Introdução
Um dos debates mais profícuos no seio da sociologia da educação tem sido o das (des)igualdades sociais na escola, ou seja, o contributo da instituição escolar na materialização da prometida sociedade meritocrática. A partir dos anos 1960 do século passado, têm sido exploradas as relações entre as trajetórias escolares dos alunos e o conjunto das respetivas propriedades sociais, com o objetivo de aferir o grau de igualdade de oportunidades. O presente artigo pretende contribuir, tendo em conta o conhecimento acumulado nesta área, para a análise da evolução da igualdade de oportunidades proporcionada pelo sistema de ensino básico português. Avaliar a existência de maior ou menor (des)igualdade implica aferir a variação da distância no desempenho escolar entre os grupos sociais (Merle, 2000, Duru-Bellat, 2004), mesmo quando estas desigualdades têm expressões diferenciadas em sistemas educativos nacionais distintos (Broer, Bai e Fonseca, 2019). Assim, a seletividade social da escola não está expressa na variação dos resultados globais, mas sim no grau de diferenciação do desempenho escolar entre os diferentes grupos sociais.
Tal problemática apresenta particular relevância sociológica quando pensamos na democratização crescente do acesso de vários grupos sociais aos patamares do ensino obrigatório e pós-obrigatório, refletida nas crescentes taxas reais de escolarização1 e na descida constante do principal indicador de exclusão educativa: a taxa de abandono escolar precoce.2 Neste contexto, as desigualdades sociais na educação tendem a concentrar-se no interior do próprio sistema educativo, como apontavam Bourdieu e Champagne (1992) já na década de noventa do século passado. Simultaneamente, nesta fase da massificação, introduzem-se mecanismos de seleção escolar em patamares cada vez mais precoces da escolarização, cuja função tradicional era acolher e socializar os novos públicos na cultura escolar (Stoer e Cortesão, 1999), mas que se vê cada vez mais posta em causa pela necessidade de classificar e selecionar os alunos dentro de um quase-mercado educativo marcado pela competição crescente entre agentes e estabelecimentos educativos, com evidências não só no país (Barroso e Viseu, 2003; Diogo, 2010), mas também noutras realidades, como dão conta Dumay e Dupriez (2014).
Um dos mecanismos de seleção existente no sistema de ensino português é a retenção dos alunos (repetição no mesmo ano de escolaridade).3 A reprovação de um aluno resulta do culminar de um julgamento avaliativo contínuo que deve ser, em teoria, informado quer por elementos formativos quer sumativos da avaliação feita ao longo do ano letivo, numa decisão pedagógico-administrativa tomada em conselho de turma. No entanto, como demonstra a investigação, ela é também influenciada por critérios que alguns autores têm denominado “contingenciais” à ação educativa (Verdasca, 2008). Significa que vários fatores extrapedagógicos concorrem, de forma mais ou menos explícita, para a produção de decisões relativas ao futuro escolar dos alunos. Entre estes, a atribuição de valor escolar aos modos de estar é destacada pelos docentes como o principal indicador do “grau de maturidade” dos alunos que permite decidir acerca da progressão ou não dos mesmos, com inferências a partir do comportamento, oralidade e postura apresentados em sala de aula (Ferreira, Félix e Perdigão, 2015). Apesar disso, a sociologia tem mostrado como este julgamento adquire um cunho potencialmente discriminatório para os grupos sociais mais afastados da representação docente do “aluno ideal” (Gomes, 1987), como veremos adiante.
De facto, os estudos tornam evidente a existência de uma “cultura da retenção” nas escolas portuguesas que atribui valor pedagógico à reprovação enquanto estratégia adequada aos alunos que não tenham atingido as metas de aprendizagem (Nunes, Reis e Seabra, 2016; Justino e Santos, 2014). Esta cultura reflete-se num uso exacerbado desta prática face a outros países europeus e da OCDE (Martins, 2017). De acordo com os dados mais recentes do PISA, Portugal é o 4.º país europeu em que mais jovens de 15 anos reportam terem reprovado de ano, pelo menos uma vez no seu percurso escolar (OCDE, 2020). No entanto, a produção científica constata que os efeitos a médio e longo prazo são mais nefastos que benéficos para o sucesso escolar, contribuindo para a consolidação (i) das baixas expectativas dos docentes e (ii) do “autoconceito” negativo dos alunos face ao trabalho escolar (Ferreira, Félix e Perdigão, 2015).
Assim, o nosso principal objetivo é analisar a variação da seletividade social da retenção escolar entre 2008 e 2018, período atravessado por intensas mudanças sociopolíticas e distintas lógicas de ação e discursos educativos no eixo da elitização-equidade (Pereira, 2014). Como tem evoluído a prática da reprovação? Que grupos de alunos têm sido mais afetados por esta medida? A análise circunscreve-se aos dois primeiros ciclos da escolaridade básica, por serem estes os patamares onde se verificam as menores taxas de retenção do sistema escolar e, deste modo, estar mais preservada a diversidade social de públicos escolares.
Começaremos por rever o conhecimento acumulado, sobretudo em território nacional, acerca da (des)igualdade de oportunidades na escola de massas. Avançamos depois para a análise das taxas de retenção e desistência no 1.º e 2.º ciclo do ensino básico em Portugal, partindo de dados globais para dados desagregados por sexo, escolaridade da mãe e origem nacional. Conclui-se com uma discussão das implicações dos resultados obtidos, quer para o estudo das desigualdades sociais na educação em Portugal quer para a compreensão do impacto dos projetos políticos de educação nos atores e contextos escolares.
Resultados escolares e seletividade social: velhas e novas desigualdades
A seletividade social do desempenho escolar está devidamente assinalada desde os anos 60 do século XX, com a publicação dos trabalhos fundadores realizados em França por Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, em 1964 e, nos Estados Unidos, pela equipa de James Coleman, em 1966. Depois destes, os múltiplos estudos que até ao momento exploraram as variáveis com potencial explicativo do diferencial no desempenho escolar,4 corroboram os resultados dos primeiros e são unânimes quanto à relevância das condições sociais familiares nos resultados obtidos pelos alunos, em qualquer nível de escolaridade: quanto mais favorecidas são as condições sociais em que vivem os alunos, melhores são os seus resultados, com destaque para os níveis de escolarização familiares. Verifica-se que os resultados escolares variam na relação direta com as qualificações académicas presentes na família, sendo menos bem-sucedidos escolarmente os que se inserem em famílias do operariado ou de trabalhadores independentes e mais bem-sucedidos os filhos dos Profissionais Técnicos de Enquadramento5 (onde predominam essencialmente os que completaram níveis do ensino superior).
A explicação dominante deste fenómeno social por parte dos sociólogos tem-se fundado nos contributos pioneiros de Bourdieu e Passeron (1980 [1970]) e de Bernstein (1977) que destacam a dimensão cultural (e não a económica) como explicações para as desigualdades de desempenho observadas. Nesta perspetiva, os alunos provenientes de famílias de classes populares obtêm, consistentemente, piores resultados por lhes ser exigido um processo acrescido de adaptação à cultura escolar e por ser esta muito dissemelhante daquela que predomina no seu contexto familiar. Estes alunos dominam conhecimentos, saberes, competências e códigos de comunicação que não são os que a instituição escolar legitima e valoriza, ou seja, as suas dificuldades acrescidas devem-se ao facto de não dominarem os códigos e as disposições valorizados no contexto escolar, cujo arbítrio cultural favorece as disposições herdadas pelos alunos de origens familiares nas classes médias e dominantes.
Como tem sido sobejamente demonstrado, para além das desigualdades sociais relativas à condição de classe/escolarização das famílias, variáveis relacionadas com a etnicidade e com o género dos/as estudantes têm marcado o seu “destino” escolar e social. Também sabemos ser incontornável a necessidade de considerar a interseção de várias formas de desigualdade.
Em Portugal, nos anos 1980 e 1990 registou-se uma inversão das tendências históricas de predomínio masculino nos vários níveis de escolaridade. Há já algumas décadas que as raparigas não só ultrapassam os rapazes em termos numéricos no acesso ao ensino superior6, como os suplantam no desempenho escolar (DGEEC, 2020, p. 19). O sucesso das raparigas terá resultado da conjugação da vantagem que retiram pela continuidade entre as exigências da sua educação familiar (autonomia, responsabilidade, autodomínio…) e as da educação escolar e do seu investimento acrescido na escolaridade, com vista a garantir um futuro livre da dependência económica do homem (Grácio, 1997; Fonseca, 2003).
Esta aparente inversão da desigualdade de género deve, no entanto, ser perspetivada no âmbito da geração de novas manifestações desta desigualdade na esfera educativa. Assim, fenómenos como, por exemplo, os melhores resultados dos rapazes na disciplina de matemática e a das raparigas nas línguas refletem efeitos da construção de um ofício de aluno genderizado. As expectativas sociais comunicadas pelos agentes de socialização ao longo da escolarização atribuem papéis de género diferenciados aos alunos que aproximam as raparigas, mais que os rapazes, da definição do “aluno-cliente ideal”: dóceis, metódicas e introspetivas, por oposição aos inconformados, enérgicos e combativos rapazes (Grácio, 1997; Pereira, 2012).
Por outro lado, é indispensável ler as dinâmicas de insucesso e exclusão educativas que afetam desproporcionalmente os rapazes por um prisma de classe. Sabemos que a clivagem entre os sexos nos resultados escolares aumenta à medida que são menores os recursos das famílias (idem). Após uma maior democratização do acesso ao ensino superior, os (rapazes) “herdeiros” das classes médias e dominantes urbanas, “acantonam-se” nos últimos redutos de distinção cultural representados por cursos superiores nas áreas da física, das engenharias ou da matemática (Fonseca, 2003). Paralelamente, são os de meios sociais desfavorecidos quem forma a maioria dos públicos das vias de ensino profissionalizantes (Neves et al., 2009), assim como o grosso dos alunos em situação de abandono escolar precoce7 e em casos de violência escolar (Sebastião, 2009). Os seus percursos no sistema educativo, mais pautados pela instabilidade, pelo confronto com a autoridade escolar e pela maior procura das vias de ensino profissionalizantes, são, assim, o resultado de uma construção performativa da masculinidade (Pereira, 2012), em grande medida como resposta às expectativas neles projetadas no seio de posições sociais estruturalmente desvalorizadas pelo arbítrio cultural dominante, em termos bourdianos.
Consideramos ser ainda de salientar alguns estudos sobre as experiências escolares de jovens descendentes de imigrantes e pertencentes a minorias étnicas que têm destacado a relevância da interseção do estudo do género com outros fatores socioculturais. Nomeadamente, problematiza-se (i) a construção da masculinidade como fator acrescido de desinvestimento escolar entre alguns grupos étnico-nacionais, como os descendentes de imigrantes africanos (Santos, 2004) e (ii) os papéis de género atribuídos às raparigas, nomeadamente as de origem cigana, como obstáculo ao seu sucesso e prossecução de estudos (Lopes e Costa, 2016).
Quanto às desigualdades étnico-nacionais nos resultados e trajetórias escolares, existe uma vasta literatura anglo-saxónica neste domínio, sobretudo no quadro da tradição da critical race theory (destacam-se, entre outros, Troyna, 1993; Gillborn e Youdell, 2000; Chapman e Bhopal, 2019). Em Portugal, a par do crescimento, nas últimas quatro décadas, da presença de estrangeiros e de descendentes de imigrantes das antigas colónias portuguesas, a sociologia da educação tem fortalecido o conhecimento da relação entre a desigualdade de trajetos escolares e as diferenças relacionadas com a etnicidade.
Da revisão de literatura mais relevante destaca-se sobretudo a diversidade de resultados e experiências escolares sob o prisma das origens nacionais.8 Alguns grupos de descendentes de imigrantes surgem associados a resultados escolares positivos e, até, acima da média dos nativos. Este fenómeno é atribuído (i) à maior proximidade das culturas de origem face à instituição escolar portuguesa, no caso dos alunos de origem ucraniana (Castro, 2016) ou (ii) à predominância de formas de educação familiar que valorizam a adaptação ao meio, como é o caso dos alunos de origem indiana (Seabra, 2010).9 Outros grupos nacionais, pelo contrário, parecem ser sistematicamente afetados por trajetórias escolares marcadas pelo insucesso, cuja explicação reside em maiores graus de descontinuidade cultural (ou, até, linguística) face à sociedade de acolhimento. É o caso dos descendentes de imigrantes dos antigos territórios coloniais portugueses em África (PALOP), sobretudo os alunos de origem cabo-verdiana e guineense (Seabra, 2010). No entanto, o estudo dos caminhos escolares protagonizados pelas “segundas gerações” de portugueses com ascendência africana tem aberto portas ao questionamento do lugar dos processos de racismo institucional e sistémico na construção do insucesso escolar destes alunos (Araújo, 2007; Abrantes e Roldão, 2019).
Tem sido dado destaque ao impacto negativo, para os trajetos escolares dos alunos negros e ciganos, às dinâmicas de competição interescolares que aumentam a estratificação socioterritorial da oferta educativa, desfavorecendo continuamente as oportunidades educativas destas comunidades (Seabra et al., 2016; Abrantes et al., 2016; Araújo, 2016). Estudos internacionais salientam ainda o impacto importante que podem ter as representações negativas dos atores educativos - nomeadamente, dos docentes - acerca dos alunos de origem imigrante e pertencentes a minorias étnicas nos seus resultados escolares (Agirdag, 2018), numa espécie de “profecia autorrealizada” ao longo do tempo de permanência destes grupos na escola.
Percebemos, portanto, que o debate sobre desigualdades na educação implica necessariamente considerar processos de exclusão e de seleção social - de classe, cultura, género e etnicidade - que operam nas relações educativas, as quais, por sua vez, produzem resultados educativos desiguais. O desempenho dos sistemas de ensino é um produto complexo das inter-relações (de dependência) entre os atores institucionais aos vários níveis da ação educativa. As taxas de retenção e desistência, ou de transição e conclusão, são exemplos de indicadores de desempenho educativo para o qual contribuem, com pesos variáveis, quer os produtos específicos da relação professor-aluno, passando pela mediação das lideranças escolares, quer os processos macropolíticos de desenho e implementação de políticas educativas. Algumas destas medidas procuram justamente atuar nas desigualdades do sistema educativo e nos percursos escolares. Estas têm um lugar diferenciado tendo em conta os ciclos políticos, os grupos (ou subgrupos) a que se dirigem, e o tempo que levam a produzir efeitos. Por outro lado, a expressão das desigualdades muitas vezes não tem uma correspondência direta com as políticas ou, pelo menos, como resultado de uma política isolada, evidente, por exemplo, em algumas desigualdades de género (Duru-Bellat, 2004). No entanto, um dos ciclos de governo que se inscreve na década em análise deixou marcas de seletividade social no sistema a partir de mecanismos de regulação e avaliação dos desempenhos dos estudantes (Martins et al., 2018), como se verá no ponto seguinte deste artigo.
Consideramos ser de particular importância analisar a seletividade sob os prismas do género e da etnicidade do sistema educativo português durante este período. Por um lado, porque, como vimos, é escasso o conhecimento recente que temos acerca da evolução das desigualdades de género na escola em Portugal. Por outro lado, um corpo de pesquisas recentes tem salientado a necessidade de olhar para a dimensão estrutural das desigualdades étnico-nacionais no recorrente insucesso educativo de alguns grupos de descendentes de imigrantes.
Análise dos dados
A análise que se segue tem por base informação estatística produzida pela Direção Geral de Estatísticas de Educação e Ciência (DGEEC). Trata-se do apuramento nacional realizado anualmente junto de todos os estabelecimentos de ensino públicos e privados no que toca ao número e características (sociais e escolares) dos alunos matriculados.10
Os dados disponibilizados publicamente pela DGEEC no seu website revelaram-se insuficientes para atingir os objetivos da presente investigação, pelo que foi necessário requisitar o acesso a tabelas de apuramento do número de alunos matriculados e transitados no 1.º e 2.º ciclos do ensino básico (e respetivos anos de escolaridade) em Portugal entre 2008/2009 e 2017/2018, por sexo dos alunos, nacionalidade dos alunos11 e escolaridade das mães.12 Desta forma, foi possível analisar, respetivamente, o impacto da seletividade social de género, de etnicidade e de capital escolar familiar na evolução da retenção escolar em Portugal.
As taxas de retenção e desistência para cada ano, ciclo de escolaridade e/ou categoria social foram calculadas pelas autoras, efetuando o rácio entre “os alunos que permanecem, por razões de insucesso ou de tentativa voluntária de melhoria de qualificações, no mesmo ano de escolaridade” e os alunos matriculados nesse mesmo ano.13 Nas figuras apresentadas adiante, distinguem-se visualmente os dados referentes ao 1.º e ao 2.º ciclo pelo uso de linhas contínuas e de linhas tracejadas, respetivamente.
Comecemos por analisar a evolução da taxa de retenção e desistência nos vários anos de escolaridade do 1.º e 2.º ciclos do ensino básico, entre 2008/2009 e 2017/2018 (figura 1).
Em ambos os ciclos de escolaridade, os dados revelam um aumento generalizado das taxas de retenção e desistência no final dos anos letivos de 2011/2012, 2012/2013 e 2013/2014. No entanto, os dois ciclos divergem nas tendências verificadas:
no 1º ciclo, no ano de escolaridade em que recaiu o exame nacional (4.º ano) a taxa de retenção e abandono reduziu-se a partir do ano letivo em que se iniciou a aplicação dos exames (2012/2013) e esta redução foi concomitante ao agravamento dos resultados nos anos de escolaridade precedentes (2.º e 3.º anos);
no 2.º ciclo, o agravamento das taxas de retenção e desistência regista-se tanto no 5.º como no 6.º ano, sendo mais gravoso neste último ano, no qual teve lugar o exame nacional.
Em suma, nos anos letivos em que existiu o exame nacional no 4.º e no 6.º ano constata-se ter existido, para além de um aumento generalizado da retenção dos alunos nestes anos iniciais da sua escolaridade, uma intensificação da seleção essencialmente no 2.º ano de escolaridade. No final da década repõem-se, e, em alguns casos, reduzem-se, os níveis de retenção e abandono registados no ano letivo de 2010/2011 e mantém-se a hierarquia: a seleção escolar é mais intensa no 2.º ano de escolaridade, seguindo-se o 5.º e 6.º anos.
Será que esse aumento da seletividade, ocorrida em meados da década em análise, foi acompanhado de um concomitante aumento da desigualdade de oportunidades? Importa analisar se a variação nas taxas de retenção e desistência escolares observada teve um respaldo uniforme ou desigual para os vários grupos sociais de estudantes.
Começamos por detetar diferenças expressivas entre rapazes e raparigas na evolução da incidência da retenção escolar (figura 2). Globalmente, os alunos têm sido mais atingidos pela prática da retenção do que as alunas, em ambos os ciclos. Apesar disso, no 1.º ciclo os valores da reprovação são relativamente baixos para ambos os sexos - entre 3 a 5% - e a desigualdade de género mantém-se relativamente diminuta - à volta de um ponto percentual -, bem como constante, ao longo da década em análise.
No entanto, o 2.º ciclo parece acentuar a presença de práticas avaliativas genderizadas que se refletem em taxas de retenção duas vezes mais elevadas entre os rapazes, face às suas colegas do sexo feminino. A desvantagem dos rapazes aumenta drasticamente no período entre 2010/2011 e 2014/2015, atingindo o pico em 2012/2013 quando 15% dos alunos do sexo masculino no 2.º ciclo são reprovados, face a 9% das raparigas.
A partir de 2014/2015, ocorre uma descida generalizada da retenção que se reflete numa melhoria para ambos os sexos, mesmo face ao início da década, e, particularmente, na redução da desigualdade entre rapazes e raparigas no 2.º ciclo: no final da década em análise, a diferença entre os dois grupos de alunos era de 2,8 pontos percentuais e no início da mesma era de 4,8 pontos percentuais.
Vejamos agora a variação dos resultados escolares quando consideramos os níveis de escolaridade que as mães completaram. A diferença está patente nas figuras 3 e 4, relativa aos alunos do 1.º e do 2.º ciclo, respetivamente. É muito claro que existe uma relação direta entre estes dois indicadores: quanto mais elevado é o nível de escolaridade atingido pela mãe, menor é a incidência da retenção - este facto não se altera ao longo da década em análise. Da análise dos dados, pode concluir-se que:
No caso dos alunos cujas mães têm qualificações escolares iguais ou inferiores ao 1.º ciclo do ensino básico, os educandos têm entre 7 a 14 vezes mais probabilidade de não transitarem no final do ano letivo do que os colegas cujas mães completaram o ensino superior, no caso de frequentarem o 1.º ciclo; esta proporção sobe para 12 a 18 vezes mais no 2.º ciclo de escolaridade.
Quando as mães completaram o 2.º ou 3.º ciclo, os educandos reprovam 3 a 6 vezes mais do que os seus pares com mães altamente escolarizadas no 1.º ciclo e 6 a 8 vezes mais no 2.º ciclo.
Ter uma mãe com o ensino secundário completo mostra-se quase tão vantajoso quanto ter uma mãe com o ensino superior, já que as taxas de retenção destes alunos não ultrapassam os 2,6% no 1.º ciclo nem os 6,6% no 2.º ciclo.
Como resultado, podemos afirmar que o 2.º ciclo agudiza as desigualdades na seleção escolar entre alunos provenientes de contextos familiares com diferentes níveis de capital cultural.
De facto, são relevantes as especificidades de cada ciclo de ensino, bem como o impacto das variações temporais. Ambos fazem variar a intensidade do efeito das qualificações escolares maternas, que ora “protegem” ou “vulnerabilizam” a criança perante a reprovação ou a desistência. Para além do agravamento generalizado do insucesso escolar entre 2011/2012 e 2013/2014, no 1.º ciclo, e em 2012/2013 no 2.º ciclo, importa destacar o efeito desproporcional que este agravamento teve nos diferentes grupos de alunos: quanto mais baixo é o capital escolar da mãe, mais forte é o agravamento das taxas de retenção e desistência, sendo esta tendência particularmente gritante quando os estudantes frequentam o 2.º ciclo de escolaridade.
Na segunda metade da década em análise, a seletividade social do sucesso escolar dá sinais de abrandamento em ambos os ciclos de ensino, ao reduzir-se progressivamente a diferença de resultados entre os grupos de alunos, separados em função da escolaridade das suas mães. Contudo, esta redução da diferença entre os filhos das mães escolarizadas e os das mães com menores qualificações não foi recuperada na totalidade: comparando os dois anos letivos do início e do fim do período em análise, no 1.º ciclo a diferença era 6,4 pontos percentuais e passou a ser de 8,3 e no caso do 2.º ciclo a diferença de partida era de 11,5 pontos percentuais e no final era de 16,2. Se observarmos os resultados dos educandos de mães com níveis de escolaridade intermédios, constatamos que a recuperação foi completa. Estes dados evidenciam que em situações de agravamento do insucesso escolar, este recai em particular sobre os alunos que vivem em famílias com menor capital escolar e os mais vulneráveis são ainda os que demoram mais a recuperar os valores que já tinham alcançado. O dano para estas populações escolares é maior e mais durável.
E se a comparação considerar os alunos de acordo com a sua nacionalidade? Será que a evolução ao longo da década foi a mesma para todos os grupos considerados? Ter-se-á expandido a diferença entre os grupos ou, pelo contrário, reduzido? Ao analisarmos as figuras 5 e 6, observa-se que os alunos estrangeiros apresentam taxas de retenção consistentemente mais elevadas do que os seus pares de nacionalidade portuguesa (cerca do dobro); por sua vez, o conjunto dos alunos com nacionalidade dos países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP)14 experienciam mais a retenção escolar (entre duas a três vezes mais), tanto em relação aos seus pares de nacionalidade portuguesa como aos colegas com outras origens nacionais. Contudo, existem variações que vale a pena assinalar ao longo da década em análise, quer ao nível da magnitude da seletividade escolar para cada um destes grupos nacionais quer da expressividade das desigualdades entre alunos com diferentes nacionalidades.
Se desde 2008/2009 todas as taxas de retenção pareciam estar em decréscimo progressivo, a partir de 2011/2012 e durante três anos letivos essa tendência reverte-se para dar lugar a um aumento da reprovação, atingindo o pico, no 1.º ciclo, em 2013/2014, para os alunos de nacionalidade portuguesa (4,6%), de nacionalidade estrangeira (10,4%) e PALOP (15,5%) e, no 2.º ciclo, em 2012/2013 (respetivamente, 12,1%, 22,6% e 30,1%). É sobretudo no 2.º ciclo do ensino básico que ganha expressão o impacto diferencial que a seleção escolar tem em cada um destes grupos nacionais, particularmente no período marcado pela vigência do governo de coligação PSD-CDS (2011-2015). Nestes anos, mais de um quarto dos alunos de nacionalidade PALOP não transitou no final do ano letivo.
A partir do ano letivo 2015/2016, voltamos a assistir a uma queda progressiva da retenção escolar em ambos os ciclos e para todos os grupos nacionais, semelhante à do início da década, mas ainda mais expressiva. Os alunos de nacionalidade PALOP recuperaram um pouco da desvantagem que tinham face aos seus pares, ou seja, há indícios de uma tendência recente de decréscimo da superseleção (Bourdieu, 1966) a que estes alunos têm sido sujeitos nos dois ciclos iniciais do ensino básico.
No que reporta à avaliação da diferença de resultados entre os diferentes grupos socioculturais (visível na diferença observada entre as linhas dos gráficos), destaca-se sempre um aumento das diferenças entre os anos letivos de 2011/2012 e de 2013/2014. No 1º ciclo, parte-se de um diferencial de 4 pontos percentuais entre a taxa de retenção e desistência dos alunos nacionais e os estrangeiros e no momento de maior diferenciação esta diferença passa para 5,8 pontos percentuais. No 2.º ciclo é mais evidente o acentuar das desigualdades escolares entre estes três grupos de alunos: (i) entre nacionais e estrangeiros, a diferença de resultados atinge os 10,5 pontos percentuais em 2012/2013, começando a diminuir até 2017/2018, momento em que recupera a existente no início do período em análise: (ii) a diferença de resultados entre nacionais e estrangeiros dos PALOP aumenta a partir de 2010/2011, atinge o seu valor máximo em 2012/2013 (18 pontos percentuais), decrescendo a partir deste ano letivo, com uma diferenciação que atingiu o seu mínimo em 2017/2018 (10,9 pontos percentuais).
Discussão
Analisadas as flutuações das taxas de retenção e abandono escolares ao longo da década considerada, importa identificarmos o conjunto de dinâmicas que possam ter contribuído para os factos observados: o agravamento dos resultados escolares e da desigualdade de oportunidades entre os anos 2011/2012 e 2013/2014 e a recuperação destes indicadores nos anos seguintes, num movimento que quase recupera um “tempo perdido” a meados da década em estudo. Estamos a referir o que se alterou, mas observaram-se igualmente fenómenos que permaneceram e são estruturantes: as desigualdades escolares com correspondentes diferenças sociais (maior sucesso escolar das raparigas, dos alunos com mães mais escolarizadas e do conjunto dos alunos que têm nacionalidade portuguesa).
As explicações para estas diferenças persistentes de ordem estrutural foram aludidas no enquadramento desta pesquisa. Importa determo-nos agora na exploração das explicações de ordem conjuntural que possam ter contribuído para a compreensão das variações observadas ao longo do período em análise.
Sabemos que o veredito escolar resulta de um conjunto muito vasto de dimensões e variáveis de contexto, que vão para além dos resultados obtidos nas provas de avaliação. Inclui as decisões tomadas a um nível meso e até micro, dando conta da relevância das decisões tomadas, por exemplo, em conselho de turma, que vão variando de ano para ano, e estas são, por sua vez, influenciadas tanto pelas decisões dos órgãos diretivos do agrupamento/escola como, a nível macro, pelas orientações político-normativas emanadas dos órgãos governamentais nacionais.
Sendo as políticas educativas enformadas por propósitos inscritos nas diferentes conceções de sociedade e de justiça e na hegemonia de determinados valores e princípios relativamente a outros, importa observar o que ocorreu a este nível ao longo deste período temporal (2008-2018). Os protagonistas políticos variaram: até 2011, o XVIII Governo Constitucional era da responsabilidade do Partido Socialista; entre 2011 e 2015, esteve vigente o XIX Governo composto por uma coligação de centro-direita (Partido Social Democrata - PSD e CDS - Partido Popular); a partir de 2015, o Partido Socialista retoma a governação do país, com apoio parlamentar dos partidos da esquerda, a partir de um acordo que se viria a consagrar como “Geringonça”.
O período de vigência do governo de coligação PSD/CDS (XIX Governo Constitucional) foi marcado por discursos e políticas de austeridade financeira. Na pasta da educação, as medidas protagonizadas pelo ministro da educação Nuno Crato são reconhecidas pela ênfase dada à excelência, à competitividade e à distinção, em detrimento da igualdade de oportunidades (Pereira, 2014).
Em consonância com esta alteração de perspetiva, a avaliação dos resultados escolares dos estudantes do ensino básico sofreu alterações significativas, através do fortalecimento dos mecanismos de regulação institucional, com a implementação de exames nacionais finais nos 1.º e no 2.º ciclo de escolaridade básica, substituindo as provas de aferição que se realizavam no final destes ciclos de escolaridade desde 2001 (Decreto-Lei 6/01, de 18 de janeiro). Estas não produziam qualquer efeito na progressão dos alunos, “sendo consideradas ‘um dos instrumentos de avaliação do desenvolvimento do currículo nacional’ (Decreto-Lei 6/01, de 18 de janeiro, art.º 17.º, n.º 1), e uma fonte privilegiada de informação relevante para os professores, as escolas e a administração educativa” (Carvalho, Costa e Sant’Ovaia, 2020, pp. 181-182), ao contrário dos exames nacionais cujo resultado pesava na classificação final do aluno. Como vimos, esta mudança na avaliação externa (a interna não sofreu alterações) nem sempre teve reflexos no ano de escolaridade em que se introduziu o exame nacional (caso do 4.º ano), tendo produzido efeitos a montante, uma vez que se observou um agravamento das taxas de retenção e desistência nos anos de escolaridade precedentes (2.º e 3.º anos de escolaridade).
Além das alterações estritamente relacionadas com os modelos de avaliação do ensino básico, e que podem ter contribuído para o acentuar da retenção escolar e das desigualdades entre grupos sociais, cremos serem de destacar outras medidas visíveis na figura 7. Desde as orientações concretas para uma maior privatização do sistema educativo (por exemplo, com o alargamento do financiamento direto a estabelecimentos de ensino privado, bem como indireto, às famílias, com o polémico “cheque-ensino”, que nunca chegou a ser aplicado), até à criação de vários mecanismos passíveis de serem inseridos no quadro de uma política de “prestação de contas”, entendida na sua vertente mais punitiva (Schneider e Afonso, 2012), sobretudo das escolas com piores resultados - que sabemos serem tendencialmente aquelas com populações mais desfavorecidas e vulneráveis. A título de exemplo, destaca-se a criação de um indicador de eficácia educativa das escolas, cujo cálculo integrava os resultados obtidos pelos alunos da escola nas provas finais de ciclo e este era considerado no cálculo dos créditos horários atribuídos a cada estabelecimento [Despacho Normativo 7/13, de 11 de junho].
A coerência político-ideológica entre as várias iniciativas sai reforçada tendo em conta a substituição das provas de aferição pelas provas de final de ciclo, uma vez que estas últimas, para além de serem um “instrumento certificador da consecução das Metas Curriculares” reforçam a coerção sobre a ação dos professores na sala de aula (Sant’Ovaia, 2021, p. 234). Como vimos, a mudança do tipo de provas finais de ciclo (4.º e 6.º anos de escolaridade) teve reflexos na ação pedagógica, na medida em que foi reforçada a retenção de alunos nos anos de escolaridade precedentes aos anos das provas finais de ciclo (3.º e 5.º anos). Investigações internacionais sugerem que, quando “pressionadas” por instrumentos de prestação de contas com consequências diretas para as escolas, estas tendem a intensificar os processos de triagem educativa, concentrando recursos nos alunos que consideram ter maior probabilidade de melhorar a sua classificação na prova (Jennings e Sohn, 2014; Lauen e Gaddis, 2016). Esta prática tende, no entanto, a ser socialmente seletiva a dois níveis:
atinge mais fortemente as escolas com um grande contingente de “alunos-bolha” que estão “à beira” da positiva (Elacqua et al., 2016) - estas escolas são geralmente compostas por uma população socialmente diversa, mas tendencialmente desfavorecida, concentrando mais descendentes de imigrantes e alunos de famílias com baixos rendimentos e baixos níveis de escolaridade;
tende a penalizar os alunos pertencentes a minorias étnicas e às classes populares, cujas “formas de estar” não sugerem ao docente a existência de “motivação” para ultrapassar as dificuldades (Archer, 2008; Stevens, 2010). Este fenómeno tem sido entendido por alguns autores como constituindo perceções diferenciais de ensinabilidade entre os docentes de uma escola face aos seus alunos de diferentes origens étnicas e sociais (Agirdag, 2018), que são continuamente comunicadas aos alunos durante o processo de ensino-aprendizagem. Assim, o desenvolvimento de um sentimento de “futilidade” do esforço académico entre os alunos socialmente mais vulneráveis é, em parte, consequência de práticas educativas informadas por conceções enviesadas das causas do insucesso escolar (Agirdag, van Avermaet e van Houtte, 2013), que podem ser potenciadas por formas neoconservadoras de accountability (Jennings e Sohn, 2014).
Vemos, portanto, que o princípio ideológico da competição entre escolas, numa lógica de punição/recompensa assente na crença no “mérito” individual desgarrado de considerações contextuais, se materializou num corpo de medidas legislativas concretas. Como outras investigações demonstram, tais medidas podem ter contribuído para o acentuar de práticas educativas de “abandono dos mais frágeis” e de uma “política do chumbo” (Benavente, Queiroz e Aníbal, 2015). Os dados que apresentamos evidenciam justamente que os estudantes mais afetados por estas políticas se inserem nos grupos sociais mais vulneráveis.
Conclusão
A análise das taxas de retenção e desistência observadas no ensino básico, entre 2008 e 2018, permitiu retirar as seguintes conclusões: (i) quando se introduzem mecanismos de avaliação mais seletivos, nos anos terminais de cada ciclo, os respetivos resultados atingidos podem não ser imediatamente agravados, sendo o respaldo desses mecanismos verificado nos anos de escolaridade que precedem a prova final de ciclo; (ii) os grupos de alunos que tendencialmente revelam pior desempenho escolar (rapazes, alunos com nacionalidade dos PALOP ou filhos de pais menos escolarizados) são aqueles em quem o impacto do agravamento generalizado dos resultados mais se faz sentir e (iii) estes alunos com perfil académico mais fragilizado, quando a generalidade dos resultados melhora, têm uma recuperação mais lenta.
A variação de intensidade da seletividade social ocorrida na escolaridade básica portuguesa, ao longo da última década denota a adaptação dos docentes às orientações da tutela, nomeadamente, às conjunturas político-ideológicas dominantes. Apesar de ser expectável que esta ocorra, importa destacar a referida desigualdade na distribuição das “novas exigências” pelos alunos: enquanto os que se inserem em famílias com maior volume de capitais os resultados escolares sofrem um agravamento muito ténue, os outros grupos de alunos experienciam um agravamento muito significativo dos mesmos.
O debate sobre políticas públicas de promoção da igualdade de oportunidades necessita de considerar o impacto diferenciado que uma mesma medida legislativa pode ter, consoante os diferentes grupos sociais de estudantes. Dar conta, ainda, que as políticas funcionam de forma distinta, não só para diferentes grupos, mas também em diferentes contextos escolares, e que os seus efeitos decorrem sobretudo da sua associação com outras políticas, mais do que de forma isolada, pertencendo muitas vezes a uma estratégia mais ampla de posicionamento e visão sobre a educação e as desigualdades educativas.
Poderá ser relevante que futuras investigações se debrucem sobre o impacto das políticas mais recentes nestas várias desigualdades e nas práticas e representações dos agentes escolares face à seletividade social do desempenho escolar. Um outro questionamento pode ter em conta como é que tais políticas atuaram num contexto pandémico de grande impacto no sistema educativo e nas desigualdades aí refletidas.