Introdução1
A definição sobre o que é ser político comporta dois aspetos complementares (Sáez, 2011, pp.1-2): ação e desejo. O primeiro (ação) tem a ver com a vontade de intervenção consciente na política, com ações que têm como objetivo intervir na sociedade e podem, assim, ser avaliadas externamente. O segundo (desejo) pode ser entendido como a motivação que um indivíduo sente pela política enquanto ideal de vida.
O aforismo francês de Robert Jouvenel (Katz e Mair, 2009, p. 758) de 1914 - “existe menos diferença entre dois deputados, um dos quais é revolucionário e o outro não, do que entre dois revolucionários, um dos quais é deputado e o outro não” - é demonstrativo desta diferença e revela, simultaneamente, uma certa controvérsia em torno do que é ser político ou, mais especificamente, do que é ser profissional da política.
Recentemente, Miguel Poiares Maduro e Fernando Rosas, dois políticos e académicos de grande prestígio, também proferiram afirmações que nos impelem a refletir sobre o que é ser um político profissional.2
Miguel Poiares Maduro refere que “[n]ão regressar [à universidade] seria, de facto, abandonar a minha carreira académica internacional. Isso inverteria a relação que quero ter entre a política e a minha carreira profissional e que, aliás, sempre afirmei em inúmeras ocasiões”. No contexto de um artigo sobre a sua jubilação, Fernando Rosas alerta que “[s]ou um historiador. Nunca fui um político profissional”, acrescentando que “[nunca fez] política como historiador nem história como político”.3
Do ponto de vista do eleitorado, as eleições presidenciais nos EUA também oferecem um bom ambiente para interpretar a complexidade da profissionalização. Em declarações, uma cidadã americana justificou o seu voto em Donald Trump dizendo que a nação necessitava de “alguém com sentido empreendedor” e não de “mais um político de carreira.4 Esta última expressão - career politician - é importante quando se pensa e analisa a profissionalização da política ou a profissionalização partidária. Sobretudo desde a altura em que King (1981) cunhou essa categoria que aqueles que vivem da política têm tido palco dominante e controverso nas democracias liberais (Allen et al. 2020, p. 199). O próprio cartaz de campanha de um candidato às eleições presidenciais portuguesas de 2021, Tiago Mayan Gonçales, incluía o slogan “O único candidato que não é político profissional”.
Considerando este contexto, pensamos ser útil refletir sobre o conceito de profissionalização da política e a tensão subjacente entre vícios e virtudes. Alguns investigadores defendem que os políticos profissionais são essenciais para uma governação eficiente, enquanto outros acreditam que o seu “comportamento alimenta a ‘anti-política’ do populismo nacional e mina a legitimidade política” (Allen et al. 2020, p. 199; Wright, 2013; Allen, 2018). Do ponto de vista da opinião pública, parece existir uma conotação negativa em relação ao processo de profissionalização. O crescimento de pessoal a tempo inteiro e pago (Karlsen e Saglie, 2017, p. 1333), é nocivo ou benéfico para as democracias? O argumento que avançamos é de que a literatura académica parece defender mais a primeira, entendendo que quer do ponto de vista da qualidade da democracia, quer da própria capacidade de renovação da classe política, o processo de profissionalização evolui em detrimento da proximidade dos cidadãos, da representatividade e da diversidade e qualidade dos políticos. Na próxima secção vamos procurar enquadrar o debate dentro dos processos convergentes de modernização e profissionalização da política, focando-nos na transformação da relação dos partidos com a sociedade, na ideia de política como vocação, na modernização da política e na crise da representação da política. A terceira secção analisa a conceptualização da profissionalização, enquanto a quarta estuda o tipo de operacionalizações que a literatura tem desenvolvido. Por fim, a última secção discute quais as vantagens (virtudes) e desvantagens (vícios) da profissionalização da política para as democracias, para depois apresentar as conclusões finais.
O contexto político-partidário
O primeiro passo no processo de recrutamento nas democracias dá-se ao nível dos partidos (Blondel e Müller-Rommel, 2007, p. 826) e as mudanças no recrutamento das elites políticas devem ser entendidas no contexto da modernização política (Best e Cotta, 1998; Cotta e Best, 2000a; Pakulski e Tranter, 2015; Huntington, 1981; Almeida, 2012). Em simultâneo, as análises sobre o recrutamento e os trajetos de carreira dos representantes parlamentares na Europa ocidental após a 2.ª Grande Guerra, demonstram processos convergentes de profissionalização e modernização (Best, Lengyel e Verzichelli, 2012, p. 10). Importa, assim, traçar um breve cenário do contexto político e partidário em que o nosso tema se insere.5
Os partidos como vocação e a sua profissionalização: o contributo de max weber
A reflexão de Max Weber sobre os partidos políticos parece circunscrever-se a uma importante questão (Runciman, 1978, pp. 55-56) relacionada com a representatividade: os partidos representam quem? Tendo esta questão como elemento comparativo, distingue entre dois tipos de partidos: os partidos de elites e os partidos de massas. Os partidos de elites, ou “parties of notables”, correspondem a um “rising power of the burgeois”, onde, sob a liderança de alguns elementos da intelectualidade ocidental, se formaram partidos que representavam os interesses das classes mais eminentes, baseados na sua autoridade e influência na comunidade (Gerth e Mills, 1991, p. 100). As principais características deste tipo de partido (idem, pp. 100-101) assentam (1) no carácter esporádico de reunião dos membros (acontecendo principalmente aquando da preparação de eleições), (2) na sua fraca estruturação organizativa, onde a dinâmica interna, do ponto de vista da liderança, se baseia não na eleição de representantes, mas na capacidade de liderança que determinados níveis de prestígio social garantem a certos indivíduos, (3) na prossecução de um resultado eleitoral como seu principal objetivo.
De acordo com Sam Whimster (2004, pp. 129-130), Max Weber defendeu a existência, a partir do século XX, de uma abertura social e política à associação de indivíduos que têm objetivos comuns e pretensões de obter poder dentro da ordem política em que se inserem, na forma de partidos políticos (Pasquino, 2002, p. 159); ao mesmo tempo, preconizava que existiam condicionantes resultantes da classe e estatuto dos grupos que poderiam limitar - não a possibilidade de associação mas - o acesso ao poder. Neste sentido, e com o alargamento do direito de voto e com a evolução da Democracia para uma “mass democracy”, apareceram os partidos de massas (Gerth e Mills, 1991, p. 224).
O partido de massas diferia do anterior num aspeto fundamental, o organizativo (idem, p. 225). Estes partidos eram “bureaucratically organized under the leadership of party officials, professional party and trade union secretaries”, existindo, ao contrário dos partidos de elite, indivíduos que se dedicavam de forma profissional e exclusiva à política (Mommsen, 1989, p. 100).
A transformação da relação dos partidos com a sociedade
Sigmund Neumann é um autor importante para esta discussão devido à sua perspetiva sobre a transformação organizacional dos partidos e sua relação com a sociedade. Segundo Neumann (in Mair, 1990, pp. 46-49), ocorreram alterações sociais que implicaram uma transformação das funções dos partidos - “the crisis of modern society” (idem, p. 46). Esta crise é enquadrada pela emancipação de grupos sociais que nos antigos modelos sociais, mais rígidos, estavam subjugados, e a consequente necessidade de estes (agora) “homens racionais livres” terem representação política; a par desta alteração social, o crescimento da industrialização, da urbanização, e os movimentos migratórios internacionais, forçaram uma alteração nas funções de representação e nas estruturas dos partidos. Assim, os partidos deixaram de ser sobretudo “party of individual representation” para serem “party of social integration”. Os primeiros são característicos de uma sociedade com baixa mobilização e participação política e a atividade dos partidos é basicamente circunscrita ao período de eleições, onde as responsabilidades dos membros é a escolha de candidatos, que, quando eleitos, apenas são “responsible (…) to their own consciences” (idem, p. 47). Os “party of integration” caracterizam-se por uma relação e um empenho muito mais forte entre o partido e os seus membros, visível nas exigências financeiras aos seus membros e na participação mais intensa e alargada do partido nos acontecimentos diários dos seus membros, aspectos que contribuem para tornar estas organizações mais estáveis, mais permanentes, com áreas de atuação mais profundas e extensas na sociedade.
A modernização da política
Observamos uma transformação dos partidos no que respeita às suas funções representativas. Isto comporta um desafio aos partidos - conjugar e procurar representar uma sociedade mais plural, onde os interesses dos grupos são mais variados. A evolução dos partidos foi acompanhada pela modernização da política.
Esta envolve três tendências fundamentais (Pakulski e Tranter, 2015): a primeira é a formação do Estado moderno, em que o Estado se torna o principal centro de poder e representa o estádio final na ascensão política; a segunda tendência é uma combinação entre diferenciação e diversificação, na medida em que a elite política passou a incluir não apenas líderes partidários, profissionais parlamentares e burocratas governamentais, mas também funcionários seniores e consultores, igualmente recrutados por estruturas partidárias. Por fim, a terceira tendência envolve a burocratização e a profissionalização. Dentro desta última, o recrutamento das elites tornou-se mais formalizado e os seus papéis passaram a ser regulados por regras específicas (processo de burocratização) e, simultaneamente, o processo de profissionalização marcou a emergência da política enquanto vocação e representou a transformação de procedimentos de recrutamento e trajetos profissionais mais diferenciados, com métodos de seleção baseados na qualificação e na formação de identidades profissionais distintas e com regras de conduta específicas.
Best e Cotta (1998, p. 5) entendem de forma diferente esta última tendência, ao apresentarem uma divisão entre democratização e profissionalização e não entre burocratização e profissionalização. Como indicadores da modernização política6 apresentam a emergência de papéis políticos especializados (tais como os políticos profissionais), o declínio da importância do legado familiar como critério de recrutamento, a alternância da presença de grupos de interesse em estruturas de representação política, e a abertura das carreiras políticas a categorias não privilegiadas. Este quadro, com implicações para o modelo de recrutamento, tem por base a distinção entre o processo de profissionalização e de democratização. A primeira refere-se ao processo “whereby those recruited tend to establish area-specific standards and routines which increase an insider-outsider differential, thus restricting access to the parliamentary arena”. Por oposição, “democratization refers to an opening of the channels for political participation and legislative recruitment to more social groups”. Estes dois processos são contraditórios, na medida em que a democratização é socialmente inclusiva, enquanto a profissionalização é socialmente exclusiva (Best e Cotta, 2000a, p. 9).
A representação gráfica permite compreender melhor a dinâmica desta relação e a evolução do processo de profissionalização:
Esta tipologia divide-se em quatro períodos.7 O primeiro engloba o período de 1848 até aos anos de 1880, no qual os parlamentares europeus eram caracterizados por um alto nível educacional quando comparado com o resto da população (dignitaries). O segundo período, compreendido entre os anos 1880 até aos anos 1920, em que se verifica uma alteração na elite política, nomeadamente a perda da importância de laços familiares e de títulos como condição para a ascensão ao parlamento; neste contexto, a tradicional aristocracia rural dá lugar à emergência de políticos semi-profissionais8 (the free political entrepreneur). O terceiro período parte dos anos 1920 até aos anos 1960, e tem como momento vital a emergência da democracia de massas. Neste intervalo, o recrutamento espelha mais a variedade das estruturas sociais, principalmente com o recrutamento de membros da classe trabalhadora, e a participação em estruturas partidárias é uma condição para o recrutamento parlamentar, sendo estes novos elementos catalogados como funcionário partidário (the functionary). Por fim, a partir dos anos 1970, a elite parlamentar passa a ser caracterizada por membros com uma educação média alta, que chega ao parlamento com a idade média de 40 anos, com significativa experiência política e que, tipicamente, vive da política (denominados políticos profissionais).
A crise da representação política
Outra questão fundamental para a compreensão da evolução da profissionalização da política é o problema da crise da representação política. Como resumem Cabral e Salgado (2018, p. 34), “o processo de representação requer uma ligação entre as opiniões dos cidadãos e as ações dos seus representantes”. Mas, quer através do que Manin (1997) entende como o risco permanente da crise de representação, quer pela emergência de algumas tendências que se verificam em democracias contemporâneas tais como a abstenção eleitoral, a transferência da responsabilidade das decisões nacionais para instituições supra-nacionais, o desenvolvimento dos “critical citizens” (Norris, 1999) e uma maior influência dos media nos sistemas políticos (Cabral e Salgado, 2018, pp. 30-34), a relação entre eleitos e eleitores tem sido de uma menor participação política e de perda de confiança dos cidadãos na classe política. Nessa perspetiva, a natureza da democracia representativa tem duas faces em disputa. Uma democrática, considerando a possibilidade do voto livre e universal que permite a escolha de quem governa; e outra oligárquica, visto existir uma distância social e de poder intransponível entre os representantes e os representados (Cabral e Salgado, 2018, pp. 31-32).
Um dos motivos para esta crise encontra-se no surgimento e crescente importância dos partidos de massa, como vimos, mas também dos partidos catch-all, cuja natureza “vaga e similar entre si levou a alguma homogeneidade ideológica e sociológica e a uma crescente falta de identidade política” (Cabral e Salgado, 2018, p. 32). Complementarmente, assistiu-se à diminuição da filiação partidária e ao afastamento entre partidos e cidadãos, com os partidos políticos a dedicarem-se mais “aos seus próprios interesses” (Mair, 2003, p. 277).
O conceito de profissionalização da política
Os conceitos são definidos e classificados qualitativamente através de linguagem e teoria, e a quantificação ou medição acontece “within the terms of reference or class specified by the concept” (Mair, 1998, p. 182). Vamos analisar a definição de profissionalização da política e, na próxima secção, a sua operacionalização.
Como a literatura define profissionalização da política
Antes de partir para uma análise específica do conceito de profissionalização da política, importa referir a ambiguidade do conceito. Por vezes, diferentes estudos usam termos como “career politicians”, profissionais políticos, “careerists” e classe política como sinónimos, contribuindo para alguma confusão conceptual (Negrine e Lilleker, 2002; Allen et al, 2020). Ademais, o conceito está inserido no estudo da comunicação política (Farrell e Webb, 2000), das campanhas eleitorais (Tenscher et al. 2016), da liderança política (Poguntke e Webb, 2005), do party staff (Karlsen e Saglie, 2017) e dos especialistas externos (Karlsen, 2010). Assim, tomámos a opção de analisar o conceito da profissionalização da política sem procurar particularizar o debate neste tipo de subcampos da ciência política, embora convocando-os ao longo da discussão.
James Bryce, no final do século XIX, apontou que nos EUA se verificava a ascensão de uma nova classe política que tinha como principal característica a capacidade de manter “amadores” fora da política. Este exame à realidade política americana, que o próprio assume ter sido influenciada pelo trabalho de Alexis de Tocquevilee (Bryce, 2007 [1897], p. 3), foi um dos principais impulsionadores para o importante debate sobre a profissionalização. Alguns dos autores incontornáveis na literatura sobre profissionalização são Max Weber, Moise Ostrogoirski e Robert Michels.
De acordo com Weber (1977), o aparecimento de “um novo tipo de políticos profissionais” está correlacionado com o desenvolvimento do Estado Moderno. Na sociedade feudal, cada senhor, em função da sua capacidade financeira, possuía os instrumentos de dominação política (Saurugger, 2008). Para além das suas atividades políticas, o senhor feudal tinha de se concentrar, conjuntamente, na administração dos assuntos de justiça, económicos e bélicos. Com a apropriação do monopólio da violência por parte do rei, foi-se assistindo ao desaparecimento desta centralização nas funções de gestão da sociedade (exercidas em conjunto pelos mesmos indivíduos) e em sua substituição emergiu o estado burocrático, onde as funções de gestão são exercidas por funcionários cada vez mais especializados. Sem a centralização das funções e inseridos num contexto de atividades cada vez mais especializadas, dá-se, assim, o aparecimento de políticos profissionais que “lives of politics and on politics” e “at the service of the powerful politicians” (Weber, 1977, p. 55). Na interpretação de Weber existem duas dimensões que caracterizam o político profissional (resumidas por Mancini, 1999, p. 232): a primeira relacionada com a dependência económica das funções políticas; e a segunda com as suas aptidões especializadas.
Moisei Ostrogorski (Quagliariello, 1996) mostrou que a profissionalização política levou a uma distinção entre profissionais e leigos e ao desenvolvimento de novas atitudes, crenças e objetivos de carreira dos profissionais. A delimitação de profissional foi aplicada aos líderes dos aparelhos partidários locais.
Concomitantemente, Robert Michels (2001) argumentou que a divisão laboral levou a uma especialização, que por sua vez provocou nos políticos a necessidade de desenvolver capacidades técnicas específicas. Nesta medida, as massas são consideradas inábeis e reserva-se para os políticos profissionais a legitimidade e capacidade de liderar a política.
Dentro deste quadro, a conceção mais geral de profissionalização da política entende-a como a transformação das atividades anteriormente levadas a cabo de maneira colateral e a título honorífico, em relações de trabalho profissionais e remuneradas materialmente. No campo da ciência política, a profissionalização designa, “por um lado, o processo histórico no qual o anterior tipo de político a título honorífico foi substituído pelo político profissional atual; por outro lado, a profissionalização designa o desenvolvimento individual, onde a pessoa se vai tornando, por etapas e através de uma carreira política, desde um simples membro de um partido, organização de representação regional ou algo semelhante, num funcionário de topo ou eleito para um mandato (por exemplo, um deputado)” (Nohlen, 2006, pp. 1131-1132).
Gorden Black (1970, p. 865) descreve precisamente estas duas conceções (uma mais geral e outra especificamente sobre política), ao discutir que a profissionalização, “no seu uso habitual, refere-se à assimilação dos padrões e valores prevalecentes numa dada profissão”. Cada profissão específica, incluindo a política, “tende a ter um conjunto de valores que são amplamente aceites e que definem o que significa ser profissional”. Sobre esta ideia permanece o perigo, na esfera política, de que quem não seguir esses valores pode ser castigado pelos colegas, sendo-lhe negadas as possibilidades de avanço na carreira política.
Panebianco (1988) verificou uma alteração nos partidos políticos no que concerne às suas estruturas organizativas, nomeadamente em épocas eleitorais. As organizações partidárias dependiam menos de membros e de voluntários nas suas ações de campanha, e traziam mais trabalhadores pagos, especialistas em pesquisa de mercado e consultores para o desenvolvimento das ações dos partidos. Assim, apresenta outra conceção de profissional político: “A political professional is simply one who dedicates most, if not all of his work activity to politics and finds there is main source of sustenance” (Panebianco, 1988, p. 221).9
Não deixa de ser interessante convocar a definição de político profissional que Sotiropoulos e Bourikos utilizam no seu estudo sobre as elites ministeriais gregas (2006, p. 204): “pessoas que entraram para a política logo após a conclusão dos seus estudos, ou seja, pessoas que nunca exerceram uma profissão embora tivessem conseguido levar a cabo uma carreira política apoiando-se na influência da família ou envolvendo-se ativamente nos mecanismos da vida partidária”. Dentro desta linha, Allen e Cowley (2018) definem os políticos profissionais como aqueles que entram nas legislaturas a partir de cargos do mundo político. Ou Borchert (2003), que os classifica simplesmente como indivíduos que desempenham o seu cargo político a tempo inteiro.
Regressando a Panebianco, a evolução do conceito de profissionalização da política envolve dois campos políticos fundamentais: campanhas e decisão política (Mancini, 1999, p. 237).
Sobre as campanhas, destacam-se três aspetos principais (idem, pp. 237--240). O primeiro consiste na definição de estratégias e na organização das campanhas eleitorais. O lugar anteriormente reservado a organismos coletivos que apoiavam o líder é agora ocupado por profissionais e consultores políticos que podem assumir a liderança na prossecução da campanha. Significa que poderão não estar circunscritos a tarefas executivas ou especializadas, tendo uma área de atuação que por vezes substitui o tradicional papel decisório e organizativo dos partidos. O segundo aspeto da profissionalização das campanhas relaciona-se com a utilização de sondagens ou estudos de opinião. Têm um papel decisivo nas campanhas, inclusivamente “they have become campaign and political events in themselves” (idem, p. 238). No entanto, o uso de polls não está limitado às campanhas, sendo utilizado em vários momentos: para perceber o julgamento político dos eleitores sobre determinada decisão, para compreender o grau de consenso sobre candidatos, assuntos e escolhas entre diferentes propostas políticas. Esta técnica requer um nível de conhecimento específico, exigente, e o papel dos profissionais tem vindo a crescer dentro dos partidos devido à cada vez mais imprescindível utilização das sondagens ou estudos de opinião. Por fim, o terceiro aspeto envolve os “media production and interaction” (idem, p. 239). O desenvolvimento da televisão, e o seu papel enquanto veículo e instrumento de campanha, bem como a sua influência junto dos eleitores como meio de contacto e informação, exigiu aos partidos uma adaptação ao conhecimento técnico requerido para se ser bem--sucedido no uso desta plataforma. Simultaneamente, nos anos mais recentes, o advento das plataformas online de comunicação em massa e instantâneas, como as redes sociais, contribuiu também para a necessidade de os partidos terem colaboradores capacitados a trabalhar e a aproveitar estas novas técnicas de comunicação.
O segundo campo - profissionalismo na decisão política - está relacionado com o que Habermas qualificou de “scientificization of politics” ( Mancini, 1999, pp. 240-241). Este processo é caraterizado pela consulta, por parte dos governos, a investigadores ou a instituições académicas com o objetivo de resolver e gerir determinados problemas políticos nas sociedades. Esta alteração vem na sequência do que Habermas entendia ser a dependência da política de objetivos instrumentais e a prevalência da racionalização sobre a irracionalidade de comportamentos influenciados por valores e fidelidades ideológicas, levando a uma “universalização do domínio da racionalidade tecnológica”.
Jensen (2003, p. 86), mais recentemente, define profissionalização política como “mudanças nos padrões de recrutamento da elite legislativa [compreendendo] um processo a partir do qual o estatuto social dá lugar ao estatuto político como o critério base para o recrutamento [das elites políticas]”.
Considerando o exposto, a profissionalização política não deve - nem pode - ser reduzida a um conceito unidimensional. Jens Borchert (2003, pp. 7-8), dentro deste critério, entende que o processo de profissionalização da política tem duas partes analíticas distintas (“arising opportunities and making use of them”) e precondições estruturais10, que incluem fontes de rendimento da política (o rendimento tem de ser suficientemente atrativo para compensar as potenciais vantagens económicas de outras opções de carreira), mecanismos de manutenção de carreira (a possibilidade de fim da carreira deve ser limitado, através de um processo de reeleição seguro ou o acesso a outras oportunidades políticas atrativas) e possibilidade de avanço na carreira ( dentro da instituição - liderança partidária, comités políticos - ou entre instituições - arena legislativa, parlamentar, partidária ou posições nos campos local, regional e nacional).
Neste quadro, o autor alerta que existem quatro níveis em que a profissionalização política ocorre e que devem ser analisados (idem, pp. 8-10). O nível individual, em que o indivíduo se transforma num político, através de estruturas de oportunidade constituídas por disponibilidade, acessibilidade e atratividade da carreira política. O nível do cargo político (political offices), em que quem detém o cargo político passa uma estrutura profissionalizada ao próximo, através de recursos típicos como salário, staff e privilégios. Complementarmente, o terceiro nível (instituições políticas), que se distingue do anterior na medida em que é possível a existência de gabinetes não profissionalizados em instituições profissionalizadas. Por fim, poderemos analisar o nível de profissionalização do sistema político como um todo, em que o número de posições num dado sistema político que são profissionalizadas - e a disponibilidade para essas mesmas posições - variam imensamente, assim como se podem detetar diferentes padrões de acordo com a forma como diferentes gabinetes se relacionam (por exemplo, se são lideras pela mesma pessoa simultânea ou sucessivamente).
A operacionalização de profissionalização
Uma das classificações de profissionalização da política mais importantes da literatura é a a utilizada no projeto EurElite de Heinrich Best e Maurizio Cotta11 e, sugerimos, a melhor forma de compreender o conceito, na perspetiva quantitativa de Mair. Por um lado, estes autores deram um contributo específico para a linguagem e teoria sobre profissionalização, e, por outro, a utilização dos termos de referência e a sua operacionalização são um contributo fundamental para os estudos comparativos sobre as elites políticas. Este projeto foi aplicado a várias democracias europeias num período compreendido entre 1848 e 2000. Teve ainda a particularidade de estabelecer um desenho de pesquisa (DataCube) capaz de operacionalizar e conjugar informação de três dimensões distintas, a saber: conjunto de países e famílias partidárias; tempo; e as variáveis utilizadas para o levantamento da informação (Best e Cotta, 2000b). No que toca ao estudo específico da profissionalização, as principais variáveis propostas (idem, pp. 24-25) são a experiência educacional (académica e não académica) e a experiência política (onde incluem um índex do grau de experiência).
Torben Jensen defende que o processo de profissionalização da política é um fenómeno complexo com diferentes - mas interligadas - dimensões. A sua proposta de operacionalização envolve quatro dimensões (Jensen, 2003, pp. 86-90). A primeira é a atividade parlamentar como trabalho a tempo inteiro; a segunda, a profissionalização das instituições (modernização das ferramentas de trabalho, o aumento dos funcionários intermédios e de consulta e a especialização dos funcionários de topo); a terceira, a profissionalização dos gabinetes - de tarefa para ocupação (a possibilidade de viver da função política); e por fim a profissionalização intelectual e política (percurso prévio ao nível profissional e a importância do nível educacional). Cada uma destas dimensões terá indicadores distintos, tendo em conta o contexto da análise.12
Em termos da profissionalização dos partidos, Karlsen e Saglie (2017) propõem uma divisão entre laços partidários fortes e fracos. Dada, mais uma vez, a multidimensionalidade do conceito de profissionalização, os autores enfatizam que a “profissionalização é menos sobre as bases partidárias não serem mais relevantes, mas sim sobre como alguns ativistas de base se tornam conselheiros e membros pagos de campanhas profissionais” e que os seus “resultados indicam que as bases partidárias e a organização partidária continuam a ter relevância e servem para socializar não só futuros políticos, mas também futuros profissionais partidários, para dentro do partido (p. 17).
Existem outros estudos empíricos fundamentais, pelo seu aspeto pioneiro (Laski, 1928), pelo seu aprofundamento empírico nas democracias da Europa do Sul (Almeida, Pinto e Bermeo, 2006), pelo estudo do recrutamento e profissionalização da elite administrativa (Nunes, 2015; Silva 2018) ou pela análise ao fenómeno da patronagem política (Silva e Jalali, 2016).13
Vícios ou virtudes?
Um dos principais vícios que emerge da análise da literatura é, como vimos, o de que o processo de profissionalização é socialmente “exclusive, in that it creates a division between spheres of insiders and outsiders” (Best e Cotta, 2000a, p. 9). Isto significa que o recrutamento parlamentar europeu teve inerente uma tensão permanente entre a coexistência de políticos profissionais e políticos amadores (na conceção de Max Weber), consubstanciando-se na crítica ao distanciamento dos políticos e à prossecução dos seus interesses pessoais, baseados na natureza contraditória dos processos de democratização e profissionalização. Inclusivamente, Blondel e Müller-Rommel (2007, p. 822) alertam para o facto de que apesar de se verificarem algumas alterações no sentido da democratização das elites políticas, estas não se fizeram acompanhar por um aumento da representação de todos os grupos sociais.
Na mesma linha, Best et al. (2001, p. 80) notam que “tanto a profissionalização como o carreirismo [careerisation] permitem uma adaptação limitada à mudança e à renovação do pessoal político, uma vez que eles estabelecem um caminho para o poder para novos candidatos e fornecem-lhes os meios necessários para o seguir. Por outro lado, eles estabelecem regras e procedimentos que integram outsiders no mundo dos insiders e mantêm fora do jogo aqueles que desafiam e que não estão dispostos ou preparados para se conformarem”. De forma semelhante, Borchert (2001, p. 1) observa que “os políticos podem mover-se do partido para a legislatura para o governo para um grupo de interesse. Também se movem do nível local para o nacional ou do nacional para o regional. Mais, fazem-no em padrões que variam sistematicamente entre diferentes lugares, padrões que são reproduzidos a partir do conhecimento dos atores sobre o trajeto seguido pelos seus predecessores [e que] pode ser um bom guia para os seus próprios planos de carreira”. Assim, para além da tensão entre representantes e representados, a profissionalização demonstra ter a capacidade de fechar os canais de acesso ao recrutamento partidário e não só.
A participação política pode ter deixado de ser o resultado de valores cívicos (Mancini, 1999, pp. 243-243). Pelo contrário, na sua perspetiva, a política é agora o produto das aspirações dentro das elites, dos políticos profissionais e dos especialistas, e a possibilidade de estes alcançarem os seus objetivos e conquistarem poder no aparelho partidário. Assim, os valores cívicos são cada vez menos determinantes, sendo a conquista do voto aquilo que adquire maior importância.
A profissionalização é igualmente associada ao recrutamento, com base na meritocracia, de pessoas com qualidades específicas e preparadas para governar em diferentes níveis (Webb e Kolodny, 2006, pp. 340-341). Ainda assim, concomitantemente, a literatura aponta o efeito de “revolving door philosophy”, onde os profissionais são escolhidos para desempenharem tarefas específicas e, assim que a tarefa termina, são dispensados. A consequência? Os profissionais serem motivados mais por objetivos pessoais e não tanto por uma partilha ideológica.
Os efeitos da profissionalização também se fazem sentir ao nível da democracia partidária, dos quais exploramos dois tipos. Para além das alterações que sofreram ao longo do tempo, tanto de um ponto de vista estrutural como nas suas funções, e que têm um impacto na forma como os indivíduos se relacionam com a política, Peter Mair (2006, p. 44) aponta que, “antes, e provavelmente pelo menos até aos anos 1970, a política convencional era vista como pertencendo aos cidadãos, e algo onde se podia participar. Agora, tornou-se parte de um mundo externo que as pessoas veem de fora: um mundo de líderes políticos, separado do dos cidadãos. É a transformação da democracia partidária na democracia de audiência (‘audience democracy’)”.
O segundo tipo assenta na profissionalização da liderança partidária (Katz, 2001, pp. 287-289). A liderança partidária tem normalmente associado um nível de aptidões específicas e conhecimentos técnicos e, tal como postulado por Weber, a ascensão à liderança partidária tem inerente a construção de uma carreira política em exclusivo, ou seja, por profissionais que vivem da política. Esta dupla característica tem, assim, vários efeitos: a predisposição de os líderes trocarem preocupações ideológicas por necessidades privadas, como segurança financeira ou manutenção de cargos de destaque; os líderes partidários partilham características semelhantes, tais como tipos de educação e caminhos hierárquicos reconhecidos para promoções de carreira; a implicação de que a profissionalização determina um desejo de autonomia, em particular daqueles que olham para as decisões governamentais de um ponto de vista de gestão e não de um ponto de vista ideológico; por fim, a profissionalização da liderança partidária resulta na necessidade de acesso a recursos seguros (em particular financeiros) e numa comercialização da política, na medida em que tanto de um ponto de vista da organização interna como nas campanhas eleitorais, o trabalho de membros do partido não substitui o conhecimento especializado (e. g. sondagens).
A perspetiva de stratarchy também nos parece importante convocar. Os detentores de cargos locais e a elite partidária nacional atuam de forma relativamente independente uma da outra (Koole, 1996, p. 518). Esta autonomia, que foi uma das consequências do processo de profissionalização, dá à elite partidária a possibilidade de segurar a sua posição dominante, enquanto tem a capacidade de aumentar a legitimidade do partido “by formally empowering ordinary members”. Adicionalmente, a análise à elite partidária enfatiza o interesse pessoal dos atores que ocupam os cargos públicos em nome dos partidos e que têm “ideias e interesses organizacionais e de carreira próprios, e planeiam e trabalham por políticas que irão promover essas ideias e interesses, ou pelo menos não prejudicá-los”, e portanto “à medida que o partido ‘in public office’ ganha ascendência dentro do partido como um todo, os seus interesses particulares serão tratados como sendo os interesses do partido ‘writ large’ ” (Katz e Mair, 2009, p. 756).
A própria cartelização dos partidos é afetada pela profissionalização da elite partidária (Katz e Mair, 2009, p. 761). Não apenas no sentido da contratação de especialistas em sondagens, mas em particular na carreira partidária cada vez mais especializada e a sua separação de outros grupos (por exemplo, pouca mobilidade entre membros de topo dos partidos sociais-democratas e de membros similares de sindicatos, ou entre partidos liberais e associações empresariais).
Como vimos anteriormente, a educação (a profissionalização intelectual) é um dos fatores mais relevantes. Por um lado, a profissionalização da política tornou-se um fenómeno global, com um elevado nível de diferenciação, e os políticos, nomeadamente os representantes parlamentares, tornaram-se “agentes sociais que efetivamente vivem de e para a política” (Gaxie e Godmer, 2000, p. 132). Por outro lado, a profissionalização decorre das aptidões técnicas e dos conhecimentos adquiridos pela elite. Esta academization tem como efeito uma uniformização das elites políticas e um maior distanciamento dos cidadãos e, portanto, uma menor representatividade da população. Cumpre referir que a desproporcionalidade, no caso da liderança política, deriva das competências técnicas, onde o nível educacional distingue a elite da não elite (Putnam,1976, pp. 57-59).
Jens Borchet (2016, pp. 278-279) apresenta, ainda, uma visão esquemática (Figura 1), a que denomina “o ciclo vicioso da profissionalização política”. Este círculo político é explicado pela seguinte lógica: os políticos querem manter as suas posições, pois uma situação de derrota eleitoral pode significar de-profissionalização; o processo de profissionalização leva ao afastamento dos cidadãos da política, os quais ficam descontentes porque não se sentem parte da política; estes, por sua vez, não votam e procuram castigar os políticos; e assim sucessivamente.
O capital social de Robert Putnam (2000) demonstra a transversalidade deste processo. O desenvolvimento da vida associativa levou a que os laços existentes tendam a beneficiar aqueles que estão mais bem preparados para se organizar. A profissionalização do associativismo implicou que pessoas com níveis de educação mais altos, mais dinheiro, estatuto e laços de proximidade com membros da comunidade de interesse viessem a ter mais probabilidades de obter benefícios políticos face a pessoas com menos recursos educacionais e monetários e sem rede de contactos, perpetuando a manutenção da elite associativa, com efeitos nefastos para a própria qualidade da representação (idem, p. 340).
Pesem embora estas interpretações que classificamos como “vícios”, a literatura aponta também “virtudes” ao processo de profissionalização.
De acordo com Schattschneider (1960), a competição existente entre partidos políticos e entre candidatos é o que possibilita aos eleitores a oportunidade de fazer escolhas com significado no dia das eleições. Os partidos políticos, candidatos e os profissionais da campanha facilitam a democracia representativa pois são eles que organizam a competição política, determinam políticas públicas e criam mensagens que vão ao encontro dos eleitores, procurando que estes votem nos candidatos e partidos nas eleições (Steger et al. 2006, p. 5). Nesse sentido, o maior ou menor grau de profissionalização influencia a forma como as mensagens, ideias e opções políticas, relevantes para a formação de preferências, são apresentadas e veiculadas, o que afeta a qualidade das campanhas.
Outros autores usam a distinção entre burocratização e profissionalização como prisma a partir do qual entendem as virtudes da profissionalização (Pakulski e Tranter, 2015). A burocratização dos partidos leva à formação de hierarquias, à diferenciação e à especialização de tarefas, à proliferação de funcionários pagos e ao estatuto de sénior como princípio de nomeação política; distintamente, a profissionalização criou áreas de autonomia livres da especialização, bem como códigos e regras de conduta que entram em conflito com orientações e regras burocráticas. Assim, enquanto a burocratização do recrutamento político leva à multiplicação de funcionários partidários nomeados, muitos dos quais sem vocação política e encarando as posições partidárias como “emprego”, a profissionalização leva à proliferação de ativistas e oficiais partidários, muitos dos quais são políticos vocacionais, eleitos (e não nomeados) para as suas posições.
Complementarmente, a complexidade da vida política implicou a necessidade de melhoria das capacidades técnicas das elites. Nesta perspetiva, o processo de profissionalização permitiu criar as condições para uma elite mais bem preparada para lidar com a crescente complexificação da vida política e dos processos de decisão (Almeida, 2012, p. 39). Em conformidade, Almeida (2012, p. 38) e Pilotti, Mach e Mazzoleni (2010, pp. 231-232) atribuem assim relevância ao processo de profissionalização enquanto mecanismo que proporciona o cursus honorum da elite ministerial e parlamentar, fundamental para o recrutamento nessas duas esferas, pelo menos até à década de 1980.
A qualidade das democracias, uma preocupação mais recente por parte da investigação académica, também está ligada à qualidade dos políticos (Sáez, 2011, pp. 31-32). Assim, para além da importância dos políticos profissionais para o processo de democratização, é lícito atribuir a maus políticos barreiras à qualidade das democracias, associando-se “a qualidade da democracia deliberativa à qualidade dos representantes” (idem; ver também Bermeo, 2003). Como elementos que permitem prever a qualidade dos candidatos, temos a “pertença ao partido maioritário, dinheiro, visibilidade e experiência, assim como o conhecimento do distrito [e] os recursos financeiros e as suas redes políticas”, sendo que a literatura classifica estes elementos como “capital político” (Norris, 1997). Schmitter (2010, pp. 26-27) enfatiza o mesmo ponto, referindo, na sua discussão sobre as principais descobertas acerca do processo de (des)consolidação das democracias, que a “democratização requer não apenas cidadãos amadores mas também políticos profissionais”. Nesta distinção entre amadores e profissionais, o autor realça a existência de “um mito persistente”, através do qual se entende que os políticos eleitos são somente “pessoas que se dedicam temporariamente ao serviço público”. Esta distinção é ainda mais precisa: os amadores “podem liderar a luta contra a autocracia e ocupar cargos importantes no início de uma transição, mas logo darão lugar a profissionais políticos. Os políticos de hoje precisam de amplos recursos partidários e pessoais para vencer as eleições, carecem de conhecimento especializado para responsabilizar os tecnocratas e devem rodear-se de especialistas em sondagens e afins para permanecer no poder”.
A questão do conhecimento especializado é particularmente importante. Como salienta Uriarte (2000), o pleno conhecimento do processo de decisão política, a capacidade de obter consenso com outros partidos ou segmentos da sociedade, a comunicação com os cidadãos e o tipo de relação com os media, são atributos do processo de profissionalização. Assim, a política enquanto profissão leva a uma discussão entre a qualidade da política (de novo, de amador para profissional) e a uma alteração do processo de tomada de decisão deliberativa para o uso dos factos, onde o político profissional atua enquanto técnico (Uriarte, 2000).
Este ponto liga-se à importância dos valores e às atitudes da elite política nos processos de transição e consolidação da democracia. Uma elite unificada, que partilha um compromisso com os valores e práticas democráticas, e uma elite integrada, no que concerne à homogeneidade social e redes comunicacionais, pode favorecer a consolidação democrática (Burton e Higley, 1987; Burton, Gunther e Higley, 1992; Culic, 2006, p. 72). E, na discussão sobre a crise da representação política em Portugal, Cabral e Salgado (2018, p. 46) salientam, inclusive, que os políticos profissionais são essenciais na “preservação e nutrição” de um ideal de representação, sendo, nessa perspetiva, um possível escudo contra o avanço do populismo.
O papel das elites políticas também é crucial ao nível europeu. Como explica Maurizio Cotta (2008, pp. 223-224), as elites nacionais usam o seu protagonismo e sucesso na arena europeia como mecanismo de prova aos seus eleitores de que estão capacitados a responder às suas exigências, i. e., o sucesso no nível europeu serve de plataforma para alcançar resultados dificilmente atingidos quando se usam somente recursos nacionais. Neste jogo, os políticos profissionais são atores particularmente habilitados a usar este tipo de estratégia, ainda que a sua lealdade ou aquiescência seja baseada em cálculos racionais e menos nos laços afetivos existentes (Hirschman, 1970).14
Conclusão
A viagem conceptual que nos propusemos fazer teve como objetivo conhecer em maior profundidade o processo de profissionalização da política, qual o entendimento da literatura relativamente ao conceito e as suas implicações, em particular as suas vantagens (virtudes) e desvantagens (vícios).
O processo de profissionalização ocorre dentro da modernização da política. A organização e as estratégias dos partidos políticos modificam-se para acompanhar a democratização da política e os padrões de recrutamento evoluem no sentido de ter uma elite preparada para enfrentar desafios mais complexos, ao mesmo tempo que tem de representar grupos sociais cada vez mais heterogéneos. O processo de profissionalização desenvolveu-se, assim, em tensão com o processo de democratização e com o fenómeno da modernização. David Plotke refere que “o oposto de representação não é participação. O oposto de representação é exclusão. E o oposto de participação é abstenção” (1997, p. 19) - parece que esta tensão provoca um ciclo vicioso da profissionalização política.
O estudo da profissionalização é marcado por alguma ambiguidade e confusão (e.g. Negrine e Lilleker, 2002). Trabalhos futuros deverão estudar de forma mais focada a profissionalização no campo da comunicação política, marketing político, liderança política ou campanhas eleitorais (Karlsen e Saglie, 2017). Ademais, investigação recente demonstra que os deputados que antes trabalharam a tempo inteiro na política ocupam lugares de maior destaque quando comparados com deputados que tenham ocupado cargos de natureza mais circunscrita e em posições de menor destaque (Allen, 2013). Seixas e Costa (2021), num estudo sobre Portugal, demonstraram que “os caminhos para o poder” têm impacto para a sobrevivência e durabilidade dos ministros. Novas análises empíricas são essenciais para compreender melhor os efeitos da profissionalização da política.
Demonstrámos que o conceito de profissionalização é multidimensional, podendo ser estudado desde o indivíduo até a um nível mais macro (nacional, europeu). A criação de novos indicadores, que procurem espelhar a natureza multidimensional e aplicáveis em estudos comparativos de larga escala, é outro passo que investigação futura deve abordar. Investigação recente sobre tecnocracia e os seus efeitos para as democracias em perspetiva comparada (e. g. Bertsou e Caramani, 2020) ou sobre as atitudes perante a tecnocracia e os seus efeitos no comportamento eleitoral (e. g. Heyne e Lobo, 2021) demonstram um debate ainda por concluir. Outra via de investigação possível e desejável será aplicar estas abordagens ao estudo do processo de profissionalização.
A profissionalização permitiu o desenvolvimento de uma elite política capaz de enfrentar a crescente complexificação da vida política. No entanto, desde a democracia partidária até aos processos de recrutamento, a literatura demonstra também consequências negativas da profissionalização. Uma democracia menos representativa e justa (a sobrerrepresentação de um grupo em detrimento de todos os outros), uma classe política que pode não ser a melhor, apenas a mais integrada (menor variedade e experiência profissional e educativa, algo que Samuel Beer [1965] já salientava) e com um maior afastamento dos eleitores face aos eleitos (entre outras, as reformas dos partidos políticos ocorrem mais pelo desejo de balanço em termos de acesso a recursos ou nas relações de poder dentro da elite partidária e não como forma de responder melhor às expectativas e exigências dos cidadãos, tal como Bardi, Bartolini e Trechsel [2014] preconizam).
Estamos na presença de um aparente paradoxo: como é que a política se pode democratizar, enquanto, ao mesmo tempo, a profissionalização parece fechar o acesso aos partidos e às esferas de poder (Mair, 1994; Carty, 2004; Silva, 2018)? A profissionalização da política não parece ameaçar as democracias contemporâneas. Contudo, urge melhor compreender este processo se queremos uma democracia mais representativa.