Introdução
A papilomatose respiratória recorrente (PRR) é uma doença benigna causada pelo vírus do papiloma humano (HPV)1. Carateriza-se pelo crescimento de papilomas nas vias respiratórias, que vão afetar a qualidade vocal e a função respiratória2. Apesar dos recentes avanços na vacinação, a PRR continua a ser um desafio terapêutico, dada a elevada taxa de recorrência, risco de obstrução das vias respiratórias e redução significativa da qualidade de vida3. Os dois serotipos mais frequentes de HPV na PRR são o HPV 6 e 11, mas também foram identificados os serotipos de alto risco 16, 18, 31, 33 e 392.
A PRR apresenta uma distribuição etária bimodal, sendo as crianças e os adultos jovens os mais frequentemente afetados1. Na criança a doença é geralmente mais agressiva, com taxas de recorrência mais elevadas, enquanto a forma adulto-juvenil é mais indolente. A variabilidade da gravidade da doença e da recorrência realça o desafio da excisão cirúrgica como modalidade única de tratamento. A laringe é o local mais frequentemente acometido, especialmente o cover (mucosa e lâmina própria) da corda vocal4. A localização primária também está ligada à recorrência, com taxas mais elevadas no local da primoinfecção2.
Na avaliação do doente com PRR pode ser utilizado o sistema de estadiamento e diagrama de Derkay5),(6, que nos permite avaliar a localização e carga de doença. Neste sistema são atribuídos diferentes graus à extensão da papilomatose ao longo do trato aerodigestivo, sendo também avaliada a capacidade vocal e respiratória do doente. No final é atribuída uma pontuação que resulta da soma da avaliação anatómica e funcional. Este sistema é uma ferramenta importante no acompanhamento da evolução da doença, na avaliação da resposta ao tratamento e na comparação de resultados entre diferentes centros.
Atualmente, não existe uma "cura" para a PRR e nenhum tratamento único demonstrou ser consistentemente eficaz na erradicação da doença7. O gold standard terapêutico é a cirurgia (LASER CO2/exérese a frio/microdebrider) que tem por objetivo a remoção completa dos papilomas, preservando a arquitetura e funcionalidade. Cerca de 20% dos doentes com PRR vão necessitar de terapêutica adjuvante para controlar a doença7. Atualmente está indicada em casos de PRR grave8, definida por:
Necessidade de mais de quatro procedimentos cirúrgicos por ano e/ou
Recorrência rápida de papilomas com comprometimento da via aérea e/ou
Disseminação extralaríngea.
O bevacizumab (Avastin®) é um anticorpo monoclonal que se liga ao fator de crescimento vascular endotelial (VEGF), inibindo a sua interação com os receptores2. Foram realizados vários estudos9-11 que demonstraram que a injeção intralesional de bevacizumab em doentes com PRR aumentou o tempo entre intervenções cirúrgicas, diminuiu a gravidade da doença e melhorou a qualidade de vida. Foram documentadas algumas complicações da injeção intralesional, nomeadamente a formação de granulomas piogénicos8.
O protocolo apresentado constitui uma proposta padronizada sobre a utilização intralesional de bevacizumab em doentes com PRR grave.
Objetivos
Criar um protocolo padronizado e uniformizado sobre a aplicação intralesional de bevacizumab em doentes com PRR grave.
Materiais e Métodos
Foi efetuada uma pesquisa na base de dados PubMed e na Biblioteca Cochrane. A seleção foi feita utilizando quaisquer combinações dos seguintes termos: "papilomatose laríngea", "papilomatose laríngea recorrente," "bevacizumab", "avastin®" e/ou " vírus do papiloma humano". As bibliografias dos estudos incluídos foram verificadas manualmente para encontrar literatura adicional relevante. Foi efetuada posteriormente uma revisão da literatura médica pertinente, nomeadamente do trabalho desenvolvido por Fortes el al1, Benedict el al2,4, Derkay el al5-7, Zeleník et al8, Best el al11, Pogoda et al12, Nagel et al (16 e Zeitels et al (10),(17-18.
Resultados
O protocolo está estruturado em quatro fases distintas:
Seleção criteriosa de doentes com PRR grave com indicação para terapêutica adjuvante, seguida pela obtenção de consentimento informado.
Estadiamento e avaliação da carga de doença pré-operatória nos doentes selecionados.
Implementação do tratamento conforme delineado no protocolo.
Seguimento pós-tratamento e aplicação de critérios de eficácia, incluindo a mudança de agente adjuvante (switch terapêutico) quando indicado.
1 -Seleção de doentes e obtenção de consentimento informado
A terapêutica adjuvante à cirurgia está indicada em casos de PRR grave8:
Necessidade de mais de quatro procedimentos cirúrgicos por ano e/ou
Recorrência rápida de papilomas com comprometimento da via aérea e/ou
Disseminação extralaríngea.
Antes de se iniciar o tratamento deve ser obtido junto do doente o consentimento informado livre e esclarecido (anexo).
2 .Estadiamento e avaliação da carga de doença
Após obtenção do consentimento informado, deve-se proceder à avaliação endoscópica da via aérea superior e aplicação do sistema de estadiamento e diagrama de Derkay5),(6)(anexo). O diagnóstico de PRR é realizado através de estudo anátomo-patológico. Deve ser pedida a genotipagem do HPV.
3. Tratamento
Posologia e técnica
A dose recomendada de bevacizumab no presente protocolo é de 12,5 mg, o que corresponde a um volume de injeção de 0,5 mL (25 mg/mL de concentração). Tipicamente o espaço de Reinke, na prega vocal, pode acomodar 0,3 a 0,5 mL de solução, permitindo a introdução de uma dose de 7,5 a 12,5 mg11. Em caso de doença mais disseminada pode ser necessária uma maior dose.
O bevacizumab é injetado de forma intralesional após exérese dos papilomas com recurso a LASER CO2/exérese a frio/microdebrider.
Nos dois procedimentos seguintes, intervalados de 3 semanas, é injetado preferencialmente nos locais previamente intervencionados. No protocolo apresentado sugerimos a remoção dos papilomas com recurso LASER CO2 devido à sua capacidade hemostática e por fornecer um bom campo cirúrgico durante o procedimento, otimizando assim o tempo operatório (uma hemostase correta é fundamental para a utilização do NBI, Narrow Band Imaging). O NBI é uma técnica de imagem endoscópica que utiliza luz monocromática que realça a visualização da mucosa e de vasos sanguíneos na superfície de órgãos internos. A importância do NBI na identificação dos papilomas reside na sua capacidade de realçar características vasculares e morfológicas na superfície das lesões.
Cronologia
Início do tratamento:
Injeção intralesional administrada de 3/3 semanas, num total de 3 procedimentos.
Interrupção do tratamento:
Reação alérgica (não documentada na literatura publicada).
Efeito secundário sistémico grave, como por exemplo acidente vascular cerebral e enfarte agudo do miocárdio (apenas documentada na administração sistémica12).
Procedimentos a adotar no bloco operatório
No bloco operatório devem ser adotados os seguintes procedimentos:
O contentor de alumínio selado contendo as seringas de bevacizumab, individualizadas, esterilizadas e identificadas, é entregue pelo assistente operacional dos serviços farmacêuticos à enfermeira responsável pela sala.
Na sala:
Nova verificação do contentor selado e abertura do mesmo em condições de assepsia.
Verificação da integridade das seringas esterilizadas que contém bevacizumab e do respetivo rótulo confirmando toda a sua informação.
Técnica cirúrgica:
Desinfeção cirúrgica das mãos da equipa cirúrgica e colocação de bata e luvas esterilizadas.
Colocação de campo cirúrgico esterilizado.
Laringoscopia direta rígida com laringoscópio cirúrgico (Kleinasser ou Lindholm).
Além de laringoscópios cirúrgicos, é necessário material tipicamente utilizado na microcirurgia laríngea funcional (fig. 1):

Fig. 1: Agulha butterfly e sistema de acoplamento ligados a seringa com bevacizumab (fotografia original).
Micropinças.
Microtesouras.
Aspirações finas (3, 5 e 7 Fr).
Microscópio (lente com distância focal de 400nm).
LASER CO2 ou microdebrider.
Agulha butterfly 21-27 G e sistema que permita o acoplamento da seringa à agulha.
Passos cirúrgicos:
Posicionamento do doente, com pescoço fletido e cabeça em extensão.
Evicção de lesões dentárias/mucosa com protetor de dentes.
Introdução do laringoscópio.
Suspensão laríngea com sistema de suspensão rotativo.
Os próximos passos do procedimento são realizados com o microscópio equipado com uma lente de 400 nm.
Exérese das lesões papilomatosas com recurso a LASER CO2/exérese a frio/microdebrider. Em caso de recurso a LASER CO2 sugere-se um modo super-pulsed ou ultra-pulsed, desfocado, com potência de 2 a 5 W13.
Revisão da hemóstase.
Injeção intralesional, preferencialmente na lâmina própria superficial (fig. 2).
Revisão da hemóstase.
Remoção do laringoscópio.
Todas as seringas não utilizadas são imediatamente rejeitadas.
No fim do procedimento o doente segue para o recobro e permanece em regime de ambulatório, com pernoita. Recomendam-se alguns cuidados básicos comuns à cirurgia laríngea funcional:
4. Seguimento, critérios de eficácia e switch terapêutico
Após o tratamento o doente deve ser avaliado em consulta de ORL com a seguinte periodicidade: 1ª semana, 1º mês, 3º mês, 6º mês, 9º mês e 12º mês pós-operatório e depois de acordo com a evolução clínica.
Deve-se considerar um novo procedimento quando a carga de doença alcançar, no mínimo, magnitude semelhante àquela observada no primeiro procedimento.
A eficácia do tratamento é considerada inadequada se o número de intervenções cirúrgicas necessárias para exérese de papilomas for igual ou superior ao do ano anterior ao início do tratamento adjuvante.
A administração de outras terapêuticas adjuvantes como o switch para cidofovir intralesional pode ser uma alternativa em doentes com PRR que tenham obtido uma resposta inadequada ou que não tolerem a injeção intralesional de bevacizumab.
Indivíduos com PRR sem história de vacinação contra o HPV são aconselhados à sua administração após o ciclo de tratamentos14 (por exemplo Gardasil® 9 esquema vacinal com 3 tomas: 0, 2 e 6 meses).
5. Aplicação do protocolo (Caso clínico)
Um homem de 37 anos, não fumador, foi referenciado a uma consulta de Otorrinolaringologia (ORL) no Hospital Pedro Hispano por um quadro de disfonia com meses de evolução. Apresentava antecedentes de três microcirurgias laríngeas realizadas noutro hospital (2017, 2019 e 2020).
Ao exame objetivo apresentava papilomas na laringe: comissura anterior, terço posterior da corda vocal esquerda e a meio do ventrículo direito. A pontuação total no sistema de estadiamento de Derkay foi de 5 (4+1). O grau de severidade e tipo de disfonia correspondeu a G1R1B0A0S1.
Foi submetido a uma nova microcirurgia laríngea com recurso a LASER de CO2, com uma potência de 5 watts e modo superpulsed. As áreas afetadas foram injetadas com 12,5 mg (0,5 mL) usando uma agulha laríngea (fig. 2). A análise histopatológica confirmou papilomas de células escamosas. O procedimento foi repetido após três e seis semanas.
O doente teve alta no dia seguinte a cada procedimento. Foi medicado para o domicílio com esomeprazol 20 mg id antes do pequeno-almoço durante dois meses, antibioterapia com amoxicilina e ácido clavulânico 875 + 125 mg comprimidos 12/12h durante oito dias e analgésicos. Realizou consultas de seguimento na primeira semana e no primeiro mês após o final do ciclo de tratamentos. Na última consulta, no 3º mês após o ciclo de tratamentos, encontrava-se assintomático e ao exame objetivo não foram detetados papilomas. O epitélio das pregas vocais apresentava-se íntegro e normotrófico (fig. 3 e 4).
Discussão
A PRR é uma patologia crónica caracterizada pelo crescimento de papilomas nas vias aéreas, incluindo a laringe, traqueia e brônquios. Estes papilomas, geralmente causados pelo HPV, podem obstruir a via aérea, levando a disfonia, dispneia e estridor. É uma patologia conhecida pela sua natureza recorrente, exigindo um tratamento e monitorização contínuo, a fim de controlar os sintomas e prevenir complicações respiratórias. O tratamento geralmente envolve múltiplas intervenções cirúrgicas. Devido à sua elevada recorrência, terapêuticas adjuvantes estão a ser investigadas no sentido de melhorar a eficácia do tratamento e a qualidade de vida dos doentes. Na última década assistiu-se a uma expansão significativa das opções terapêuticas adjuvantes em doentes com PRR grave.
O Avastin® foi autorizado pelo Infarmed para o tratamento do cancro colo-retal mas não para uso laríngeo15. Uma vez que a vascularização é um fator crucial que determina a rapidez com que os papilomas recidivam, colocou-se a hipótese do Avastin® ser utilizado no tratamento da PRR. Na medicina, o uso de fármacos “off-label” é legal e frequentemente necessário na prática clínica, desde que os médicos estejam bem informados sobre o produto e baseiem o seu uso num método científico firme e com evidência médica bem fundamentada.
A utilização de bevacizumab intralaríngeo no tratamento da PRR foi pela primeira vez relatada em 200917. Zeitels et al17-18) publicaram subsequentemente um estudo piloto com 10 doentes a quem foi injetado bevacizumab num protocolo de 5 injeções, no qual se demonstrou uma diminuição da recorrência da doença e uma melhoria da função vocal. Estes resultados levaram a uma análise prospetiva em 20 doentes adultos em que a corda vocal contralateral foi usada como controlo19. Neste estudo foi utilizado um protocolo que contemplava 3 injeções de bevacizumab, espaçadas por 6 semanas, tendo-se observado uma redução da carga da doença no lado tratado com bevacizumab. Uma revisão sistémica de 202212 confirmou estes achados: a administração intralesional de bevacizumab aumentou o intervalo de tempo entre cirurgias (2-6 semanas para 4-12 semanas) e diminuiu o score de Derkay (3-23 para 0-12 pontos). Demonstrou ser um procedimento seguro, apresentando poucos efeitos secundários, contrariamente à aplicação sistémica, associada a proteinúria, epistáxis, hemoptises, hipertensão arterial, cefaleia, trombocitopenia, hipertiroidismo, disgeusia e menopausa precoce. Esta revisão12 concluiu que ambas as formas de administração são opções terapêuticas eficazes em doentes com PRR grave, reforçando a necessidade de serem efetuados mais estudos prospetivos e ensaios clínicos.
Outras opções terapêuticas que podem ser utilizadas em doentes com PRR grave incluem o interferão, agentes antivirais (aciclovir, cidofovir), retinóides e a própria vacinação contra o HPV7.
O cidofovir, um análogo da citosina, é atualmente o antiviral mais utilizado7. Pode ser administrado por via intravenosa, por nebulização ou por injeção intralesional. Num estudo prospetivo recente, a administração intralesional associou-se a uma regressão parcial ou total dos papilomas e à redução do número de procedimentos cirúrgicos por ano19. Tem a vantagem de manter níveis plasmáticos abaixo dos associados a toxicidade, não apresentando efeitos secundários localmente7),(19. Os riscos a longo prazo associados à administração intralesional de cidofovir ainda não são bem conhecidos, mas incluem o risco teórico de transformação maligna19.
Outra opção terapêutica em doentes com PRR é a vacina contra o HPV. A vacina quadrivalente está indicada na prevenção do cancro do colo do útero, anogenital e de lesões pré-neoplásicas associadas aos subtipos 6, 11, 16 e 187. Uma meta-análise de 202320 que aborda a sua utilidade em doentes com PRR, conclui que a vacinação pode ser vista como uma terapêutica adjuvante benéfica em doentes com PRR grave.
A criação de um protocolo para a injeção intralesional de bevacizumab em doentes com PRR grave apresenta várias limitações que precisam ser cuidadosamente consideradas. Algumas das principais limitações incluem a falta de estudos em grande escala, uma vez que a ausência de ensaios clínicos randomizados e controlados limita a capacidade de generalizar os resultados e afirmar conclusões definitivas. Outra limitação prende-se com a segurança a longo prazo do bevacizumab intralesional ainda não estar completamente elucidada, especialmente na população pediátrica, que podem ter uma exposição prolongada ao medicamento. A compreensão limitada da etiologia e dos fatores que influenciam a progressão da PRR dificulta a previsão da eficácia destas novas intervenções terapêuticas.
O desenvolvimento de protocolos clínicos é essencial. Nos doentes com PRR grave vai permitir uniformizar a abordagem clínica e terapêutica e comparar resultados entre diferentes centros hospitalares.
Conclusão
No presente protocolo, fundamentado em múltiplos estudos e ensaios internacionais, apresentamos uma abordagem padronizada de administração intralesional de bevacizumab em doentes com PRR grave. Este protocolo vai permitir uma maior organização e uniformização da abordagem clínica e terapêutica da PRR grave, uma patologia crónica que apesar de rara nos países desenvolvidos apresenta importantes encargos económicos para o sistema de saúde.
Agradecimentos
À Dra. Eugénia Castro pela valiosa orientação na elaboração do protocolo. A sua dedicação e conhecimento não só enriqueceram a preparação do protocolo, mas também fomentaram o interesse do primeiro autor na área da patologia faringolaríngea.
Ao Prof. Doutor Craig Derkay pela pronta disponibilização da escala e diagrama utilizados em doentes com PRR e por permitir a sua tradução para português de Portugal.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.
Proteção de pessoas e animais
Os autores declaram que os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.



















