I. Que governança na AML veio encontrar a pandemia?
A crise sanitária afeta de forma desigual o país, agredindo mais intensamente as áreas metropolitanas, como as estatísticas têm vindo a revelar sem margem para dúvidas. Mas o volume e o perfil das atividades geradoras de desemprego e ainda a queda do comércio externo, mostra como também a tragédia económica e social encontrou ali terreno propício para alastrar como, aliás, já tinha sido identificado noutras circunstâncias e noutros contextos (Inaida, Yasui, Tada, Taniguchi, & Okabe, 2011).
Em 2013 foi aprovado um novo quadro legal das Áreas Metropolitanas (AMs) definindo que seriam uma associação de municípios de natureza forçada (Freitas do Amaral & Coutinho, 2019) e de legitimidade indireta, cujos órgãos são o conselho metropolitano, a comissão executiva metropolitana e o conselho estratégico para o desenvolvimento metropolitano. Destaco sobretudo duas mudanças operadas com este novo contexto legal: o enorme avanço em termos de atribuições; a coexistência de entidades públicas, privadas e associativas no conselho consultivo estratégico das AMs, revelando os primeiros passos numa efetiva governança metropolitana.
Sendo este o enquadramento em vigor tal não significa que não haja legislação complementar que lhe dê novo fôlego. Aconteceu isso, por exemplo, em 2018 com o pacote legal que visa a descentralização de competências em direção aos municípios e às entidades intermunicipais. Pela primeira vez, uma lei específica concretizou um quadro jurídico para a transferência de competências e recursos das entidades da administração central e local para o nível intermunicipal. Este corresponde às áreas metropolitanas e a referida ampliação de competências justificará um renovado protagonismo, nomeadamente, na saúde, ação social, proteção civil e promoção económica.
Com as novas responsabilidades levanta-se a questão da legitimidade política, ou seja, na ausência de órgãos eleitos de forma direta, com vinculação de políticos e legitimação reforçada junto dos eleitores e das outras camadas de poder, apenas é possível acenar com uma legitimidade indireta o que acarreta consequências negativas na gestão e na construção da identidade metropolitana (Vallbé, Magre, & Tomàs, 2015). Dito de outro modo, a estrutura institucional hoje existente cumpre funções crescentemente alargadas, tem maior orçamento e recursos, mas a sua operacionalidade e visibilidade continua limitada, em parte porque a noção de área metropolitana é muito vaga para o cidadão (Lidström & Schaap, 2018), por oposição à que se verifica para o governo central ou local.
II. Quando a covid-19 encontra (ou não) a governança da AML
1. Como a administração central se projetou no território
O governo conduziu as rédeas do processo de combate à pandemia envolvendo todos os seus ministérios, órgãos e serviços desconcentrados e autónomos. Mas, porque a necessidade do desdobramento territorial não é apenas técnica, considerou-se útil designar, logo a 6 de abril de 2020, cinco secretários de estado para “coordenar a execução da declaração do estado de emergência no território continental, ao nível local” (GPM, 2020, p. 1). Embora com o cuidado de não beliscar a autonomia e competências das autoridades locais, entendeu-se como “imprescindível assegurar uma melhor coordenação dos serviços da administração central de nível regional ou distrital e a devida articulação supramunicipal” (GPM, 2020, p. 1).
Este mecanismo adicional de controle e comunicação recorreu às NUTS II do continente uma vez que “já são hoje a área territorial consolidada da generalidade destes serviços desconcentrados da administração central ou compreendem os serviços que ainda se organizam na base distrital” (GPM, 2020, p. 1).
Registou-se também, com estrondo, a ausência de qualquer referência às Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) ou às entidades intermunicipais, em particular, às áreas metropolitanas. Seria interessante explorar a razão do seu apagamento até porque não seria difícil de aceitar à partida o seu envolvimento nas incumbências definidas para os referidos cinco secretários de estado, a saber: “a) a coordenação horizontal das entidades, organismos ou serviços de âmbito regional ou distrital da administração direta e indireta do Estado, necessários no combate à pandemia COVID-19, promovendo a articulação de todas as estruturas desconcentradas do Estado existentes na respetiva NUTS II que devam ser mobilizadas na execução do estado de emergência; b) a articulação e interlocução com as autarquias locais e as diversas entidades dos setores social e económico na respetiva NUTS II; c) a articulação com a Estrutura de Monitorização do Estado de Emergência, (...) para efeitos de acompanhamento e produção de informação regular sobre a situação ao nível local” (GPM, 2020, p. 2).
A coincidência das regiões de saúde com as áreas cobertas pelas CCDR e o envolvimento de múltiplos atores - públicos, privados, associativos - na estratégia de enfrentamento da pandemia, deixa no ar a primeira grande interrogação sobre as ausências dos níveis intermédios de gestão do território ou mesmo da escala intermunicipal no modelo de governança encontrado para encarar este problema que começou por ser de saúde pública, mas que rapidamente derivou para o campo social, económico e territorial.
2. Como a administração local se organizou
Os dados não são ainda todos conhecidos, mas ninguém deixará de reconhecer o envolvimento ativo das autarquias quer na fase de prevenção, encerrando ou limitando o uso coletivo de alguns equipamentos e espaços públicos, realizando testes de despiste da doença, distribuindo máscaras e outro material de proteção, quer na reação ou mitigação de alguns efeitos negativos como se viu com o enfrentamento do problema dos lares de idosos, dos requerentes de asilo ou ainda dos surtos que afetaram os trabalhadores, muito deles precários, imigrantes e a viver em habitações sobreocupadas, das cadeias logísticas instaladas na fronteira metropolitana de Lisboa. A distribuição de material informáticoi e de bens de sobrevivência para famílias carenciadasii foram também iniciativas tomadas pelas autarquias procurando garantir que ninguém fique para trás.
O nível local conjugou-se aparentemente bem com o nível nacional, com exceção de alguns episódios com maior tensão vividos, por exemplo, em Ovar ou na Área Metropolitana do Porto (AMP). No primeiro caso, ainda a 16 de março, umas horas antes de o Governo ter anunciado formalmente o estado de calamidade no município de Ovar, o seu presidente antecipou nas redes sociais a decisão que iria privar os habitantes da sua liberdade de circulação restringindo mesmo as atividades económicas locais. À semelhança do que sucedeu em Itália, Espanha e Françaiii, o risco dessa fuga de informação foi o de potenciar a disseminação do vírus para o exterior do município por ovarenses contagiados, aproveitando a única e breve oportunidade de contornar o cordão sanitário.
O segundo exemplo de tensão ocorreu na AMP quando foi anunciado publicamente a 30 de março que estava a ser considerada a imposição de uma cerca sanitária para o Porto ou mesmo para alguns dos concelhos envolventesiv. A reação dos visados foi dura. O autarca do Porto chegou mesmo a afirmar que “a Câmara do Porto deixa de reconhecer autoridade à senhora diretora-geral da Saúde”IV. Passados alguns dias, a situação estava pacificada, mas ainda assim, o autarca não deixava “de denunciar - num tom que variava entre o diplomático e o irónico - as assimetrias regionais num país que (...) continua a pensar primeiro em Lisboa. Seja na distribuição de ventiladores, seja na distribuição de alimentos”v.
Sobre a relação com a associação de municípios onde cada administração local se inscreve as notícias não têm sido muitas e nem sempre convergentes. Se, nalguns casos, aquelas funcionaram como centrais de compras, designadamente de material de proteção (SNS, 2020), agilizando e facilitando o acesso a bens essenciais que, neste momento, todas as autarquias precisam, noutros casos registaram-se algumas disparidades e até tensões como, por exemplo, quando o presidente da Câmara de Cascais ameaçou criar uma “cerca sanitária às carreiras intermunicipais” para evitar a entrada de possíveis infetados no concelho, “podendo mesmo ser feito um transbordo de passageiros à entrada do concelho de maneira a garantir as condições de segurança pública”vi. Ou seja, os processos de articulação entre municípios mediados pelas AMs ou pelas associações de municípios, a que poderemos chamar governança, encontraram campo para se desenvolver e aprofundar, mas também deixaram a nu as suas fragilidades quando o desafio era defender os interesses das suas próprias comunidades.
3. Os aceleradores dos problemas de governança da AML
Os municípios numa área metropolitana têm forçosamente uma interação funcional entre si que, noutros contextos territoriais, não existe (pelo menos com essa intensidade). Aliás, essa interação começa logo por interrogar a (des)coincidência entre a AML institucional e a AML funcional. O caso agora exposto pelos episódios da doença identificados na Azambujavii deixa no ar a interrogação da razão de ser deste desfasamento. A Azambuja exibe movimentos pendulares em direção a outros municípios da AML e recebe também muitas das deslocações aqui geradas dada a sua extensa oferta de emprego. É, por isso, difícil não ver como é intensa e complexa a sua integração na AML “real”. A forma metropolitana de Lisboa parece, assim, ser o resultado da aplicação de critérios que não os da expressão demográfica dos municípios, da continuidade territorial ou da dependência funcional, entre outros que aqui se poderiam evocar. Será que se a Azambuja pertencesse à AML não lhe teria sido dedicada mais atenção na gestão dos distanciamentos ou a uma maior e melhor oferta em transportes?
As respostas que explicam esse desajustamento de conveniência (e continuamos a ver pressões para o redesenho da NUTS II AML) podem até levar-nos a pensar que a AML pode estar mais perto de uma nova secessão que de um reforço de competências e legitimidade políticaviii.
Para além destes problemas, João Ferrão mostrou que é útil importar para estas análises conceitos como a suscetibilidade, exposição e vulnerabilidadexiv. No caso das áreas metropolitanas percebe-se que o seu grau de exposição é elevado pela relação franca com o exterior (o aeroporto de Lisboa registou um movimento de mais de 31,1 milhões de passageiros em 2019); junta-se-lhe a suscetibilidade de uma densidade demográfica que chega aos 1500 residentes/km2 considerando apenas as “áreas predominantemente urbanas” definidas pelo Instituto Nacional de Estatística, conjugada com uma intensa interação de pessoas e bens entre os múltiplos fragmentos intra-metropolitanos hoje mais exposta ainda pela segregação entre os locais de trabalho e os de residência de todos os que estiveram na linha da frente. As assimetrias existentes na disponibilidade e acesso aos serviços de saúde ou ainda nas condições de habitação, também servem de potencial agravante do nível de suscetibilidade existente na AML. A vulnerabilidade, entendida como as características intrínsecas à comunidade que acaba por a fragilizar, infelizmente também é aqui exponenciada pela presença de múltiplos grupos de risco e pelo modo como eles se organizam (ou os organizam), em especial os idosos e imigrantes, mas não só.
III. Como tratar a ferida exposta?
Mas como lidar com um problema pandémico nas fases de prevenção, enfrentamento, mitigação ou até na fase de recuperação? A colaboração, a transparência e a resiliência nos processos serão alguns dos princípios fundamentais para a construção de uma resposta adequada sendo essa a grande vantagem da adoção dos processos de governança territorial. Para isso exigia-se uma estrutura supramunicipal metropolitana, mais que intermunicipal, que estimulasse formas de acionar a inteligência coletiva de um território ímpar na disponibilidade em recursos técnicos, científicos e logísticos. Incluir-se-ia ainda a sociedade civil cada vez mais participativa, interessada e ativa, fundamental, por exemplo, no apoio às pessoas sem-abrigo, às vítimas de violência domésticaxv, aos endividados (DECO, 2020), às famílias sem capacidade de adquirir bens essenciais, mas também envolvida em garantir “territórios acessíveis a todos” a partir do combate ao isolamento, exclusão social e segregação que a COVID19 veio expor ainda mais.
Da AML (entidade), as notícias que nos chegaram dão conta de uma reação direta no terreno com a realização de testes, distribuição de material médico e de proteção e a definição de regras a cumprir nos transportes coletivos. Salienta-se também a criação de uma Plataforma de Gestão Integrada racionalizando as disponibilidades e excedentes que poderão assim vir a ser melhor aproveitadosix.
Existe, porém, uma ferida exposta quando se avalia a desproporção entre as medidas metropolitanas tomadas e a escala alcançada pelo problema sanitário, social e económico. A ferida foi ainda aprofundada pela desvalorização metropolitana na estratégia desenhada pelo governo. Também por estas razões, a AML precisa rapidamente de se repensar sob pena de perpetuar a sua insignificância apenas revertida aqui e ali por algum protagonismo emprestado pelo Governo.
As áreas metropolitanas são espaços urbanos muito complexos, com uma elevada fragmentação política e pulverização sectorial e para onde coincidem vários níveis de poder, exigindo, por isso, um esforço de articulação igualmente complexo. Um processo de governança, mais do que governação, teria a capacidade de esbater este “efeito-ilha” que tendencialmente se pressente em cada ator, em cada nível de poder ou em cada setor e que acaba por retirar eficiência às soluções desenhadas, acrescentar problemas aos problemas, fomentar tensões e desconfianças.
É difícil não pensar num nível supramunicipal, como interlocutor ativo na relação com a escala extra-local, mas também como algo capaz de ler de modo integrado o território metropolitano de Lisboa, evitando que funcione como um puzzle de 18 peças, a agir em modo autónomo e, muitas vezes, com dificuldade em se encaixar entre si (Seixas, Tulumello, Corvelo, & Drago, 2015).
Receamos sempre que uma crise com esta magnitude telúrica, onde todos nos sentimos à deriva, possa ser aproveitada pelos que Naomi Klein chama de “artistas do real” que aproveitam estas circunstâncias para começar a refazer o mundo à sua maneira (Klein, 2007). Acreditando que, por uma vez, tudo pode vir a ser diferente, o antigo presidente da Câmara de Chicago, Rahm Emanuel, afirmava que “Never allow a good crisis go to waste. It’s an opportunity to do the things you once thought were impossible”x.