A Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, foi o lugar de acolhimento, no passado dia 22 de Novembro, do Encontro “Como a água que corre. Em torno da obra de Luís Krus”. Organizado pelo Instituto de Estudos Medievais da NOVA FCSH com o apoio da mesma Fundação, serviu-lhe de pretexto a recente reedição da obra A concepção nobiliárquica do espaço ibérico (1280-1380), de Luís Krus1, que reproduz a sua tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa em 19892. Reunindo um conjunto conceituado de investigadores, oriundos de áreas diversas do saber, entre a História, a História da Arte, a Literatura ou a Antropologia Histórica, procurou-se discutir a obra e o legado historiográfico deste conceituado medievalista3. Professor Catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e fundador do Instituto de Estudos Medievais e seu primeiro Diretor, Luís Krus abriu caminhos e perspetivas de investigação profundamente inovadoras, numa obra que continua a ser não só incontornável para uma renovada compreensão do passado medieval, mas também fecunda pelas hipóteses e problemáticas que colocou.
Uma primeira nota vai, necessariamente, para a reedição da obra de Luís Krus, que substituiu a impressão de 1994, há muito esgotada, então fruto da parceria com a Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, no âmbito da Coleção “Textos Universitários”4. A sua inscrição numa nova coleção, onde figuram grandes obras e autores da cultura portuguesa, implica o reconhecimento de Luís Krus e da sua concepção nobiliárquica do espaço ibérico entre os títulos e os nomes maiores da nossa cultura. Importa aqui recordar a iniciativa, discreta mas decisiva, do Professor Bernardo Vasconcelos e Sousa, no sentido de propor junto da Fundação uma reedição da obra de Luís Krus. O Instituto de Estudos Medievais associou-se de imediato ao projecto, tanto sob a direção de Maria João Branco e de Maria de Lurdes Rosa, quando o projecto ganhou forma, como na de Catarina Tente, que lhe sucedeu em 2023. Também o seu primeiro prefaciador e orientador da tese, o Prof. José Mattoso, não regateou um novo texto para a nova edição, que infelizmente já não pode ver em vida5. O projecto veio a ser uma parceria entre a Fundação Calouste e o Instituto de Estudos Medievais, num trabalho minucioso de revisão e edição, acompanhado, da parte da Fundação, pela Dra. Mariana Portas e, do Instituto, pela Doutora Alice Borges Gago. Numa fase mais adiantada do projecto colaboraram ainda, com a elaboração dos índices, Luís Filipe Oliveira, João Luís Fontes e Gonçalo Palmeira. Este conjugar de esforços, vontades e recursos permitiu disponibilizar numa edição de grande qualidade, acessível tanto em papel como em formato digital6, uma obra incontornável do medievalismo português e que homenageia a memória de um investigador e professor que a tantos e tantas marcou pelo seu olhar lúcido, a sua intuição brilhante e a generosidade de alma que colocava em tudo o que fazia.
Uma segunda nota, para o evento científico. Na sua designação, evoca-se o título de um dos livros de Marguerite Yourcenar, um dos autores preferidos do Luís Krus - “Como a água que corre”7. Através de três histórias distintas, aí se evoca a força misteriosa da vida, por vezes luminosa e exaltante, por vezes oculta, sofrida e paradoxal. Graças a ela, somos reconduzidos à percepção de que a vida é algo maior, que nos ultrapassa indefinidamente, por muito diversa que esta seja nos caminhos biográficos de cada um. Algo maior e mais complexo, com sentidos ininterruptos e imparáveis, representando, para uns, o caos aparentemente sem intento, nem objectivo, e, para outros, a harmonia que se descobre na composição de múltiplas peças, num exercício que pede intuição e inteligência, método e audácia, ócio e contemplação.
Não é difícil que nos reconheçamos na descoberta desta outra espantosa realidade das coisas, desta busca de sentido perante a complexa desordem da vida, do dia-a-dia e do futuro. A tanto nos ajuda a memória do Prof. José Mattoso, ensinando como a História exigia esse salto intuitivo, contemplativo para ele8. E lembramo-nos também de Luís Krus, que soube desvelar como ninguém a realidade histórica e as linguagens e sinais da presença dos homens no tempo e das tentativas destes para apreenderem os seus sentidos.
Não pretendemos aqui, como não o fizemos no dia, apresentar quaisquer conclusões magistrais sobre o Encontro. Muitos outros e outras se poderiam convocar para aprofundar as intuições da obra de Luís Krus, ou para recuperar e desenvolver os caminhos novos que se foram abrindo em muitas áreas da historiografia por ele frequentadas e trabalhadas. O conjunto de intervenções então apresentadas mostra bem, pelo menos, como a sua obra resulta tanto de uma procura incansável do conhecimento e da compreensão do passado, como de uma intuição luminosa, uma arte de questionar os indícios que sobreviveram desse passado. Para Luís Krus, isso só podia acontecer no diálogo com outras áreas do saber, no contacto voraz com outros textos e autores, no experimentar de conceitos e metodologias, para além das práticas habituais da disciplina histórica. Relembrem-se os trabalhos sobre a procissão dos nús e o culto dos Mártires de Marrocos9, ou sobre os processos de recordação do passado e de incorporação de lendas e de narrativas míticas nos discursos de legitimação dos poderes e das hierarquias sociais10. Ou vejam-se os seus trabalhos sobre as inquirições11, sobre a escrita e o poder12, sobre a herança dos Sousas13, que foram evocados por Amélia Aguiar Andrade14.
Tudo isto vinha acompanhado por um profundo rigor, por um inquérito minucioso sobre factos, personagens, acontecimentos, e pela recolha e análise dos indícios contextuais mais diversos. Uma atenção ao pormenor que se fazia evidente na erudição dos seus textos, em notas longas e na preocupação em definir contextos de produção, em situar eventos e pessoas, em compreender a inscrição destas em redes familiares, de clientelagem e de poder. Como bem realçaram Hermenegildo Fernandes e Arsénio Dacosta, foi esse olhar, tão minucioso quanto audaz, que lhe permitiu a leitura da percepção do espaço por parte da nobreza hispânica, desvelando o modo como a toponímia por ela recordada se associava a figuras e a acontecimentos e permitia recuperar uma certa visão do passado, sempre ligada a um presente que importava compreender, legitimar ou transformar. Também Maria João Branco recordou a importância e a novidade da leitura que Luís Krus fez dos textos memorialísticos produzidos nos séculos XI e XII pelas comunidades letradas do Entre Minho e Mondego15, matéria que tem suscitado outros desenvolvimentos, em particular sobre o significado e o alcance destas produções letradas no âmbito de algumas das poderosas instituições que as patrocinaram e promoveram16.
A capacidade para convocar e valorizar as vozes e os indícios mais diversos e para cruzar distintos saberes era outra das suas marcas. Veja-se a atenção que dedicou a disciplinas noutro tempo menores e analisou selos, moedas, mapas e imagens17 - e lembre-se a sua colaboração na XVII Exposição18 e noutros catálogos19 -, ou a forma como combinava as notícias históricas com os dados dos estudos antropológicos, linguísticos e literários, ora evocados por Ivo de Castro e por Hilário Franco Júnior. Como atesta a análise das memórias dos vencidos da Reconquista (os mouros)20 e da Dama de Pé-de Cabra21, ou o modo como se socorreu do Monge de Cister e de Herculano para esclarecer as concepções do tempo na Idade Média22.
Luís Krus foi, ainda, um mestre exímio na leitura de outros discursos sobre o passado. Mesmo daqueles que, no presente, tanto pela arte, como pelo cinema e pela literatura, fazem uso dele para propor novos olhares sobre esses mundos e tempos perdidos23. Talvez essa ousadia seja o seu legado mais decisivo, por recordar como o cruzamento de saberes e a interdisciplinaridade, assentes no rigor e na erudição, são essenciais para o questionamento permanente do passado, dos testemunhos deste e do seu significado para a compreensão do presente.













