I. Introdução
Constituindo um campo da ciência que estuda a sociedade através do uso que suas classes sociais fazem do território que lhes serve de suporte, meio e condição de vida, a geografia interessa-se, como argumentaram Santos e Silveira (2001), não apenas pelo território per se, mas, notadamente, pelo território usado no curso da história da humanidade. A natureza do território depende, portanto, do uso que a sociedade faz dela. Deste modo, se o uso do território acontece de acordo com os parâmetros da lógica da racionalidade capitalista neoliberal, o ambiente social é tecido de maneira a criar e consolidar desigualdades, assentes em uma lógica de injustiças socioespaciais, na qual as populações mais vulneráveis sofrem mais impactos negativos desse uso.
Os acontecimentos de surtos pandémicos não são novos, contudo, a COVID-19 demonstra seu potencial de disseminação mais abrangente no quadro do mundo global, propiciando e agravando os impactos físicos e económicos na vida das pessoas e nas economias em escala planetária. Procuramos refletir sobre os desiguais impactos da COVID-19 nas sociedades regidas pela lógica global da racionalidade capitalista vigente (re)produtoras de injustiças nas suas diversas dimensões.
O objetivo do presente ensaio consiste em problematizar a crise pandémica da COVID-19, tendo em conta as desigualdades sociais, refletidas em injustiças socioespaciais, em uma cidade situada em região subdesenvolvida, como Recife, no Nordeste brasileiro. Sendo assim, localizamos o fenômeno ora abordado e escrutinamos as desiguais condições de preservação da saúde física e sustentabilidade económica da população no atual contexto.
O método utilizado é analítico-reflexivo a partir da espacialização da COVID-19, tendo como suporte teórico o desenvolvimento geográfico desigual no seio das sociedades capitalistas. Os dois mapas utilizados constituem uma ferramenta fundamental à discussão estabelecida, demonstrando a expansão territorial da COVID-19, a partir dos seus focos de expansão no início da pandemia em duas escalas geográficas distintas.
II. Um mundo permanentemente vulnerável a ameaças
Como acentuara Harvey (2013), onde quer que se faça presente, o capitalismo sempre busca, transformar em mercadoria tudo o que encontra com a finalidade precípua de gerar riquezas. Trata-se de uma perspetiva de produção que se expande, de maneira cada vez mais célere e intensiva, pelo mundo há cerca de 500 anos.
Ao colocar os interesses econômicos acima dos que dizem respeito à preservação da vida humana e da natureza, os ambientes da Terra ficam sujeitos às consequências desse modo de produção, a exemplo das frequentes ocorrências de surtos virais: a “gripe espanhola” no início do século XX, assim como os surtos do H1N1 e da SARS no início do século XXI, fazendo-nos refletir sobre as ligações com a celeridade e intensidade dos processos de invasão de ecossistemas naturais.
Defendendo que a forma pela qual as sociedades humanas tratam a natureza possui relação direta com o aparecimento de doenças, Sá (2020) relembra que a doença, em grande parte, é uma questão ambiental. São, assim, as ações humanas - invasão do habitat de animais selvagens, aumento das viagens aéreas modernas, difusão do tráfico de vidas selvagens - que têm propiciado condições não apenas para os surtos de doenças infeciosas no curso do tempo, mas também para a sua ampla disseminação.
Desde os anos 1980 há um descompasso entre os investimentos em aeroportos, agências de viagem, hotéis, restaurantes, centros turísticos e de lazer e parques temáticos, daqueles vocacionados para hospitais devidamente equipados e laboratórios de pesquisa em saúde pública nos países ocidentais. De tal consciência resultaram as pautas levantadas por intelectuais, sindicados e movimentos sociais, os quais nunca se calaram diante da insensatez da avidez inerente à lógica do capitalismo neoliberal (Mendes, 2018; Piketty, 2019).
As crises, quando ameaçam a vida humana, provocam a sensibilização, também, de governantes que, comprometidos, antes, com a agenda do capitalismo neoliberal, reconheceram os limites deste modelo como norteador da organização de todas as dimensões da sociedade dentre as quais a da saúde: Emmanuel Macron, Presidente da França, reconheceu que “existem bens e serviços [dentre os quais a saúde] que devem ficar fora das leis do mercado” (Duarte-Plon, 2020, p. 1). Por outro lado, no Brasil, há governantes que não aceitam mudar a sua postura economicista para uma mais humana. Contudo, durante a crise da COVID-19, intelectuais brasileiros de perfil liberal reposicionaram-se, adotando discursos de natureza mais crítica, que apontam para a falibilidade de uma via de mercado puramente neoliberal. Um exemplo digno de menção é o do economista Armínio Fraga em sua participação no Roda Vida, no dia 23 de março de 2020, na qual sugeriu a tomada de medidas de redistribuição de renda como a inclusão de 1,3 milhões de famílias no Programa Bolsa Família e a criação de um Programa de Renda Mínima visando beneficiar 100 milhões de brasileiros. Ademais, as raízes do problema parecem difíceis de serem resolvidas. Por isso, é crucial reconhecer as especificidades territoriais da manifestação da COVID-19 tendo em conta os diferentes níveis de vulnerabilidade dos territórios em Recife, que é uma das cidades brasileiras em que as desigualdades territoriais são mais patentes.
III. Os territórios da COVID-19 em recife
Apesar do fato de muitos países do mundo serem alvo da pandemia da COVID-19, a existência de territórios mais e menos vulneráveis, repercute em reações diferentes no que tange aos impactos dos surtos virais e, consequentemente, nas condições de superá-los. Assim como é também desigual a distribuição da incidência da COVID-19 no Brasil e em Recife, cuja disseminação tem se dado a partir de grandes centros urbanos, considerados epicentros do surto viral.
São as grandes cidades que concentram as ocorrências mais significativas do surto da COVID-19, as quais, por sua vez, expandem-se pelos seus respetivos entornos na medida em que são os contatos sociais e as redes que estruturam a organização da vida nas e entre cidades (fig. 1).
Os principais focos de origem e expansão do surto da COVID-19 localizam-se nos maiores centros urbanos das regiões de maior densidade do meio técnico-científico-informacional do país (Sudeste), no Distrito Federal (Brasília) e nos demais centros urbanos que possuem relevante dinâmica econômica, interligados pelos seus respetivos aeroportos. O mesmo acontece na escala do município do Recife. O território como meio técnico-científico-informacional, acentuam Santos e Silveira (2001), refere-se ao espaço que detém altas densidades técnicas - expressivo número de modernos e sofisticados sistemas de comunicação, informação, circulação, distribuição e consumo concentrados em um lugar - que, respaldadas pela ciência, possuem a finalidade de orna-lo fluido e rápido para atender aos interesses da racionalidade capitalista do mundo atual, a globalização.
Os epicentros da COVID-19 constituem territórios cujos meios técnico-científico-informacionais são, portanto, mais densos, abrigando grande parte das classes dominantes e médias da cidade, ou seja, pessoas que, tendo acesso ao conjunto de bens e serviços necessários à vida social moderna, introduziram ou tornaram-se “pioneiros ativos” na disseminação do vírus na cidade ao terem retornado de suas viagens internacionais. Expansão geográfica esta também verificada no Rio de Janeiro (Barbosa, Teixeira, & Braga, 2020).
Contudo, as pessoas pertencentes a estas classes reúnem as condições para se protegerem da ameaça à vida e a sobrevivência económica ligadas a COVID-19 na medida que têm acesso a serviços privados de saúde, exclusivos e com disponibilidade para atender os cidadãos-clientes, ao passo que conseguem confinar-se em suas casas, dando continuidade às suas atividades cotidianas utilizando-se da provisão de novas tecnologias disponíveis nos seus meios (computador, tablet, internet), diferente do que acontece com as classes dominadas.
“Há (...) a questão de quem pode e quem não pode trabalhar em casa. Isto agrava a divisão social, assim como a questão de quem pode se isolar ou ficar em quarentena (...) em caso de contato ou infecção. Exatamente da mesma forma que aprendi a chamar os terremotos da Nicarágua (1973) e da Cidade do México (1995) de “terremotos de classe”, assim o progresso da COVID-19 exibe todas as características de uma pandemia de classe, de gênero e raça. Embora os esforços de mitigação estejam convenientemente camuflados na retórica de que “estamos todos juntos nisso”, as práticas, particularmente por parte dos governos nacionais, sugerem motivações mais sinistras”
(Harvey, 2020, p. 21-22).
Morando em favelas ou palafitas, sob precárias condições de existência, casas sobrelotadas, trabalho informal, sem acesso às tecnologias da informação e com acesso apenas a serviços públicos de saúde já saturados e precários, as classes dominadas são as que menos condições têm de reagir à crise da COVID-19 que é comum a todos, mas que não afeta todos da mesma maneira (Davis, 2020). A sobrelotação, em espaços exíguos com um número insuficiente de cômodos disponíveis para famílias com mais de quatro pessoas, impede o isolamento necessário no caso de algum membro da família contagiar-se pela COVID-19. O risco de contaminação dessas pessoas é muito provável, na medida em que chefes de família - homens e mulheres - têm que sair das suas casas todos os dias a fim de conseguirem algum dinheiro para comprar alimentos e, se possível ainda, produtos de limpeza - sabão e álcool em gel - para a higienização pessoal e da casa. A deficiência em termos de cobertura dos serviços de internet deixa essas pessoas sem condições de fazerem valer sua criatividade com vistas à busca de oportunidades seguras de obter alguma forma de renda. Por fim, a precarização dos serviços públicos sociais de saúde dificulta a realização do atendimento e acompanhamento dos casos suspeitos de contaminação pelo vírus em epígrafe.
Vale sublinhar a interseccionalidade que acomete os indivíduos pobres no Brasil, tendo em vista que as pessoas negras são aquelas que constituem a maior parte das populações residentes em favelas e palafitas das cidades, sendo estas mais vulneráveis do que a população branca. Com efeito, de acordo com Gragnani (2020), as maiores vítimas do novo coronavírus, no mundo e no Brasil, são as pessoas pobres e negras, o que foi justificado exatamente por algumas das razões colocadas anteriormente, ou seja, moradia inadequada, impossibilidade de se isolarem e acesso desigual a sistemas de saúde. Isto se deve, sobretudo, às desigualdades sociais e ao racismo, que constituem duas rugosidades perversas que permanecem, por exemplo, na sociedade brasileira até aos dias atuais.
No entorno dos dois epicentros da COVID-19 em Recife (áreas mais escuras na fig. 2), mais precisamente no entorno, nas áreas cinzentas mais claras, e mesmo, em alguns casos, nas áreas mais escuras, acham-se concentrados os territórios precarizados, cuja injustiça é visível, concreta, e consequentemente a população é mais suscetível às consequências da atual crise.
Primando pela vida e deixando de lado interesses puramente econômicos, os executivos locais - do governo estadual e a Câmara do Recife - seguem as orientações da Organização Mundial de Saúde, embora tenham conflituado com o Governo Federal de postura negacionista. Aliás, é, sobretudo, em momentos como esse que as sociedades têm a oportunidade única de refletir acerca da relevância do papel do Estado na garantia dos bens essenciais à vida (saúde, educação, habitação, etc.), reagindo contra as pressões e iniciativas de privatização de serviços essenciais e na precarização das condições laborais.
IV. Remate
O “sobrevôo” sobre a territorialidade da COVID-19 em Recife, incita à reflexão sobre as desiguais condições de reagir ao surto no quadro de uma pandemia que é comum, ao menos em sua existência, a todos e todas. Como as cidades brasileiras possuem fortes desigualdades territoriais que persistem no tempo histórico da formação nacional, apesar da COVID-19 atingir todas as classes sociais, as classes mais empobrecidas são as mais suscetíveis às consequências física e económica da pandemia em curso. Atualmente, esta situação é ainda mais agravada devido à atual conjuntura política que aprofunda as desigualdades sócio-territoriais, amplia o interesse da privatização de serviços públicos essenciais e desrespeita os direitos laborais.
As consequências das desigualdades sócio-territoriais acima referidas acham-se, portanto, intrinsecamente relacionadas com a finalidade principal do capitalismo neoliberal, a qual reside na geração de riquezas acima de tudo (Harvey, 2013), razão pela qual o território é permanentemente usado, preponderantemente, como recurso econômico (Santos & Silveira, 2001).
Ademais, esta reflexão antes de conclusiva abre caminhos para investigações futuras que implicarão uma aproximação com os territórios e com as pessoas que o experienciam, o que resultará em análises aprofundadas sobre os efeitos concretos da atual crise pandémica tendo em conta questões raciais e de género, posto que os graus dos efeitos desta crise não se esgotam nas questões ligadas a classe social.