risco nas famílias nos diferentes contextos. Os fatores de proteção não se apresentaram da mesma forma para todas as famílias. Embora se mostrassem semelhantes tinham um sentido diferente, pois cada família manteve suas próprias características de identidade diante da violência respondendo a sua maneira e de acordo com seus valores e crenças. Conclui-se que a presença dos mecanismos de proteção foi fundamental para a construção dos processos de resiliência para as famílias da pesquisa.
Palavras-chave: Fatores de proteção e risco, Família, Resiliência familiar, Violência conjugal.
ABSTRACT
Taking as a reference the notion of resilience in families as an interactive and dynamic process this article on identifying the resilience processes of families with a history of marital violence. In order to accomplish that goal, narrative technique was used and forms of communication related to violent events were identified, such as protective mechanisms and risk situations of the families in different contexts. Protective factors were not the same for both families. Although similar, they had different meanings, since each family kept its own identity characteristics when faced with violence, each responding in their own manner and according to their values and beliefs. If was possible to conclude that the presence of protective mechanisms was fundamental for the building of resilience processes in the participating families.
Key-words: Family, Family resilience, Marital violence, Risk and protective factors.
As pesquisas baseadas no construto da resiliência familiar ainda são pouco exploradas (Hawley & DeHann, 1996; Yunes, 2003), sendo escassos os estudos que investigam o sistema familiar na promoção dos processos de resiliência individual. A maioria dos trabalhos está centrada no clima emocional ou na dinâmica de famílias disfuncionais, portanto, baseada no paradigma do déficit (Lietz, 2006). Segundo Ravazzola (2005) o desafio atual é estudar as interações familiares para se conhecer as competências e potencialidades humanas que ficaram postergadas pelas tradicionais pesquisas e tinham foco nos déficits familiares e nas funções maternas e paternas. A partir deste enfoque, a resiliência em famílias passa a ser compreendida como um conjunto de características baseadas na capacidade da família em ter um funcionamento flexível e de contenção dos problemas, não deixando outros domínios do funcionamento familiar interferir no funcionamento de seus membros (Hawley & DeHann, 1996; Walsh, 2005; Yunes, 2003).
As pesquisas sobre resiliência têm abordado diferentes situações de estresse no desenvolvi mento humano, como traumas, violência, doenças e perdas (Garcia & Yunes, 2006; Lietz, 2006; Yunes, 2001; Yunes, Mendes, & Albuquerque, 2004). Para Walsh (2005), a resiliência em famílias é tecida por uma rede de relacionamentos e experiências que vão se desenrolando durantes os ciclos de vida e entre as gerações, considerando a resiliência como resultado de diferentes relações interpessoais nos diversos contextos sociais e ao longo do tempo. Neste sentido, Walsh (2005) desenvolveu uma abordagem compreensiva da resiliência familiar a partir de uma ótica sistêmica e ecológica do desenvolvimento. “O contexto relacional da resiliência dentro de uma ótica sistêmica expande a nossa visão da adaptação individual para processos transacionais mais amplos nos sistemas familiares e sociais e trata da mutualidade das influências através destes processos” (p. 11). A autora considera que alguns processos-chave no funcionamento familiar são fundamen tais para a promoção de resiliência. Estes seriam baseados em três domínios familiares que incluem o sistema de crenças da família, os padrões organizacionais e os processos de comunicação.
Os sistemas de crenças estão na base do funcionamento familiar. As principais crenças associadas à resiliência incluem a capacidade familiar de atribuir sentido à adversidade, a perspectiva positiva no enfrentamento das crises e a transcendência e espiritualidade. Outro domínio são os padrões organizacionais considerados amortecedores dos choques familiares, incluindo flexibilidade para mudanças e reorganização, conexão e apoio mútuo entre os membros e os recursos sociais e econômicos. Finalmente, os processos de comunicação familiar que se caracterizam por clareza nas mensagens, expressão emocional aberta, empatia nas relações e resolução colaborativa dos problemas, focalizando nos objetivos a serem alcançados.
Tomando como referência a noção de resiliência em famílias como um conjunto de processos interativos e dinâmicos, em uma abordagem ecológica das relações humanas (Bronfenbrenner, 2002), este artigo está voltado para a identificação dos processos de resiliência em famílias com história de violência conjugal através da técnica da narrativa. Os fatores de proteção e de risco foram investigados a partir do significado atribuído nas narrativas familiares à violência. Dessa forma, foram identificadas tanto as crenças familiares, os padrões organizacionais e as formas de comunicação em relação aos eventos violentos (Walsh, 2005), como os mecanismos de proteção e as situações de risco nas famílias nos diferentes contextos bioecológicos. Este referencial privilegia a compreensão do desenvolvimento humano no contexto, levando em conta os aspectos relativos à pessoa (características físicas, biológicas e emocionais), ao processo (como a experiência é vivenciada) e o tempo (meio-ambiente).
O contexto é analisado através de quatro sistemas que se interconectam: (a) Microssistema: é um padrão de atividade, papéis e relações interpessoais, num ambiente específico (família); (b) Mesossistema: inclui as inter-relações entre dois ou mais ambientes no qual a pessoa em desenvolvimento participa ativamente (escola, amigos, trabalho e vida social); (c) Exossistema: refere-se a um ou mais ambientes que não envolve a pessoa em desenvolvimento como um participante ativo (trabalho dos pais, amigos dos pais); e (d) Macrossistema: compreender a cultura, crenças e ideologias (Bronfenbrenner, 2002).
Assim, neste estudo, considerando os processos-chave de resiliência familiar propostos por Walsh com base em uma ótica sistêmica e ecológica do desenvolvimento, incluindo tanto o sistema familiar como o contexto bioecológico, procurou-se identificar os fatores de risco e mecanismos de proteção compreendidos nas narrativas familiares. Para tal, realizou-se o estudo de caso de famílias com histórias de violência conjugal, que foram compreendidas a partir do significado atribuído nas narrativas familiares à violência.
MÉTODO
Delineamento
Neste estudo, utilizou-se a abordagem descritiva qualitativa baseada no modelo narrativo (Murray, 2004; Walsh, 2005; White & Epston 1990), o qual permite a compreensão dos significados específicos de construção e constituição da realidade (Bruner, 1991), identificando como as pessoas dão sentido às suas experiências a partir de referência pessoais, familiares, sociais, culturais e incluindo também os aspectos transgeracionais. O modelo sistêmico interacional através da abordagem da Terapia Narrativa de Michael White e David Epston (1990) foi utilizado para conhecer e compreender as distintas significações de crenças e valores dos dois casos de famílias atendidas na pesquisa. Especificamente, no campo da terapia familiar a técnica da narrativa tem sido utilizada como parâmetro terapêutico (White & Epston, 1990) e também investigativo (Rober, Eesbeek, & Elliot, 2006).
Participantes
A partir do contato estabelecido na Delegacia para a Mulher, foram escolhidas duas famílias com configuração monoparental em função da separação conjugal decorrente da Violência Doméstica. Além disso, as famílias correspondiam aos critérios adotados para a seleção, os quais foram, a faixa etária dos filhos de até 12 anos, a situação familiar de violência conjugal e finalmente os aceites na participação do processo terapêutico. A primeira família foi Lílian (mãe – 29 anos) e Beatriz (filha – 9 anos). A segunda família foi constituída da mãe, Rosângela (28 anos) e filhos, Rodolfo (11), Elvis (10) e Elisa (6). Foram realizadas seis sessões psicoterapêuticas com a primeira família e sete sessões com a segunda. Os dois casos eram de mulheres que haviam solicitado atendimento para tratar de questões relativas às agressões do cônjuge e encontravam-se em processo de separação conjugal. Os procedimentos da pesquisa com as famílias estudadas estavam de acordo com as resoluções 196 do Conselho Nacional de saúde, tendo sido o projeto aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) comunicação número 14.
Análises de dados
As entrevistas focalizaram as narrativas das famílias quanto ao funcionamento familiar, à situação de violência e aos processos relacionais de seus membros nos contextos de vida, bem como a história de vida familiar. Após a transcrição do relato das entrevistas foi realizada a análise das narrativas familiares através do roteiro interpretativo de Flick (2004). Este roteiro organiza-se em etapas de análise que incluem a obtenção da narrativa, a exposição do texto como unidade, a subdivisão do texto em unidades experimentais ou função-chave, a análise lingüística interpretativa de cada unidade, desdobramento em série, interpretação dos significados e desenvolvimento de interpretações funcionais do texto. Finalmente, as últimas etapas abrangem a compreensão do texto em sua totalidade e a exposição das múltiplas interpretações. Para a interpretação funcional do texto foram utilizados os processos de resiliência em famílias de Walsh (2005) na compreensão dos processos individuais, relacionais e os recursos disponíveis e a interpretação subjetiva que cada família atribui aos eventos adversos e o reflexo deles em suas vidas. Estes elementos de análise foram contextualizados numa compreensão ecológica das relações familiares, ambientais e individuais, conforme modelo ecológico proposto por Bronfenbrenner (2002).
RESULTADOS
A partir da análise dos domínios de Walsh nas trajetórias de Lílian (Caso 1) e Rosângela (Caso 2) foram identificados nas entrevistas os fatores de proteção e de risco nas narrativas familiares, conforme os diferentes sistemas ecológicos (eu ecológico), microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema.
Família 1 – Lílian
A primeira família pesquisada foi a de Lílian (29) e Beatriz (9). Lílian estava na Delegacia fazendo uma ocorrência contra o sogro por ameaça de agressão física, episódio relacionado ao fato de Lílian ter encaminhado ao judiciário queixa quanto ao não pagamento da pensão alimentícia da filha, o que resultou na prisão do ex-marido. A represália da família de origem do ex-marido era resultado desta ação que causou impacto e gerou mudanças na vida de Lílian e Beatriz, até então sob o controle autoritário desta família. Isto porque Lílian ainda morava nos fundos da casa dos sogros, apesar da separação conjugal ter completado três anos. Entretanto, o processo judicial de separação ainda estava tramitando na justiça, impedindo a resolução da questão da moradia e da divisão dos bens do casal.
Sistema de crenças da família
Lílian relata nas entrevistas que durante o convívio com o marido mostrava-se obediente e passiva diante da violência a qual era submetida e não via as necessidades da filha. “Só que eu era muito imatura, acho que era muito burra naquela época, sabe”. “Tudo eu aceitava, tudo eu dizia sim, tudo eu dizia amém, pra mim tudo estava bom, eu não sabia qual eram as minhas vontades”. Não enxergar o sofrimento da filha e o que a violência causava para ambas permitiu que o processo se mantivesse por mais tempo. “Eu te confesso que naquele momento eu não falava nada para ela, porque eu só pensava em mim. Minha vida era só chorar... e nesse momento eu não enxergava nada, só eu..., só depois eu percebi que ela precisava de ajuda”.
Gradualmente, Lílian reconheceu a situação de violência em que vivia, atribuindo sentido à vida de forma a fazer novas escolhas, baseadas em responsabilidade e a lealdade para com a filha, “que a vida é uma escola e eu aprendi muito, claro que não foi na base do amor. Foi na base digamos, assim, da pancada mesmo que eu amadureci”. Admitiu o impacto da violência, “minha mãe sempre falava, que “a gente é o espelho dos filhos da gente” e se a minha filha crescesse vendo o pai dela sempre me agredindo, qual era o futuro da minha filha, eu pensava”. Como eu vou mostrar tudo de bom para ela, se eu vivo num relacionamento onde meu marido me espanca dia e noite... ou eu me amava, ou não me amava”. Esta reflexão melhora seu senso de coerência e propósito de vida, além de aumentar sua responsabilidade no cuidado com a filha. Identifica também a religiosidade e fé, “Quando eu comecei a freqüentar a igreja, eu fui procurar uma coisa que me preenchia, sabe, aquele vazio que eu tava sentindo”.
O apoio da irmã e do pai foi um fator de proteção muito relevante para a saída da história de violência, promovendo uma estabilidade emocional tanto para Lílian quanto para Beatriz. “Irmã assim que só no olhar já sente o que a outra está pensando... Se ela me olha ela sabe se eu estou bem ou se estou mal e foi ela que me ajudou bastante”. A valorização da instituição familiar relacionou-se às crenças, a cultura e aos valores da família de origem de Lílian de não aceitar a violência: “aprendi que por mais que doa tem que dizer a verdade; se minha mãe estivesse viva, ela veria isso e ela não teria nada de orgulho de mim”. Ao contrário, o modelo interacional da família do ex-marido sustentava-se em crenças que favoreciam o aparecimento e perpetuação da violência. Por exemplo, o lugar da mulher na relação era de uma posição passiva e inferior ao homem, o qual é percebido como tendo controle e autoridade sobre a esposa e filhos, “ele vinha e pedia perdão e dizia que não ia mais fazer, que sabia que estava errado e quando via estava me agredindo de novo”.
Padrão de organização
A coesão da família de origem de Lílian e o compartilhar dos problemas mostraram-se grandes suportes para Lílian e Beatriz conseguirem enfrentar as dificuldades. “Meus irmãos todos me apóiam, já saí de sacola de roupa, sempre me ampararam, sempre disseram que era pra eu largar essa vida. O meu pai e minha mãe já morreram, mas não era esse tipo de vida que eles queriam para mim”. Na família do marido, porém, não havia respeito pelas diferenças e as regras eram rígidas, punitivas e coercitivas. Durante o casamento e após a separação a família de origem do ex-marido continuou a exercer influência dominadora e manipulativa sobre Lílian e Alan, indicando dificuldades com limites e fronteiras do casal e gerando um problema no processo de separação/individuação. O marido se envolveu com uma menina de treze anos que engravidou o que denota um padrão familiar de promiscuidade sem compromisso com vínculo afetivo em que as mulheres são desvalorizadas e exploradas sexualmente como objetos de prazer descartável.
O apoio da escola e da igreja, que desempenharam um papel reforçador da necessidade de buscar outros propósitos e sentido para a vida. A escola apontando o sofrimento da Beatriz bem como seu potencial e capacidade de se manter bem na aprendizagem. A igreja possibilitando sua re-conexão com a fé. Foram fatores positivos para o enfrentamento da violência. A terapia também proporcionou reflexão e reconhecimento de suas habilidades, capacidades e valores, bem como seus direitos como cidadã aliada ao papel da Delegacia para a Mulher. Esta última, promovendo suporte judicial e emocional ao propiciar a denúncia da violência e garantias quanto a sua segurança.
Entretanto, Lílian enfrenta dificuldades na esfera do judiciário, pois este se mostra lento e pouco resolutivo. Já se passaram três anos da separação e sua situação continua a mesma, ou seja, morando no mesmo pátio que os sogros e tendo que engolir desaforos e ofensas, além da ausência de apoio financeiro.
Processos de comunicação
A resolução dos problemas, a comunicação clara e a expressão emocional aberta na relação entre mãe e filha facilitaram e promoveram a recuperação da auto-estima e autoconfiança de ambas. “Eu não preciso disso, eu tenho que me dar valor, como eu vou ficar com um homem que não me dá valor”.
A amizade e comunicação aberta entre os membros da família, sem vergonha de expor sua situação e seus sentimentos, geraram confiança e um sentimento de não ser sozinha no mundo (proteção) e também perceber como ela e a filha são importantes para a família. É possível se identificar que a empatia é um modelo relacional entre as irmãs da família, que facilita a organização e a manutenção dos relacionamentos baseados na confiança, proteção e afeto positivo.
Durante o casamento, Lílian não conversava com a filha porque não via o alcance da violência para a menina, “É que na época do conflito eu não enxergava nada e o que tava em volta de mim era a Beatriz... e eu não prestava atenção nela antes”. Na relação de Lílian com a família de origem do ex-marido a comunicação é distorcida e ela não é ouvida em suas necessidades nem da filha e acaba guardando suas angústias e se sentindo acuada. Há pobreza no compartilhamento das emoções e a comunicação não é aberta a negociações na relação do casal. “porque ele não pode conversar comigo?”. Lílian se queixa que a sogra é sua intermediária junto ao ex-marido, “ela é quem fala por mim, e não eu, isso me incomoda muito”. Observa-se que a família do ex-marido funciona de forma a dificultar as coisas para ela, mantendo um controle coercitivo e vingativo. Eles não aceitam o fato dela ter deixado o filho e ainda tê-lo denunciado à polícia, gerando sua prisão.
Família 2 – Rosângela
A segunda família pesquisada foi de Rosângela (28) e seus três filhos, Rodolfo (11), Elvis (10) e Elisa (6). Rosângela estava vivendo sob forte impacto emocional, pois a separação do marido Hamilton (35) era recente e ele a ameaçava de morte. O marido tinha sido preso em flagrante pela polícia que fora acionada pela vizinha que denunciara o espancamento que Rosângela estava sendo vítima. A ação da polícia promoveu segurança e proteção necessária para que Rosângela pudesse se separar do marido. Dias antes da separação, Rosângela telefonara para o pai de quem estava afastada há muito tempo. O pai a apóia e ela consegue manter a decisão de separar-se do marido. Ela e os filhos moravam em uma casa de aluguel e permaneceram ali após a separação. Rosângela estava procurando emprego e contava com a ajuda de seu pai para as despesas da casa. A sogra e os cunhados, com exceção de uma cunhada, estavam todos contra ela e não acreditavam na história de violência.
Sistema de crenças da família
A história pessoal de Rosângela indica que o relacionamento conjugal foi motivado por uma tentativa de sair de uma situação problemática, tanto a nível financeiro como emocional e familiar. Rosangela inicia um relacionamento com uma posição de dependência e imaturidade que vai se refletir ao longo dos anos que se manteve casada. Esta dependência emocional e a violência, somente são encaradas e enfrentadas após a denúncia da vizinha. Durante o casamento, o senso de coerência de Rosângela estava alienado e paralisado, e ela não tinha controle sobre os eventos estressantes como a violência vivenciada no casamento. O medo lhe limitava emocionalmente para cuidar de si mesma, “... me limitava a não comer, a cuidar dos filhos, tomar um banho”.
Todavia, atribuir significado a sua vida como alguém capaz de cuidar e amar os filhos é seu grande protetor diante das adversidades e sofrimentos, “eles são a minha família, são tudo para mim e eu vivo por eles e por mim, tanto que eu suportei tudo por eles”. Demonstrou perseverança, coragem e enfrentamento dos desafios, “eu quero ser feliz de novo, eu queria que as crianças entrassem em casa sem medo, sem pensar que o pai vai chegar, poder ligar o rádio e ouvir música”.
Quando os filhos de Rosângela tentavam protegê-la do ataque do pai demonstravam uma grande lealdade para com ela, motivando-a superar as dificuldades. “A mãe não queria ver vocês chorando, a Elisa via o pai me bater, começava a chorar e querer secar as minhas lágrimas e ficar cuidando de mim, o Rodolfo ficava na dele e o Elvis me defendia. A mãe não queria que vocês vissem isso”. Portanto, ela constrói sua história com os filhos tendo em sua base valores como o afeto e a proteção.
A decisão de rompimento de um modelo relacional cerceador da autonomia, opressor e dominador da figura feminina causou estranheza e revolta em ambas as famílias, o que confirma a força do modelo relacional e a dificuldade de sair dele. “Ela disse: ah coitadinho - daí eu olhei pra ela e disse, como assim coitadinho, tia? Tanto na família de origem do marido como da de Rosângela, o modelo relacional é de violência à mulher. Na família de Rosângela as mulheres casam com homens opressores e violentos. “Todas as minhas tias são assim, eu tenho uma tia que ela é casada e o marido fez e aconteceu, a tia é daquelas que casou é pra sempre”. Fecha-se, portanto, um círculo de violência que se perpetua nas gerações, confirmando-se como um modelo transgeracional, baseado em crenças de que o casamento é solução para os problemas, o casal deve renunciar à felicidade pelos filhos, as mulheres devem ser as cuidadoras da família e ceder à vontade do marido.
Padrão de organização
O apoio do pai com o qual Rosangela estivera distante por muito tempo foi uma questão importante para o resgate de um vínculo familiar amoroso, “meu pai disse que eu tinha que fazer alguma coisa por mim, se eu amo meus filhos, ... ele dizia faz por ti que vai refletir neles, arruma um emprego bom, trabalha, cuida de ti...” Rosângela consegue se reorganizar para trabalhar e cuidar dos filhos, as crianças aceitam com tranqüilidade a nova forma familiar e se adaptam rapidamente, para surpresa dos familiares. “Até o irmão dele falou, como pode as crianças vão à casa da mãe e parece que não aconteceu nada, ta tudo normal”.
Ao contrário, o isolamento em que Rosângela vivia propiciava a manutenção da violência e a falta de autonomia e flexibilidade na relação homem x mulher. Os limites no casamento eram rígidos, coercitivos e punitivos. O marido não a deixava trabalhar e decidia sobre suas amizades, mantendo o controle total sobre ela. Ao desafiar sua autoridade Rosângela enfrenta a vingança e o desejo de retaliação de parte do ex-marido, como ameaças de morte e de perda da guarda dos filhos. O fator que mantinha sua permanência na história de violência foi a falta de apoio da sua família de origem, “me senti arrasada, não diria sem apoio, eu me senti excluída, e eu fiquei sem alternativas e não tinha amiga e não tive cabeça pra pensar em algum outro parente”.
A denúncia da vizinha chamando a polícia, portanto, foi fundamental para fornecer à Rosângela uma alternativa para sair da história de violência. No momento atual, Rosângela permite a entrada de outras pessoas em sua vida, como visinhos, terapeuta e judiciário e confia nesta ajuda.
Processos de comunicação
Durante o casamento, a comunicação no casal era distorcida e marcada por mentiras e omissões por parte do marido, que passava dias fora de casa em noitadas de boemia e tinha vários envolvimentos extraconjugais, não respeitando a esposa e tão pouco os filhos.“Porque sempre depois que ele me batia, ele fazia o que fazia, ele ficava dentro de casa uns quantos dias, ele não saia, daí saía o roxo eu ficava melhor e não dava pra fazer o exame de corpo delito”.
Após a separação, Rosangela passa a compartilhar os sentimentos com os filhos, tenta confortálos e protegê-los com acolhimento e respeito. Ela transmite segurança aos filhos que unidos se reorganizaram emocionalmente, “eu acredito que é porque eu tô sempre com eles, eu só trabalho e tô com eles”. Rosângela tem compartilhado com seu pai as dificuldades e resgatou a amizade com sua avó, dessa forma a comunicação está mais aberta e clara. Neste sentido, a família de origem ressurge quando ela precisa e com isso resgata o que faltou no passado.
DISCUSSÃO
A partir da análise dos domínios de Walsh nas trajetórias de Lílian (Caso 1) e Rosângela (Caso 2) foram identificados os diferentes processos de resiliência familiar e de risco e vulnerabilidade nos contextos ecológicos das famílias da pesquisa. Destacaram-se as situações imediatas (eu ecológico), seguidas dos níveis do microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema, possibilitando uma interpretação ampla dos indicativos que foram considerados relevantes, tanto para a saída da história de violência quanto para potencializá-la. Na Tabela 1, são apresentados os processos de resiliência para ambas as famílias da pesquisa e na Tabela 2, os fatores de risco.
Através das narrativas, foram identificados os processos-chave de resiliência, os mecanismos de proteção e as situações de risco nas famílias nos diferentes contextos. Ao nível do Eu Ecológico, no Sistema de Crenças da família, observa-se que a perseverança e a coragem no enfrentamento dos desafios foram um grande protetor individual, promovendo a auto-estima das mulheres, pois se viram capazes de lutar por elas mesmas e pelos filhos. Outro aspecto protetor estava ligado à construção da maternagem como sentido de vida, quando o cuidado e a proteção aos filhos tornam-se os valores afiliativos de maior sustentação emocional destas mulheres dentro da história de violência e sofrimento (Beavers & Hampson, 1990, 1993). Por último, atribuir sentido à adversidade, através da crença de que o sofrimento auxilia a pessoa a se fortalecer, favoreceu o reconhecimento do alcance da violência e a discriminação da situação que estavam vivendo e promoveu ações para a saída da história de violência.
Ao nível da Microssistema Familiar, outro fator também essencial para a saída da história de violência foi a afetividade nos vínculos familiares, que acompanhava as famílias através de várias gerações e constituindo-se como um modelo do sistema de crenças da família voltado para a proteção, união e afeto entre seus membros. Este modelo favoreceu o compartilhamento das dificuldades e confirmaram os pais como os principais formadores da personalidade dos filhos. Desta maneira, gradualmente, ocorreu uma transformação do Padrão de Organização familiar, incluindo uma maior percepção das necessidades dos filhos e uma orientação positiva frente à vida.
No Microssistema familiar, o apoio e a colaboração entre mãe e filhos no enfrentamento dos problemas facilitaram a adaptação à nova forma familiar No Mesossistema e Exossistema, verificouse a importância do suporte social na promoção de novas respostas à violência conjugal, entre eles o apoio dos vizinhos, escola, igreja, terapia, Delegacia para a Mulher, polícia e ação do judiciário. Estas modificações refletem-se nos Processos de comunicação das duas famílias estudadas.
Além do compartilhamento dos sentimentos entre mãe e filhos, há maior acolhimento e proteção. A comunicação ao nível do Microssistema Familiar também foi um dispositivo de mudança, principalmente a importância da relação de amizade entre os membros da família, em especial, a família de origem que funciona como um suporte no enfrentamento dos problemas. Outro fator importante que também promoveu a saída da história de violência foi a empatia nas relações familiares, como no caso de Lílian, em que o relacionamento entre as irmãs era muito protetor. No Mesossistema e Exossistema, acesso aos serviços de ajuda e acolhimento por parte dos profissionais, se tornaram possíveis a partir da criação da Delegacia para Mulher.
Em relação aos fatores de risco e vulnerabilidade, fazendo-se um paralelo entre as histórias das duas famílias, identifica-se que o Sistema de crenças familiares que mantém as histórias de violência no Microssistema familiar é extremamente semelhante nos dois casos. Pode-se citar o papel da mulher como mantenedora da família, passiva diante do marido e a função de principal educadora e protetora dos filhos. Ao contrário, os homens são dominadores e opressores, não valorizando a esposa e demonstrando pouco envolvimento emocional, características masculinas oriundas de um modelo relacional de violência à mulher vivenciado em suas famílias de origem e perpetuado através da herança transgeracional.
Ambas as mulheres apresentaram um senso de coerência interno paralisado e alienado frente à violência vivenciada, limitando suas ações e tentativas de mudança. Na Família de Lílian, a parali sação interna desenvolveu um processo emocional de cegueira da mãe frente às conseqüências da violência para a filha, que acabou gerando depressão e ansiedade para ambas. Além disto, o Padrão de Organização familiar foi caracterizado pelo distanciamento afetivo, envolvimento em relacionamentos extraconjugais e ausências do lar. As regras eram rígidas, coercitivas e punitivas e o homem mantinha o poder e o controle sobre a família, caracterizando um sistema familiar autoritário.
Assim, houve uma significativa pobreza na diferenciação dos parceiros no sistema conjugal, onde a falta de respeito pelos limites geracionais e pelas fronteiras do casal levaram a um padrão de promiscuidade sem compromisso com os vínculos. Verifica-se, também, que alguns aspectos foram fundamentais para gerar vulnerabilidade diante da violência como o isolamento social, a falta de profissão e emprego, a dependência financeira do marido e a falta de apoio de alguns familiares, elementos do Mesossistema e Exossistema característicos na violência conjugal
Finalmente, o último pilar de resiliência familiar destacado por Walsh refere-se ao domínio Processos de Comunicação. O isolamento familiar foi, sem dúvida, o elemento que tornou a comunicação entre os membros, tanto no microssistema familiar como em relação aos processos interativos com os demais sistemas extremamente inoperantes. A resolução de conflitos era alcançada através da violência, indicando a dificuldade de interação e diálogo na construção de soluções na família e a total ausência de processos comunicativos entre os demais sistemas de apoio.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta pesquisa verificou-se que o processo de resiliência familiar foi construído tendo como fatores principais os aspectos marcantes da família como uma unidade funcional frente à superação das dificuldades, em que habilidades e competências de seus membros foram elementos muito valorizados, favorecendo a saída da história de violência. Um aspecto muito marcante na promoção do processo de resiliência para estas duas famílias se relaciona à forma como as mães construíram suas histórias de afeto, cuidado e proteção aos filhos. Esse fator de proteção familiar diminuiu os prejuízos da exposição à violência para as crianças e também propiciou às mães se manterem mais inteiras emocionalmente apesar do sofrimento, confirmando as pesquisas de Beavers e Hampson (1990, 1993), sobre o valor do cuidado e da proteção no desenvolvimento emocional dos membros da família. Portanto, pode-se dizer que, em geral, nos núcleos familiares a manutenção de saúde mental e resiliência ocorrem quando pelo menos uma relação significativa de proteção e afeto entre os membros se desenvolve como de mãe para com os filhos, ou entre os irmãos.
Da mesma forma, o reconhecimento do apoio familiar e fortalecimento do vínculo com figuras importantes da história passada das mulheres foi um elemento decisivo na manutenção da denúncia na Delegacia da Mulher e enfrentamento de todas as etapas judiciais que envolvem um processo. Mais especificamente, Lílian resgata a imagem materna como cuidadora e idealizadora de uma vida melhor para a filha. Rosangela, dias antes de assumir a denúncia contra o marido, resgatou a relação com o pai, o qual, igualmente, expressa um desejo de que a filha se cuidasse e amparasse aos filhos.
Assim, considera-se que os profissionais que trabalham com vítimas de violência familiar devem estar atentos para a presença nos relatos das vítimas de relações interpessoais que sirvam de apoio não somente financeiro, mas, sim, de suporte afetivo e validador das experiências das mulheres. E, aqueles casos onde houvesse menor disponibilidade de apoio, deveriam seguir um atendimento psicoterápico mais específico, dirigido às questões particulares de cada história, a fim de que possam identificar suas fragilidades e evitar o retorno para padrões familiares violentos.
Desta maneira, verifica-se que os fatores de proteção não se apresentam da mesma forma para cada família, de forma que não se pode generalizar e categorizar as famílias em modelos estanques de resiliência. Pelo contrário, cada família manteve suas próprias características de identidade diante da violência respondendo a sua maneira e de acordo com seus valores e crenças familiares. Alguns protetores embora se mostrassem semelhantes para cada família tinham um peso diferente. Na família de Rosângela, os maiores fatores de proteção estavam relacionados à construção do sentido de vida da mãe através da relação com os filhos e suas características individuais de temperamento, além do fator social (vizinha e polícia). Na família de Lílian, os fatores de proteção que tiveram maior impacto foram o apoio da família de origem, em especial a amizade entre as irmãs e as características individuais, como a religiosidade.
Concluindo, é necessário ampliar o olhar das redes sociais de suporte e amparo às famílias em situação de violência conjugal, no sentido de buscar um entendimento destes processos violentos não a partir de uma ótica da doença ou de uma falha familiar, mas como um fenômeno muito maior que se constitui e se mantém na sociedade. Para tanto, seria necessário ampliar as redes de atendimento em saúde coletiva, através da capacitação de agentes de saúde, aperfeiçoamento do policial e a criação de casas abrigo com oficinas que favorecessem o ingresso das mulheres vítimas de violência conjugal no mercado de trabalho.
REFERÊNCIAS
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A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Silvia Pereira da Cruz Benetti, Rua Riveira, 150/301, 90670-160 Porto Alegre, RS. E-mail: sbenetti@unisinos.br