Introdução
Ao longo da história, muitas dificuldades foram vencidas para a valorização da enfermagem, como a criação de faculdades próprias, a profissionalização das atividades exercidas e o reconhecimento social (Marinelli et al., 2017). No Brasil, os profissionais de enfermagem (que engloba auxiliares de enfermagem - formação extinta atualmente, no Brasil -, técnicos de enfermagem - quem cursa o ensino técnico -, e enfermeiros, quem cursa o ensino superior) constituem a maior categoria profissional no campo da saúde, presente em todos os municípios e fortemente inserida no Sistema Único de Saúde (SUS) (Machado, 2017). O país conta, atualmente, com mais de dois milhões e meio de profissionais de enfermagem (Conselho Federal de Enfermagem [COFEN], 2022).
Não obstante as conquistas dessa categoria profissional e seu desenvolvimento em território nacional e internacional, ainda há diversos desafios para serem ultrapassados. Este artigo aborda um deles, os Transtornos Mentais Comuns (TMC).
TMC constituem um conjunto de sintomas não psicóticos, habitualmente relacionados a quadros subclínicos de ansiedade, depressão e estresse (Senicato, Azevedo e Barros, 2018), que podem gerar consequências sérias à qualidade de vida dos indivíduos. Tal agravo, para os profissionais de enfermagem, que estão 24 horas por dia ao lado do paciente e que o objeto de seu trabalho são vidas humanas, pode ter consequências ainda piores.
Numa investigação conduzida em uma unidade de internação de pacientes oncológicos de um hospital de grande porte no estado de São Paulo, Brasil, constatou-se que 27,6% dos profissionais de enfermagem apresentavam TMC (Oliveira et al., 2018). Nesse estudo também foram analisadas características sociodemográficas (p. ex., estado civil), condições de saúde (p. ex., acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico) e laborais (formação e tempo de serviço). Percentual semelhante (25,7%) de TMC foi encontrado no estudo de Sousa et al. (2019), realizado em um hospital psiquiátrico no Nordeste brasileiro. Na investigação os autores associaram TMC com variáveis sociodemográficas e laborais e constataram associação estatisticamente significativa entre maiores prevalências de TMC e não possuir tempo para lazer, apresentar quatro ou mais problemas de saúde e satisfação com o sono. Mais recentemente, Assunção e Pimenta (2020) identificaram prevalência de 27,2% de TMC nos profissionais de enfermagem da rede pública de saúde em uma capital brasileira. Dentre as variáveis analisadas, os TMC se associaram negativamente com a satisfação com o trabalho.
Apesar desses resultados alarmantes, a quantidade de pesquisas a respeito de TMC em profissionais de enfermagem brasileiros ainda é insuficiente, regionalizada e focada em determinados setores da atividade profissional. No que se refere ao último aspecto, cumpre destacar que a enfermagem é composta por diversas áreas de atuação e níveis de atenção à saúde, ou seja, há profissionais exercendo funções que vão desde atividades administrativas às assistenciais; em cada uma delas, a natureza das ações é diferente (Machado, 2017) e, portanto, é possível que influenciem de forma particular na prevalência dos TMC.
Um grupo que tem sido menos investigado é dos profissionais de enfermagem que atuam nos Centros de Materiais e Esterilização (CME); locais onde se realiza a esterilização ou desinfecção dos materiais e/ou instrumentais utilizados pelos profissionais de saúde. Nesses locais estão presentes tanto auxiliares e técnicos de enfermagem quanto enfermeiros. Aos primeiros são atribuídas atividades de menor complexidade, como limpeza do material e operação das máquinas de esterilização, e aos enfermeiros, atividades de maior complexidade, por exemplo atividades de supervisão e controle de qualidade.
A partir de uma revisão integrativa sobre transtornos mentais associados ao trabalho de profissionais de enfermagem, Fernandes, Soares e Silva (2018) concluíram ser necessário estudos mais amplos e com análise criteriosa sobre a relação entre saúde psíquica e trabalho. Para os autores as pesquisas devem investigar as atividades desenvolvidas pelas diversas categorias de enfermagem, como técnicos e enfermeiros, as características sociodemográficas (p. ex., sexo) e ocupacionais (local de trabalho, atividade desempenhada etc.), e as condições de saúde (p. ex., estresse e depressão) e de trabalho (jornadas de trabalho, remuneração e quantidade de vínculo etc.) e relacioná-las a transtornos psíquicos.
Tendo em vista o contexto apresentado, este estudo teve como objetivo geral identificar a prevalência de TMC em profissionais de enfermagem dos CME da Secretaria Estadual de Saúde do Distrito Federal (SES/DF). Especificamente, almejou-se analisar a relação entre TMC e características sociodemográficas e laborais dos participantes.
Metodologia
Trata-se de uma pesquisa quantitativa, descritiva e transversal que, para sua realização, participaram os funcionários das regiões de saúde oeste e sudoeste da SES/DF. Ambas as regiões são compostas por dois CME cada, totalizando quatro Centros, sendo todos em Hospitais Regionais.
A escolha por essas duas regiões de saúde foi pautada, sobretudo, no perfil demográfico. Ceilândia, Samambaia e Taguatinga constituem, respectivamente, a primeira, a segunda e a quarta região administrativa mais populosa de Brasília (Jatobá, 2017). Por serem geograficamente próximas, fazendo divisa territorial uma com a outra, essas regiões constituem o maior aglomerado de pessoas do Distrito Federal (DF). Consequentemente, nessas regiões encontra-se a maior carga horária e produtividade dos CME dos hospitais da SES/DF.
Participantes
O critério de inclusão adotado neste estudo foi ser profissional de enfermagem que trabalha em um dos CME das regionais de saúde Oeste e Sudoeste do DF. A partir disso, foram excluídos aqueles que durante o período de coleta de dados estavam de férias, folgas previstas pela legislação brasileira, ou outro tipo de afastamento legal. Ao término do estudo foram entrevistados 105 participantes.
Instrumentos
Foram utilizados dois instrumentos para a coleta de dados. O primeiro foi um questionário desenvolvido pelos autores, que teve como base as sugestões de Fernandes et al. (2018), apresentadas na Introdução. Ele foi composto por 15 itens objetivos. Desses, sete contemplaram informações sociodemográficas, como gênero, idade e situação conjugal, e oito abordam questões laborais, como formação, carga horária semanal e turno de trabalho.
O segundo instrumento foi o Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20) (World Health Organization [WHO], 1994), que é utilizado para rastreamento de TMC não psicóticos. Ele é composto por 20 questões que devem ser respondidas de forma dicotômica, com “sim” ou “não”. Para cada resposta sim, soma-se um ponto, e para cada resposta não, computa-se zero. O escore total é obtido por meio da soma de todos os itens e oscila, portanto, entre zero (nenhuma probabilidade) e 20 (extrema possibilidade). Independente de gênero, o SRQ-20 apresentou sensibilidade de 83% e especificidade de 80% ao se considerar 7/8 como ponto de corte (Gonçalves, Stein e Kapczinski, 2008). Assim, escores totais iguais ou superiores a oito são considerados indicadores de TMC.
O coeficiente de consistência interna da versão brasileira do SRQ-20, avaliado por meio do α de Cronbach, foi de 0,80. Em geral, o instrumento apresenta desempenho aceitável para avaliar TMC em âmbito ocupacional (Gonçalves et al., 2008). A consistência interna do SRQ-20 neste estudo, foi de α = 0,83 (I.C. 95% 0,78 - 0,88).
Procedimento
Primeiramente, foi realizado contato com a SES/DF para explicar sobre o estudo, bem como a respeito de seus riscos e benefícios. Após esclarecidas as dúvidas, foi concedida autorização para a realização da pesquisa e assinados os Termos de Anuência. Em seguida, esta investigação foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Católica de Brasília (UCB) e da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (FEPECS). Após sua aprovação (número do parecer omitido a fim de assegurar a avaliação duplo cega), deu-se início à pesquisa.
No local da aplicação, foi realizada uma reunião com os profissionais presentes a fim de explicar sobre o funcionamento do estudo, a possibilidade de interromper a participação a qualquer momento, entre outros aspectos importantes. Foi destacado que a pesquisa não tem objetivo de avaliação individual e que a recusa em participar não implicaria em qualquer penalidade para o profissional.
Aqueles que optaram voluntariamente pela participação, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e responderam aos instrumentos. Eles foram aplicados em forma de entrevista individual, no local de trabalho do participante, em momento indicado por eles, a fim de não prejudicar suas atividades. Esclarece-se que apesar de os instrumentos poderem ser autopreenchidos, optou-se pela coleta em forma de entrevista individual para assegurar que todos os itens fossem compreendidos e respondidos (Furtado et al., 2010). As perguntas foram lidas e não houve interferência do pesquisador nas respostas. A duração para o preenchimento dos instrumentos foi de cerca de 15 minutos.
Análise dos dados
Os dados foram analisados por meio do programa estatístico IBM SPSS (Statistical Package for the Social Sciences) 23, 2015. Foram conduzidas análises descritivas e inferenciais. No primeiro caso, a análise descritiva das variáveis qualitativas foi realizada por meio de frequência (n) e porcentagem (%), e das variáveis quantitativas por meio de média, mediana, desvio padrão (DP), mínimo, máximo e amplitude interquartil.
Com relação à estatística inferencial, conduziu-se, inicialmente, o teste de normalidade da distribuição de dados das variáveis quantitativas (teste Kolmogorov-Smirnov). Como houve rejeição da hipótese nula de normalidade dos dados de todas as variáveis quantitativas, foram utilizados testes não paramétricos para as associações que envolviam essas variáveis.
Na análise de associação o escore total (zero a 20 pontos) do SRQ-20 foi categorizado em “sem indicativo de TMC” (zero a sete pontos) ou “com indicativo de TMC” (oito ou mais pontos) e associado às variáveis qualitativas por meio do teste Qui-quadrado de Pearson com correção de continuidade (para tabelas 2 x 2) ou com simulação de Monte Carlo (para tabelas maiores). Para tabelas 2 x 2 sem células vazias foi possível calcular a razão de chance com o respectivo intervalo de confiança de 95%. O escore total do SRQ-20, enquanto variável quantitativa, foi associada a variáveis qualitativas por meio do teste U de Mann-Whitney (para variáveis com apenas duas categorias) ou do teste de Kruskal-Wallis (para variáveis com três ou mais categorias). Quando o teste Kruskal-Wallis apresentou resultado significativo, foi utilizado o teste post-hoc de Dunn-Bonferroni (aos pares).
Foi utilizada a correlação não paramétrica de Spearman para verificar a relação entre variáveis quantitativas e o escore total do SRQ-20. Ressalta-se que o nível de significância utilizado em todo estudo foi de 5%.
Resultados
Dos 105 participantes, contatou-se que a maioria são pessoas do gênero feminino (83,8%), casadas (49,5%) e pardas (50,5%) (Tabela 1). Mais de 60% possuem, pelo menos, o ensino superior completo e aproximadamente 80% recebem quatro salários-mínimos (R$ 4.400,00) ou mais.
Tabela 1 Análise descritiva das características sociodemográficas de profissionais de enfermagem que pertencem ao quadro funcional dos Centros de Material e Esterilização da Secretaria Estadual de Saúde do Distrito Federal.
| Variáveis | n | % | ||
|---|---|---|---|---|
| Gênero | Masculino | 17 | 16,2 | |
| Feminino | 88 | 83,8 | ||
| Estado civil | Solteiro | 26 | 24,8 | |
| Casado | 52 | 49,5 | ||
| Divorciado | 23 | 21,9 | ||
| Viúvo | 4 | 3,8 | ||
| Escolaridade | Médio completo | 17 | 16,3 | |
| Ensino técnico | 12 | 11,5 | ||
| Superior incompleto | 10 | 9,6 | ||
| Superior completo | 35 | 33,7 | ||
| Pós-graduação incompleta | 2 | 1,9 | ||
| Pós-graduação completa | 28 | 26,9 | ||
| Não respondeu | 1 | |||
| Renda (em salários-mínimos) | 1 a 2 | 1 | 1,0 | |
| 2 a 4 | 20 | 19,0 | ||
| 4 a 6 | 55 | 52,4 | ||
| 6 a 10 | 24 | 22,9 | ||
| > 10 | 5 | 4,8 | ||
A média de idade dos participantes foi de 47,08 anos (DP=8,99; 26-70 anos), mediana de 46,50 anos e amplitude de 12. Com relação ao número de filhos, a média encontrada foi de 1,66 (DP=1,21; 0-4 filhos), sendo dois a mediana e amplitude.
No que se refere às variáveis relacionadas ao trabalho, contatou-se que a carga horária semanal média de trabalho da amostra foi de 38,21 horas (DP=7,55; 20-60 horas), sendo 40 horas a mediana e zero a amplitude. Quase todos os profissionais são servidores estatutários (99%; n=104), isto é, são trabalhadores do Estado do Distrito Federal, sendo que somente um (1,0%) tem contrato por Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ou seja, acordo firmado entre um contratante e um contratado com base nas regras previstas na lei trabalhista.
A partir da Tabela 2 é possível observar que a maioria dos participantes mora a uma distância igual ou inferior a 20 km (66,3%) do local de trabalho, 49,5% trabalham há mais de seis anos nos CME, sendo o turno da manhã o mais frequente (45,2%). Quase todos os profissionais são servidores estatutários (99%) (trabalhadores do Estado), de cargos de nível médio e/ou técnico (92,4%). Esclarece-se que cerca de 72% possuem apenas um vínculo empregatício e 41% afirmaram realizar trabalho por turno definido (TPD), o equivalente a hora extra em instituições privadas (Tabela 2). Entre esses, a quantidade média em horas de TPD foi 33,71 (DP=15,64; 12-96 horas), mediana de 30 e amplitude de 18.
Tabela 2 Análise descritiva das variáveis laborais de profissionais de enfermagem que pertencem ao quadro funcional dos Centros de Material e Esterilização da Secretaria Estadual de Saúde do Distrito Federal.
| Variáveis | n | % | |
|---|---|---|---|
| Distância do trabalho (Km) | Menor que 10 | 41 | 39,4 |
| 10 e 20 | 28 | 26,9 | |
| 21 e 30 | 13 | 12,5 | |
| 31 e 40 | 5 | 4,8 | |
| 41 e 50 | 4 | 3,8 | |
| > 50 | 13 | 12,5 | |
| Não respondeu | 1 | - | |
| Tempo de trabalho (anos) | < 1 | 10 | 9,5 |
| 1 e 2 | 8 | 7,6 | |
| 2 e 3 | 15 | 14,3 | |
| 3 e 4 | 12 | 11,4 | |
| 5 e 6 | 8 | 7,6 | |
| > 6 | 52 | 49,5 | |
| Turno | 50% diurno | 12 | 11,5 |
| Diurno | 47 | 45,2 | |
| 50% noturno | 18 | 17,3 | |
| Noturno | 20 | 19,2 | |
| Sem turno definido | 7 | 6,7 | |
| Não respondeu | 1 | - | |
| Duplo vínculo | Sim | 29 | 27,6 |
| Não | 76 | 72,4 | |
| Cargo efetivo | Auxiliar de enfermagem | 9 | 8,6 |
| Técnico de enfermagem | 88 | 83,8 | |
| Enfermeiro | 5 | 4,8 | |
| Chefe | 3 | 2,9 | |
| Realiza TPD | Sim | 43 | 41,0 |
| Não | 62 | 59,0 | |
*TPD= Trabalho por Turno Definido
No que se refere aos cuidados em saúde mental, a maioria afirmou não ter acompanhamento psicológico ou psiquiátrico (73,3%; n=77). Não obstante, 8,6% (n=9) afirmaram fazer acompanhamento psicológico, 10,5% (n=11) psiquiátrico e 7,6% (n=8) os dois tipos de acompanhamento.
Ao considerar a pandemia atual, 51,4% (n=54) dos profissionais entrevistados responderam ter sido diagnosticados com COVID-19. Assim, pouco menos da metade dos profissionais (48,6%; n=51) não contraíram o vírus.
Com relação ao SRQ-20, 76,2% (n=80) dos participantes não apresentaram indicativo para TMC, isto é, tiveram escore de até sete pontos. Os demais (23,8%; n=25) apresentaram indicativo para TMC (pontuação igual ou superior a oito no SRQ-20).
Ao associar a categorização desse instrumento, isto é, ter indicativo ou não de TMC, com as variáveis qualitativas investigadas, observou-se que apenas realizar TPD e ter um acompanhamento psiquiátrico ou psicológico foram significativamente associadas. Participantes que não realizavam TPD (hora extra) apresentaram valores de SRQ-20 significativamente maiores que aqueles que os realizavam. E quem não fazia acompanhamento psiquiátrico ou psicológico apresentou valores de SRQ-20 significativamente menores que os profissionais com algum tipo de acompanhamento ou ambos (Tabela 3).
Tabela 3 Análise de associação entre valores de SRQ-20 e variáveis realizar TPD e ter um acompanhamento psiquiátrico ou psicológico.
| Variáveis | SRQ 20 | |||
|---|---|---|---|---|
| Mediana | Amplitude interquartil | p* | ||
| Realiza TPD | Sim | 3,00 | 6,00 | 0,023 |
| Não | 5,00 | 7,00 | ||
| Acompanhamento psiquiátrico/ psicológico | Não | 3,00 | 4,00 | <0,001 |
| Psicológico | 6,00 | 9,00 | ||
| Psiquiátrico | 8,00 | 5,00 | ||
| Ambos | 9,50 | 4,50 | ||
* teste U de Mann-Whitney (2 categorias) ou teste de Kruskal-Wallis (3 ou mais categorias).
Profissionais de enfermagem classificados sem indicativo de TMC apresentaram 3,62 vezes mais chance de realizar TPD quando comparados aos profissionais classificados com indicativo de TMC. Além disso, aqueles classificados com indicativo de TMC realizam mais acompanhamento psicológico, psiquiátrico ou ambos, se comparados aos não classificados (Tabela 4).
Com relação às variáveis quantitativas investigadas, observou-se que nenhuma foi significativamente relacionada ao SRQ-20.
Tabela 4 Análise de associação entre SRQ-20 categorizado e variáveis “realizar TPD” e “ter um acompanhamento psiquiátrico ou psicológico”
| Variáveis | Total categorizado | Total | p* | RC | I.C. 95% | |||
|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
| Baixo risco | Alto risco | |||||||
| Realiza TPD | Sim | n | 38 | 5 | 43 | 0,015 | 3,619 | 1,237-10,590 |
| % | 47,50 | 20,00 | 40,95 | |||||
| Não | n | 42 | 20 | 62 | ||||
| % | 52,50 | 80,00 | 59,05 | |||||
| Acompanhamento psiquiátrico/ psicológico | Não | n | 67 | 10 | 77 | <0,001 | - | - |
| % | 83,75 | 40,00 | 73,33 | |||||
| Psicológico | n | 5 | 4 | 9 | ||||
| % | 6,25 | 16,00 | 8,57 | |||||
| Psiquiátrico | n | 5 | 6 | 11 | ||||
| % | 6,25 | 24,00 | 10,48 | |||||
| Ambos | n | 3 | 5 | 8 | ||||
| % | 3,75 | 20,00 | 7,62 | |||||
* teste Qui-quadrado de Pearson com correção de continuidade ou simulação de Monte Carlo quando necessário.
Discussão
A maioria dos participantes deste estudo é do gênero feminino, o que se assemelha a grande parte das pesquisas realizadas com profissionais de enfermagem, em geral, e de CME, especificamente (Athanázio et al., 2021; Ribeiro et al., 2019). No que se refere à escolaridade, observou-se que mais da metade da amostra informou ter ensino superior completo ou pós-graduação completa. Tal resultado difere da maioria dos estudos revisados (p. ex., Athanázio et al., 2021; Pereira et al., 2021). Isso parece ser uma característica do DF, uma vez que essa unidade federativa possui legislações que incentivam a qualificação profissional dos seus servidores, com pagamento mensal de gratificação adicionados aos salários (Brasília, 2018).
No quesito renda, evidenciou-se que aproximadamente 80% da amostra deste estudo recebe valores acima de R$ 4.401,00. Esse resultado também diverge dos encontrados em pesquisas com profissionais de enfermagem de outras cidades brasileiras (Matoso e Oliveira, 2019; Teixeira, Silveira, Mininel, Moraes, e Ribeiro, 2019). Isso pode ser explicado, ainda que parcialmente, pelas legislações do Estado do Distrito Federal que incentivam a qualificação profissional por meio da adição de gratificações ao salário, mencionada anteriormente. Além disso, o DF possui a maior renda per capita do Brasil. Em 2021, ela era de R$ 2.513,00, enquanto a média nacional era de R$ 1.367,00 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2021). Acredita-se, pois, que a maior distribuição de renda no DF impacta, também, os profissionais de enfermagem.
Do cargo efetivo desempenhado pelos investigados, mais de 90% encontram-se em cargos de nível médio e/ou técnico, ou seja, trabalham como auxiliar e/ou técnico de enfermagem. Esse resultado é equivalente aos observados na literatura, que evidenciam maior prevalência de profissionais de nível médio e/ou técnico nos CME (Pereira et al., 2021; Ribeiro et al., 2019). Cumpre ressaltar que, no Brasil, o COFEN exige que onde haja auxiliares e/ou técnicos de enfermagem seja obrigatória a presença do enfermeiro, que, reitera-se, é o profissional com nível superior (COFEN, 2018). Esse resultado é, portanto, importante de ser analisado, pois é possível que haja períodos em que os profissionais de nível médio e técnico estejam sem supervisão do profissional de nível superior.
Com relação aos TMC, verificou-se prevalência de 23,8% de participantes com indicativo de TMC. Não foram identificados estudos que investigaram TMC em profissionais de enfermagem que atuassem nos CME, impossibilitando, portanto, a comparação com outras investigações. Contudo, se considerados estudos que identificaram a prevalência de TMC em profissionais de enfermagem em geral (p. ex., Assunção e Pimenta, 2020; Oliveira et al., 2018; Sousa et al., 2019), a prevalência obtida nesta pesquisa é semelhante às demais, que ficam entre 20 e 30%. Deve-se considerar, no entanto, o contexto em que esta coleta de dados ocorreu, isto é, entre junho e outubro de 2021, período em que a sociedade estava há mais de um ano enfrentando a pandemia de COVID-19. Os demais estudos mencionados foram conduzidos antes dessa emergência global.
Assim, observa-se que mesmo a amostra desta pesquisa tendo sido analisada em um período pandêmico, não foi encontrada prevalência de TMC diferente da obtida em estudos realizados anteriormente com profissionais da enfermagem de outras áreas hospitalares. Tal fato pode ser explicado, ainda que parcialmente, pelos servidores do CME não estarem envolvidos na assistência direta ao paciente, o que pode ter amenizado os efeitos da pandemia nesses profissionais. Far-se-á necessário aguardar resultados de estudos futuros, envolvendo profissionais de outros setores, para que se possa detalhar essas discussões.
A fim de aprofundar o conhecimento nessa área tão pouco explorada com profissionais dos CME, todas as variáveis investigadas, isto é, sociodemográficas e laborais, foram relacionadas ao SRQ-20. Somente realizar TPD e fazer acompanhamento psiquiátrico, psicológico ou ambos se associaram de forma estatisticamente significativa com a categorização (ter indicativo ou não de TMC) do SRQ-20.
Participantes classificados como sem indicativo de TMC apresentaram quase quatro vezes mais chance de realizar TPD (hora extra) se comparados àqueles com indicativo. Pode-se inferir que os profissionais com TMC tendem a evitar trabalhar além da carga horária prevista contratualmente, ou seja, laboram com a carga horária obrigatória, ficando menos disponíveis para realização de TPD, caso o empregador necessite. Ter menos profissionais disponíveis para realização de TPD dificulta a logística e, consequentemente, a assistência das instituições de saúde. Entretanto, ressalta-se que se espera que as unidades de saúde possuam o quantitativo adequado de profissionais de enfermagem, conforme a Resolução COFEN 0543/2017 que atualiza e estabelece parâmetros para o dimensionamento do quadro de profissionais de enfermagem nos serviços/locais em que são realizadas atividades de enfermagem, para que se evite a sobrecarga de serviço aos profissionais (COFEN, 2017).
Com relação ao acompanhamento em saúde mental, observou-se que os profissionais classificados com indicativo de TMC fazem mais acompanhamento psicológico, psiquiátrico ou ambos se comparados aos que não têm indicativo de TMC. Esse resultado demonstra que os profissionais com TMC possivelmente estão cientes de suas necessidades e vulnerabilidades psicológicas, estando assistidos por profissionais de saúde específicos para o que precisam. Diante disso, é possível hipotetizar que, caso as instituições estudadas planejem e implementem ações de promoção à saúde mental e prevenção de doenças para seus profissionais, elas tenham uma boa adesão, uma vez que, como já exposto, aqueles com indicativo de TMC já realizam tratamentos nessa área, favorecendo o vínculo e aceitabilidade das ações necessárias.
Por fim, para além das contribuições deste estudo, deve-se apresentar suas limitações. A coleta de dados ocorreu por meio de entrevista individual, que, como outras formas de coleta, possui vantagens e desvantagens. Assim é possível que a entrevista tenha contribuído com o viés de desejabilidade social ou omissão de informações. Participaram profissionais de apenas quatro CME e somente do DF que, como observado, possui especificidades (maior escolaridade, renda etc.). Além disso, não foram avaliadas algumas variáveis que podem estar relacionadas com TMC, como história de saúde pregressa e histórico de saúde familiar. Assim, não é possível generalizar os resultados aqui obtidos para o Brasil, considerando sua extensão territorial, com grandes desigualdades, ou outros países com características distintas da amostra investigada.
Conclusão
Os resultados encontrados são alarmantes, exigindo, portanto, atenção e ação, uma vez que quase ¼ da amostra estudada têm indicativo de TMC. Esse conjunto de sintomas não psicóticos, apesar de geralmente estarem relacionados a quadros subclínicos, quando não devidamente diagnosticado e tratado, pode acarretar prejuízos para os profissionais de enfermagem e as instituições de saúde, uma vez que os profissionais poderão evoluir para quadros mais graves e limitantes, impossibilitando-os de continuarem trabalhando e, consequentemente, ocasionando a entrega de atestados médicos e laudos de restrições laborais. Por isso, faz-se necessário a realização de medidas de prevenção e promoção à saúde desses profissionais.
Esta pesquisa também evidencia a necessidade de estudos com profissionais de enfermagem de diversos setores de trabalho e de diferentes contextos, a fim de se compreender, caso existam, como as peculiaridades de cada setor, de contexto regional, do profissional etc. podem relacionar-se às diferenças de prevalências de TMC e suas associações.
Por fim, a prevalência de TMC nos profissionais de enfermagem necessita de atenção por parte dos gestores, uma vez que é uma forma de garantir que a assistência à saúde, independentemente de ser pública ou privada, seja realizada de forma integral, holística e humanizada. No caso específico do DF, essa afirmativa é ainda mais evidente, por se tratar de cumprimento de legislação vigente, uma vez que o Decreto nº 36.561, de 19 de junho de 2015, institui a Política Integrada de Atenção à Saúde do Servidor Público do Distrito Federal, e dá outras providências, determinando ao governo do DF a realização de “projetos e ações destinados à promoção, recuperação e reabilitação da saúde do servidor”.
Implicações para a prática clínica
O presente estudo poderá contribuir com reflexões e discussões junto a instituições, gestores e profissionais de saúde visando desenvolver estratégias que estimulem a diminuição da prevalência encontrada no intuito de auxiliar na melhora clínica dos profissionais classificados com indicativo de TMC e evitar que novos sejam classificados como tal, de maneira a reconhecer os fatores de proteção mental a esses profissionais para o risco de TMC e no intuito de criar medidas protetivas que serão utilizadas na prática cotidiana do trabalho. Também se espera que esta pesquisa estimule o surgimento de novas discussões científicas, o que poderá demonstrar resultados que trarão outras evidências para os profissionais de enfermagem em diferentes locais de trabalho, em distintos contextos regionais e países, que servirão de comparação e aprofundamento do tema em questão, com fito a definir quais são os condicionantes para o surgimento e manutenção de TMC na população investigada.














