Introdução
Os termos comunicação, linguagem e fala são frequentemente utilizados como sinónimos devido à interseção parcial de significados; contudo, são conceitos diferenciados, pelo que é importante discriminá-los. A comunicação é inata à vida, iniciando-se desde cedo na espécie humana, “por mais que tentemos não podemos deixar de comunicar: ação ou imobilidade, palavras, gestos ou silêncio todos contêm uma mensagem que é percebida pelos pares a que pertencemos”.1 Esta frase vem justificar as duas vertentes comunicativas, a verbal e a não verbal. 2-3
Definir linguagem é uma missão complexa. A linguagem consiste num sistema complexo e dinâmico de símbolos convencionais, através de uma combinação regrada de sons e palavras, à qual o homem recorre para elaborar o seu pensamento e estabelecer comunicação. 4-5 A linguagem expressiva prende-se com a capacidade de produzir e construir significado de uma mensagem e a linguagem compreensiva prende-se com a capacidade de entender uma mensagem. Foram definidos três domínios da linguagem que se intersetam entre si: a forma, o conteúdo e o uso. A forma é a composição estrutural da linguagem, ou seja, como se diz, que é regida pela fonologia (sons da língua) e pela morfossintaxe (construção de concordância de género, número ou verbo). O conteúdo é o significado da mensagem, aquilo que é dito com base em regras que organizam o significado das palavras e da sua combinação, a semântica. O uso consiste em determinar onde se diz, ou seja, as razões para escolher determinada forma linguística em contexto social e que tem por base a pragmática. 6 A fala é uma ação motora e cognitiva, concretizada através da coordenação neuromuscular das estruturas do trato vocal em que há expressão e realização da linguagem em resultado dos sons expressos. 7 Para que a fala se efetive são necessários três componentes básicos: a articulação, a voz e a fluência. 8
Uma perturbação acontece perante um desvio do padrão considerado normal numa população ou sociedade. A sua ocorrência ao nível da comunicação, linguagem ou fala poderá condicionar uma alteração do neuro-desenvolvimento infantil. Como tal, acarretará repercussões individuais e sociais, refletindo-se frequentemente em consequências futuras a nível intelectual, emocional, integrativo e da aprendizagem das crianças. O reconhecimento dos desvios patológicos é importante para que as crianças sejam sinalizadas precocemente, de modo a beneficiar da plasticidade cerebral para recuperar algumas competências e para evitar o acumular de dificuldades. Mais de 50% dos casos de perturbação do neuro-desenvolvimento infantil são detetados apenas na idade escolar, altura em que, tendo sido desperdiçadas oportunidades vitais de iniciar uma intervenção precoce, podem verificar-se já atrasos significativos em várias áreas do desenvolvimento. 9-12
A prevalência das perturbações da comunicação, linguagem e fala (PCLF) foi pouco estudada; no entanto, um estudo português apontou uma prevalência entre 1% e 32% nas crianças em idade pré-escolar, sendo consideradas as mais comuns entre os problemas de desenvolvimento na infância. 13
O desenvolvimento comunicativo da criança acontece gradualmente, devendo ser acompanhado e avaliado desde o nascimento, de modo a facilitar a identificação precoce das PCLF e a minimizar as suas consequências. Os cuidados de saúde primários (CSP), na pessoa do médico de família (MF), apresentam um papel preponderante na deteção atempada e referenciação das crianças com PCLF. 9-12 Nesse sentido, o MF, no Plano Nacional de Saúde Infantil e Juvenil (PNSIJ), tem ao seu dispor um quadro com parâmetros orientadores para cada idade-chave, baseados na escala de Mary Sheridan Modificada, a seguir durante a consulta de saúde infantil. Incluem a avaliação do desenvolvimento e sinais de alerta para a visão e motricidade fina, audição e linguagem, postura e motricidade global e comportamento e adaptação social. 14-17 As diferentes áreas do desenvolvimento apresentam um papel preponderante no desenvolvimento da fala, da linguagem e da própria comunicação. Uma vez que a avaliação isolada do desenvolvimento da criança apresenta valor limitado, o MF, através dos seus contactos repetidos, encontra-se numa posição privilegiada para monitorizar o desenvolvimento infantil. Devido ao acompanhamento longitudinal na vida da criança, este profissional tem a oportunidade de presenciar a sua história pessoal e social e avaliar o seu ambiente familiar e a sua comunidade. O conhecimento do contexto familiar das crianças permite ao MF estabelecer uma forte relação com os pais ou cuidadores. 9-12,16 Deste modo, a colaboração entre os pais e o MF possibilita o aconselhamento e orientação em relação ao processo fisiológico do desenvolvimento infantil e à deteção de sinais de alerta, bem como a instituição de estratégias potenciadoras do desenvolvimento das capacidades comunicativas.
O papel do MF é fundamental na vigilância dos diferentes aspetos do desenvolvimento, na deteção precoce dos desvios da normalidade e na orientação atempada para uma intervenção eficaz. O PNSIJ, documento base para as consultas de vigilância de saúde infantil, recomenda a referenciação destas situações para o Sistema Nacional de Intervenção Precoce na Infância (SNIPI).12 Porém, outros autores referem que sempre que se detetam atrasos ou desvios da normalidade, o médico de família deve referenciar para o nível seguinte de cuidados - Unidade ou Centro de Desenvolvimento. 16
Os estudos atualmente existentes que abordam a capacitação e perceção dos MF sobre a importância e o seu papel na abordagem das PCLF são escassos. Até ao momento foram encontrados três artigos portugueses que pretenderam demonstrar o MF como uma peça fundamental no desenvolvimento da criança, abordar a vigilância de desenvolvimento psicomotor e sinais de alarme e estudar a perspetiva dos MF quanto à referenciação de crianças com problemas de comunicação e linguagem. 9,12,16 Por este motivo, é necessário investigar mais nesta área.
O objetivo do presente estudo foi avaliar qual o impacto nos conhecimentos teóricos dos MF em PCLF de uma formação desenhada para melhorar os seus conhecimentos e capacitação.
Métodos
Este foi um estudo de intervenção longitudinal, com avaliação antes e depois de uma formação, não controlado, em amostra de conveniência. Foi realizado sob o parecer favorável da Comissão de Ética da Administração Regional de Saúde do Centro.
O recrutamento dos participantes foi realizado através da divulgação do estudo de investigação com recurso a listas de emails e redes sociais, entre 28/junho e 19/julho/2021. Ao divulgar a formação realizou-se uma descrição sucinta da temática e da importância da ação de formação sobre PCLF na MGF. Foi também enviado um link para o formulário de inscrição. A amostragem a atingir foi calculada através do endereço web da ferramenta Raosoft Sample Size Calculator, tendo sido obtido um valor mínimo de 68 participantes, com um intervalo de confiança de 90% e margem de erro de 10%. O critério de inclusão deste estudo era ser médico especialista ou interno de formação específica de MGF. No formulário de inscrição constava o consentimento informado, que foi aceite por todos os elementos participantes.
Os participantes foram informados que não existiria qualquer recompensa ou pagamento monetário pela sua participação e que não se tratava de um estudo financiado. Foi salientado o caráter voluntário da participação e garantida a ausência de prejuízos para o abandono a qualquer momento ou não aceitação de participação. A confidencialidade e o anonimato das respostas submetidas e da identificação dos participantes foram atestados, segundo as normas da Comissão Nacional de Proteção de Dados. Os participantes codificaram a sua identidade através das duas primeiras letras do seu apelido e os dois últimos dígitos do cartão de cidadão, de forma a ser possível uma correspondência entre os questionários obtidos no primeiro momento e no segundo, assim como a não duplicação de dados.
Os formulários foram elaborados pelas investigadoras e aplicados em formato digital através da plataforma Google Forms. No formulário de inscrição constava uma pequena introdução ao tema, o consentimento informado, o email para exclusivos efeitos de envio de certificado de participação e de comunicações referentes à formação (nomeadamente link de acesso à plataforma antes da formação e pdf da apresentação enviado posteriormente à formação), a confirmação da situação profissional como MF e a data mais conveniente para assistir à formação. Procedeu-se à recolha dos dados para o estudo através do autopreenchimento de dois questionários em dois momentos distintos, cujo tempo estimado de preenchimento rondava os quinze minutos. O grupo dos participantes efetuou o preenchimento do primeiro questionário imediatamente antes da formação (momento 1) e o preenchimento do segundo questionário imediatamente após a formação (momento 2).
O questionário aplicado no momento 1 foi elaborado especificamente para este estudo e continha uma sucinta introdução da pertinência do tema nos CSP e encontrava-se dividido em quatro partes classificadas por ordem alfabética de A. Neste questionário foram submetidas 103 respostas.
Na parte A foi realizada a codificação da identidade do participante e foram pedidos dados sociodemográficos dos participantes: sexo, classe etária, condição profissional (especialista ou interno de MGF), qual o ano de internato a frequentar se interno, tipo de instituição onde trabalha e Administração Regional de Saúde (ARS) pertencente.
Na parte B, para efeitos de caracterização da amostra, pretendeu-se perceber qual o grau de satisfação e de autoperceção de conhecimentos sobre CLF. Para isso foi pedida uma quantificação do interesse pessoal e a importância do papel de um MF na área da CLF nas crianças, através de uma escala ordinal tipo Likert (1. Nada importante; 2. Pouco importante; 3. Importante; 4. Bastante importante; 5. Muito importante). Foi também usada uma escala ordinal tipo Likert para avaliar o grau de satisfação relativo à: formação universitária e pós-universitária na área da PCLF, capacidade para avaliar, detetar e acompanhar e informar os pais sobre PCLF e a perceção da adequação da escala Mary Sheridan como instrumento de avaliação para deteção de PCLF foi também avaliada. Foi questionada, através da seleção de respostas de escolha múltipla, qual a atitude tomada perante a deteção de PCFL.
Para determinar a autoperceção de conhecimentos foram aplicadas frases com sinais de alarme para algumas idades, em que cada MF deveria classificar qual a dificuldade da identificação dos mesmos (sem dificuldade, dificuldade ligeira, dificuldade moderada, muita dificuldade, dificuldade máxima). Foi ainda questionada a frequência de utilização de determinadas fontes de informação para identificação de eventuais PCLF (nunca, raramente, às vezes, quase sempre, sempre).
Na parte C, ainda para caracterização das práticas da amostra, foi averiguada a frequência de recomendação aos pais de determinadas estratégias e atividades promotoras de comunicação, linguagem e de desenvolvimento nas crianças (nunca, raramente, às vezes, quase sempre, sempre).
Na parte D foi realizada a avaliação de conhecimentos com questões elaboradas pelas autoras a partir das áreas identificadas por perita na área e médica de família, tendo sido por elas revistas e pré-testadas por duas médicas de família para aferição da compreensibilidade. Os parâmetros avaliados foram selecionados com base na Escala de Avaliação de Desenvolvimento de Mary Sheridan Modificada e Rombert.6 Esta parte foi comum ao questionário aplicado no momento 1 e ao questionário aplicado no momento 2, pelo que foi utilizada como ferramenta de avaliação de conhecimentos adquiridos na formação. Consistiu na classificação como verdadeiro ou falso, sem recurso a qualquer meio de informação, de vinte itens que abordavam atitudes, comportamentos e sinais de alarme para determinada idade chave do desenvolvimento infantil.
A intervenção consistiu na aplicação de uma formação online, através da plataforma Zoom, com um programa orientado para definição de conceitos de CLF e aplicação a casos clínicos, utilizando a votação pelos formandos para a tornar mais interativa (Anexo IV). Foram resolvidos cinco casos: o primeiro caso iniciava-se com “E quando falha a comunicação?” e pretendia estudar as perturbações da comunicação; o segundo caso tinha como problema “Ele compreende tudo, mas não fala…” e o seu intuito era analisar as perturbações da linguagem; os últimos três casos tinham como objetivo estudar as perturbações da fala e intitulavam-se: “O João é um sopinha de massa!”, “Dr., ele ainda não diz os R!” e “Ele apanhou um susto e a partir daí ficou gago”. A formação foi desenhada tendo em conta as limitações que os profissionais sentem no seu quotidiano nas consultas de saúde infantil, considerando a experiência clínica das formadoras. Foram dadas estratégias adequadas para os MF detetarem e orientarem estas situações, atendendo ao contexto laboral e aos serviços e respostas existentes. Este curso virtual foi realizado em duas oportunidades temporais escolhidas no formulário de inscrição pelos participantes - 15 e 20/julho/2021, em horário pós-laboral, com uma duração total de uma hora e trinta minutos e com emissão de certificado de participação (Anexo V). Esta formação teve como objetivo uma melhoria dos conhecimentos dos MF sobre CLF e aumento da confiança para os utilizar.
O questionário aplicado após o curso virtual dividiu-se em duas partes. A parte A foi coincidente com a Parte D do questionário aplicado no primeiro momento. Na parte B foi questionada a opinião dos participantes quanto à formação, através de cinco questões. As primeiras quatro foram respondidas através de uma escala tipo Likert (sendo 1=nada e 5=totalmente), em que se questionava se consideravam que tinham sido atingidos os objetivos a que as investigadoras se propuseram e as expectativas do formando, o impacto da formação nos conhecimentos e capacidades da confiança do próprio nas consultas de saúde infantil e juvenil. Foi colocada uma pergunta aberta de resposta opcional sobre apreciações e sugestões à formação. Neste questionário obteve-se um total de 74 submissões.
Após a correspondência e eliminação de submissões duplicadas através da codificação da identidade obteve-se um total de 68 participantes que responderam nos dois momentos.
A análise estatística foi efetuada com recurso ao programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), v. 26 para MacOS e organizados no programa Microsoft Excel. Nas análises descritivas foram calculadas médias (M), desvios-padrão (DP), frequências (n) e percentagens (%), conforme a natureza das variáveis. Na avaliação do viés de seleção (diferenças na amostra inicial e final) foi utilizado o teste qui-quadrado ou, em alternativa, o teste de Fisher. Para avaliar a evolução da proporção de respostas corretas após a formação foi utilizado o teste McNemar. O nível de significância considerado foi de 0,05.
Resultados
Tratando-se de um estudo de intervenção, em que foram observados num primeiro momento indivíduos que não participaram no segundo momento do estudo, foi primeiramente efetuada uma comparação da amostra inicial e final para avaliação do potencial viés de seleção, com base nas variáveis da idade, categoria profissional, instituição e ARS. Não foram detetadas diferenças estatisticamente significativas entre os médicos que responderam apenas a um questionário e os que responderam aos dois questionários (antes e depois da intervenção) ao nível da idade, categoria profissional e ARS. Houve apenas uma diferença entre os grupos: os médicos que responderam aos dois questionários trabalhavam mais em USF modelo B (57,4%), ao passo que os que responderam apenas ao primeiro exerciam mais as suas funções em USF modelo A (57,1%) (p=0,004).
Considerando as 68 respostas válidas, todos os profissionais avaliados foram mulheres. A categoria de idade mais frequente foi 26-30 anos (n=27; 39,7%), seguida por 31-35 anos (n=20; 29,4%), 36-40 anos (n=13; 19,1%). Acima de 40 anos constavam da amostra oito médicas (11,8%). Metade das médicas eram especialistas e as restantes internas de formação específica. A distribuição de frequência do ano de internato foi de 12 (35,3%) médicas no primeiro ano, seis (17,6%) no segundo ano, seis (17,6%) no terceiro ano e quatro (29,4%) no quarto ano. A ARS Centro foi a mais representada, com 50% das médicas (Tabela 1).
Caracterização da amostra: satisfação, autoperceção de conhecimentos, fontes de informação e frequência de recomendação de estratégias
O grau de satisfação das 68 médicas sobre os conhecimentos e capacidades em CLF foi tendencialmente baixo. A média das pontuações de todas as respostas foi inferior a 3 (numa escala de 1-5), particularmente na formação académica e universitária (M=1,88; DP=0,84) e na formação pós-universitária (M=2,07; DP=0,85) (Tabela 2).
O interesse pessoal das médicas na área da CLF era elevado. Apenas 1,5% das respostas revelaram pouco interesse, havendo muito interesse em 35,3% e bastante interesse em 45,6% dos casos.
A distribuição das respostas dadas à importância do MF no acompanhamento da CLF nas crianças foi similar à questão anterior, com apenas 1,5% das médicas a considerar que é pouco importante, 60,3% muito importante e 29,4% bastante importante.
A maioria das médicas entendeu que os critérios nomeados na Escala de Mary Sheridan Modificada eram, pelo menos, adequados (78,9%).
Quando detetam crianças em risco/com perturbações da comunicação e linguagem, as médicas de família disseram ter como práticas principais referenciar para consulta hospitalar (66,2%) ou outros profissionais de saúde (60,3%). O encaminhamento para o Sistema de Intervenção Precoce na Infância (SNIPI) surge em terceiro lugar com 39,7%. Seguem-se as informações dadas aos familiares (36,8%), acompanhamento em consultas posteriores (30,9%) e, por fim, outras práticas (7,4%).
Na Tabela 3 são apresentados os resultados relativos à autoperceção que as médicas têm sobre o conhecimento em perturbações de comunicação e linguagem baseados na Escala de Desenvolvimento de Mary Sheridan Modificada. Numa perspetiva geral, a autoperceção das médicas era positiva. A maioria das respostas concentrou-se nos níveis sem dificuldade e dificuldade ligeira. As maiores dificuldades identificadas prenderam-se com a avaliação da hiperatividade e dificuldade de concentração e perturbações de comportamento, tendo os níveis de dificuldade moderada, muita dificuldade ou incapacidade atingido 54,3% e 54,5%, respetivamente.
As fontes de informação mais frequentemente utilizadas para identificação de crianças com PCLF (Tabela 4) eram os conhecimentos adquiridos ao longo da prática profissional, com 64,7% de respostas distribuídas pelos níveis quase sempre (45,6%) e sempre (19,1%). Seguiu-se a transmissão de informação e conhecimentos entre profissionais de saúde, ensino ou familiares, com 54,4% de respostas alocadas nos níveis acima referidos (44,1% e 10,3%).
Na Tabela 5 encontram-se os resultados de frequência de recomendação de estratégias e algumas atividades promotoras de comunicação, linguagem e desenvolvimento fornecidas aos pais, sugeridas por Rombert.6 Considerando frequências de recomendação que ocorrem quase sempre ou sempre, as estratégias que se destacam são “incentivar que aprenda a pedir quando quer algo, verbalizando-o” (83,8%), “incentivar a pronunciar palavras corretamente” (75,0%) e “estimular ordens simples, dar estímulo positivo após a realização destas” (72,1%). Entre as recomendações menos frequentes estão: “pedir para que explique o significado de palavras simples” (35,3%) e “produzir sons suaves com chocalhos, caixa de música e observar a sua atenção” (36,8%).
Impacto da intervenção nos conhecimentos
Os resultados da avaliação do impacto da formação encontram-se na Tabela 6. Foram encontradas melhorias estatisticamente significativas em oito dos parâmetros avaliados, após a formação. A maior subida registada da proporção de respostas corretas ocorreu no conhecimento sobre “perante uma criança com gaguez, ajuda dizer: ‘Tem calma, respira fundo, fala devagar’”, em que a proporção de respostas corretas subiu de 41,2% para 91,2% (p<0,001). Seguiu-se a frase: “Algumas crianças começam a gaguejar após terem apanhado um susto”, em que a proporção de respostas corretas subiu de 64,7% para 94,1% (p<0,001). Houve também acentuada melhoria nos conhecimentos sobre “antes dos 2 anos não existe benefício para a criança em iniciar terapia da fala”, com uma subida da proporção de respostas corretas de 69,1% para 94,1% (p<0,001), e “uma criança com 5 anos que não consiga dizer o R nas palavras deve ser encarada com um sinal de alarme”, com subida da proporção de respostas corretas de 50,0% para 75,0% (p=0,004).
Foram ainda identificadas melhorias estatisticamente significativas no conhecimento sobre “quando a criança emite uma palavra de forma errada devemos repetir a palavra como a criança disse e posteriormente dizer a palavra correta”, em que a proporção de respostas corretas subiu de 66,2% para 86,8% (p=0,004), e ainda sobre “uma criança com 3 anos que gagueja constantemente pode ser considerada como gaga”, com uma subida da proporção de respostas corretas de 79,4% para 98,5%, sobre “uma criança com 4 anos já deve ser capaz de dizer o seu nome completo, a idade, o sexo e habitualmente a morada”, em que a proporção de respostas corretas subiu de 77,9% para 92,6% (p<0,001), e ainda “uma criança com 6 meses que não vocalize deve ser encarada a presença de um sinal de alarme”, com a proporção de respostas corretas subir de 82,4% para 94,1% (p=0,039).
Discussão
A caracterização da amostra deste estudo mostrou que as inquiridas não se encontravam satisfeitas com a sua formação, capacidades e competências referentes ao desenvolvimento das crianças, o que vem contrariar dados da literatura em que os médicos se mostravam maioritariamente agradados com o seu desempenho. 12 Uma possível justificação para este dado é o facto das médicas da amostra se encontrarem motivadas a realizar uma formação devido à sua menor satisfação com capacidades prévias. Por outro lado, as participantes revelaram elevado interesse pessoal na área e demonstraram valorizar a importância do seu papel no acompanhamento das crianças, em que 60,3% classificou como “muito importante”. Poder-se-á inferir que estes dados indicam que as médicas da amostra pretendem ser mais instruídas na área do desenvolvimento infantil de forma a aprimorar o seu desempenho, pois a formação que possuem até ao momento lhes parece insuficiente face às necessidades de uma consulta de saúde infantil.
As médicas disseram utilizar poucos folhetos informativos e publicações científicas como fontes de informação auxiliares, sendo que o primeiro recebeu como reposta “nunca” e “raramente” quanto à frequência de utilização em 60,3% de respostas. Pensa-se que este facto se prende com a escassez de folhetos informativos disponíveis na área, assim como de trabalhos científicos publicados recentemente que estudem as PCLF nas crianças aplicadas à MGF.
Quando inquiridas acerca da dificuldade em detetar determinados sinais de alarme relativos ao desenvolvimento, expressos na Escala Mary Sheridan Modificada, as médicas admitiram uma maior dificuldade na avaliação da hiperatividade, dificuldade de concentração e perturbações do comportamento. Esta afirmação é um dado preocupante pois a perturbação de hiperatividade e défice de atenção é uma perturbação comportamental cuja prevalência está a aumentar e que acarreta repercussões na vida adulta evitáveis por um diagnóstico temporalmente oportuno. 18-19 Os CSP devem ser os responsáveis pela deteção, acompanhamento e tratamento destas crianças, 18,20-21 pelo que se deve pensar num investimento em treino de competências na deteção destes parâmetros.
As respostas dadas em relação à frequência de recomendação de estratégias promotoras do desenvolvimento mostraram resultados bastante diversificados. O ensino de estratégias promotoras do desenvolvimento comunicativo permitirá aos pais fomentar as competências de comunicação em contexto familiar, alargando a abrangência da intervenção. Deve ser uma capacitação em que o caráter individual de cada família deve ser respeitado e entendido, porque cada uma tem as suas crenças, valores e necessidades próprias. 6 Aconselhar o incremento da comunicação não verbal, como incentivar o uso de expressões faciais, mímica corporal e os gestos concomitantemente com a fala é fundamental para a estimulação das competências comunicativas. 6 No entanto, verifica-se que apenas 45,6% da amostra o faz “quase sempre” ou “sempre”. Uma forma eficaz de transmitir todas estas informações aos pais e melhorar este resultado seria a elaboração de folhetos destinados a cada idade, com estratégias adequadas para a promoção do desenvolvimento que pudessem ser partilhados nos CSP. Estimular o desenho da figura humana, com 44,1% das respostas para “quase sempre” e “sempre”, é uma atividade que se deve iniciar por volta dos quatro anos e que a vai acompanhar progressivamente ao longo do crescimento, quer em contexto social ou educacional. 22 É uma atividade que se repete e adquire cada vez mais pormenor, estimulando as competências linguísticas, sociais, cognitivas e a motricidade fina e global. A evolução do desenho representa marcos importantes nas capacidades das crianças, sendo quase incompreensível esta lacuna nas recomendações médicas aos pais. A recomendação da explicação de conceitos simples, conforme preconizado na consulta dos cinco anos, foi a estratégia que contou com uma menor pontuação das avaliadas (35,3% responderam que o faziam “quase sempre” ou “sempre”). A importância da realização desta atitude prende-se com incentivar a capacidade linguística da criança, fazendo entender que existem variadas formas de se expressar quanto à mesma coisa, assim como perceber se a criança adquiriu o significado correto dessa mesma palavra. 6
As médicas revelaram que referenciavam mais para a consulta hospitalar, com o SNIPI em terceiro lugar. Este resultado está de acordo com um estudo realizado na área; contudo, o encaminhamento para o SNIPI é uma das recomendações do PNSIJ. 12 Apesar de um estudo realizado em Portugal demonstrar que os médicos referenciam maioritariamente PCLF para a terapia da fala e consideram esta área importante, 25 as respostas iniciais da presente amostra revelam que as médicas tinham pouco conhecimento acerca da intervenção dos terapeutas da fala. A maioria considerava que não existia benefício em iniciar terapia da fala antes dos dois anos. Contudo, a terapia da fala pode ser iniciada em indivíduos de qualquer idade com ou sem patologias diagnosticadas. É importante destacar o papel de uma equipa multidisciplinar integrativa de MF, terapeutas da fala e outros profissionais de saúde, onde cada função dentro da equipa e áreas de atuação seja conhecidas pelo outro, de modo a maximizar a contribuição para os pacientes.
Este estudo mostrou uma melhoria em alguns dos conhecimentos das profissionais após a intervenção formativa. Entre as oito questões que apresentaram uma melhoria estatisticamente significativa, duas delas constavam dos parâmetros da Escala Mary Sheridan Modificada. Referiam-se à ausência de vocalização aos seis meses e respetiva deteção como sinal de alarme e à capacidade de uma criança de quatro anos para saber o seu nome, idade, sexo e morada - atitude esperada para a idade. Este resultado vem reforçar a importância de fomentar a produção de sons e brincadeiras de interação, como a produção de sons suaves e observação da reação/atenção da criança, que assumiu uma frequência de recomendação como “quase sempre” e “sempre” de apenas 36,8%. Estas brincadeiras de interação estimulam várias áreas cognitivas da criança, incluindo a expressão e compreensão de emoções, sendo importante maximizar o valor obtido. 23 A melhoria dos resultados nestas duas questões vem demonstrar que, apesar de 52,9% das MF ter considerado esta escala como adequada, existe a necessidade de renovar estes conceitos. Isto é importante para que as crianças sejam referenciadas no momento da deteção para o local correto.
As três questões colocadas sobre gaguez sofreram todas uma melhoria, o que revela a desinformação de base das médicas acerca deste tópico. Com a intervenção notou-se uma melhoria nos conhecimentos sobre o diagnóstico, a etiologia e aconselhamento. As médicas ainda demonstravam acreditar em crenças e mitos enraizados na sociedade. 6,23 Inicialmente, 35,3% das inquiridas pensava que a etiologia da gaguez advinha de um susto, tendo reduzido favoravelmente para 4,4% após a formação. Da mesma forma, 58,8% considerava, antes da formação, que um dos melhores conselhos para a criança passaria por recomendar que se acalmasse durante o discurso, o que na verdade consciencializa a criança da sua gaguez, gerando ainda mais ansiedade. 6 Depois da formação, apenas 8,8% das médicas continuava com esta crença. O MF representa um papel valioso nesta perturbação da fluência. Deve tranquilizar os pais nas idades em que é suposto ser disfluente e dar estratégias que promovam a fluência, sem nunca desprezar sinais de alarme que impliquem outra atitude. Por outro lado, nas situações de gaguez instituída deverá referenciar, sempre com uma abordagem empática ao seu doente, que é submetido constantemente a episódios de pressão social e frustração. 23-24 A gaguez seja estudada pelos médicos para adquirirem capacidades clínicas, o que na realidade não acontece nos dias de hoje, imperando investir nesta formação.
As participantes apresentaram melhoria no reconhecimento de sinais de alarme, como a incapacidade para dizer o “R” numa criança de cinco anos. Antes da formação, metade respondeu corretamente e após a formação obtiveram-se 75% de respostas corretas. Permite inferir que as crianças com esta perturbação serão mais adequadamente referenciadas pela amostra no futuro. Outro conhecimento que adquiriram foi o de recomendar aos pais que quando uma palavra é proferida de forma errónea, o correto é dar o modelo correto e nunca repetir a palavra errada, havendo um aumento de 20,6% de respostas corretas. 6 As áreas do conhecimento que não tiveram melhoria significativa tinham, na sua maioria, níveis elevados de respostas corretas iniciais. As três afirmações que tinham menos conhecimento inicial que não melhorou significativamente eram relativas às aptidões das crianças aos dezasseis e vinte meses e ao encaminhamento de crianças de cinco anos com troca de sons, conhecimento que, ainda assim, melhorou, mesmo que não significativamente, talvez tendo sido menos enfatizado na formação feita, podendo merecer melhoria nestas áreas.
O estudo apresentou algumas limitações. A dimensão da amostra era relativamente reduzida, ainda que tenha atingido o número calculado como representativo e tenha tido representatividade nacional. Por outro lado, a amostra apenas contou com elementos do sexo feminino, sendo importante estudar o sexo masculino. Outra limitação a apresentar foram os temas abordados na formação que assumiram um caráter muito resumido do espectro das PCLF devido à duração da mesma, que foi assim decidida para ter uma maior adesão. Com a grande carência de conhecimentos nesta área é importante que as formações implementadas sejam mais completas e repetidas no tempo. Há ainda a considerar o viés de voluntarismo, pois apenas participaram neste estudo indivíduos interessados no tema, e o viés de seleção, uma vez que a divulgação foi realizada pelas redes sociais e listas de emails, deixando de fora médicos pouco utilizadores da Internet.
Conclusão
Os resultados do presente estudo demonstraram uma melhoria significativa em oito dos vinte parâmetros avaliados nos conhecimentos das médicas da amostra após a implementação da formação. Como consequência, poderá advir uma incrementação da confiança das médicas na atuação perante uma criança com PCLF, que lhes permitirá diagnosticar, referenciar e acompanhar crianças com PCLF, o que seria interessante estudar a médio prazo. É imperativo investir na formação pré e pós-graduada destes profissionais de saúde, o que se justifica pelo défice de informação que prevalece na MGF.
Sugere-se melhoria desta formação, nomeadamente nos pontos que não foram melhorados em termos de conhecimentos, e reavaliação do seu impacto, procurando formas de captar uma amostra mais completa e diversificada, nomeadamente promovendo cursos e questionários presenciais. Será importante fazer estudos para aferir as necessidades percecionadas pelos médicos, ajudando a ajustar a formação, e ainda estudos que avaliem o impacto deste tipo de intervenções em termos práticos nas atitudes clínicas, referenciações adequadas e atempadas para terapia da fala e melhoria clínica nas crianças com PCLF.
Contributo dos autores
Conceptualização, CA; metodologia, CA, SM e IR; validação, CA, SM e IR; análise formal, CA, SM e IR; investigação, CA; recursos, IR; curadoria de dados, CA, SM e IR; redação do draft original, CA; revisão, validação e edição do texto final, CA, SM e IR; visualização, IR; supervisão, IR; administração do projeto, IR.





















