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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.22 Lisboa dez. 2024  Epub 31-Dez-2024

https://doi.org/10.48751/cam-2024-22376 

Destaque

Crimes, desordens e transgressões: Lisboa no final da Monarquia

Crimes, disorders, and transgressions: Lisbon at the end of the Monarchy

i CIES-Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, 1649-026 Lisboa, Portugal. maria.vaz@iscte-iul.pt


Resumo

Lisboa ocupa um lugar central quando se analisa o crime e as transgressões, em particular entre os finais do século XIX e o início do século XX, pois foi nesta cidade que o crime teve maior incidência, sem paralelo no todo nacional. Este artigo traça um quadro caracterizador da criminalidade em Lisboa nas últimas décadas da Monarquia. Para tal faz-se uso de estudos já publicados, percorrendo-se igualmente um conjunto diversificado de fontes, em particular as estatísticas relativas ao crime produzidas pelas autoridades policiais e judiciais. O estudo das transgressões repousa sobretudo na análise da documentação conservada no Arquivo Municipal de Lisboa. O objetivo é apresentar um quadro geral da imposição da lei e das normas municipais que regulavam o quotidiano e de como o seu não cumprimento por parte da população que habitava e trabalhava na cidade, por incapacidade, desconhecimento ou recusa, colaborou para um forte aumento do número de crimes e transgressões registadas em Lisboa. Além da regulamentação a que estava sujeito o espaço urbano, Lisboa era igualmente o local com o maior e mais eficaz policiamento do país, o que favorecia a deteção e repressão das ilegalidades aí ocorridas.

Palavras-chave: Lisboa; Crime; Transgressões; Posturas Municipais

Abstract

Lisbon has a central place when we analyse crime and transgressions, particularly between the end of the 19th century and the beginning of the 20th century, because it was in this city that crime had its highest incidence, unparalleled in Portugal as a whole. This article outlines a characterisation of crime in Lisbon in the last decades of the Monarchy. To this end, it makes use of existing studies and analyses a diverse range of sources, in particular crime statistics produced by the police and judicial authorities. The study of transgressions relies above all on analysing the documentation kept at the Lisbon Municipal Archive. The aim is to present a general framework of the imposition of the law and the municipal rules that regulated daily life in Lisbon and how the failure to comply with them by the population who lived and worked in the city, due to inability, ignorance, or refusal, contributed to a sharp increase in the number of crimes and offences recorded in Lisbon. In addition to the regulations to which the urban space was subject, Lisbon was also the place with the largest and most effective police force in the country, which favoured the detection and repression of illegalities that occurred there.

Keywords: Lisbon; Crime; Transgressions; Municipal Regulations

Introdução

As cidades, sobretudo os maiores espaços urbanos, ocupam um lugar central quando se analisa o crime para o período contemporâneo, em particular para o século XIX e primeiras décadas do século XX. O crime constituiu então um tema central de debate, de estudo e de preocupação, suscitando um alargado conjunto de medidas, enfatizando-se o perigo de desagregação social que este poderia constituir. Foi utilizado para justificar profundas reformas definidas a partir do poder central do Estado e dos poderes locais, para a implementação de novas políticas e ações de cariz social, esteve na base de estudos científicos e desenvolvimentos técnicos, foi conteúdo explorado por diversas manifestações culturais, quando a literatura, o teatro, a imprensa e, posteriormente, o cinema integraram de forma abundante os relatos de crimes como um modo de entreter, mas também de chocar e convocar o interesse dos públicos, em particular nos espaços urbanos. O historiador francês Dominique Kalifa começa a obra que dedica às relações entre o crime e a cultura no século XIX com a afirmação: «O século XIX foi obcecado pela questão do crime» (Kalifa, 2005, p. 9).

Este artigo tem como objetivo traçar um quadro caracterizador da criminalidade em Lisboa nas últimas décadas da Monarquia. Além das ações perseguidas como crime, percorrem-se igualmente as violações às posturas municipais, as transgressões. Os crimes correspondem às ações que assim eram definidas pelo Código Penal então em vigor, que determinava igualmente as sanções em que incorriam quem as praticava. As transgressões respeitam a ações que contrariavam as diretrizes definidas pelo Código de Posturas Municipais à época em vigor na cidade de Lisboa, geralmente sancionadas com multas pecuniárias. Ambas constituíam um complexo e alargado conjunto de normas que devia ser observado pela população que vivia, trabalhava ou transitava pela cidade. As autoridades policiais e judiciais estavam encarregues de zelar pela obediência a este alargado quadro normativo, reprimindo e punindo as ações que o contrariavam. Para a caracterização deste quadro, a prática do crime e as transgressões em Lisboa nas últimas décadas do século XIX e primeira década do século XX, faz-se uso dos estudos já publicados, em particular sobre a questão do crime (Vaz, 2014). Percorre-se igualmente um conjunto diversificado de fontes primárias, nomeadamente as estatísticas relativas ao crime produzidas pelas autoridades policiais e judiciais, mas também reflexões publicadas na época, imprensa e fontes de arquivo. O estudo das transgressões repousará sobretudo na análise de fontes primárias, entre as quais se salienta a documentação conservada no Arquivo Municipal de Lisboa, onde foi possível recolher informação sobre a aplicação do Código de Posturas do Município. O objetivo é apresentar um quadro geral da imposição da lei e das normas municipais que regulavam o quotidiano em Lisboa e de como o seu não cumprimento por parte da população que habitava e trabalhava na cidade, por incapacidade, desconhecimento ou recusa, colaborou para um forte aumento do número de crimes e transgressões registadas em Lisboa no período final da Monarquia em Portugal.

O ambiente urbano favorece a prática do crime?

A cidade oitocentista surge descrita como um lugar propicio à prática do crime, facto que foi compreendido por alguns historiadores como uma das consequências do enorme crescimento urbano a que então se assistiu e à incapacidade das estruturas urbanas existentes de controlarem e integrarem o intenso fluxo populacional que acorria aos maiores centros urbanos. A urbanização teria, assim, potenciado a quebra dos laços de pertença comunitária e familiares, promovido o anonimato dos seus habitantes e a sua alienação, acentuando as tensões sociais, contribuindo para o crescimento de comportamentos desviantes, marginais e criminosos. Esta foi a interpretação afirmada por Louis Chevalier, em obra pioneira sobre a criminalidade em Paris durante a primeira metade do século XIX, a que outros historiadores se juntaram (Chevalier, 1958). Contudo, posteriormente, outras leituras foram afirmadas e estas procuraram negar que o processo de urbanização tivesse contribuído para o aumento do crime nas cidades. Centrando os seus estudos em cidades dos Estados Unidos da América, da Europa e da América do Sul, alguns autores concluíram que o processo de urbanização a que se assistiu ao longo do século XIX teria propiciado uma diminuição da criminalidade nos maiores espaços urbanos e não o seu aumento. Ao estudar os crimes mais graves e violentos, como o homicídio, ocorridos na cidade de Filadélfia na segunda metade do século XIX, Roger Lane afirmou que o facto de ter havido um aumento do número de detenções por parte da polícia, um incremento do número de julgamentos e um maior número de condenações, seria o resultado de uma maior capacidade e eficácia na aplicação da lei criminal no interior dos espaços urbanos face ao que ocorria nas zonas rurais (Lane, 1979). Assim, o incremento existente na criminalidade urbana, testemunhado pelas estatísticas relativas ao crime então produzidas, devia-se sobretudo à implementação de mecanismos mais eficientes na deteção e repressão do crime nos espaços urbanos, do que a um real aumento da criminalidade. Outros estudos vieram dar força à dissociação entre o aumento do crime e o crescimento urbano. Ao estudar o relacionamento entre a urbanização, a industrialização e a criminalidade na Alemanha entre 1871 e 1914, Eric Johnson negou que o crescimento urbano e as precárias condições que a população, que migrava para as cidades, aí encontrava tivessem tido qualquer papel de relevo nas manifestações de crime. Johnson concluiu que a ideia de que o crescimento urbano e as grandes cidades potenciaram a prática do crime era um mito criado pelos detratores do ambiente urbano, geralmente partidários de ideologias conservadoras ou mesmo autoritárias (Johnson, 1995, p. 158).

Este é um debate que se tem mantido e enriquecido com novos argumentos, nomeadamente com a chamada de atenção para a utilização de fontes primárias, em particular os dados estatísticos, sem a devida avaliação crítica da fiabilidade dos mesmos, bem como uma reflexão sobre a forma como estes foram sendo produzidos ao longo do século XIX (e.g. Knepper, 2016, pp. 116-120). Dominique Kalifa, numa abordagem cultural à questão do crime na cidade de Paris durante o século XIX, referiu que, devido à profunda divulgação que era dada aos casos de crime nos espaços urbanos, através dos jornais, das novelas e outros meios de comunicação, os receios sobre a insegurança, a desordem e o crime foram acalentados entre a população urbana, contribuindo também para a criação de uma memória coletiva dos lugares, um imaginário social sobre os locais percecionados como perigosos e onde imperaria a prática do crime. Estes corresponderiam a espaços, bairros e partes específicas das cidades, situando-se sobretudo nos maiores espaços urbanos, como era o caso da cidade de Paris, mas também de Londres, à época das maiores cidades da Europa (Kalifa, 2013).

Lisboa: a manutenção da ordem e segurança na cidade

Na segunda metade do século XIX, Lisboa era uma cidade de média dimensão de acordo com os padrões europeus de então, a capital e a maior cidade de Portugal. Em 1850, Lisboa era a décima quarta cidade mais populosa da Europa (Bairoch et al., 1988, p. 283) e embora tivesse crescido a um ritmo significativo, sobretudo a partir da década de 1870, não conseguiu acompanhar o crescimento registado por outras cidades europeias, pois em 1950 ocupava já o vigésimo-oitavo lugar entre as cidades mais populosas da Europa (Hohenberg & Hollen, 1985, p. 227). De acordo com os dados dos censos realizados na época, em 1864 a população de Lisboa rondava os 163 763 habitantes, acolhendo cerca de 187 404 habitantes por ocasião do Censo realizado em 1878, atingindo os 301 206 habitantes de acordo com o Censo de 18901. Lisboa constituía o destino de correntes migratórias vindas não apenas do interior do país, mas também do estrangeiro, como era o caso dos nacionais espanhóis, em particular os provenientes da Galiza que afluíam em número significativo. Os Censos de 1890 indicavam que apenas metade dos habitantes de Lisboa tinham nascido no concelho. À cidade convergiam sobretudo jovens do sexo masculino, com idade inferior a 30 anos. Este movimento de população em direção à capital influenciava os contornos da sua pirâmide demográfica, fazendo com que as faixas etárias com maior representatividade se situassem entre os 21 e os 30 anos, tanto para os homens como para as mulheres. Além do crescimento da população, o seu território também se foi expandindo, aumentando mais de 500 por cento entre 1852 e 1903 (Salgueiro, 2001, p. 43).

Lisboa era o centro político, administrativo, financeiro e comercial do país. Era o espaço com maior importância e dinamismo em termos económicos, tanto como lugar de produção, como enquanto local de consumo. As mobilidades de pessoas, bens e ideias foram sendo facilitadas, quer as internas como para o exterior, salientando-se a construção e expansão da rede ferroviária e a remodelação do porto de mar de modo a torná-lo mais apto às novas necessidades do tráfego marítimo, em particular o internacional. De acordo com os Censos de 1890, a indústria era a atividade económica que concentrava a maior percentagem da população ativa em Lisboa. Contudo, surgia com grande saliência o grupo de indivíduos classificados como «improdutivos» ou de «profissão desconhecida», respeitante a 18,8 por cento da população ativa da cidade, o que não significava que estes não fossem, na expressão de Ana Bela Nunes, «recursos humanos empregues na atividade económica» (Nunes, 1991, p. 707). De acordo com os Censos de 1890, cerca de 17,3 por cento da população lisboeta trabalhava na indústria, respeitando a 30,7 por cento da população ativa da cidade. O setor terciário ocupava uma percentagem semelhante da população, respeitando a 30,1 por cento, com um predomínio da atividade comercial à qual se dedicava 11,5 por cento da população ativa de Lisboa. Um importante número dos trabalhadores era definido como «serviçais empregados no serviço doméstico» (cerca de 12,5 por cento da população) e cerca de 8 por cento dedicavam-se a profissões liberais ou viviam dos seus rendimentos.

Lisboa deveria espalhar a modernidade com que se queria ver dotado o país. Para os governantes e as elites, disciplina, ordem e segurança eram elementos fundamentais para caracterizar o espaço urbano. As ruas deveriam ser largas, transitáveis e salubres, não sendo tolerados comportamentos considerados como perturbadores da ordem e segurança na cidade. Era exigida uma nova utilização social dos espaços públicos, construindo-se passeios livres para a circulação de pessoas e estradas para o trânsito de veículos. O não cumprimento das normas para a utilização do espaço público e de inter-relacionamento das pessoas deveria ser reprimido e punido. Por outro lado, considerava-se que a eliminação do crime era essencial para que se pudesse garantir a segurança pública, mas também, como se afirmou na época, para demonstrar um sinal de progresso, podendo as sociedades que conseguissem alcançar este objetivo evidenciar a sua superioridade (Gouveia, 1860).

Lisboa tornou-se ao longo da segunda metade do século XIX uma cidade mais vigiada, tarefa que competia em particular às autoridades policiais. A partir de 1867, passou a contar com um novo corpo policial, a Polícia Civil de Lisboa, que se juntou à Guarda Municipal de Lisboa, criada em 1834, e a outras autoridades tradicionais de polícia, como os regedores e os cabos de polícia. A Polícia Civil de Lisboa era uma polícia moderna, tal como foi definida por Mark Finnance (2016, p. 470), ou seja, um conjunto de homens hierarquizado e burocraticamente organizado, remunerados, com poderes particulares de força e uma ampla variedade de funções, existindo uma responsabilização desta estrutura perante os órgãos de governo. Pode ser também considerada uma polícia moderna porque a tónica da sua ação era sobretudo colocada na prevenção e repressão do crime.

Os elementos da Polícia Civil de Lisboa deviam policiar desarmados os espaços públicos da cidade, definindo-se como principal objetivo da sua ação a prevenção e repressão do crime através de uma presença permanente e visível nesses espaços. Assim, a prevenção implicava uma vigilância e patrulhamento diário, uma presença permanente do polícia, de dia e de noite, na vida da cidade, colaborando de forma ativa para a concretização da segurança. Até 1910, os contingentes da Polícia Civil de Lisboa e da Guarda Municipal tiveram aumentos sucessivos, transformando a cidade num espaço gradualmente mais policiado. Embora a população de Lisboa tenha registado taxas de crescimento assinaláveis, com uma taxa anual de 2,3 por cento entre 1878 e 1890, de 1,8 por cento entre 1890 e 1900, e de 1,9 por cento entre 1901 e 1910, o crescimento populacional foi acompanhado pelo aumento dos efetivos das forças policiais, em particular da Polícia Civil de Lisboa. Assim, em 1878 encontramos 1 guarda civil por cada 587 habitantes, rácio que em 1890 é de 1 polícia civil para cada 379 habitantes, e em 1910 existiria 1 polícia civil por cada 276 habitantes (Vaz, 2007, pp. 9-46; Gonçalves, 2023, p. 117).

O ordenamento jurídico em vigor relativo ao crime era o Código Penal promulgado em 1852, substituído em 1886 por um novo Código Penal que perdurou até à segunda metade do século XX2. Ambos definiam as mesmas categorias de crimes: os crimes contra a religião, os crimes contra a segurança do Estado, a ordem e a tranquilidade públicas, os crimes contra as pessoas, os crimes contra a propriedade e ainda as contravenções de polícia relativas ao não cumprimento das determinações constantes nas posturas e regulamentos municipais. Entre 1850 e 1910 concretizaram-se várias reformas penais, com particular saliência para a de 1867, promulgada por Carta de Lei de 1 de julho desse ano, onde se determinou a abolição da pena de morte para os crimes civis e se introduziu o sistema penitenciário em Portugal, e a Reforma Penal de 1884, aprovada por decreto de 14 de junho desse ano, em que foram abolidas as penas perpétuas. Entre as penalidades mais referidas encontravam-se a privação de liberdade em estabelecimentos prisionais e o transporte para uma colónia penal, maioritariamente situada em Angola. As contravenções de polícia e o desrespeito pelas posturas e regulamentos municipais eram sobretudo penalizadas com uma multa pecuniária ou uma pena de prisão que não poderia ser superior a um mês. Quanto às normas definidas pelo município, Lisboa conhece um novo Código de Posturas Municipais em 1886, uma vez que o anterior já não conseguia responder às novas necessidades e características da vida da cidade e às interações que aí tinham lugar.

Criminalidade em Lisboa

Considerando os dados quantitativos coligidos na época sobre a aplicação da justiça no âmbito criminal para a segunda metade do século XIX e primeira década do século XX, o distrito de Lisboa foi invariavelmente apresentado como o que registou a maior incidência de crime, tanto em termos absolutos, como relativamente à população que aí residia3. Os dados aqui utilizados foram já objeto de uma profunda crítica que procurou avaliar a fiabilidade da informação por eles disponibilizada (Vaz, 1998, pp. 115-130). Assim, se tomarmos os anos de 1878 a 1881, considerando o total de réus em cada distrito, Lisboa aparece invariavelmente como o distrito que apresentava o maior número de réus, com valores geralmente superiores a 3000 réus/ano, enquanto os outros distritos do país, incluindo o do Porto, apresentavam valores sempre inferiores a 1000 réus/ano. Os dados relativos a 1886 acentuam a expressividade de Lisboa no computo geral dos réus julgados pela prática de crimes. No mesmo período, considerando a população existente em cada um dos distritos, Lisboa mantém um claro predomínio da prática de crimes, com taxas que vão desde 7,53 réus por mil habitantes, em 1886, a 6,5 réus por mil habitantes, em 1880, o valor mais baixo registado no distrito, neste período. Todos os outros distritos apresentavam taxas substancialmente inferiores, destacando-se apenas o de Bragança que, em 1878 e 1886, registou valores invulgarmente elevados, com quase 6 réus por mil habitantes em cada um destes anos4.

Na década de 1890 o predomínio do distrito de Lisboa relativamente à prática do crime tornou-se ainda mais acentuado. Os dados então publicados respeitavam a condenações em tribunais de 1ª instância e não a réus, indo ao encontro de ideias muito divulgadas na época sobre a forma de pensar o crime e o criminoso. Apenas os condenados podiam ser classificados como criminosos e só esses eram considerados nas estatísticas relativas à aplicação da justiça criminal. Assim, entre 1891 e 1895 e no ano de 1897, o distrito de Lisboa apresentou uma taxa de condenados que variou entre 10,7 por mil habitantes em 1895, a mais alta registada neste período, e 7,67 por mil habitantes em 1892, o valor mais baixo registado no mesmo período. A observação de todos os outros distritos do país mostra que os valores mais altos registados, ocorridos de forma muito esporádica, nunca atingiam as cinco condenações anuais por mil habitantes5. Além disso, sendo o distrito de Lisboa composto por várias comarcas, algumas delas caracteristicamente rurais, deve-se assinalar que a generalidade das ocorrências se concentrava nos distritos criminais que respeitavam ao concelho de Lisboa, correspondentes a três distritos criminais nos anos 1891 e 1892, que passaram a quatro em 1893, com a criação do 4º distrito criminal no concelho. A primeira década do século XX não trouxe alterações relativamente a este quadro. Além da informação estatística, o destaque noticioso que muitos periódicos davam aos crimes ocorridos na capital, em particular os jornais de grande circulação, como era o caso do Diário de Notícias, reforçou as perceções sociais relativamente à perigosidade e insegurança que se viveria em Lisboa.

Assim, o distrito, e em particular o município, de Lisboa era o espaço onde se registava o maior número de crimes, tanto em valor absoluto, como relativamente à população que albergava. Interessa agora caracterizar a criminalidade que aí foi detetada. Para tal, fazemos uso dos dados coligidos pela Polícia Civil de Lisboa relativos às detenções efetuadas no concelho pelas diversas autoridades policiais que aí atuavam. Os dados são escassos, referindo-se apenas a alguns anos, mas a sua análise é esclarecedora6. Os relativos aos anos de 1871, 1874, 1880 e 1886 a 1892, demostram uma tendência de crescimento, com um aumento acentuado do número de detenções entre 1880 e 1886, ao que se sucedem pequenas variações ainda com tendência de crescimento entre 1887 e 1888 e uma estabilização nos anos seguintes. Se considerarmos o ano de 1880, as detenções por ofensas corporais superam as 2000, seguidas pelas detenções devido a injúrias à autoridade e furto que atingem os 500 casos cada. Todos as outras detenções efetuadas pelas autoridades policiais ficaram a dever-se a uma grande variedade de crimes, destacando-se os casos de ferimentos e vadiagem, sendo que as contravenções policiais durante o ano de 1880 não chegaram a originar 250 casos. Trata-se, ainda assim, de um valor assinalável, pois a estes casos era sobretudo aplicada uma multa pecuniária, o que geralmente não originava a detenção do contraventor.

Para o período de 1886 a 1892, as duas categorias de crimes que originaram mais detenções em Lisboa foram os crimes contra as pessoas, com um total que ronda os 35 mil casos, e os crimes contra a Segurança do Estado, a ordem e a tranquilidade públicas, que atingem quase os 34 mil casos. Os crimes contra a propriedade estiveram na origem de pouco mais de 9 mil detenções e as transgressões às posturas municipais e contravenções policiais justificaram cerca de 2500 detenções.

O crime que esteve na origem do maior número de detenções foi o de ofensas corporais, que integra a categoria dos crimes contra as pessoas, tratando-se geralmente do recurso à agressão física moderada no relacionamento entre indivíduos. Em segundo lugar, surge o crime por embriaguez e, com valores ligeiramente menores, o crime por desobediência à autoridade, ambos integrando a categoria dos crimes contra a ordem e a tranquilidade públicas.

Após a implantação da República, para os anos de 1912 e 1913, a então Polícia Cívica de Lisboa coligiu e editou de novo os dados relativos às detenções realizadas pelas autoridades policiais na cidade de Lisboa. Assinale-se apenas que o furto passou a ser o crime que esteve na origem do maior número de detenções, com quase 6 mil casos, seguindo-se as ofensas corporais que registaram cerca de 5 mil casos, surgindo em terceiro lugar as infrações aos regulamentos policiais e posturas do município que justificou quase 4 mil detenções7.

A partir da informação apresentada podemos elaborar um quadro geral descritivo da prática do crime em Lisboa nas décadas finais do século XIX e primeira década do século XX. A cidade destacava-se pela grande incidência do crime comparativamente às outras regiões do país, tanto em termos absolutos, como relativamente à população residente em cada distrito. Era o espaço com maior e mais eficaz vigilância policial o que facilitava a deteção e repressão de pequenos delitos, pouco gravosos, como era o caso das ofensas corporais e o recurso a uma violência moderada no relacionamento interpessoal. Contudo, o que mais se salienta em Lisboa é a forte incidência dos crimes contra a ordem e a tranquilidade públicas, geralmente de pouco significado no resto do país e que, em Lisboa, por vezes, superam os crimes contra as pessoas, a categoria de crimes com a maior incidência, tanto em termos de total nacional, como em cada um dos distritos. Inserem-se aqui os crimes por embriaguez, por desobediência às autoridades, geralmente as policiais, a vadiagem e a mendicidade, além das pequenas desordens que ocorreriam no espaço público.

É interessante evidenciar o caso da embriaguez e da vadiagem, então objeto preferencial da atividade preventiva e repressiva das autoridades policiais e judiciais, em particular a partir de 1890, período marcado por uma crise económica, financeira e social que gerou o aumento do desemprego e o acentuar das dificuldades dos grupos de trabalhadores que habitavam na cidade. O historiador Eric Monkkonen analisou os crimes contra a ordem pública nas maiores cidades norte-americanas para o período de 1860 a 1977, com base em dados estatísticos relativos a crimes por embriaguez e desordem. Também aqui encontrou uma forte incidência deste tipo de crimes para o século XIX que tendencialmente vão diminuindo ao longo do século XX, acabando por quase desaparecer. Confrontou esta informação com dados relativos à incidência dos crimes graves e violentos, como o homicídio, demonstrando que nas grandes cidades, neste caso a cidade de Nova Iorque, a taxa de homicídios era muito menor do que a média nacional. Concluiu desta forma que, no século XIX, quanto mais as cidades cresceram, mas seguras se foram tornando (Monkkonen, 2001). Era na cidade que, com maior zelo e também eficácia, se procurava impor a obediência aos vários normativos que regulavam a vida da população e as interações que aí se produziam. Assim, era a imensidade de pequenos crimes que colaborava para a grande incidência do crime registado em Lisboa nas últimas décadas do século XIX e primeira década do século XX, sendo que a sua deteção e repressão só foi possível devido ao incremento da vigilância policial, sem paralelo no resto do país. Para a construção da imagem de uma cidade insegura e desordeira e de uma população indisciplinada e incumpridora colaborou também o alargado articulado de normas implementado pelas posturas do Município de Lisboa.

Transgressões das Posturas Municipais em Lisboa

Além da lei penal existia um vasto conjunto normativo dirigido ao espaço do município de Lisboa que determinava um minucioso articulado de regras de cumprimento obrigatório por parte da população que vivia, trabalhava ou transitava pela cidade. A 30 de dezembro de 1886 entrou em vigor o novo Código de Posturas do Município de Lisboa, substituindo o Código anterior, considerado desatualizado e desadequado às novas realidades vividas na cidade. O Código de Posturas, promulgado em 1886, manteve-se em vigor até ao final da Monarquia, percorrendo ainda toda a I República, sendo objeto de permanentes atualizações, até porque ao remeter para situações de grande pormenor, rapidamente ficava desatualizado perante as fortes dinâmicas de que a cidade era palco, com atualizações não só das ações que eram punidas, como também das penalidades aplicadas, o valor pecuniário das multas ou os dias de prisão a que poderiam ser sujeitos os prevaricadores8.

Na 10ª edição do Código de Posturas, publicada em 1923, os responsáveis pela compilação das normas, A. Morgado, antigo chefe de Polícia e na altura secretário do Comissariado Geral da Polícia de Lisboa, com a colaboração de José Marcelino Aleixo, chefe de polícia ao serviço da Câmara Municipal de Lisboa, afirmavam que o Código de 1886, apesar das permanentes revisões, já estava desatualizado, considerando premente a necessidade de se elaborar um novo Código de Posturas. Referem estes compiladores: «Não se compreende, que uma cidade, como Lisboa, cuja população duplicou de 1886 a esta data, alterando os seus costumes, a sua viação, os meios para defesa da saúde pública, esteja ainda em parte, subordinada a disposições, que já não são para esta época e que por isso não se justificam»9.

O Código inicia com a afirmação da obrigatoriedade do cumprimento das regras por este determinadas por todos os que se encontram no território do município, bem como a existência de penalidades para os infratores. Apresentam-se seguidamente as posturas municipais respeitantes à propriedade municipal e às vias públicas, tratando as questões relativas à água, definindo-se as normas de acesso a este bem de forma muito detalhada, pormenorizando as diversas situações de incumprimento e penalidades definidas. A regulamentação procurava incutir civilidade nos comportamentos, determinando penalidades para quem «encher qualquer vasilha nos chafarizes e bicas, sem esperar a sua vez à carreira, ou a água seja para vender ao público, ou para uso particular» (Postura 2, artigo 8º, 1º). São definidas as possibilidades e formas de obtenção de licenças de ocupação da via pública, situação que foi objeto de uma particular regulamentação, contemplando-se, entre outras, as regras para a colocação de anúncios ou de iluminação, a proibição de ocupação de passeios e a definição de multas para quem o fizesse ou a possibilidade de pagamento de taxas para a obtenção de licenças para tal (postura 3). São enunciadas as normas para a utilização das calçadas, proibindo-se ações consideradas como as podendo danificar, como era o caso, entre outros, do «deitar de pancada, sobre o mesmo chão, quaisquer cargas que forem conduzidas em carros, carroças ou veículos semelhantes» (Postura 4, secção 1ª, artº 12º, nº 2º), ou ainda «conduzir quaisquer objetos, arrastando-os ou rolando-os pelo solo» (Postura 4, secção 1ª, artº 12º, nº 3º). Proíbem-se as ações que pudessem danificar as árvores da cidade, como seria o encostar de objetos ou subir às árvores (Postura 4, secção 2ª, artº 16º), o que também era proibido relativamente aos candeeiros de iluminação pública (Idem, secção 3ª). Regula-se a utilização dos passeios, cuja utilização não podia perturbar a circulação dos transeuntes, determinando-se, assim, que «nos passeios laterais da via pública é proibido estar sentado ou deitado» sob pena de multa (Postura 4, secção 3ª, artº 24º).

A regulamentação municipal foi sobretudo incisiva no que respeitava ao trânsito na cidade, ao qual foi dedicada uma alargada e minuciosa regulamentação. No período aqui contemplado, o trânsito respeitou sobretudo a veículos de tração animal, mas é notória a forma como a regulamentação municipal se foi adaptando à introdução dos veículos a motor e sua expansão no espaço urbano, passando a contemplar os veículos automóvel, mas também as motorizadas e os camiões, a partir da segunda década do século XX. A publicação do Código de Posturas em 1886 foi seguida de um intenso movimento de publicação de novas posturas que maioritariamente remetiam para questões relativas ao trânsito na cidade, aos veículos que aí circulavam e a quem os conduzia. Determinava-se onde e quando se podia estacionar, os vários aspetos relativos ao transporte de cargas, sendo que uma postura municipal de 15 de abril de 1891 estabeleceu a substituição «por prisão de três a cinco dias, a pena de $50 de multa a transgressão do artº 43º do Código de Posturas (…) que obriga os condutores de veículos a apresentarem as respetivas licenças a qualquer oficial de polícia que exija vê-las»10. A postura de 11 de junho de 1896 definiu o vestuário que os cocheiros de trens de praça e particulares deveriam apresentar, insistindo-se na proibição de condução em estado de embriaguez (Postura 10, artº 55º), «sob pena de 2$00 de multa, guiar ou conduzir veículos»11. As posturas serviram para introduzir um conjunto de regras relativas ao trânsito sempre mais intenso e causador de alguma insegurança para quem circulava na cidade, endurecendo-se as penalidades para os prevaricadores. Assim, se inicialmente o facto de os veículos transitarem sem dar «a direita ao centro do caminho» dava direito a uma multa, a partir de 1891 tal transgressão passou a ser punida com pena de prisão por três dias12. Definia-se um vasto conjunto de regras para a circulação de veículos de tração animal, a forma como podiam circular, as características requeridas para os veículos, para os animais de tração e para os condutores, bem como os locais de estacionamento. Contemplava-se a grande diversidade de tipologia de veículos, os particulares, os de transporte em comum, os veículos de carga, incluindo os destinados a combater incêndios, mas também os carros funerários, os de transporte de animais, entre outros. Definiam-se as especificidades para a circulação em determinadas zonas da cidade.

Fazia parte das competências dos guardas e cabos da Polícia Civil de Lisboa, entre muitas outras funções, fazer os autos de notícia por transgressões às posturas e regulamentos municipais e outras contravenções relativas aos regulamentos gerais da polícia13. O trânsito na cidade, que se procurou regulamentar e disciplinar, originou um elevado número de detenções por parte das autoridades policiais a indivíduos apresentados como tendo a profissão de carroceiro ou de cocheiro, ocupações relacionadas com o trânsito. Depois da designação genérica de «trabalhadores», o grupo ocupacional que registou o maior número de detenções entre 1886 e 1892 (total de 12 810), surgem os carroceiros com um total de total de 6104 detenções, logo seguidos dos cocheiros, com 289814.

Para o período de 1886 a 1892, cerca de 2500 detenções efetuadas pela Polícia Civil de Lisboa foram devidas a transgressões municipais e contravenções policiais, significando um imenso incremento relativamente às menos de 250 detenções ocorridas pelo mesmo motivo em 1880. As 2500 detenções registadas entre 1886 e 1892 respeitam quase todas a casos de maus-tratos a animais utilizados para a tração dos veículos, a velocidade excessiva e impedimento de trânsito de veículos. Em 1891 e 1892, os maus-tratos a animais surgem mesmo em sétimo lugar na hierarquia das infrações que mais detenções originaram por parte da Polícia Civil de Lisboa15. Contudo, além das contravenções originadas pela circulação de veículos, existiu um vasto conjunto de outras infrações das posturas municipais cujas referências encontradas foram, contudo, em menor número. Entre as mais comuns encontrava-se o transitar nos transportes coletivos sem bilhete, o lançamento de entulho para a via pública e a falta de manutenção da limpeza nas fachadas dos edifícios.

As posturas regulamentavam também a caça, a condução de animais perigosos, o abate de animais, o trânsito de gado e de outros animais pela via pública, nomeadamente os cães, os cães vadios e a venda de animais, sobretudo os destinados à alimentação humana. O Código definia ainda medidas relativas à manutenção da propriedade privada, determinando penalizações quando a sua deficiente manutenção pudesse significar uma ameaça para a segurança pública, bem como a obrigatoriedade de fornecer água para o combate a incêndios a todos os que tivessem poços, cisternas ou tanques, minas ou fontes nas suas propriedades. Enunciavam-se as regras que deviam ser observadas na construção e obras de edifícios, tanto no interior, como no exterior dos mesmos, obrigando a colocação de tapumes. Definia-se como obrigatória a limpeza das chaminés e a manutenção das redes de saneamento dos edifícios para que não constituíssem um perigo para a segurança e saúde públicas. Enunciavam-se as regras para a remoção de lixos, a proibição de incomodar os transeuntes a partir do interior das habitações ou estabelecimentos comerciais, como seria o caso da queda de águas devido a roupa estendida ou rega de flores.

A atividade comercial desenvolvida na cidade foi também objeto de forte regulamentação, nomeadamente a colocação de tabuletas à porta dos estabelecimentos que, embora não tenha sido referida no Código de 1886, foi regulamentada posteriormente, a 3 de maio de 1907. Apresentavam-se as regras para o comércio de carnes, do pão, entre outros, dando-se como obrigatória a utilização de instrumentos de pesos e medidas aprovados e a proibição de utilização de medidas alternativas, como era o caso de copos para determinar a quantidade do produto vendido.

Dificuldades na implementação do código de posturas

Foi esparsa a documentação encontrada sobre a violação das posturas municipais, mas com informação de interesse. Aos juízes de paz competiria, em geral, julgar as transgressões municipais. A atividade era muito intensa, como atesta a documentação conservada no Arquivo Municipal de Lisboa, existindo muitos ofícios remetidos pelos juízes de paz da cidade que tinham como destinatário o presidente da Câmara Municipal, solicitando que fosse dada ordem a funcionários da Câmara para irem depor como testemunhas nos vários julgamentos por transgressão que realizavam16. Assim, a 7 de junho de 1892, o juiz de paz do distrito de Alcântara e Lapa solicitou ao presidente que um condutor e um calceteiro da Câmara comparecessem na sala de audiências desse juízo, para deporem num processo de transgressão de posturas17. Também o juiz de paz do distrito do Campo Grande solicitou, por ofício datado de 20 de outubro de 1892, a comparência dos fiscais da Câmara no julgamento que se iria realizar a 24 de setembro, devido à apreensão feita, por estes, de três quilos de carne de vaca que era conduzida numa carroça sem a marca do matadouro e sem guias do seu destino18.

Devendo proceder ao julgamento dos transgressores, nem sempre era fácil fazê-lo, lamentando os juízes de paz o facto de não terem sido informados sobre a norma em causa. Assim, o juiz de paz do distrito de Santa Justa, em ofício datado de 4 de julho de 1893, queixou-se que não conhecia a penalidade que deveria aplicar aos vendedores ambulantes de pão que tinham sido detidos por não terem os devidos alvarás de fiança das padarias.19 A resposta da Câmara Municipal de Lisboa, em ofício datado de 7 de julho de 1893, refere que não fora ainda estabelecida penalidade pela venda ambulante de pão sem alvará de fiança.

As dificuldades expressas pelos juízes de paz relativamente ao julgamento de violações das posturas municipais foram abundantemente comunicadas por ofícios à presidência da Câmara Municipal de Lisboa. Desde logo, porque não tinham conhecimento das posturas que iam sendo promulgadas. Nesse sentido, a 12 de janeiro de 1893, o juiz de paz do distrito do Sacramento informou que vários moços de padeiro tinham sido acusados do incumprimento da postura de 7 de dezembro de 1891, mas que tinha dificuldade em tomar uma decisão relativamente ao caso, pois não lhe fora dado conhecimento da postura em causa20. Também o juiz de paz do distrito de Santos-o-Velho, solicitou, em ofício datado de 11 de outubro de 1892, que o presidente da Câmara Municipal de Lisboa lhe fizesse chegar o Código de Posturas, referindo que, de acordo com o decreto de 15 de setembro de 189221, era da competência dos juízes de paz o julgamento das contravenções e transgressões das posturas, o que não poderia fazer sem o conhecimento do Código22.

As transgressões geravam um significativo movimento de trabalho junto dos juízes de paz, como é ilustrado pela informação prestada pelo juiz de paz de Santa Justa. A 17 de julho de 1893, enviou um ofício apresentando o balanço do movimento dos processos de transgressão das posturas municipais e policiais que tinha na sua posse, referindo que 121 processos estavam pagos, 404 eram processos pendentes em execução, 166 processos de transgressão tinham resultado em absolvição, 4 processos respeitavam a transgressores que cumpriram pena de prisão e 178 processos estavam a entrar em julgamento, num total de 2012 processos23. No mesmo ofício, lamentou que muitas das absolvições se deviam à ausência dos elementos da Polícia Civil de Lisboa nos julgamentos, afirmando ser diminuto o número de transgressores condenados a penas de prisão. Acrescentou ainda que,

para a avultada soma de delinquentes que exime às responsabilidades das suas transgressões dando no ato de serem autuados esclarecimentos omissos ou errados o que torna impraticável na maioria dos casos a efetividade da sua punição. Pertencem estes delinquentes à classe de vendedores ambulantes, carroceiros e cocheiros e ascendem ao importante número de 1139 o que representa muito trabalho improfícuo, sensível diminuição na receita do selo e dos respetivos cofres das multas, e ainda mais o incitamento para a reincidência nos delitos.24

Nesse sentido, solicitou que o Comissário-Geral da Polícia ordenasse aos polícias civis «o cumprimento rigoroso do artigo 3º do Código de Posturas Municipais» que obrigava o cidadão surpreendido em flagrante transgressão de posturas municipais, regulamentos gerais e administrativos, cujo nome e residência não fosse do conhecimento do agente da polícia, a acompanhar o guarda ao posto policial mais próximo onde seria averiguada a sua identidade ou depositada a multa respetiva. Existiriam, assim, 178 processos a entrar em julgamento para os quais não era possível identificar e localizar o transgressor. O juiz de paz terminava afirmando que «todo o zelo e boa vontade […] serão malogrados pela carência de auxílio dos poderes competentes a fim de evitar que os transgressores […] continuem com manifesto abuso zombando das autuações contando com as impunidades»25.

As queixas sobre a falta de colaboração das autoridades policiais repetiram-se. A 23 de agosto de 1893, também o juiz de paz do distrito dos Olivais se lamentou ao presidente da Câmara Municipal de Lisboa por não conseguir descobrir o paradeiro dos transgressores aos quais tinham sido aplicadas multas. Adiantava-se que grande parte desses transgressores eram vendedores de leite que praticavam a venda sem fiança26. A falta de cooperação dos elementos da Polícia Civil de Lisboa relativamente à observância e sanção de quem não cumpria as regras definidas nas posturas do Município, justificou várias queixas tanto por parte de juízes de paz, como de funcionários da Câmara. A título de exemplo, refira-se a queixa apresentada pelo inspetor do 4º distrito da limpeza, «acusando o guarda da polícia nº 562 de se haver recusado a autuar uma criada de servir que estava despejando um caixote com lixo na via pública»27.

Os juízes de paz eram eleitos pelo período de 3 anos, num processo iniciado pelo governador civil que depois informava a Câmara. Para cada um dos distritos da cidade elegia-se um juiz de paz efetivo e dois ou três substitutos, todos prestando juramento28. Contudo, as dificuldades no funcionamento dos juízes de paz eram muitas, desde logo a complicação em encontrar um espaço em que este juízo pudesse funcionar ou mesmo pessoas disponíveis para desempenhar o cargo. Desta forma, o decreto de 28 de agosto de 1892 mandou transferir os julgamentos dos processos de transgressões de posturas municipais para o juiz de instrução criminal29. Fizeram-se ouvir alguns protestos. Em 1893, por ofício de 9 de setembro, os 12 juízes de paz de Lisboa, que faziam parte dos quatro bairros em que estava dividida a cidade, acompanhados por escrivães e oficiais, enviaram ao presidente da Câmara Municipal de Lisboa uma cópia da representação feita ao rei, reclamando contra o decreto de 28 de agosto de 1892, que transferiu o julgamento dos processos de transgressões de posturas municipais para o juiz de instrução criminal, devido a uma reclamação da mesma Câmara. Solicitavam a revogação dos artigos 26º a 32º do decreto de 28 de agosto de 1893, alegando que se tratava de uma exceção definida apenas para a cidade de Lisboa, carecendo por isso de justificação. A resposta veio do Ministério do Reino, a 25 de outubro de 1893, sendo uma cópia remetida pelo Governo Civil à Câmara Municipal de Lisboa, afirmando a não aprovação do requerido pelos juízes de paz30.

Embora se fosse deparando com dificuldades várias, a imposição de novas e mais atualizadas posturas no município de Lisboa, bem como a existência de um conjunto de elementos que colaboravam, de forma mais ou menos eficaz, para o seu cumprimento e penalização dos infratores, foi dando mais significado e peso às transgressões que ocorriam na cidade. No final do século XIX, em julho de 1893, o juiz de paz de Santa Justa referiu a existência de 2012 processos de transgressão só neste juízo31, o que contrasta com a quantidade de transgressões registadas em meados do século XIX, quando, para a totalidade da cidade, ao longo de todo o ano de 1856 foram registadas 2952 transgressões de posturas municipais, de acordo com a repartição municipal, e durante o ano de 1858 foram anotadas 3188 transgressões32.

Conclusão

Lisboa, o maior centro urbano e a capital do país, tem um lugar central quando analisamos o crime e as transgressões às normas impostas pelo Município nas últimas décadas do século XIX e primeira década do século XX. O ambiente urbano lisboeta foi representado como colaborando de forma intensa para o aumento da criminalidade então registada no país, pois era neste concelho que invariavelmente ocorria o maior número de ações punidas como crime, tanto em número absoluto, como tendo em conta o número de habitantes aí residentes. A não observância por parte da população de outras normas que regulamentavam a vida na cidade, como era o caso das transgressões às posturas municipais, reforçava a ideia de que o crime e o desrespeito pela lei eram endémicos em Lisboa. Contudo, tratava-se de uma criminalidade toda ela construída à base de pequenos delitos, a que as transgressões davam ainda maior saliência. A proximidade e ação das autoridades, com presença assinalável e constante na cidade, tanto as policiais como as judiciais, facilitava a deteção e repressão dos diversos incumprimentos por parte da população, dando grande expressão ao número de crimes e transgressões registados em Lisboa. Desta forma, colaborava-se para dar sustentação à ideia muito partilhada na época, divulgada pela imprensa e afirmada pelos estudiosos, que alertava para a perigosidade dos espaços urbanos, em particular de Lisboa.

Pelo contrário, a imposição da norma penal e de regras definidas a nível municipal, regulando os diversos aspetos da vida em sociedade, teria como objetivo tornar o espaço da cidade mais seguro e ordeiro, procurando gerir os vários interesses em jogo, muitas vezes conflituantes entre si. A capacidade implementada de zelar e fiscalizar pela observância das normas e da lei, sobretudo de detetar e reprimir quem não as cumpria, fez com que o número de violações à lei e às normas municipais atingisse valores muito significativos, permitindo a afirmação de perceções catastrofistas que enfatizavam os malefícios da urbanização. Nesse sentido, a cidade foi durante longo tempo representada como um espaço inseguro e desordeiro, quando, de facto, o que se pretendia construir através da implementação de normas de cumprimento generalizado era exatamente uma cidade mais segura, ordeira, e formas disciplinadas de ocupar o espaço público e de relacionamento entre a população que aí habitava e trabalhava.

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1Censo no 1º de janeiro de 1864. Lisboa: Imprensa Nacional, 1868; Censos de 1878. Lisboa: Tipografia Universal, 1879; Censo da população do Reino de Portugal no 1º de dezembro de 1890. Lisboa: Imprensa Nacional, 1896.

2Código Penal. Aprovado por Decreto de 10 de Dezembro de 1852. Lisboa: Imprensa Nacional, 1867; Código Penal Português. Decreto de 16 de Setembro de 1886. 7ª edição, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1919.

3Os dados disponíveis cobrem apenas alguns anos, não havendo registos sistemáticos para períodos prolongados.

4Dados trabalhados a partir da informação fornecida pelo Anuário Estatístico - 1885. Lisboa: Imprensa Nacional, 1887, pp. 79-89; e Anuário Estatístico de Portugal - 1886. Lisboa: Imprensa Nacional, 1890, pp. 167-177.

5Dados trabalhados a partir da informação fornecida por: Lopes (1897); e Anuário Estatístico de Portugal - 1900. Lisboa: Imprensa Nacional, 1907, pp. 77-91.

6A análise é feita a partir dos dados coligidos em: Mapas estatísticos de alguns ramos de serviço a cargo do corpo de Polícia Civil de Lisboa durante o ano de 1871. Lisboa: Imprensa Nacional, 1872; Mapas estatísticos de alguns ramos de serviço a cargo do corpo de Policia Civil de Lisboa durante o ano de 1874. Lisboa: Imprensa Nacional, 1875; Mapas estatísticos do ano de 1886 da Polícia Civil de Lisboa, Lisboa, Imprensa Nacional, 1887; Mapas estatísticos do ano de 1887 da Polícia Civil de Lisboa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1888; Mapas estatísticos do ano de 1888 da Polícia Civil de Lisboa, Lisboa, Imprensa Nacional, 1889; Mapas estatísticos do ano de 1889 da Polícia Civil de Lisboa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1890; Mapas estatísticos do ano de 1890 da Polícia Civil de Lisboa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1891; Mapas estatísticos do ano de 1891 da Polícia Civil de Lisboa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1892; Mapas estatísticos do ano de 1892 da Polícia Civil de Lisboa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1893.

7Dados trabalhados a partir da informação constante em: Corpo da Polícia Cívica de Lisboa. Crimes, delitos e outras ocorrências policiais. Mapas estatísticos e gráficos relativos ao ano de 1912. Lisboa: Imprensa Nacional, 1914; Corpo da Polícia Cívica de Lisboa. Crimes, delitos e outras ocorrências policiais. Mapas estatísticos e gráficos relativos ao ano de 1913. Lisboa: Imprensa Nacional, 1915.

8Consultou-se aqui o Código de Posturas do Município de Lisboa, de 30 de dezembro de 1886, aumentado com todas as posturas posteriormente publicadas, cuidadosamente anotadas por A. Morgado, Antigo Chefe de Polícia e actual secretario do Comissariado Geral da Polícia de Lisboa, com a colaboração de José Marcelino Aleixo, Chefe de polícia ao Serviço da Câmara Municipal de Lisboa, 10ª edição, Lisboa, Tip. da Empresa Diário de Notícias, 1923. A obra teve ainda uma nova edição em 1929, a 11ª edição.

9Código de Posturas do Município de Lisboa, de 30 de dezembro de 1886 (10ª edição). Lisboa, Tip. da Empresa Diário de Notícias, 1923, p. 1.

10Código de Posturas do Município de Lisboa, de 30 de dezembro de 1886 (10ª edição). Lisboa, Tip. da Empresa Diário de Notícias, 1923, p. 55.

11Idem, pp. 63-65.

12Idem, p. 73.

13Regulamento para os Corpos de Polícia Civil de Lisboa e Porto. Criados pela Lei de 2 de Julho de 1867, Lisboa, Imprensa Nacional, 1867. Esta competência é repetida nos Regulamentos policiais posteriores, nomeadamente Regulamento dos Corpos de Polícia Civil aprovados por Decreto de 21 de Dezembro de 1876, Lisboa, Imprensa Nacional, 1877. Regulamento da Polícia Civil e Judiciária de Lisboa aprovado por decreto de 12 de Abril de 1894, Lisboa, Imprensa Nacional, 1894.

14Mapas estatísticos… da Polícia Civil de Lisboa…. Para os anos 1886 a 1892. Lisboa: Imprensa Nacional, 1887-1893.

15Dados retirados dos Mapas estatísticos … da Polícia Civil de Lisboa, para os anos 1886 a 1892 já citados.

16Ver, por exemplo, a documentação do Arquivo Municipal de Lisboa (AML), Juntas de Paróquias e Administração dos Bairros. Correspondência de juízes de paz e ordinários.

17AML, secção 03; subsecção 01. Série Correspondência recebida. Doc. 19 - C16, Cx. 7.

18AML, Administração de Bairros. Caixa nº 7. Pasta nº 1. Assunto: Juízes de Paz eleitos para o ano de 1890 a 1892 nos distritos de Lisboa. Doc 2-C14.

19Idem, Doc. 25-C16.

20AML, secção 03; subsecção 0; Série correspondência recebida; doc. 21 - C16, Cx. 7.

21Publicado no Diário do Governo de 16 de setembro de 1892.

22AML, Administração de Bairros. Caixa nº 7. Pasta nº 1, doc. 1-C15.

23AML, Administração de Bairros. Caixa nº 7. Pasta nº 1, doc. 28 - C16.

24Ibidem.

25Idem, doc. 28 - C16

26Ibidem.

27Atas das Sessões da Câmara Municipal de Lisboa. Sessão de 7 de janeiro de 1909. Consultável em https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/OBRAS/ActasSCML/1909/1909_item1/P4.html

28AML, Administração de Bairros. Caixa nº 7. Pasta nº 1. Assunto: Juízes de Paz eleitos para o ano de 1890 a 1892 nos distritos de Lisboa. Doc 1-C13: Ofício do governador civil de Lisboa para o presidente da Câmara do concelho de Lisboa, data do 17 de dezembro de 1889 e doc. 2-C13: Ofício do governador civil de Lisboa, datado de 23 de dezembro de 1889, certificando que as propostas para juízes de paz foram aprovadas pelo tribunal administrativo do distrito de Lisboa.

29AML, Administração de Bairros. Caixa nº 7. Pasta nº 1. Assunto: Juízes de Paz eleitos para o ano de 1890 a 1892 nos distritos de Lisboa.

30AML, Administração de Bairros. Secção 03, subsecção 01. Correspondência Recebida, Caixa nº 7, doc. 32 - C16.

31AML, Administração de Bairros. Caixa nº 7. Pasta nº 1, doc. 28 - C16.

32AML, Livro de Transgressões de Posturas Municipais (1837-1858).

Recebido: 11 de Dezembro de 2024; Aceito: 13 de Dezembro de 2024

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