Introdução
A violência obstétrica é um termo utilizado para descrever situações em que mulheres em trabalho de parto são submetidas a tratamento desrespeitoso ou abusivo por parte de profissionais de saúde durante o processo de atendimento obstétrico.
Esse tipo de violência pode incluir práticas como: negligência, falta de informação adequada, recusa de tratamento, falta de consentimento informado, intimidação, abuso verbal ou físico, procedimentos invasivos desnecessários, entre outros comportamentos que causam dor emocional e física à mulher.
A aplicação pressão no fundo do útero (da manobra de Kristeller) foi previamente pensada para ajudar o parto vaginal, reduzindo a necessidade de intervenções alternativas e mais invasivas para gerir um período expulsivo mais prolongado, como a utilização de fórceps/ventosa ou cesariana. Os métodos de aplicação da pressão no fundo uterino variam, geralmente envolvendo a pressão manual externa durante o período expulsivo. Varia desde uma pressão suave até à força total do peso corporal de um profissional de saúde. A força excessiva pode sujeitar o fundo uterino da mulher a uma pressão irregular e de alta intensidade (Hofmeyr et al., 2018; Masuda et al., 2020; Farrington et al., 2021).
A OMS (Organização Mundial de Saúde, 2014) e várias outras sociedades obstétricas consideram a utilização da aplicação da pressão exercida no fundo do útero durante o período expulsivo do trabalho de parto como uma violência obstétrica (Royal College of Obstetricians and Gynaecologists, 2012; Reproductive Health WHO, 2018), dado que se insere no âmbito dos atos de violência à parturiente e feto durante o ato médico, que colocam em causa a autonomia da parturiente, pode causar dor intensa e desconforto para a mãe, além de aumentar a ansiedade durante o trabalho de parto, podendo afetar negativamente a experiência do parto e a saúde emocional da mulher. A prevalência do seu uso ainda não foi totalmente determinada (Malvasi et al., 2019; Farrington et al., 2021), assim como, as consequências da sua aplicação no pavimento pélvico das mulheres, o que justifica o desenvolvimento de novos estudos.
O objetivo do presente estudo é identificar as complicações maternas associadas ao uso da manobra de Kristeller no segundo período do trabalho de parto.
1. Métodos
Estudo quantitativo, relacional-analítico, em coorte transversal, realizado com uma amostra não probabilística por conveniência, segundo o método em bola de neve com colheita de dados através de questionário online a 275 mulheres que pariram em Portugal nos últimos 5 anos (2016-2021) com uma média de idades de 32,51 anos (±4,13 anos).
A recolha de dados foi realizada através de um questionário “ad hoc” para caracterização sociodemográfica e dados referentes ao último parto, distribuído online com parecer ético favorável (Parecer nº48ª/SUB/2021) pela comissão de ética do Instituto Politéctico de Viseu. Aplicamos ainda duas escalas designadas pelos autores de questionário de Avaliação do Incómodo Relacionado às Disfunções do Pavimento Pélvico (Peterson et al., 2019) e questionário de Impacto no Pavimento Pélvico - PFIQ 7 Versão em Português (Arouca et. al., 2016). Para ambos os questionários efetuou-se o seu estudo psicométrico e ambos os questionários foram validados para português de Portugal. O estudo psicométrico de ambos os questionários foi realizado através de estudos de validade e de fiabilidade. Os valores de Alfa de cronbach para o Questionário de Avaliação do Incómodo Relacionado às Disfunções do Pavimento Pélvico variam entre 0,638 e 0,695 e para Questionário de Impacto no Pavimento Pélvico variam entre 0,902 e 0,922. Os estudos de validade incluíram a análise fatorial exploratória (AFE) e a análise fatorial confirmatória (AFC). Na análise fatorial exploratória escolheu-se o método dos componentes principais e o uso da rotação ortogonal do tipo varimax. Para a retenção de fatores respeitou-se os valores próprios (autovalores) superiores a 1 e o gráfico de declive (scree plot). No que diz respeito à análise fatorial confirmatória (AFC) foi utilizada a matriz de covariâncias e adotado o algoritmo da máxima verosimilhança MLE (Maximum-Likelihood Estimation) para estimação dos parâmetros. A fiabilidade do estudo foi determinada através da consistência interna.
Do estudo psicométrico do Questionário de Avaliação do Incómodo Relacionado às Disfunções do Pavimento Pélvico resultou a seguinte estrutura, com validade descriminante entre F1 e F2.

Figura 1 Análise fatorial confirmatória do Questionário de Avaliação do Incómodo Relacionado às Disfunções do Pavimento Pélvico.
No que se refere ao Questionário de Impacto no Pavimento Pélvico a estrutura encontrada demonstra a sua validade fatorial:
No tratamento estatístico, utilizou-se o programa IBM - Statiscal Package Social Science (SPSS) 26. Recorreu-se à estatística descritiva para calcular as frequências absolutas (n) e percentuais (%), algumas medidas de tendência central: medidas de dispersão: medidas de tendência central: Média (M); medidas de dispersão: Desvio padrão (±) e Coeficiente de variação (CV%); medida de assimetria e achatamento.
Na escolha das técnicas estatísticas, nomeadamente dos testes, atendeu-se à natureza e características das variáveis envolvidas. Assim, para além da estatística descritiva, fez-se também uso da estatística inferencial, com recurso aos testes não paramétricos Teste U de Mann Whitney e Teste de Kruskal-Wallis, bem como a testes paramétricos, designadamente ao T-test.
O presente estudo obteve um parecer favorável da Comissão de Ética do Instituto Politécnico de Viseu, com a referência nº 48ª/SUB/2021, com data de aprovação a 25/05/2021. O questionário foi divulgado via online. A participação das mulheres foi voluntária e antes do seu preenchimento foi dado uma explicação dos objetivos do estudo e assegurada a confidencialidade e anonimato das participantes.
2. Resultados
As mulheres questionadas tinham em média 32.51 anos (±4.13 anos), 65.9% ≤34 anos; 68.8% ≥35 anos; 66.9% residentes no centro de Portugal; 91.3% casadas; 47.3% licenciadas; 89.6% ativas profissionalmente; 62.7% têm uma profissão relacionada com atividades intelectuais e científicas.
A grande maioria das mulheres teve apenas 1 parto de termo (73,5%). Verifica-se que apenas 14 mulheres (5,1%) tiveram 1 parto pré-termo e uma mulher (0,4%) 3 partos pré-termo. Das 69 mulheres que tiveram um aborto antes das 20 semanas, prevalecem as que esta situação ocorreu 1 vez (78,3%), tendo uma mulher referido uma morte fetal após as 20 semanas e 5 mulheres tiveram uma gravidez ectópica. A grande maioria das participantes (74,2%) tem um filho vivo.
Predominam as mulheres cujo último parto foi eutócico (47,3%). Quase a totalidade da amostra (99,6%) teve um parto simples. Predominam as mulheres cuja duração do tempo de parto foi inferior a 24 horas (83,6%). Mais de metade das mulheres (60,0%) referiu que foi sujeita a episiotomia. Destacam-se as mulheres que não sofreram lacerações (64,0%). Regista-se os casos em que ocorreu episiorrafia (71,6%). Em 50,9% dos casos as mulheres forma sujeitas a Manobra de Kristeller, entre as quais, a maioria (80,0%) relatou que não lhe foi pedido o consentimento.
Apurou-se que estão em maioria (67,3%) das mulheres cujo parto foi assistido pelo médico e pelo enfermeiro. Convidou-se as participantes que classificassem a sua experiência em relação ao parto, averiguando-se que 30,5% a considerou de “Muito boa”, 30,2% como “Boa”, 21,1% “Razoável” e 18,2% como “Má”.
Verifica-se que as mulheres sujeitas a Manobra de Kristeller apresentam valores médios mais elevados, o que se traduz em maior incómodo relacionado com as disfunções do pavimento pélvico, resultando em diferenças estatisticamente significativas em todos os fatores e no fator global (p<0,05) (cf. tabela 1).
Tabela 1 T-test entre o incómodo relacionado com as disfunções do pavimento pélvico e Manobra de Kristeller.
| Manobra de Kristeller | Sim | Não | t | p | ||
| Incómodo relacionado com as disfunções do assoalhado pélvico | Média | Dp | Média | Dp | ||
| Problema urinários | 16.76 | 25.35 | 7.35 | 14.46 | 3.759 | .000 |
| Problemas do pavimento pélvico | 15.35 | 16.27 | 8.71 | 10.14 | 4.043 | .000 |
| Fator global | 15.82 | 16.17 | 8.26 | 8.87 | 4.782 | .000 |
Verifica-se que as mulheres sujeitas a Manobra de Kristeller apresentam valores médios mais elevados, o que se traduz em maior impacto no pavimento pélvico, resultando em diferenças estatisticamente significativas no impacto urinário/bexiga (p=0,009), a nível da vagina/períneo (p=0,016) e no fator global (p=0,037) (cf. tabela 2).
Tabela 2 T-test entre o impacto no pavimento pélvico e Manobra de Kristeller
| Manobra de Kristeller | Sim | Não | t | p | ||
| Impacto no pavimento pélvico | Média | Dp | Média | Dp | ||
| Impacto Urinário - Bexiga | 8.09 | 17.55 | 3.28 | 12.33 | 2.623 | .009 |
| Impacto Colorretal Anal - Intestinos | 4.48 | 14.50 | 4.12 | 14.00 | .211 | .833 |
| Impacto do Prolapso do Órgão Pélvico - Vagina/períneo | 7.78 | 17.69 | 3.42 | 11.43 | 2.421 | .016 |
| Fator global | 6.79 | 13.58 | 3.60 | 11.42 | 2.099 | .037 |
O impacto na bexiga é uma variável preditora do impacto nos problemas urinários, explicando 19,5% da variação, sendo a variância explicada ajustada de 19,2%. O erro padrão de regressão é 19,08, e os testes F (f=65.935; p=0,000) e o valor de t (t=7,046; p<0.05), revelam significância estatística, inferindo-se que a variável independente que entrou no modelo de regressão tem poder explicativo nos problemas urinários.
Pelos coeficientes padronizados beta, constata-se que o impacto na bexiga estabelece uma relação direta com os problemas urinários, sugerindo que quanto mais impacto na bexiga em decorrência da Manobra de Kristeller mais problemas urinários as mulheres revelam.
O impacto na bexiga e na vagina/períneo são variáveis preditoras dos problemas no pavimento pélvico, explicando 33,4% da variação, sendo a variância explicada ajustada de 32,9%. O erro padrão de regressão é 11,46, e os testes F (f=68.172; p=0,000) e o valor de t (t=11.546; p<0.05), revelam significância estatística, inferindo-se que as variáveis independentes que entram no modelo de regressão têm poder explicativo nos problemas no pavimento pélvico.
Pelos coeficientes padronizados beta, constata-se que o impacto na bexiga e na vagina/períneo estabelecem uma relação direta com os problemas no pavimento pélvico, sugerindo que quanto mais impacto na bexiga e na vagina/períneo em decorrência da Manobra de Kristeller mais problemas no pavimento pélvico as mulheres possuem.
O impacto na bexiga é uma variável preditora do incómodo relacionado com as disfunções do pavimento pélvico (fator global), explicando 36,9% da variação, sendo a variância explicada ajustada de 36,7%. O erro padrão de regressão é 10,83, e os testes F (f=159.833; p=0,000) e o valor de t (t=12.941; p<0.05), revela significância estatística, inferindo-se que esta variável que entrou no modelo de regressão tem poder explicativo no incómodo relacionado com as disfunções do pavimento pélvico.
Pelos coeficientes padronizados beta, constata-se que o impacto na bexiga e estabelece uma relação direta com o incómodo relacionado com as disfunções do pavimento pélvico, sugerindo que quanto mais impacto na bexiga em decorrência da Manobra de Kristeller mais incómodo relacionado com as disfunções do pavimento pélvico as mulheres detêm.
3. Discussão
As mulheres forma sujeitas a Manobra de Kristeller em 50,9% dos casos, entre as quais, a maioria (80,0%) descreveu que não lhe foi pedido o consentimento. Estes resultados vão ao encontro dos resultados de Becerra-Chauca e Failoc-Rojas, onde 46,4% das mulheres foram submetidas a uma Manobra de Kristeller, tendo 51,7% relatado que o seu consentimento para a realização da manobra não foi solicitado. Resultados idênticos foram encontrados noutros países, Irão (52%) (Peyman et al., 2011), Brasil (36,1%) (Do Carmo et al., 2014) e Espanha, onde, de acordo com um estudo de Cuerva et al. (2015) a manobra foi executada em 69,2% dos casos. Foram encontradas percentagens mais baixas no Egipto (24,38 %) (Moiety et al., 20104) e num hospital japonês (11,2 %) (Hasegawa et al., 2015). Uma alta frequência desta manobra foi encontrada mais recentemente em Espanha por Mena-Tudela et al. (2021), cujo estudo concluiu que há uma elevada prevalência do uso desta manobra e sem consentimento da mulher. Um estudo com recurso a num inquérito online dirigido a mulheres que pariram durante o primeiro ano da pandemia divulga que “Portugal continua a ter taxas superiores à média de outros países europeus em procedimentos considerados de violência obstétrica, como a Manobra de Kristeller ou as episiotomias de rotina” (Carvalho, 2022), sem haver qualquer pedido de consentimento e sem quaisquer justificações para a sua execução. Em muitos casos, a Manobra de Kristeller foi brutalmente praticada, inclusive, em momentos nos quais não havia contração, sem serem ponderados fatores como a vontade da mulher e os riscos que a manobra poderia acarretar para ela e para o bebé (Costa et al., 2022). Neste sentido, reforça-se a necessidade de se ter bem presente que a esta manobra é desaconselhada pela OMS pelos riscos que apresenta para a referida díade.
As estatísticas referentes à avaliação do incómodo relacionado com as disfunções do pavimento pélvico, decorrente da utilização da Manobra de Kristeller durante o segundo período do trabalho de parto, revelam que as participantes apresentaram ligeiramente mais problemas urinários, ou seja, problemas relacionados com perdas de urina (urgência miccional) (M=12,14±21,22). Os resultados do impacto no pavimento pélvico em decorrência da utilização da Manobra de Kristeller durante o segundo período do trabalho de parto mostram que as participantes apresentam mais impacto na bexiga (M=5,73±15,38), seguindo-se o impacto na vagina/períneo (M=5,64±15,09). Youssef et al. (2019) constaram que a Manobra de Kristeller está associada ao dobro do risco de avulsão do músculo elevador do ânus em primíparas; danos no Músculo Elevador do Anús (MEA) associados à redução de força durante a contração muscular. Ficou demonstrado que a avulsão do MEA aumenta risco de incontinência urinária pós-parto, não tendo sido registados benefícios que comprovem a utilização da Manobra de Kristeller.
Malvasi et al. (2019) referem que existe pouca literatura sobre a má prática e as implicações relacionadas com a responsabilidade dos profissionais de saúde no que se refere à aplicação da Manobra de Kristeller, referindo que a Royal College of Obstetricians and Gynaecologists se pronunciou unicamente sobre a contradição da sua utilização na distocia de ombros.
As evidências encontradas no presente estudo demonstram que a inclusão da Manobra de Kristeller é um ato de violência obstétrica e, na maior parte dos casos, foi um procedimento não consentido, o que comprova os resultados encontrados por Nascimento et al. (2021) na sua revisão integrativa da literatura na qual descreveram a violência obstétrica através do uso da Manobra de Kristeller na evolução normal do parto tem a possibilidade de traumatizar física, psicológica e emocionalmente a parturiente. Foram identificadas práticas adversas realizadas no momento do parto, entre as quais a Manobra de Kristeller, com uma taxa de 9,3%. De igual modo, Rodrigues et al. (2022) identificaram realizações de intervenções controversas na assistência obstétrica, onde se inclui a Manobra de Kristeller, sendo caracterizada como uma prática invasiva e com resultados potencialmente negativos para a saúde da mulher e do bebé.
Conclusão
A aplicação da Manobra de Kristeller não é inócua e apesar de existir pouca evidência científica sobre a temática, alguns estudos referem alguns riscos associados nomeadamente ao aumento das taxas de episiotomia, ao aumento do risco de lacerações do períneo, e ao aumento da dor perineal e dispareunia no período pós-parto.
Não obstante toda a evidência científica acerca dos potenciais danos causados pela Manobra de Kristeller, muitos profissionais de saúde recorrem a esse procedimento sem obterem o seu consentimento das mulheres, podendo esse procedimento configurar-se como violência obstétrica, expressa numa atitude de uma prática não recomendada e desrespeitosa. Ficou demonstrado no presente estudo, que numa amostra de 275 mulheres, mais de metade delas reportou ter sido sujeita a Manobra de Kristeller, com grande parte a ter confirmado que não lhe foi pedido o seu consentimento.
Verificamos ainda que, quanto mais impacto na bexiga em decorrência da Manobra de Kristeller mais problemas urinários as mulheres revelam; quanto mais impacto na bexiga e na vagina/períneo mais problemas no pavimento pélvico e quanto mais impacto na bexiga em decorrência da manobra, mais incómodo relacionado com as disfunções do pavimento pélvico as mulheres reportam.
Face a estes resultados consideramos que a execução desta manobra deverá ser devidamente ponderada e sugerimos a elaboração de mais investigação sobre esta problemática.
Os cuidados á mulher em trabalho de parto são complexos e exigem um novo olhar. Acolher, saber ouvir e orientar são fatores alicerçais no cuidado às mulheres que devem ser as principais protagonistas do seu próprio parto. Eliminar as intervenções desnecessárias, assegurando assim uma maternidade segura e cuidados humanizados.
Tendo em conta o exposto, sugere-se a replicação deste estudo numa amostra mais alargada para demonstração clara dos efeitos da utilização da Manobra de Kristeller no parto vaginal, quantificando o risco associado a esta prática.
Contribuições dos autores
Conceptualização, A.S.P. e M.F.; tratamento de dados, A.S.P. e M.F.; análise formal A.S.P. e M.F.; investigação, A.S.P. e M.F.; metodologia A.S.P. e M.F.; administração do projeto, A.S.P. e M.F.; recursos, A.S.P. e M.F.; programas, A.S.P. e M.F.; supervisão, A.S.P. e M.F.; validação, A.S.P. e M.F.; visualização, A.S.P. e M.F.; redação - preparação do rascunho original, A.S.P. e M.F.; redação - revisão e edição, A.S.P. e M.F.















