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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.30 no.1 Braga  2016

 

Género, conteúdos e segmentação: em busca do plano de texto

Genre, contents and segmentation: in search of the text plan

 

Paulo Nunes da Silva*

*CELGA-ILTEC | Universidade Aberta, Portugal.

paulo.silva@uab.pt

 

RESUMO

Neste artigo, são sistematizadas algumas das principais ideias acerca do conceito de plano de texto e propõe-se uma definição aplicável à análise de textos escritos de qualquer género. Com base numa reflexão crítica acerca das sínteses propostas em Adam (2002) e no Dicionário terminológico, são explicitadas as dimensões contempladas no plano de textos escritos (distribuição de conteúdos e segmentação), assim como os níveis macroestrutural e microestrutural em que ele se concretiza e os polos entre os quais pode gradualmente oscilar (plano de texto convencional vs. plano de texto ocasional). A seguir, são analisados dois textos, um do género dicionário unilingue e outro do género requerimento, com o objetivo de testar e validar o conceito de plano de texto tal como foi definido e caracterizado no início do artigo.

Palavras-chave: Plano de texto, género, distribuição, segmentação.

 

ABSTRACT

The goal of this paper is to define the concept of text plan and to apply it in textual analysis. First, it is presented a summary of two proposals on the subject (Adam 2002, Dicionário terminológico). Then, it is described the text plan's double dimension (content distribution and text segmentation), its macro and microstructural levels of analysis, and the opposition between conventional and occasional text plans. Finally, two texts of the genre monolingual dictionary and application are analyzed in order to test and validate the adopted definition of the concept.

Keywords: Text plan, genre, content distribution, text segmentation.

 

1. Introdução

No âmbito da linguística textual, da análise do discurso e dos estudos sobre os géneros, é frequentemente salientada a relevância do plano de texto para a estruturação dos produtos verbais (cf., entre outros, Adam 2002; Maingueneau 1998; Swales 2004). Os textos caracterizam-se por ser coerentes, para o que contribui decisivamente o facto de lhes subjazer um plano de texto, ou seja, uma ordenação e articulação dos conteúdos que permite ao interlocutor processar a informação e interpretá-la adequadamente.

O objetivo deste artigo consiste em refletir acerca do plano de texto e em apresentar uma definição operatória que, por um lado, contemple os diversos aspetos a considerar quando se analisam textos com base nesse conceito, e que, por outro, seja aplicável aos textos escritos de qualquer género e tipo de discurso, assim como de qualquer tipo textual ou sequencial predominante. Num primeiro momento (secção 2.), serão apresentados alguns contributos relevantes para a teorização acerca deste conceito. A partir da análise crítica das definições propostas em Adam (2002) (secção 2.1.) e no Dicionário Terminológico (cf. Costa e Aguiar e Silva (s/d)) (secção 2.2.), o conceito de plano de texto será, em primeiro lugar, detalhadamente caracterizado (secção 2.3.). De seguida, proceder-se-á à análise de textos dos géneros dicionário unilingue (secção 3.1.) e requerimento (secção 3.2.). A análise visa, por um lado, i) demonstrar a irredutível diversidade de planos de texto, ii) atestar a ancoragem dos textos na área de atividade socioprofissional em que emergem e iii) evidenciar a sua dependência relativamente aos objetivos com que são produzidos. Além disso, procurar-se-á, simultaneamente, iv) testar a validade da definição do conceito proposta. No final (secção 4.), serão sistematizadas as principais ideias suscitadas pela análise efetuada, designadamente no que diz respeito à aplicação do conceito de plano de texto, tal como foi inicialmente definido e caracterizado.

2. O plano de texto: considerações preliminares

Na disciplina clássica da Retórica, cujo objeto consistia na arte de comunicar de forma eloquente e persuasiva, eram já sistematizadas orientações acerca da distribuição e articulação dos conteúdos nos textos. Mas os contributos mais relevantes para uma reflexão sobre o conceito de plano de texto foram apresentados nas últimas décadas. Ao longo desta secção, serão explicitadas, de modo necessariamente breve, algumas dessas propostas.

Nas suas reflexões precursoras, Bakhtin (1986) incidiu a atenção no conceito de género. Entre as principais ideias que propôs, definiu os géneros como “tipos relativamente estáveis de enunciados” que se encontram ancorados em diferentes esferas de atividade humana e cujo uso permite aos indivíduos atingirem objetivos inerentes a essas áreas de atividade. O autor argumentou que os géneros se caracterizam por propriedades que se inserem na seguinte tríade: o conteúdo temático, o estilo e a estrutura composicional.

These utterances reflect the specific conditions and goals of each such area not only through their content (thematic) and linguistic style, that is the selection of the lexical, phraseological, and grammatical resources of language, but above all through their compositional structure. (Bakhtin 1986: 60)

O autor reconheceu, portanto, que a estruturação composicional dos textos constitui uma propriedade inerente aos géneros, que permite defini-los e delimitá-los relativamente a outros géneros. As propostas de Bakhtin são de tal modo relevantes que têm influenciado as principais áreas de investigação que estudam os textos, nomeadamente as que a seguir são referidas.

Na área dos Estudos Retóricos do Género, os géneros são preferencialmente perspetivados como formas de ação social. Segundo Miller (1984: 151), “a rhetorically sound definition of genre must be centered not on the substance or the form of discourse but on the action it is used to accomplish”. Assim, a análise de textos de cada género visa, sobretudo, descrever as situações em que ocorrem, as ações que realizam e os objetivos que concretizam. Por seu turno, ao definir o conceito de género como “typified response to recurrent actions”, Devitt (2004: 12-13) salienta que os autores que se situam nesta área privilegiam os padrões de ações associados aos géneros. Por conseguinte, as investigações em Estudos Retóricos do Género incidem a atenção nas ações sociais específicas de cada género, e não tanto na respetiva estruturação textual.[1]

Na área do Inglês para Fins Específicos, foi particularmente influente o estudo de Swales sobre o artigo científico.[2] Para descrever “[the] formal schemata” que tipicamente se associa aos textos do género artigo científico, o autor propôs o modelo CARS (acrónimo de Create A Research Space), tendo destacado os seguintes movimentos retóricos ou argumentativos: i) estabelecer um território, ii) estabelecer um nicho, e iii) ocupar esse nicho. Cada um dos três movimentos inclui um conjunto de passos que visam atingir o objetivo retórico em causa. Por exemplo, para o estabelecimento de um território, o autor de um artigo científico pode salientar a centralidade do tema abordado, apresentar reflexões gerais acerca do assunto e rever a literatura previamente publicada sobre esse mesmo tema. Note-se que a abordagem adotada nesta área incide na organização retórica dos textos de um dado género. Tal preocupação é, aliás, consentânea com o facto de a área de investigação do Inglês para Fins Específicos privilegiar os objetivos subjacentes ao uso da linguagem verbal e, por inerência, a cada género, conforme é salientado na citação seguinte:

A genre comprises a class of communicative events, the members of which share some set of communicative purposes. These purposes are recognized by the expert members of the parent discourse community, and thereby constitute the rationale of the genre. This rationale shapes the schematic structure of the discourse and influences and constrains choice of content and style. […] In addition to purpose, exemplars of a genre exhibit various patterns of similarity in terms of structure, style, content and intended audience. (Swales 1990: 58)

Numa obra mais recente, Swales (2004) teorizou acerca dos resultados de diversos estudos sobre planos de teses de doutoramento, tendo proposto uma classificação que prevê três classes: estruturação por tópicos, IMRD[3] e compilação de artigos (cada um deles com o plano IMRD).[4] As partes em que se dividem os planos de texto dos exemplares do género tese de doutoramento podem ser analisadas segundo uma perspetiva retórica, ou seja, procurando identificar os movimentos argumentativos inerentes a cada uma delas (como se observa, por exemplo, no modelo CARS).

No âmbito da Linguística Sistémica e Funcional, merecem destaque os estudos de Biber. O autor tem procedido à análise de corpora extensos com o objetivo de identificar padrões linguísticos de uso em géneros académicos orais e escritos, como a aula e o manual (cf. Biber 2008). Em diferentes registos e géneros,[5] assim como em áreas disciplinares distintas, os seus estudos procuram detetar variação a nível do vocabulário, de aspetos gramaticais (classes sintáticas, estruturas sintáticas, sequências de palavras recorrentes, etc.), e da voz autoral, entre outros. Os resultados são particularmente relevantes no que diz respeito a propriedades sintáticas, semânticas e lexicais inerentes aos registos e aos géneros analisados, embora não tanto no que se refere à estruturação textual dos géneros, o que se fica a dever ao facto de as análises efetuadas incidirem em características que se inscrevem nas componentes estilístico-fraseológica e semântica, e não tanto na componente composicional.[6]

O Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) é uma teoria da atividade humana que assenta no pressuposto de que a linguagem verbal simultaneamente permite, regula e promove as ações sociais. Nesta perspetiva, os textos constituem representantes empíricos das atividades (gerais e de linguagem) e emergem em situações de comunicação específicas, condicionadas pela área de atividade socioprofissional, pelos papéis sociais dos interlocutores e pelos objetivos que procuram atingir, entre outros fatores. Cada formação sociodiscursiva possui, numa dada sincronia, um reportório de géneros que usa para desenvolver as suas atividades. Os géneros configuram categorias abstratas descritas com base na análise de textos empíricos. De acordo com Bronckart (1996: 120-121), a arquitetura interna dos textos prevê três níveis imbricados: a infraestrutura do texto, os mecanismos de textualização e os mecanismos de prise en charge enunciativa. No nível infraestrutural, inclui-se o plano de texto, que combina a seleção e as modalidades de articulação de diversos tipos de discurso (Bronckart 1996: 159), assim como de tipos sequenciais distintos (cf. Adam 1992, 2011). Os mecanismos de textualização, em que se inserem os dispositivos que asseguram a coesão, também contribuem para a configuração do plano de texto. A investigação que, nesta área, incide nos planos de texto tem privilegiado, portanto, a seleção e articulação dos tipos de discurso previstos no âmbito do ISD:[7] discurso interativo e discurso teórico (da ordem do expor), relato interativo e narração (da ordem do narrar).[8]

O campo de investigação delimitado pela escola francesa de Análise do Discurso tem como objeto genérico de estudo a prática social de produções textuais. Entre os seus objetivos, conta-se o de refletir acerca dos fatores externos que condicionam as interações verbais e das maneiras pelas quais esses fatores se refletem nos textos. Também nesta área o conceito de género é central. Maingueneau (1998) sistematizou as condições de felicidade que subjazem aos textos de um dado género. Uma dessas condições decorre da organização textual:

Tout genre de discours est associé à une certaine organisation textuelle, qu'il revient à la linguistique textuelle d'étudier. Maîtriser un genre de discours, c'est avoir une conscience plus ou moins nette des modes d'enchaînement de ses constituants sur différents niveaux: de phrase à phrase mais aussi dans ses grandes parties. (Maingueneau 1998: 54)

Por um lado, a estas considerações subjaz a ideia segundo a qual a Análise do Discurso se interessa pelas interações verbais na medida em que elas permitem estudar e conhecer o que é exterior aos textos (interlocutores, espaços sociais, ideologias, etc.) mas que implícita ou explicitamente neles é refletido. Por outro lado, a citação remete para a Linguística Textual a principal responsabilidade de refletir acerca do conceito de plano de texto.

De facto, a Linguística Textual, tal como é preconizada por autores de língua francesa (com destaque para Jean-Michel Adam), tem por objeto a maneira como cada texto se estrutura de modo a caracterizar-se pela coesão e pela coerência e a constituir uma unidade semântica e pragmática. Com os contributos de outras disciplinas e áreas que estudam os textos sob múltiplas perspetivas, cabe-lhe um papel decisivo no estudo e na reflexão acerca do plano de texto. É nesta área que se inserem as propostas de Adam que a seguir são explicitadas.

2.1. Adam (2002)

Jean-Michel Adam (2002: 433-434) refletiu acerca do conceito de plano de texto no Dictionnaire d'analyse du discours, organizado por Charaudeau e Maingueneau.[9] Eis um sumário dos principais conteúdos expostos nessa entrada: Adam (2002) faz depender do plano de texto o facto de os textos constituírem uma sequência ordenada e hierarquizada de enunciados. Após esta indicação inicial, o texto da entrada encontra-se dividido em duas partes distintas mas complementares, abordando os modos necessariamente diversos como a retórica e a linguística textual perspetivam o(s) conceito(s) em causa.

O autor argumenta que o plano de texto equivale ao que, no âmbito da retórica clássica, se designava por dispositio. Explicita, então, em que consiste a dispositio, assim como a sua estreita ligação com a inventio (“[la disposition] règle la mise en ordre des arguments tirés de l'invention”)[10], e indica as partes do plano da oratória clássica. Estas partes, que incluem o exórdio, a narração e a refutação, são aplicáveis a textos predominantemente argumentativos, dos géneros deliberativo, epidíctico e judicial.

A seguir, enquadra o conceito de plano de texto na perspetiva da linguística textual, destacando que o modelo da retórica não permite dar conta da diversidade de planos atestável nos produtos verbais. Distingue planos convencionais (fixados pelo género) de planos ocasionais, e apresenta como exemplos de planos convencionais os que subjazem aos cinco atos da tragédia clássica, aos três atos da comédia, ao soneto italiano e ao soneto inglês, à dissertação, à entrada de dicionário e à receita de culinária. Destaca, de igual modo, a importância quer da segmentação, quer das indicações manifestadas na superfície textual que servem para sinalizar o plano de texto. Por fim, aborda a relação entre o plano de texto e o processamento da informação por parte do alocutário, referindo, por um lado, que os planos convencionais orientam a interpretação do texto, e, por outro lado, que os planos ocasionais (em contraste com os planos convencionais) necessitam de ser explicitamente sublinhados.

As reflexões de Adam (2002) constituem uma sistematização particularmente útil e informativa, sobretudo se se considerar a curta extensão do texto da entrada (cerca de uma página). Acresce a este facto que, ao abordar o conceito segundo duas perspetivas distintas – a da retórica e da linguística textual –, separa-se de forma clara o âmbito em que os conceitos de dispositio e de plano de texto têm sido operacionalizados, e, simultaneamente, confere-se uma perspetiva diacrónica à conceção atual do plano de texto, evidenciando a sua filiação na dispositio.

A curta extensão do texto da entrada não permite, contudo, aprofundar alguns pontos que merecem reflexão mais desenvolvida. Entre eles, contam-se dois que serão agora abordados. Em primeiro lugar, os exemplos de planos de texto que o autor apresenta salientam a segmentação dos textos dos géneros referidos (tragédia clássica, comédia, soneto, etc.), numa relação fixa, pré-determinada entre género e plano. Nesse sentido, emerge a necessidade de problematizar a relação entre os conteúdos manifestados e a segmentação textual, equacionando que certos fatores, como os temas tratados e a sua ordenação expectável, ou outros preceitos inerentes aos géneros em que os textos se inserem, estão na origem da divisão em atos, em estrofes, em capítulos, em partes, etc. Colocando a mesma questão numa perspetiva mais global, é conveniente refletir acerca da relação entre o género em que o texto se insere e os planos de texto que, no âmbito de cada género, são previstos, prescritos ou aceites, com maior ou menor grau de flexibilidade.

No caso de um género do discurso literário como o soneto, indicar a relação entre os conteúdos explicitados ou os objetivos que se procura atingir e as prescrições formais não é certamente o aspeto mais relevante, pois o soneto italiano (assim como o inglês) define-se sobretudo pela sua estrutura formal: é composto por catorze versos decassílabos que se agrupam em duas quadras e dois tercetos,[11] e obedece a um esquema rimático convencionado, entre diversos possíveis. Todavia, noutros géneros, como a tese de doutoramento, a dissertação de mestrado ou a entrada de dicionário, é decisivo, por um lado, refletir acerca da relação entre os conteúdos manifestados e a estrutura formal dos textos desses géneros, e, por outro lado, articular essa relação com fatores externos, como os objetivos que subjazem aos textos inscritos num determinado género e a área de atividade socioprofissional em que os produtos verbais emergem.

Os textos do género tese de doutoramento, por exemplo, evidenciam alguma diversidade nos planos de texto atestados.[12] Essa diversidade é disciplinarmente aceite e promovida, porquanto está intimamente ligada à área científica no âmbito da qual a investigação é desenvolvida (cf. Santos e Silva, submetido). Os planos das áreas de investigação experimental são tendencialmente de tipo IMRDC ou antológico. No primeiro caso, incluem a estruturação seguinte: Introdução, Metodologia, Resultados, Discussão e Conclusões. No segundo caso, consistem num conjunto de artigos (preparados, submetidos ou publicados), frequentemente com a estruturação IMRDC, enquadrados, no início, por uma Introdução geral e, no final, pela sistematização de Conclusões gerais. Os planos de texto das teses de áreas de investigação reflexivo-ensaística, como as ciências sociais e humanas e teóricas (História, Sociologia, Matemática, Física teórica), estruturam-se geralmente por tópicos definidos pelo autor em função do percurso de pesquisa efetuado, o qual está dependente, entre outros fatores, do tema abordado. Ao contrário dos planos já mencionados (IMDRC e antologia), a estruturação por tópicos não adota, portanto, uma organização pré-determinada. Outros planos combinam de forma diversificada propriedades dos planos IMRDC e antológico com propriedades da estruturação por tópicos, sendo, por isso, designados planos mistos (cf. Santos e Silva, submetido).

Se tivermos em consideração apenas a segmentação formal da dissertação de mestrado, por exemplo, o plano típico (ou convencional) prevê que os textos se encontrem divididos em várias partes e/ou capítulos, e incluam uma introdução e uma conclusão, assim como um índice geral e uma secção destinada à apresentação da bibliografia consultada, além de diversas outras secções possíveis (como os agradecimentos, o resumo ou o abstract, as palavras-chave, outros índices e anexos).[13] À semelhança do que se observa nas teses de doutoramento, entre os capítulos dos textos deste género, podem encontrar-se os que, de um ponto de vista semântico-funcional configuram o enquadramento teórico-metodológico, a revisão da literatura, a análise, a apresentação dos resultados e a sua discussão, etc.[14]

O que motiva estruturações textuais tão distintas? São relevantes, entre outros, fatores como a área de atividade socioprofissional em que o texto emerge, assim como o papel socioprofissional que o autor assume, os objetivos que se pretende atingir e os temas abordados. Em suma, todos os fatores que condicionam a produção de textos de um dado género são decisivos para se compreender o modo como cada texto é estruturado. E, dependendo do género em que o texto se insere, o respetivo plano pode ser rigidamente fixado a priori (ao exemplo do soneto pode acrescentar-se o da oração, o do horário, etc.) ou aceitar graus de flexibilidade variáveis (como se observa na tese de doutoramento, no romance, no guia turístico, etc.). Um dos objetivos das análises expostas nas secções 3.1. e 3.2. consiste precisamente em destacar a estreita relação entre o plano convencional que subjaz ao texto selecionado e os fatores atrás salientados.

Note-se que, na formulação proposta por Adam (2002: 434) – “Tout plan peut être souligné explicitement par la segmentation” –, parece ser sugerido que o plano de texto se refere exclusivamente à ordenação e articulação dos conteúdos no texto, não integrando os mecanismos de segmentação nele atestados. De acordo com essa conceção, a segmentação textual estaria meramente ao serviço do plano de texto, que incluiria apenas a distribuição dos conteúdos ao longo do texto. Todavia, noutra ocasião (Adam 1992: 33), o autor esclarece que o plano de texto contempla também os mecanismos de segmentação textual, sendo evidente que, na sua perspetiva, o conceito incorpora de forma complementar essa dupla dimensão:

pour moi, le sonnet élisabéthian comporte un plan de texte de trois quatrains […] et un distique final, tandis que le plan de texte du sonnet italien classique est constitué de deux quatrains […] et de deux tercets […]. Un sonnet n'est donc qu'une segmentation canonique d'un texte […] (o destaque em itálico é da nossa responsabilidade).

Em segundo lugar, a reflexão de Adam (2002) contém uma definição tácita por associação, fazendo equivaler, num primeiro momento, o conceito de plano de texto à dispositio da retórica clássica. Depois, já segundo a perspetiva da linguística textual, refere-se que o plano pode ser sublinhado por menções no próprio texto ou por mecanismos de segmentação, como os capítulos, os parágrafos, os intertítulos, entre outros. Todavia, ao defender a ideia segundo a qual a dispositio não permite dar conta da diversidade de planos atestados nos textos, fica implícita a ideia de que o plano de texto configura um conceito mais abrangente do que o de dispositio.

De facto, em consonância com o modo como era definida e tratada no âmbito da retórica clássica, a dispositio consiste na adequada ordenação e articulação de argumentos, de tal maneira que o movimento argumentativo atestado no texto consiga convencer ou persuadir o público-alvo a adotar uma dada tese e/ou a agir de uma determinada maneira. Esta conceção é própria de textos predominantemente argumentativos com a especificidade acrescida de se inserirem nos géneros deliberativo, epidíctico e judicial – os que eram contemplados pela retórica clássica. Não é, portanto, aplicável a textos de tipo predominantemente narrativo ou descritivo, nem a textos de géneros como o romance, a notícia, o dicionário ou o regulamento.

Havendo uma longa e rica tradição de reflexão sobre o modo como certos textos são estruturados, não deve o conceito de plano de texto ser apresentado sem estar enquadrado nessa tradição, ou, pelo menos, sem que se mencione essas propostas prévias, salientando de que maneira ele é tributário do conceito de dispositio. Por outras palavras, não se deve menosprezar a herança e os contributos da retórica clássica, nem apresentar o plano de texto como conceito totalmente inovador, cujos preceitos nunca tivessem sido anteriormente abordados no seio de outras disciplinas.

Atualmente, contudo, justifica-se definir e caracterizar o conceito de plano de texto, de forma mais abrangente, no âmbito da linguística textual, da teoria do texto ou dos estudos sobre os géneros, sem as especificidades inerentes ao objeto de estudo da retórica clássica, em particular o facto de esta disciplina incidir a atenção em textos argumentativos dos géneros mencionados. Justifica-se, então, refletir acerca deste conceito operatório, evidenciando, no plano teórico, os fatores que o podem condicionar e as dimensões em que ele pode ser concretizado, e explicitando, no plano analítico, exemplos diversificados de planos atestados em textos de géneros distintos.[15] Na perspetiva adotada ao longo do presente artigo, uma reflexão pertinente deverá incluir uma definição e uma caracterização do conceito de plano de texto que seja aplicável a qualquer texto, de qualquer tipo (argumentativo, narrativo, descritivo, etc.) e de qualquer género (notícia, romance, dissertação de mestrado, etc.).

2.2. Dicionário terminológico

A entrada “Plano do texto” incluída no Dicionário Terminológico apresenta uma definição do conceito e complementa, como será adiante salientado, a caracterização proposta por Adam (2002). Segue-se um resumo dos principais conteúdos expostos na síntese proposta por Costa e Aguiar e Silva (s/d).

Os autores referem que o plano de texto engloba as macroestruturas semânticas e formais, assim como as microestruturas semânticas e estilístico-formais de cada texto. Além disso, indicam os principais fatores que influenciam a elaboração de cada plano – a intenção comunicativa e as convenções associadas à situação em que o texto ocorre. Cada novo texto surge condicionado (com graus de flexibilidade variáveis) pelo género em que se insere, o que subsume a área de atividade socioprofissional em que é produzido, os papéis socioprofissionais dos interlocutores, os temas abordados, entre outros aspetos.

A seguir, adotando o ponto de vista do locutor, são expostas as três fases de elaboração de um plano de texto. Primeiro, relaciona-se o plano com a inventio da retórica clássica: a seleção de conteúdos a integrar num dado texto (inventio) é a operação que precede o estabelecimento do plano de texto (dispositio). A estruturação dos conteúdos no texto depende dessa escolha, devendo o desenho do plano de texto encontrar-se em estreita interligação com a seleção previamente efetuada. Em segundo lugar, alargando o conceito de plano de texto a outras áreas (à poética, à estilística, à linguística textual e à análise do discurso), mostra-se que cada tipo de texto e cada género prescrevem (de maneiras mais ou menos flexíveis) os modos como um texto deve ser estruturado para se adequar aos objetivos que o seu autor se propõe atingir, ou, de forma mais abrangente, para estar em conformidade com a situação de enunciação em que ocorre. Destaca-se, então, o papel que desempenham a ordenação e a alternância entre informação conhecida e informação nova. Por fim, num plano microestrutural, os autores sublinham que é conveniente adequar a seleção lexical, a sintaxe e o registo quer aos temas abordados, quer aos objetivos que se pretende atingir, visando ser gramaticalmente correto[16], semanticamente claro e estilisticamente elegante.

A síntese descritiva de Costa e Aguiar e Silva (s/d) configura uma sistematização relevante por vários motivos. Em primeiro lugar, explicita claramente as componentes ou dimensões do plano de texto: as macroestruturas semânticas e formais, e as microestruturas semânticas e estilístico-formais. De acordo com esta formulação, e como também foi salientado a propósito de Adam (1992, 2002), não apenas a ordenação e articulação dos conteúdos, mas também os mecanismos de segmentação, integram o conceito de plano de texto.

Por outro lado, os autores indicam as diferentes fases da elaboração do plano: i) a seleção dos conteúdos (inventio, segundo a retórica clássica), ii) a sua ordenação adequada – tendo em consideração os requisitos inerentes à área de atividade socioprofissional, aos objetivos que se pretende atingir, enfim, procurando respeitar as exigências específicas do género em que o texto se insere e do tipo predominante que atualiza –, e iii) o processo de textualização, assente na adequação da seleção lexical, da sintaxe e do registo selecionado ao público-alvo e às finalidades visadas.

Por fim, mostra-se que o plano de texto é atualmente objeto de teorização e aplicação em disciplinas como a linguística e a análise do discurso ou a poética e a estilística, tendo sido extravasado o âmbito mais restrito do conceito de dispositio, porquanto é aplicável a textos de diversos géneros que atualizam diferentes tipos textuais e/ou sequenciais.

Deste modo, dados os conteúdos mencionados no Dicionário terminológico, a caracterização que os autores propõem para o conceito de plano de texto complementa a reflexão de Adam (2002), no sentido em que as duas entradas destacam aspetos relevantes mas distintos do conceito em causa. Adam (2002) começa por salientar a filiação do plano de texto no conceito de dispositio e reflete, depois, acerca da oposição entre planos de texto convencionais e ocasionais, aludindo à relevância da estruturação textual para o processamento da informação na perspetiva do alocutário. Costa e Aguiar e Silva (s/d) explicitam as dimensões em que o plano de texto se concretiza (macro e microestruturas semânticas e estilístico-formais), assinalam os fatores que o influenciam e indicam as fases de elaboração de cada plano. A definição que será exposta na secção seguinte é, portanto, tributária de ambas as reflexões.

2.3. Para uma definição e caracterização do conceito de plano de texto

O conceito será agora detalhadamente caracterizado, com o objetivo de, nas duas secções seguintes, ser aplicado à análise de um texto. Pretende-se, com esta proposta de reflexão, explicitar as dimensões em que o plano de texto se manifesta e, na análise posterior, evidenciar a interação dinâmica entre o contexto socioprofissional em que os textos são produzidos e as suas propriedades típicas a nível composicional.

Um plano de texto consiste na distribuição dos conteúdos manifestados e, em suporte escrito, na segmentação formal atestada num texto. A ordenação dos conteúdos depende da sua prévia seleção, e deve estar em conformidade com o que é expectável ocorrer na situação de enunciação em que o texto é produzido. Assim, o género em que o texto se insere (cuja escolha subsume um conjunto de fatores que condicionam a emergência do texto, como a área de atividade socioprofissional em que ocorre, os papéis dos interlocutores, os objetivos que se pretende atingir com o texto, os temas nele abordados, etc.), por um lado, orienta o locutor e, por outro lado, gera expectativas no interlocutor relativamente ao modo como os conteúdos devem ser dispostos no texto.[17]

A distribuição equivale à ordenação e articulação dos conteúdos, que podem ser associados segundo relações cronológicas, alfabéticas, temáticas, de causalidade, de analogia, de contraste, de proximidade, etc. Nesta dimensão, é relevante considerar aspetos como os tipos de sequências que ocorrem no texto e a forma como se articulam (por coordenação, por inserção ou por alternância; cf. Adam 1992, 2011). Além disso, a ligação entre conteúdos é frequentemente assinalada por mecanismos de coesão textual (cf. Lopes e Carapinha 2013), pelo que se pode perspetivar o plano de texto a partir de um ponto de vista que privilegie esses modos de articulação. Ou ainda, numa perspetiva retórica, é possível destacar os movimentos argumentativos e as ações que as diversas partes de um dado plano permitem concretizar (como o modelo CARS proposto por Swales).

A segmentação compreende a divisão formal do texto, que é geralmente efetuada em função dos conteúdos nele inseridos. Por outras palavras, depende frequentemente dos conteúdos e deve contribuir para assinalar e salientar a sua distribuição, de modo a que o texto seja perspetivado como uma unidade coesa e coerente.[18] Os mecanismos de segmentação incluem períodos e parágrafos, títulos e intertítulos, secções e capítulos, artigos e entradas lexicais, versos, estrofes e cantos, entre outros possíveis. Há, ainda, aspetos relacionados com a materialidade gráfica dos textos escritos (como o tipo e o corpo de letra, o uso de maiúsculas e/ou minúsculas, de carateres não verbais, a formatação em negrito ou em itálico, etc.) que podem estar ao serviço dos mecanismos de segmentação.

Ainda que haja uma estreita interdependência entre as duas dimensões, de tal modo que elas podem ser perspetivadas como duas faces de uma moeda, os mecanismos de segmentação estão, na maior parte dos casos, ao serviço da ordenação dos conteúdos no texto. Note-se, contudo, que pode suceder o inverso, e o plano dos textos de um dado género ser previamente determinado pela segmentação que eles convencionalmente evidenciam: é o caso clássico do soneto, que se define, em primeiro lugar, pela sua estrutura formal. Assim, em textos deste género, a segmentação precede a seleção dos conteúdos, no sentido em que, antes mesmo de o autor escolher os conteúdos que irá incluir no texto, sabe que tem de os formatar nos rígidos preceitos formais inerentes ao género soneto.

As duas dimensões salientadas na definição do conceito de plano de texto – distribuição dos conteúdos e segmentação formal – correspondem às macro e microestruturas semânticas e às macro e microestruturas (estilístico-)formais, respetivamente, referidas no Dicionário terminológico. De facto, os autores destacam a oposição e a complementaridade quer entre aspetos de conteúdo e aspetos formais no plano de texto, quer entre os níveis macroestrutural e microestrutural em que esses aspetos se podem concretizar e ser atestados. O nível macroestrutural diz respeito à estrutura global do texto, enquanto o nível microestrutural corresponde à organização no seio de segmentos de extensão inferior à totalidade do texto. No caso do dicionário unilingue, por exemplo, a exposição mostrará que, no nível macroestrutural, o plano do texto analisado inclui secções variadas e com conteúdos diversos (a biografia do autor principal, os agradecimentos, o sumário, a equipa redatorial, as entradas do dicionário, etc.), enquanto, no nível microestrutural, o plano se concretiza na organização de segmentos menores, especificamente em cada uma das entradas lexicais (ver secção 3.1.).

Note-se, ainda, que tanto as dimensões relativas à distribuição e à segmentação, como os níveis macro e microestrutural, são enquadrados pela oposição gradual entre planos de texto convencionais e planos de texto ocasionais, sublinhada por Adam (2002). Em certos géneros, os respetivos planos de texto são pré-determinados de forma fixa ou muito estabilizada (como no horário ou no soneto), enquanto noutros a flexibilidade é aceite em graus variáveis, seja na totalidade do texto, seja em certos segmentos textuais (como no romance, na carta pessoal ou na crónica). Os planos atestados nos textos oscilam de forma variável entre estes dois polos.

Numa outra reflexão, Adam (2001) propôs que os critérios que subjazem à definição e delimitação dos géneros se inserem em oito componentes que incidem em diferentes dimensões dos textos (critérios internos) ou em fatores inerentes à situação de enunciação em que eles são produzidos (critérios externos).[19] O plano de texto é um dos critérios internos que permitem definir certos géneros, e nele se incluem aspetos que dizem respeito às componentes composicional e material, tal como foram explicitadas na proposta de Adam (2001).

Segundo o autor, a componente composicional contempla critérios que decorrem da organização macroestrutural dos textos. No âmbito da componente composicional, inclui-se a distribuição dos conteúdos, a segmentação do texto (em períodos, parágrafos, capítulos, artigos, entradas lexicais, versos, estrofes, etc.) e o encaixe ou a sucessão/alternância de sequências textuais do mesmo tipo ou de tipos diversos (narrativo, descritivo, etc.).

Quanto à segmentação do texto em suporte escrito, Adam refere que ela pode ser destacada por aspetos de natureza gráfica, como o itálico, o sublinhado ou o negrito, o uso de diversos tipos e corpos de letra, entre outros. Os elementos suscetíveis de contribuir para a identificação dos géneros são integrados pelo autor na componente material.

São estas as dimensões (distribuição de conteúdos e segmentação do texto), os níveis (macro e microestrutural) e os polos (plano convencional em oposição gradual a plano ocasional) que enquadram o plano de texto, e que balizam a análise que pode ser desenvolvida com base nesse conceito operatório.

De acordo com a definição proposta, ao longo das próximas secções, serão analisados os planos de dois textos dos géneros dicionário unilingue e requerimento. A seleção de textos destes géneros decorre do facto de, em ambos, a dimensão relativa à segmentação textual ser particularmente relevante, o que é desejável neste caso, porquanto se pretende aplicar, na análise textual, o conceito definido e aferir a sua validade. Em consequência desta opção, no âmbito da dimensão relativa à distribuição dos conteúdos, a análise não incidirá nos tipos sequenciais atestados ou nos mecanismos de coesão explícitos envolvidos. Todavia, e em conformidade com os objetivos que se pretende atingir, as propostas de análise deverão servir para exemplificar os principais aspetos inerentes aos planos, eparadestacar a relação entre o género em que se insere um texto e o plano nele atestado.

3. Análise textual

3.1. O plano de um texto do género dicionário unilingue

Nesta secção, será analisado o plano de um texto do género dicionário, especificamente do subgénero dicionário unilingue (ou monolingue): trata-se do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.[20] De acordo com a caracterização proposta do conceito de plano de texto, a análise será dividida em duas partes, cada uma delas incidindo num dos dois níveis mencionados: o nível macroestrutural e o nível microestrutural.

Os textos do subgénero dicionário unilingue são produzidos no âmbito de atividades de investigação e divulgação do conhecimento desenvolvidas nas áreas de estudo das línguas naturais. Inserem-se, por isso, no discurso científico.[21] Quer à área de atividade, quer aos textos que são produzidos no seu seio, presidem requisitos específicos que, de forma flexível, condicionam os conteúdos selecionados e o modo como são manifestados nos textos. Entre os valores típicos das atividades de investigação e, consequentemente, dos textos que se integram no discurso científico, contam-se o rigor, a coerência e a clareza na exposição, assim como o caráter tendencialmente “objetivante” e aparentemente impessoal.[22] No caso dos dicionários de línguas, acresce a capacidade de síntese, que se concretiza procurando condensar num artigo lexicográfico de curta extensão as informações consideradas relevantes pelos autores.

O objetivo principal dos textos do subgénero dicionário unilingue consiste em explicitar o significado das palavras de uma dada língua (isoladamente e em expressões idiomáticas), e outras informações complementares relativas à entrada em causa, como a classe gramatical e a sua etimologia, entre outras.[23] A área de atividade socioprofissional no âmbito da qual o texto é produzido e os objetivos que subjazem aos textos do género dicionário constituem fatores que condicionam e influenciam todos os aspetos da obra em causa, entre os quais o plano de texto. Do ponto de vista do público leitor, os textos do subgénero dicionário unilingue são lidos com a finalidade de efetuar consultas pontuais sobre as unidades de uma dada língua, em especial sobre o seu significado. Não se trata, portanto, de um texto que os leitores procuram ler na totalidade (como se verifica com textos do género carta ou romance, por exemplo).

Segundo Correia (2009: 24),

o dicionário é uma obra organizada em torno de duas estruturas: a macroestrutura e a microestrutura. […] a macroestrutura é o conjunto de todas as partes que constituem o dicionário; dela podem fazer parte, além da nomenclatura (a lista, por ordem alfabética, das entradas do dicionário), o prefácio, a introdução (na qual são explicitados os objetivos e os critérios seguidos na sua confecção), o guia de utilização, a lista de abreviaturas e convenções usadas no corpo da obra, a lista de símbolos fonéticos usados (se o dicionário contiver transcrição fonética) e os diversos apêndices que a obra pode conter.

Assim, a nível macroestrutural, há a registar o facto de a obra analisada conter diversas secções prévias ao conjunto de entradas, que é a componente específica de um texto do género dicionário. Com efeito, a lista de entradas constitui a parte mais relevante da obra, e a mais extensa. Dado que várias secções precedem essa listagem, enquadram-se no peritexto da lista de entradas:

Le péritexte désigne en effet les genres discursifs qui entourent le texte dans l'espace du même volume: le péritexte éditorial (collections, couvertures, matérialité du livre), le nom d'auteur, les titres, les prières d'insérer, les dédicaces, les épigraphes, les préfaces et les notes. (Lane 2005: 185)

Deste modo, a análise macroestrutural pode ser dividida em duas partes: i) a que incide no plano geral da obra, e ii) a que foca a atenção no plano da lista de entradas (cujo texto configura o dicionário propriamente dito).

Quanto ao plano geral da obra, ele é constituído pela ordenação das secções que a compõem, conforme a seguir se explicita (entre parênteses, é indicado o número de páginas que, na edição consultada, cada secção ocupa):

a) biografia de Antônio Houaiss (uma página);

b) apoios financeiros (uma página);

c) agradecimentos (uma página);

d) sumário (uma página);

e) equipa editorial (duas páginas);

f) prefácio (uma página);

g) apresentação (uma página);

h) introdução à versão portuguesa (oito páginas);

i) chave do dicionário (duas páginas);

j) detalhamento dos verbetes e outras informações técnicas (trinta páginas);

k) os verbos (doze páginas);

l) lista geral de reduções (seis páginas);

m) bibliografia das fontes de datação e etimologia (dezoito páginas);

n) referências bibliográficas (nove páginas);

o) dicionário (três mil setecentas e setenta páginas).

Todas as secções mencionadas de a) a n) correspondem a textos de géneros incluídos ou contíguos ao texto do género dicionário. Um dos textos insere-se num género contíguo, na medida em que pode ocorrer independentemente de textos de outros géneros; trata-se da biografia. Os restantes dependem do texto do género dicionário (ou de outro género), e são designados géneros incluídos, com exceção da secção intitulada os verbos, que não corresponde a qualquer género; trata-se de uma secção na qual são expostas informações específicas da classe verbal: as conjugações, os tempos verbais, as desinências, etc.

A extensão de cada secção é muito desigual. Como é expectável numa obra do género dicionário, a lista de entradas é a parte mais extensa e a mais relevante. As secções que a precedem são subsidiárias dessa listagem, e a sua extensão oscila entre uma e trinta páginas.

Como se justifica a profusão de secções anteriores ao texto do dicionário propriamente dito? A biografia de Antônio Houaiss deve-se ao facto de este autor ter sido o principal organizador e impulsionador da obra (que tem, por isso, o seu apelido no título), e de ter falecido antes de ela ter sido publicada. Constitui uma forma de dar a conhecer ao público o investigador que dinamizou a obra e de o homenagear a título póstumo.

As secções relativas aos apoios financeiros e aos agradecimentos decorrem de obrigações de natureza institucional e de práticas usuais em textos científicos. O projeto que deu origem à obra beneficiou de investimentos públicos e privados, assim como de outros apoios de natureza diversa, que, em contrapartida, são geralmente explicitados numa secção própria. Do mesmo modo, é expectável que, numa obra coletiva, sejam indicados individualmente os colaboradores e o tipo de apoio que prestaram; é o que se observa na secção correspondente à equipa editorial.

O sumário equivale ao índice geral da obra, e serve de guia ao leitor do texto. Por sua vez, as secções relativas ao prefácio e à apresentação visam enquadrar devidamente o projeto, indicando as necessidades que originaram o trabalho levado a cabo, os objetivos que se procurou alcançar, as diversas fases da sua elaboração, a caracterização geral da obra, etc. A introdução à versão portuguesa destaca as diferenças atestadas entre a edição brasileira e a portuguesa.

As secções designadas chave do dicionário, detalhamento dos verbetes e outras informações técnicas, os verbos e a lista geral de reduções servem para apoiar a consulta do conjunto de entradas que compõem o dicionário, esclarecendo os conteúdos que se pode encontrar nas entradas, explicitando abreviações e siglas, etc.

Por fim, a bibliografia das fontes de datação e etimologia indica as obras referidas nas entradas sempre que se aponta o ano em que a entrada é pela primeira vez atestada no português, enquanto as referências bibliográficas explicitam as obras consultadas (exceto as que foram listadas na secção imediatamente anterior).

Quanto à respetiva ordenação, a biografia do principal organizador precede todas as secções, conferindo destaque ao investigador a que se deve a obra. Seguem-se as que dizem respeito às pessoas e instituições que apoiaram o projeto (apoios financeiros e agradecimentos) e à apresentação da equipa que concretizou o projeto (equipa editorial). Por fim, observa-se o agrupamento das que dizem respeito ao enquadramento da obra (prefácio, apresentação, introdução à versão portuguesa) e à consulta das entradas do dicionário (chave do dicionário, detalhamento dos verbetes e outras informações técnicas, os verbos e a lista geral de reduções).

A distribuição das secções obedece a convenções estabilizadas em publicações, e, particularmente, em publicações científicas. Por um lado, as secções relativas aos apoios e aos agradecimentos precedem o texto principal (embora os apoios também possam ocorrer após esse texto). Por outro lado, observa-se um percurso que, em termos dos conteúdos explicitados, parte do que é geral em direção ao que é particular e detalhado (é o que sucede com as secções prefácio, apresentação e introdução à versão portuguesa, e com as secções chave do dicionário, detalhamento dos verbetes e outras informações técnicas, os verbos e a lista geral de reduções). Finalmente, as secções em que se explicita a bibliografia consultada ocorrem em último lugar, o que também está de acordo com o que se convencionou em textos do discurso científico.

A comparação explicitada na tabela 1, entre o plano de texto prototípico a nível macroestrutural (Correia 2009) e o plano atestado no exemplar analisado, permite confirmar estas ideias.

 

Tabela 1. Plano de texto prototípico do género dicionário unilingue (Correia 2009)

e plano de texto do exemplar analisado

Plano de texto do género dicionário unilingue

(Correia 2009: 24)

Plano de texto do exemplar analisado

i) prefácio

f) prefácio

ii) introdução

g) apresentação

h) introdução à versão portuguesa

iii) guia de utilização

i) chave do dicionário

iv) lista de abreviaturas e convenções

v) lista de símbolos fonéticos

j) detalhamento dos verbetes e outras informações técnicas

l) lista geral de reduções

vi) apêndices diversos

m) bibliografia das fontes de datação e etimologia

n) referências bibliográficas

vii) nomenclatura

o) dicionário

 

As secções seguintes constam do exemplar analisado, ainda que não estejam contempladas na proposta de plano de texto prototípico:

a) biografia de Antônio Houaiss;

b) apoios financeiros;

c) agradecimentos;

d) sumário;

e) equipa editorial;

k) os verbos.

Pode concluir-se, portanto, que o plano de texto (a nível macroestrutural) do exemplar analisado é convencional, porquanto inclui todas as partes que tipicamente são associadas aos textos deste género. Contudo, o género permite e aceita adaptações pontuais (Adam e Heidmann 2007) que decorrem de escolhas editoriais dos autores de cada texto (como a parte intitulada “os verbos”) e de condicionalismos específicos da obra em causa (de que é exemplo a secção relativa à biografia de Antônio Houaiss).

Em relação ao texto que se insere no género dicionário, ele é constituído por um conjunto extenso mas finito de unidades léxicas (cerca de 228.500). As entradas são selecionadas pelo processo de lematização, o que explica, por exemplo, a inclusão da secção os verbos entre as que precedem o texto do género dicionário.

Ainda a nível macroestrutural, o plano deste texto do subgénero dicionário unilingue consiste na ordenação alfabética das entradas selecionadas. Trata-se, por certo, da convenção que mais frequentemente se associa a textos do género dicionário.[24] Cada entrada ocupa um parágrafo diferente (na obra em causa, nenhuma linha dos parágrafos se encontra indentada). Adiante será salientado que o destaque em negrito permite identificar visualmente cada nova entrada, facilitando o processo de consulta. Estas características constituem preceitos geralmente adotados em textos do género dicionário. Assim, também neste aspeto que se insere no nível macroestrutural, o plano de texto do dicionário é convencional.

No nível microestrutural, será analisado o plano de texto da entrada lexical correspondente a livro,[25] que, pela sua extensão e pelos conteúdos que integra, constitui um exemplar representativo das principais características tipicamente atestadas nas entradas da obra em causa. Reproduz-se, a seguir, o texto do artigo lexicográfico correspondente a essa entrada:

livro s.m. (1013 [?] cf. jm) 1 colecção de folhas de papel, impressas ou não, cortadas, dobradas e reunidas em cadernos cujos dorsos são unidos por meio de cola, costura, etc., formando um volume que se recobre com capa resistente 2 livro (acp 1) considerado tb, do ponto de vista do seu conteúdo: obra de cunho literário, artístico, científico, técnico, documentativo, etc. que constitui um volume [Segundo as normas de documentação de vários organismos internacionais, o livro é a publicação com mais de 48 páginas, além da capa.] <l. de arte> <leu todos os l. de Saramago> ? cf. folheto (‘publicação não periódica') 2.1 livro (acp 2) em qualquer suporte (p.ex. papiro, disquete etc.) 3 cada um dos volumes que compõem um livro (acp 2); tomo 4 cada uma das partes em que se divide uma obra extensa (p.ex. a Bíblia) <o l. de Isaías> 5 caderno (‘volume') para registo ou anotação de algo 6 colectânea de documentos diplomáticos relativos a determinado assunto, publicados por um governo para conhecimento do público (p.ex. o l. azul, em Inglaterra) 7 conjunto de lâminas de qualquer material, em formato de folha, ger. unidas umas às outras como as folhas de um livro <l. de amostras> 8 fig. aquilo que pode ser interpretado, como se fosse um livro <a sua expressão facial é um l.> 9 anat.zoo infrm. m.q. omasol. brochado edit gráf livro coberto com capa mole (plastificada, envernizada ou sem protecção); brochura • l. cartonado edit gráf livro encadernado com lâminas de papelão revestidas com uma capa impressa em papel de baixa gramagem • l. comercial livro us. para escrituração mercantil • l. de bolso edit gráf livro impresso em formato reduzido, papel de baixa gramagem e qualidade inferior, e que ger. é reimpressão de livro editado originalmente em formato normal • l. de bordo mar livro no qual o comandante de um navio mercante anota todas as ocorrências de navegação, administração, etc.; diário náutico • l. de cabeceira 1 livro favorito 2 livro de consulta frequente • l. de castigo mar m.q. livro de ocorrências l. de mortalhas m.q. livrilhol. de notas livros em que os tabeliães ou notárioslavram os instrumentos dos actos jurídicos, quando a lei impõe a escritura pública, ou os interessados a escolhem • l. de ocorrências 1 livro que se destina ao registo de factos ocorridos em determinada instituição (p.ex. condomínio, repartição etc.) 2 mar livro em que se registam as contravenções das praças e as respectivas penas 3 livro constante das esquadras de polícia, em que se registam os factos ocorridos na sua jurisdição relacionados com queixas, delitos e infracções, como base para a formação do inquérito policial • l. de ouro 1 registo destinado a colher assinaturas, contribuições financeiras, comentários etc. 2 registo no qual são consignados nomes ilustres, factos memoráveis • l. de ponto livro que os funcionários numa firma, escola ou repartição pública assinam diariamente para registar as suas respectivas presenças ao trabalho ? tb se diz apenas 2pontol. de protocolo livro de uso generalizado nas repartições públicas para o registo de entrada de quaisquer documentos, com anotações sobre os seus trâmites • l. de registo 1 aquele em que, em bibliotecas, museus, arquivos e instituições congéneres, consta o registo dos livros, documentos adquiridos; livro de tombo 2 jur livro instituído pelo poder público, ou por interesse de ordem pública, em que são anotados factos acontecidos, para que possam ser mostrados a qualquer tempo • l. de registo civil jur livro em que são registados nascimentos, casamentos e óbitos • l. de registo de contravenções mar m.q. livro de ocorrênciasl. de texto 1 m.q. livro didáctico 2 livro adoptado como texto básico de determinado curso; livro-texto (B) • l. de tombo m.q. livro de registol. diário dir.com cont aquele em que o comerciante regista diariamente as operações que realiza ? cf. livro-razãol. didáctico aquele adoptado em estabelecimentos de ensino, cujo texto se enquadra nas exigências do programa escolar; livro de texto, manual • l. encadernado edit gráf livro revestido com capa dura, ger. de couro ou percalina • l. fiscal cont livro de escrituração de contabilidade que cumpre a finalidade de registar factos sujeitos à fiscalização tributária • l. negro 1 livro que trata de ciências ocultas 2 o que se propõe a fazer revelações secretas ou proibidas acerca de um determinado tema <o l. de uma Comissão de Inquérito> • l. tabular ou tabulário gráf ant. m.q. livro xilografadol. xilografado gráf ant. livro impresso a partir de matrizes de madeira com imagens e textos gravados em relevo; livro tabular, livro tabulário [Prática comum antes da invenção do tipo móvel.] • ser um l. aberto fig. não ter segredos ☉ gram dim.irreg.: livreco, livrete, livreto; aum.irreg.: livrório ☉ etim lat. liber,bri ‘livro'; ver 2livr-; f.hist.1013 [?] liuros, sXIII livro, sXIII lyvro, sXV libros ☉ sin/var ver sinonímia de omaso ☉ col acervo, biblioteca, colecção, livralhada, livraria, livroxada ☉ hom livro (fl.livrar) ⇧ noção de ‘livro', usar antepos. bibli(o)- e 2livr-; pospos. -teuco

Para explicitar o plano de texto da entrada livro, serão indicados os tipos de informação que dela constam, a respetiva ordem e, a seguir, os mecanismos usados quer para separar, quer para destacar diferentes informações.[26]

A lista seguinte explicita os diversos conteúdos incluídos na entrada livro e a respetiva ordenação (entre parênteses são indicados os aspetos de natureza gráfica que servem quer para destacar algumas informações, quer para assinalar as fronteiras entre tipos de conteúdos manifestados):

a) Designação da entrada (ocorre em minúsculas, e a negrito);

b) Classe gramatical e género da entrada (a sigla ocorre em itálico e em letra de cor castanha);

c) Data em que entrou no português e texto em que é atestada pela primeira vez (estes elementos ocorrem entre parênteses; o livro é referido através de sigla e em versaletes);

d) Aceções diversas da entrada (cada nova aceção é antecedida por numeração árabe em negrito; numa das aceções, remete-se para uma outra entrada com significado semelhante, o que é destacado pelo uso do caráter ?[27] em cor castanha);

e) Expressões idiomáticas (são ordenadas alfabeticamente, e ocorrem em negrito; a fronteira inicial é antecedida pelo caráter ◈ em cor castanha; a fronteira entre duas expressões idiomáticas é assinalada pelo caráter •; as expressões idiomáticas podem ter mais do que uma aceção; nesse caso, cada aceção é precedida de numeração árabe em negrito; em versaletes, é indicada a área em que é usada a expressão idiomática: edit gráf corresponde a “editoração gráfica” e mar, a “marinha (termo de), náutica”; quando uma expressão é equivalente a outra, usa-se “m.q”, que corresponde a “o mesmo que”);

f) Diminutivos e aumentativos irregulares (ocorrem em itálico, e são antecedidos pelo caráter ☉ em cor castanha e pela abreviatura gram em versaletes);

g) Etimologia da palavra e evolução histórica da sua grafia (estes elementos são precedidos pelo caráter ☉ em cor castanha e pela abreviatura etim em versaletes; os étimos ocorrem em itálico, e o respetivo significado, entre aspas simples);

h) Sinónimos e variantes da entrada (indicações precedidas pelo caráter ☉ em cor castanha, e pelas abreviaturas sin/var em versaletes);

i) Conjunto de entidades da mesma espécie ou substantivos coletivos (os exemplos são antecedidos pelo caráter ☉ em cor castanha e pela abreviatura col em versaletes);

j) Homonímia (exemplos antecedidos pelo caráter ☉ em cor castanha e pela designação HOM em versaletes);

k) Onomasiologia, em que se explicitam os elementos antepositivos e pospositivos correspondentes à noção da cabeça do verbete (introduzidos pelo caráter ⇧ em cor castanha e pela designação noção em versaletes).

A ordenação dos conteúdos é, em grande parte, regida por convenções associadas ao subgénero dicionário unilingue. A designação da entrada, a indicação da classe gramatical a que pertence, as aceções e as expressões idiomáticas em que a entrada comparece são conteúdos geralmente distribuídos por esta ordem em obras do mesmo género. Outros conteúdos (como a data em que entrou na língua em causa, os diminutivos e aumentativos, substantivos coletivos, os homónimos ou a etimologia da palavra) não são selecionados em todos os textos deste subgénero.

Além da distribuição dos conteúdos, é relevante considerar outros elementos que são utilizados com dois objetivos: i) destacar alguns tipos de informação, e ii) sublinhar a segmentação do texto da entrada. Em ambos os casos, pretende-se facilitar a consulta do texto, em particular nas entradas que contêm mais informações e em que, por isso, o artigo lexicográfico é mais extenso. Recorde-se que se trata de uma obra que os leitores consultam pontualmente em busca de conteúdos específicos (com especial incidência no significado das unidades lexicais). Assim, facilitar e agilizar a procura dessas informações, permitindo que ela se processe de forma rápida e eficaz, são aspetos muito valorizados pelo público-alvo da obra e que os autores têm em mente quando redigem textos deste género.

Na entrada analisada, foram detetados os seguintes elementos gráficos usados para destacar informações e a sua compartimentação:

− carateres não alfabéticos (numeração árabe, e outros sinais: ⇧ �� ◈ ☉ •);

− carateres alfabéticos (uso de minúsculas e de versaletes);

− cor dos carateres (preto e castanho);

− negrito, itálico;

− pontuação (vírgula, ponto final, dois pontos, aspas simples, parênteses, parênteses retos, parênteses angulares).

Alguns destes elementos são usados com o objetivo de conferir destaque a certas informações (porventura consideradas mais relevantes), outros para assinalar a segmentação entre conteúdos diferentes, e outros, ainda, combinam as duas finalidades. Em todos os casos, estes aspetos facilitam a leitura dos conteúdos e promovem a pesquisa rápida de alguns tipos de informação (por exemplo, sempre que um leitor pretenda procurar uma dada expressão idiomática ou a etimologia da palavra em causa).

O negrito é usado para salientar a entrada e as expressões idiomáticas em que ela ocorre, tal como os algarismos que antecedem cada uma das aceções apresentadas. Também o itálico e as aspas são utilizados para destacar informações como a classe gramatical a que pertence a entrada, e o significado do étimo, respetivamente.

Os carateres não alfabéticos visam, sobretudo, assinalar a segmentação entre tipos de conteúdos diversos. Assim, o caráter ◈ (destacado pela cor castanha) marca a fronteira entre as diversas aceções da unidade lexical e os exemplos de expressões idiomáticas em que a unidade ocorre, enquanto o caráter ☉ (também destacado pela cor castanha) compartimenta as informações de natureza etimológica e os substantivos coletivos relativos à entrada em causa. A cor castanha (aplicada à sigla que refere a classe gramatical da entrada, assim como a diversos carateres não alfabéticos) também contribui para a arrumação visual dos conteúdos expostos.

Por fim, foram atestadas siglas e abreviaturas que decorrem de objetivos múltiplos: não tornar o texto desnecessariamente extenso (recorde-se que a obra é composta por cerca de 228.500 entradas), facilitar a consulta rápida e contribuir para a clara compartimentação dos diferentes tipos de conteúdo.

Entre os elementos referidos, alguns constituem convenções específicas da obra analisada (por exemplo, os carateres ◈, ☉ e •). Outros, todavia, configuram convenções generalizadas ou, pelo menos, frequentemente atestadas em textos do mesmo subgénero (como a sigla “s.m.” que indica a classe gramatical e o género da unidade lexical).

A análise efetuada permite inferir o caráter convencional do plano deste texto e, dada a sua representatividade, dos planos de outros textos do género dicionário, particularmente, do subgénero dicionário unilingue. O elevado grau de rigidez do plano analisado decorre de dois fatores decisivos que o condicionam e influenciam: dos objetivos com que as obras deste subgénero são produzidas, e, concomitantemente, da área de atividade socioprofissional em que elas emergem. De facto, os objetivos principais subjacentes a um texto deste género consistem em condensar um conjunto de informações de natureza diversa (semântica, sintática, fonética, etimológica, etc.) acerca de cada entrada e permitir uma consulta rápida e eficaz dos conteúdos expostos. Juntamente com os valores inerentes à investigação e à divulgação do conhecimento (manifestadas em textos do discurso científico), os objetivos permitem compreender o que motiva as principais características atestadas, desde a ordenação alfabética das unidades lexicais, à distribuição dos conteúdos e à sua clara compartimentação em cada entrada.

Além desses fatores, deve ser salientada a relação de intertextualidade que cada novo texto do género dicionário necessariamente mantém com textos do mesmo género previamente publicados (Beaugrande e Dressler 1981, Bazerman 2004).[28] Há preceitos recorrentemente adotados em obras anteriores, e essa tradição pressiona os autores de um novo texto do género dicionário a acolherem o que está generalizado a nível da distribuição dos conteúdos e da segmentação textual. De qualquer modo, cada novo texto do género dicionário pode incluir ligeiras variações, pelo que, mesmo tratando-se de um género “routinier” (Maingueneau 2014: 114) com um plano de texto convencional, são admitidas adaptações pontuais (Adam e Heidmann 2007).

3.2. O plano de um texto do género requerimento

Os textos do género requerimento inserem-se no âmbito do discurso administrativo.[29] Trata-se de documentos legais produzidos por indivíduos que têm como objetivo solicitar algo a uma instituição, e são atualmente muito relevantes, porquanto constituem um dos instrumentos que permitem gerir de forma mais eficaz a relação entre os indivíduos e as entidades públicas e privadas das sociedades contemporâneas.[30] Estes textos são quase sempre normalizados, dado serem recorrentemente usados por diferentes indivíduos. Ou seja, parte do texto está já previamente redigida e cada novo requerente limita-se a preencher os espaços em branco. Assim, trata-se de textos poligerados, redigidos por mais do que um indivíduo: o que escreveu o formulário (um autor ou mais do que um) e o requerente. Havendo um conjunto de informações que constam do texto antes mesmo de o requerente o completar, é-lhe imposto o número e o tipo de informações, assim como a ordem pela qual elas devem ocorrer no texto.[31]

Tais prescrições devem-se, por um lado, à relação assimétrica que existe entre a entidade a quem é dirigido o requerimento e o requerente.[32] Por outro lado, o objetivo com que o texto é redigido e os procedimentos internos relativos à gestão de cada instituição convidam à normalização dos textos deste género, para que as informações e as solicitações sejam claras e inequívocas, e para que possam ser tratadas de forma rotineira e mais expedita. Os textos deste género obedecem, por isso, a requisitos como a clareza, a concisão e o caráter tendencialmente “objetivante” (cf. nota 22).

De acordo com Travaglia (2007: 51-52), o plano dos textos do género requerimento é convencional e inclui as seguintes partes:

i) autoridade e/ou órgão a quem se dirige a solicitação;

ii) dados do solicitante;

iii) explicitação do que é solicitado;

iv) indicação do que sustenta o direito à solicitação apresentada (opcional);

v) indicação do destinatário da resposta e do meio pelo qual ela será comunicada (opcional);

vi) fecho tradicional;

vii) local e data;

viii) assinatura do solicitante.

Para se proceder à análise do respetivo plano de texto, foi selecionado um documento intitulado “Requerimento geral”, disponível na página web do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa – ISEL.[33] De acordo com o que foi anteriormente referido, o formulário está parcialmente preenchido e inclui espaços em branco que são sucessivamente completados pelo requerente, por um funcionário dos serviços académicos e, finalmente, pelo presidente do ISEL, a quem o requerimento é dirigido. O preenchimento do formulário é feito, então, em três momentos e por três pessoas diferentes, a que correspondem, de igual modo, três atos administrativos distintos: o ato de entregar/proceder ao requerimento (pelo requerente), o ato de dar entrada do documento na instituição (da responsabilidade de um funcionário administrativo) e o ato de o deferir ou indeferir (da responsabilidade do presidente da instituição).

Transcreve-se, a seguir, o texto do género requerimento cujo plano será posteriormente explicitado e analisado.

 

 

O requerente deve inserir no texto um conjunto de informações em falta. Porque os conteúdos são previamente selecionados pelo autor do formulário, existe escassa ou nenhuma flexibilidade no que diz respeito ao que o requerente pode incluir no texto; em rigor, só na parte relativa à solicitação (e que é introduzida pela fórmula “requer a V. Exa.”) pode o indivíduo redigir um segmento textual verdadeiramente da sua autoria. Nos restantes espaços, espera-se que insira informações de uma forma direta e objetiva, indicando o nome completo, o número de aluno, etc.

Depois de preenchido pelo requerente, o documento é entregue a um funcionário dos serviços académicos que lhe atribui um número de entrada, indica a data em que foi recebido, e assina (num quadro reservado aos serviços académicos). Por fim, o destinatário último do texto – o presidente do ISEL ou alguém com delegação de competências para o efeito – profere a sua decisão (deferindo ou indeferindo a solicitação), assinala a data em que foi tomada, e também assina (num quadro exclusivamente reservado a este órgão). Nestes dois momentos, não existe qualquer flexibilidade quanto ao preenchimento do texto: em ambos os casos, cada um se limita a inserir informações de forma direta e objetiva.

Quanto ao plano geral do texto selecionado, ele pode ser perspetivado como sendo constituído por quatro secções distintas, que desempenham funções diversas mas complementares, as quais decorrem de exigências de natureza processual. No seio de cada secção (assinaladas a negrito), são explicitadas e/ou solicitadas informações (indicadas por alíneas):

I. Número do aluno requerente, identificação da instituição e do órgão a quem o documento é entregue

a) número de aluno do requerente (em branco);

b) indicação da instituição (ISEL, Instituto Superior de Engenharia de Lisboa);

c) indicação do órgão que recebe o documento (serviços académicos, núcleo de licenciaturas);

II. Texto do requerimento propriamente dito

d) título (indicação do género: requerimento);

e) órgão a quem o texto é dirigido (presidente do ISEL);

f) nome do requerente (em branco);

g) curso em que está matriculado (em branco);

h) ramo do curso em que está matriculado (em branco);

i) número do documento de identificação do requerente (em branco);

j) contacto telefónico do requerente (em branco);

k) espaço em branco, introduzido pelo excerto “requer a V. Exa.”, que deverá ser preenchido mencionando o que o requerente pretende solicitar;

l) indicação de eventuais anexos que acompanham o requerimento (em branco);

m) “pede deferimento”, seguido de local, data e assinatura do requerente (em branco);

III. Informações importantes para o requerente

n) indicação relativa ao meio pelo qual se dará conhecimento ao requerente do deferimento ou indeferimento da sua solicitação (correio eletrónico);[34]

IV. Quadros reservados aos órgãos da instituição a quem o texto é dirigido

o) serviços académicos (data e número de entrada, assinatura do funcionário que recebeu o documento);

p) despacho do presidente do ISEL (deferimento/indeferimento, data do despacho e assinatura).

Cada secção integra um conjunto de informações que servem propósitos específicos.[35] Entre os objetivos visados contam-se os seguintes: identificar a instituição e o género em que se insere o texto, o seu destinatário e o seu requerente, explicitar a solicitação e a deliberação, assim como as datas e os locais em que se dá cada um dos três atos administrativos. Deste modo, a seleção e a distribuição dos conteúdos permitem que, de forma clara e objetiva, sejam compilados num único documento todos os elementos essenciais ao processo. A concisão inerente ao texto é tal que se torna possível que todas as informações ocupem uma única página.

Conforme foi referido, o requerente deverá limitar-se a preencher os espaços em branco relativos às informações indicadas nas alíneas a), f), g), h), i), j), k), l) e m) (eventualmente, também n)). E apenas nas informações relativas à alínea k) tem alguma autonomia e flexibilidade quanto ao que pode redigir. Todavia, essa autonomia é fortemente condicionada não apenas pelo que é expectável ocorrer em documentos deste género,[36] mas também pelo que é possível solicitar à instituição em causa (uma instituição de ensino superior): por exemplo, pode solicitar um certificado de matrícula ou de licenciatura, mas não um extrato de conta ou um registo criminal.

Na tabela 2, a comparação entre o plano de texto prototípico (Travaglia 2007) e o plano do exemplar analisado evidencia que existe uma coincidência quase total entre os conteúdos previstos e os que foram atestados.

 

Tabela 2. Plano de texto prototípico do género requerimento (Travaglia 2007)

e plano de texto do exemplar analisado

Plano de texto do género requerimento

(Travaglia 2007: 51-52)

Plano de texto do exemplar analisado

i) autoridade e/ou órgão a quem se dirige a solicitação

b) indicação da instituição (ISEL, Instituto Superior de Engenharia de Lisboa)

c) indicação do órgão que recebe o documento (serviços académicos, núcleo de licenciaturas)

e) órgão a quem o texto é dirigido (presidente do ISEL)

ii) dados do solicitante

a) número de aluno do requerente

f) nome do requerente

g) curso em que está matriculado

h) ramo do curso em que está matriculado

i) número do documento de identificação do requerente

j) contacto telefónico do requerente

iii) explicitação do que é solicitado

k) espaço em branco, introduzido pelo excerto “requer a V. Exa.”, que deverá ser preenchido mencionando o que o requerente pretende solicitar

v) indicação do destinatário da resposta e do meio pelo qual ela será comunicada (opcional)

n) indicação relativa ao meio pelo qual se dará conhecimento ao requerente do deferimento ou indeferimento da sua solicitação (correio eletrónico)

vi) fecho tradicional

m) “pede deferimento”

vii) local e data

m) local e data

viii) assinatura do solicitante

m) assinatura do requerente

 

O quadro evidencia, por um lado, que o item opcional “indicação do que sustenta o direito à solicitação apresentada” não é atestado no texto analisado. Por outro lado, alguns elementos que constam do texto não estão previstos na proposta de Travaglia (2007), nomeadamente os itens seguintes:

l) indicação de eventuais anexos que acompanham o requerimento;

o) quadro destinado aos serviços académicos (data e número de entrada, assinatura do funcionário que recebeu o documento);

p) quadro destinado ao despacho do presidente do ISEL (deferimento/indeferimento, data do despacho e assinatura).

A comparação permite concluir que, relativamente ao plano de texto prototípico do género requerimento, o exemplar analisado inclui todos os conteúdos previstos, sendo escassas as adaptações. O texto integra, portanto, um plano com elevado grau de convencionalidade.

Em relação aos mecanismos usados para segmentar e/ou para destacar elementos do texto, contam-se os seguintes:

– parágrafos;

– quadros (ou tabelas);

– indentação e alinhamento do texto;

– uso de maiúsculas e de minúsculas;

– uso de maiúsculas e de versaletes;

– negrito e itálico;

– cor vermelha e cinzenta;

– siglas e abreviaturas;

– numeração árabe.

Veja-se, agora, a segmentação que é estabelecida por estes mecanismos, assim como os elementos que são por eles destacados. Os parágrafos servem para compartimentar diferentes partes do texto, separando alguns elementos e agrupando outros. Por exemplo, o título do texto ocorre isoladamente num parágrafo, e o destinatário é mencionado em dois parágrafos consecutivos (forma de tratamento e cargo no primeiro parágrafo, instituição em que desempenha esse cargo, no segundo). Já a identificação do requerente, os seus dados e a solicitação propriamente dita ocorrem no mesmo parágrafo. A fórmula “pede deferimento”, o local e a data e, por fim, a assinatura do requerente surgem em três parágrafos consecutivos.

Os quadros correspondentes à “nota importante”, e os que dizem respeito aos espaços reservados aos serviços académicos e ao presidente do ISEL salientam-se do resto do texto, pelo facto de os seus limites estarem traçados. Deste modo, destacam-se em relação a todos os outros elementos do texto, com exceção, provavelmente, do acrónimo que identifica a instituição (como adiante se verá).

A indentação salienta o destinatário do texto, tal como sucede em textos do género carta pessoal ou comercial. O alinhamento do texto é predominantemente justificado. Em alguns casos pontuais, foi selecionado o alinhamento à esquerda (“número de aluno”, “Serviços Académicos – Núcleo de Licenciaturas”) e o alinhamento à direita (“ISEL”).

As maiúsculas são usadas na designação da instituição e na “nota importante” (destacada, também, pelo uso de negrito). Noutros casos, são utilizadas apenas em início de palavra (“Requerimento geral”, “Ex.mo Senhor Presidente”, “Lisboa”, etc.). Os versaletes são usados na identificação do serviço que recebe o documento (“Serviços Académicos – Núcleo de Licenciaturas), que, como foi já referido, também surge destacado pelo seu alinhamento à esquerda.

O negrito é usado para destacar o título do texto (que explicita o género em que ele se insere), a “nota importante” (a qual é, de igual modo, sublinhada pelo uso de maiúsculas) e, os títulos dos quadros ao fundo da página, ou seja, os espaços reservados aos serviços académicos e ao despacho do presidente do ISEL. O itálico, por seu turno, é utilizado em indicações que ocorrem entre parênteses e que podem ser úteis ao requerente. Note-se, todavia, que nem todas ocorrem em itálico (veja-se, por exemplo, as referências ao nome, aos anexos e a indicação “continuar no verso se necessário”).

A cor vermelha é usada para salientar o acrónimo “ISEL”, e a cor cinzenta é utilizada na explicitação do acrónimo (“Instituto Superior de Engenharia de Lisboa”). A combinação das cores e da localização dos elementos (no canto superior direito da página) confere-lhes particular destaque, sendo provavelmente os elementos que o leitor visualiza em primeiro lugar.

O uso de siglas e de abreviaturas decorre de convenções estabelecidas (como “Ex.mo”, em vez de “Excelentíssimo”, ou “BI”, em vez de “Bilhete de Identidade”) e permite tornar o texto menos extenso. Por fim, a numeração árabe é utilizada para listar os eventuais anexos que acompanham o documento.

Os mecanismos referidos permitem, então, destacar diversos elementos textuais, seja pela relevância que se pretende que lhes seja concedida, seja para assinalar as fronteiras entre diferentes secções.

Atente-se, agora, nas razões que justificam a ordem pela qual os diversos elementos são distribuídos no texto. A identificação da instituição e dos serviços que recebem o documento ocorrem, de forma expectável, em primeiro lugar. Este procedimento é comum em textos de géneros do discurso administrativo, e permite identificar de forma inequívoca o âmbito deste texto: o ato que ele concretiza apenas pode ser validado no seio da instituição em causa.

O único elemento cuja ocorrência no início do texto poderá causar estranheza é a que diz respeito ao número de aluno do requerente (situado no topo esquerdo da página do documento). Todavia, esta localização deve-se, provavelmente, à necessidade de identificar com facilidade a documentação relativa a cada estudante. É plausível conceber que os diversos documentos que dizem respeito a um dado estudante sejam arquivados segundo uma ordem numérica. Assim, a localização do número de aluno em posição proeminente poderá agilizar o arquivamento e a procura dos documentos dos alunos da instituição.

A seleção e ordenação de outros elementos em textos do género requerimento decorrem de convenções próprias de textos do discurso administrativo (ou, em rigor, das atividades desenvolvidas no âmbito da respetiva formação sociodiscursiva): indicação do género em que o texto se insere (requerimento, e não boletim de matrícula ou formulário de reclamação, entre outros géneros possíveis), indicação do órgão a quem o texto é dirigido (presidente do ISEL, com forma de tratamento convencionada: “Ex.mo Senhor”), identificação do requerente e dados complementares, a solicitação propriamente dita, a localização espacial e temporal e, por fim, a assinatura do requerente (cf. Travaglia 2007).

De forma interpolada, ocorrem quer a listagem de documentos que eventualmente acompanham o texto do requerimento, quer uma “nota importante” (que se encontra inserida num quadro, o que lhe confere particular destaque e notoriedade). Tal ordenação não parece ser canónica, dado que se interrompe a parte correspondente ao texto em que o requerente explicita o que pretende obter da instituição. A inserção destes dois elementos nessa parte do texto deve-se, por certo, à visibilidade que se lhes pretende conferir. No caso da listagem de anexos, é provável que a localização decorra da conveniência de se visualizar mais facilmente se o documento inclui anexos, assim como o seu número e o respetivo título ou o género em que se integram. No caso da nota, o objetivo parece ser o de alertar o requerente para a necessidade de (no seu próprio interesse) confirmar o endereço eletrónico que utiliza, uma vez que será por essa via que a deliberação lhe será comunicada.

Ao fundo da página, dois quadros com limites traçados são exclusivamente reservados aos órgãos da instituição: aos serviços académicos e ao presidente do ISEL. A ordenação da secção do texto completada pelo requerente e destes dois quadros reflete as três fases do processo: solicitação (pelo requerente), entrega (aos serviços académicos) e deliberação (pelo presidente da instituição). Assim, a distribuição das secções afigura-se coerente com a cronologia dos sucessivos atos administrativos.

Pelo que foi exposto se conclui que, no caso dos textos do género requerimento, a ordenação dos conteúdos e a segmentação obedecem a convenções gerais inerentes a textos do discurso administrativo (objetividade, clareza, concisão) e têm como finalidade expor todas as informações relevantes de maneira a que um dado órgão possa deliberar de forma fundamentada e desejavelmente expedita. Trata-se de textos com um elevado grau de convencionalidade, que se concretiza num plano de texto muito estabilizado e, por isso, previsível.

4. Considerações finais

Ao longo deste artigo, foi proposta uma definição do conceito de plano de texto, com base nas sistematizações que constam em Adam (2002) e no Dicionário terminológico. Depois, o conceito foi aplicado no âmbito de uma análise detalhada de planos de textos dos géneros dicionário unilingue e requerimento, tendo sido destacados alguns dos principais fatores que condicionam os planos adotados, entre os quais se contam a área de atividade socioprofissional em que foram produzidos e os objetivos que se pretende atingir.

A análise permitiu testar e validar os principais aspetos que, na perspetiva adotada ao longo do artigo, devem ser considerados quando se analisa o plano de um texto em suporte escrito:

– as dimensões relativas à distribuição de conteúdos e à segmentação textual;

– os níveis macroestrutural e microestrutural em que as duas dimensões são suscetíveis de ser atestadas;

– os polos correspondentes ao plano de texto convencional e ao plano de texto ocasional que, em oposição gradual, subjazem a cada novo texto.

A caracterização proposta do conceito revelou-se adequada à análise textual, tendo permitido contemplar todos os aspetos relevantes e detetar convenções associadas aos géneros estudados. Nos exemplares analisados, os planos de texto aproximam-se do polo convencional, uma vez que, na sincronia atual, se encontram altamente padronizados e estabilizados, admitindo, todavia, alguma variação.

Neste sentido, observou-se que os mecanismos de segmentação dependem da distribuição dos conteúdos, que obedece a motivações diversificadas (por exemplo, a identificação e a relevância da informação). Não parece, por isso, ser excessivo afirmar que a segmentação serve geralmente para organizar, destacar e reforçar conteúdos, com o objetivo último de facilitar o processamento da informação.

Dadas as dimensões inerentes ao plano de texto, ele configura uma propriedade textual que, na perspetiva de Adam (2001: 40-41), inclui aspetos que se enquadram nas componentes composicional e material. O plano de texto configura, portanto, uma propriedade suscetível de contribuir, juntamente com outras, para o estabelecimento, identificação, caracterização e delimitação dos géneros.

 

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[Recebido em 1 de fevereiro de 2016 e aceite para publicação em 19 de abril de 2016]

 

Notas

[1] Segundo a mesma autora, “knowing the genre […] means knowing such rhetorical aspects as appropriate subject matter, level of detail, tone, and approach as well as the expected layout and organization”, Devitt (2004: 16). Sendo relevante para o estudo dos géneros, a estruturação textual constitui, nesta área, um aspeto subsidiário relativamente às ações sociais que eles permitem concretizar.

[2] A obra intitulada Aspects of article introductions foi publicada em 1981. As principais ideias nela contidas foram retomadas e atualizadas em Swales (1990: 110-176).

[3] Sigla que designa as quatro partes em que se estruturam as teses com este plano: Introdução, Metodologia, Resultados e Discussão.

[4] Cf. secção 2.1. Ver também Santos e Silva (submetido).

[5] Cf. Biber (2008: 12) e Biber e Conrad (2009: 15-19).

[6] Cf. Adam (2001: 40-41). Ver também secção 2.3.

[7] Cf., por exemplo, Coutinho (2004) e Miranda (2010).

[8] Cf. Bronckart (1996: 154-167).

[9] Adam expôs reflexões, em diversos momentos, acerca do conceito de plano de texto (cf., entre outras referências, Adam 1992, 1999, 2008, 2011). Todavia, as suas propostas incidem, com ligeiras oscilações, nos mesmos conteúdos que o autor incluiu nesta entrada inserida no Dictionnaire d'analyse du discours. Assim, a opção de selecionar a exposição apresentada em Adam (2002) decorre do género específico desta obra, quer pelos requisitos de sistematicidade e exaustividade que o dicionário temático exige, quer porque também a reflexão de Costa e Aguiar e Silva (s/d) está incluída num texto do género dicionário (embora se deva sublinhar que os objetivos subjacentes às duas obras, assim como os respetivos públicos alvo, são muito diversos).

[10] Adam (2002: 433). A inventio consiste na seleção de conteúdos a integrar no texto.

[11] O soneto inglês é constituído por três quadras e um dístico.

[12] Cf. também Swales (2004: 106-110) e Hyland (2009: 140-143).

[13] Cf. Silva (2013).

[14] Para a explicitação de planos de texto de outros géneros – dos discursos jornalístico, religioso e literário –, cf. Silva (2012: 65-81) e Silva (2015: 37-43).

[15] Ainda que tenha sido objeto de abundante reflexão na obra de Adam (cf. nota 9), Miranda (2010: 127) considera que “os contornos da noção de plano de texto permanecem vagos”.

[16] Ao mencionarem o plano da ortografia, os autores parecem referir-se especificamente aos textos produzidos em suporte escrito.

[17] Segundo Bronckart (2010: 15), “Volshinov […] a posé que, pour les textes quotidiens comme pour les textes littéraires, le classement en genres devait tenir compte en priorité du type de rapport existant entre les entités verbales et les activités collectives dans le contexte duquel elles étaient émises, parce que les textes sont à la fois les produits et les révélateurs des diverses formes d'interaction sociale. L'énoncé concret (et non pas l'abstraction linguistique) naît, vit et meurt dans le processus de l'interaction sociale des participants de l'énoncé. Sa signification et sa forme sont déterminées pour l'essentiel par la forme et le caractère de cette interaction” (o destaque em itálico é da nossa responsabilidade).

[18] O uso do verbo modal dever em algumas frases da presente exposição revela que há, naturalmente, textos que evidenciam maior ou menor adequação no que diz respeito à ordenação dos conteúdos nos textos, assim como há textos que manifestam graus mais ou menos elevados de coesão e de coerência. Pense-se, por exemplo, em composições ou em respostas extensas (em particular, de tipo predominantemente expositivo e argumentativo) redigidas por estudantes dos mais diversos níveis de ensino.

[19] As oito componentes propostas por Adam (2001: 40-41) são as seguintes: enunciativa, pragmática, composicional, semântica, estilístico-fraseológica, metatextual, peritextual e material.

[20] Houaiss, Antônio, e Mauro de Salles Villar (Org.) (2001). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 6 tomos. Lisboa: Círculo de Leitores.

[21] Neste artigo, assume-se a perspetiva segundo a qual os textos que se incluem no discurso científico e no discurso académico constituem dois conjuntos que se sobrepõem mas que não coincidem totalmente. Por um lado, o conhecimento científico “covers scientific research production” (Pérez-Llantada 2012: 1). Por outro lado, “academic discourse refers to the ways of thinking and using language which exist in the academy” (Hyland 2009: 2). Deste modo, a descoberta, construção, organização e difusão do conhecimento não se restringe aos contextos académicos. Acresce que nem todos os textos produzidos na academia são de natureza científica (como, por exemplo, os documentos inerentes à gestão administrativa das instituições de ensino superior).

[22] Estas tendências que os autores de textos do discurso científico frequentemente assumem em busca de uma “retórica da objetividade” concretizam-se através de diversos mecanismos. De acordo com Bennett (2011: 17), a retórica da objetividade assenta numa conceção segundo a qual “[there is] a world ‘out there' that can be perceived, analysed and discussed in absolute terms, irrespective of the subjective position of the observer or the cognitive tools that are used for the purpose. But this apparent neutrality is a construct. It is largely achieved through the systematic use of nominalizations and impersonal verb forms, which remove the subjective observer from the picture and focus upon the world outside; by simple sentence structures and clearly defined lexis, which create the illusion of a basic correspondence between words and things; and by a careful reasoning process that uses ‘logical' devices such as entailment and consistency to create a waterlight argument”.

[23] Segundo Correia (2009: 23), “em sentido genérico, um dicionário é uma espécie de catálogo em que a ordenação dos diferentes itens, introduzidos por uma palavra ou expressão, é tipicamente alfabética. Já em sentido estrito, a ideia que temos de um dicionário é de um livro, de dimensão significativa que é constituído fundamentalmente por uma longa lista de palavras-entrada, apresentadas a negrito e ordenadas alfabeticamente, tendo, para cada uma delas, um pequeno texto informativo, que consultamos para satisfazer determinadas dúvidas relativas ao seu significado, aos itens da realidade que podemos nomear, ou ao seu uso”.

[24] Note-se, contudo, que a ordenação cronológica e a ordenação temática são também possíveis em textos do género dicionário.

[25] Houaiss, Antônio, e Mauro de Salles Villar (Org.) (2001). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 6 tomos. Lisboa: Círculo de Leitores, tomo IV, pp. 2298-2299.

[26] Segundo Correia (2009: 28), “um artigo lexicográfico não apresenta uma estrutura textual típica com frases completas, organizadas em períodos e parágrafos, mas sim uma estrutura muito particular, em que o lexicógrafo recorre a diferentes tipos de representação gráfica para assinalar informação de diferentes naturezas, tais como o negro para a entrada, abreviaturas várias, itálicos ou aspas, etc.”

[27] Este caráter representa uma mão cujo indicador aponta para a direita, e tem como objetivo alertar o leitor para a conveniência de consultar uma outra entrada: precisamente a que ocorre após o caráter.

[28] Bazerman (2004: 86) definiu o conceito de intertextualidade nos seguintes termos: “the explicit and implicit relations that a text or utterance has to prior, contemporary or potential future texts. Through such relations a text evokes a representation of the discourse situation, the textual resources that bear on the situation, and how the current text positions itself and draws on other texts”. A relação de intertextualidade deste texto do género dicionário unilingue com outros textos do mesmo género situa-se a um nível pouco explícito, segundo Bazerman (2004: 87), porquanto ela se concretiza “by using certain implicitly recognizable kinds of language, phrasing, and genres”. Também Koch e Travaglia (1998: 76) sublinharam a importância da “intertextualidade tipológica” (a influência que textos de um dado género exercem sobre outros textos da mesma classe) para o processamento da informação textual.

[29] Neste artigo, é assumida a distinção entre discurso jurídico e discurso administrativo. O discurso jurídico é constituído pelos textos produzidos pelas instâncias de poder legislativo e judicial, correspondendo, grosso modo, às leis e às sentenças. Entre os géneros do discurso jurídico, encontram-se o decreto-lei, o regulamento e o código. O discurso administrativo inclui os textos que regulam a aplicação das leis e das sentenças. Exemplos de géneros que se incluem no discurso administrativo são o requerimento, a ata e o certificado. Cf. Maingueneau (2014: 32), Maingueneau e Cossutta (1995).

[30] De acordo com Travaglia (2007: 51), os textos do género requerimento constituem “sempre uma solicitação de algo a que se tem direito por lei”.

[31] Além de poligerados, os textos deste género permitem distinguir os conceitos de autor (indivíduo que elabora o texto e prescreve o que deve ser incluído nos espaços a completar) e de locutor (neste caso, indivíduo que completa o formulário, assumindo a responsabilidade do ato que a totalidade do texto concretiza).

[32] De acordo com a perspetiva adotada no âmbito dos Estudos Retóricos dos Géneros, os géneros, enquanto dispositivos provisoriamente estabilizados, permitem aos falantes realizar ações e manter relações. Devitt (2004: 63) sublinha, nos seguintes termos, a interação dinâmica entre os géneros e a comunidade discursiva em que eles são usados: “it does seem evident that the relation of group and genre is reciprocal, that the group's values, epistemology, and power relationships shape the genres and that acting through those genres in turn then maintain those same values, epistemology, and power relationships”. Neste sentido, o requerimento pode ser perspetivado como um género que estabelece, reflete e perpetua uma relação assimétrica de poder entre cada entidade que o disponibiliza (na qual se inscreve o autor) e cada locutor que o preenche e “pede deferimento”.

[33] Cf. Referências do corpus analisado, no final do artigo.

[34] Esta informação ocorre inserida num quadro, e refere que a resposta será dada ao aluno via correio eletrónico, usando o endereço que terá sido indicado no ato de matrícula; caso o aluno pretenda que a resposta seja enviada para outro endereço, deverá explicitá-lo num espaço deixado em branco para esse efeito.

[35] Os elementos que constam da secção IV são suscetíveis de se integrar no peritexto do requerimento (cf. Lane 2005).

[36] Cf. nota 28.

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