Introdução
O angiossarcoma é uma neoplasia vascular rara, porém, de elevada agressividade com altas taxas de recidiva local, metastização precoce e geralmente mau prognóstico, com sobrevida em cinco anos de 10% a 35%.1
Clinicamente pode apresentar-se como mácula, pápula, placa ou nódulo de coloração eritematosa, podendo confundir-se com simples hematomas ou outras doenças infeciosas e inflamatórias (celulite, erisipela, eczema de contacto, rosácea, hemangioma, angioedema facial), dificultando o diagnóstico precoce. 2 Considerando a apresentação clínica semelhante entre várias patologias, a biópsia cutânea desempenha um papel fundamental na confirmação do diagnóstico, através do exame histopatológico e painel imuno-histoquímico, sendo os principais marcadores imuno-histoquímicos o CD31, CD34 e fator de von Willebrand. 2-3
Sendo os cuidados de saúde primários a primeira linha no acesso a cuidados de saúde, torna-se pertinente alertar para sinais e achados clínicos com baixo índice de suspeição que devem motivar uma atitude diligente. Com a descrição do presente caso clínico, os autores pretendem demonstrar a importância do diagnóstico precoce desta patologia, devendo apresentar elevado índice de suspeição perante o aparecimento de lesões equimóticas (hematoma-like) ou violáceas na face ou couro cabeludo.
Descrição do caso
Relata-se o caso de JVB, sexo masculino, leucodérmico, 70 anos, casado, 9.o ano de escolaridade, atualmente reformado (ex-vigilante), pertencente a uma família nuclear na fase VIII do ciclo de Duvall. Como antecedentes pessoais há a destacar hipertensão arterial, dislipidemia, obesidade (IMC 33), tabagismo ativo (40 UMA) e abuso crónico de álcool (468 gramas/semana). Medicação atual: rosuvastatina 5 mg. Apresentava ainda indicação para cumprir terapêutica anti-hipertensora com perindopril 5 mg; porém, não apresentava adesão a esta terapêutica. Sem alergias medicamentosas conhecidas. Sem antecedentes familiares a relevar.
Recorre a consulta na UCSP em setembro/2021 devido ao aparecimento de mancha na hemiface esquerda com dois meses de evolução que, segundo o utente, inicialmente se localizava na região pré-auricular e foi progredindo para a zona periocular. Sem traumatismo associado. Sem febre, dor, prurido ou diminuição da acuidade visual. À observação (Figuras 1 e 2) apresentava na hemiface esquerda placa eritematosa de limites mal definidos com bordo descamativo, infiltrada na região periocular e temporal com extensão ao couro cabeludo na região retroauricular. Em algumas regiões apresentava aspeto equimótico resolutivo.
O utente apresentava-se ansioso em relação à existência do aparecimento da mancha, considerava que poderia ter existido alguma relação com vacina COVID-19 que teria sido administrada cerca de dois meses antes.
Tendo em conta a anamnese e os achados clínicos existiram dúvidas diagnósticas. Existindo antecedentes pessoais de abuso crónico de álcool, equacionou-se numa primeira fase a eventual possibilidade de evento traumático, o qual o utente negou veemente. Porém, o quadro clínico arrastado e com eritema ainda marcado, a possibilidade de tal evento traumático seria mais reduzida, pelo que se equacionou a possibilidade de evento infecioso local, nomeadamente celulite da face. Foi realizada antibioterapia com amoxicilina-ácido clavulânico 875/125 mg bid durante oito dias e reavaliação em 72 horas. Em contexto de reavaliação apresentou-se sem qualquer melhoria clínica, pelo que foi realizada referenciação via plataforma Alert P1 para consulta hospitalar de dermatologia, onde foi avaliado. Em consulta de dermatologia hospitalar existiram dúvidas em relação ao diagnóstico (xantogranuloma necrobiótico? eczema de contacto?), tendo sido realizada avaliação analítica, não se detetando alteração nos parâmetros inflamatórios. As sorologias para HIV, hepatite B, C e sífilis foram negativas. Procedeu-se ainda a biópsia cutânea.
O utente mantinha contacto regular em consulta na UCSP, denotando-se alguma ansiedade e apreensão enquanto aguardava o resultado da biópsia cutânea, motivado pela incerteza diagnóstica e receios de algum diagnóstico de malignidade.
Regressou cerca de um mês depois à unidade, apresentando o resultado da biópsia cutânea. O resultado histológico revelou: “Angiossarcoma epitelioide. Positividade difusa para CD31, podoplanina e c-myc, tendo sido negativo para musculo liso. Índice proliferativo muito alto (Ki - 67: 80%)”. Apresentava nesta altura postura de aceitação do diagnóstico, revelando sentir-se mais calmo pois já sabia o seu verdadeiro diagnóstico, apesar da malignidade, depois de um período de incertezas.
Em consulta de dermatologia foram pedidas posteriormente RM do crânio e face e TAC toraco-abdomino-pélvica para estadiamento e o utente foi referenciado à consulta de oncologia médica. Os exames imagiológicos revelaram-se normais, sem evidência de lesões suspeitas de metastização. Realizou ainda avaliação em consulta de oftalmologia, tendo sido excluído envolvimento ocular.
O utente mantinha contacto próximo com a equipa de saúde, indicando que tinha programado iniciar tratamentos de quimioterapia. Apresentava, nesta altura, cerca de dois meses após o diagnóstico inicial, doença localmente avançada, com atingimento de ambas as hemifaces, apresentando placa eritematosa de grandes dimensões - cerca de oito centímetros -, mais infiltrada na hemiface esquerda e atingimento também da hemiface direita, com placa eritematosa de menores dimensões. Assumia uma postura ambivalente, em que por um lado apresentava motivação no início de tratamento, mas por outro lado apresentava ansiedade e receios sobre os tratamentos, a sua eficácia e efeitos secundários eventuais. Tentou-se esclarecer de forma próxima as dúvidas do utente e responder aos principais receios, reforçando que na perspetiva do prognóstico da doença de base o início de tratamentos de forma precoce tinha um impacto importante na probabilidade de sucesso. O utente manifestava-se também muito constrangido pelo efeito dismórfico que a mancha já apresentava na sua face e mostrava-se confiante em relação à possibilidade de os tratamentos poderem diminuir pelo menos o agravamento.
Em janeiro/2022 iniciou tratamentos de quimioterapia com doxorrubicina lipossomal peguilada.
Regressou em fevereiro/2022 a consulta na UCSP, após ter realizado três ciclos de tratamentos de quimioterapia, apresentando melhoria franca das lesões da face, especialmente à direita, com resolução praticamente completa da lesão e apresentando apenas eritema residual (Figuras 3 e 4).
O utente apresentava-se muito confiante e positivo em relação aos exames realizados e bastante motivado na adesão aos tratamentos. Abordou-se nesta altura de forma mais ativa o utente em relação aos hábitos nocivos que apresentava. Encontrava-se já em fase de contemplação, apresentando motivação para alterar comportamentos; porém, denotava-se alguma ambivalência em relação aos potenciais efeitos positivos que teria a sua decisão na altura em que se encontrava, assim como receios em relação a ser capaz de ter sucesso. A equipa de saúde reforçou de forma positiva a decisão do utente, tentando-se esclarecer o potencial efeito negativo dos hábitos nocivos que o utente apresentava no prognóstico e aumento de efeitos secundários dos tratamentos realizados. Reforçaram-se medidas de autoeficácia e estratégias motivacionais para auxiliar o utente a diminuir os hábitos tabágicos e etílicos que apresentava. Com o conhecimento dos recursos familiares que apresentava, convocou-se a esposa - elo de ligação e apoio junto do utente -, auxiliando nas etapas progressivas de diminuição de consumos de tabaco e álcool, sendo fulcral ao longo de todo o processo no reforço da motivação e autoestima do utente para não abandonar a decisão de alterar os hábitos nocivos. O apoio pró-ativo da equipa de saúde em associação com os recursos familiares que o utente apresentava revelaram-se fundamentais no acompanhamento mais próximo do utente, contribuindo de forma relevante para a modificação de alguns comportamentos do utente, encontrando-se atualmente o utente em abstinência tabágica e tendo reduzido o consumo de álcool para cerca de metade (atualmente aproximadamente 273 g/semana).
O utente mantém seguimento em consulta de oncologia médica, apresentando melhoria clínica das lesões, sem evidência atualmente de metastização à distância.
Comentário
As queixas dermatológicas são um dos motivos mais frequentes de consulta em medicina geral e familiar. É importante o treino e familiarização com as patologias dermatológicas mais comuns, mas também com patologias menos comuns que, devido à gravidade que acarretam, merecem particular interesse e reconhecimento precoce. Só assim permitirá o diagnóstico e orientação adequados, com vista ao impacto positivo no prognóstico.
Os sarcomas de tecidos moles são um grupo heterógeno, representando 1% dos tumores sólidos malignos. 4
O angiossarcoma é uma neoplasia vascular rara, proveniente de células endoteliais, responsável por menos de 2% dos sarcomas de partes moles e menos de 1% de todas as neoplasias da cabeça e pescoço. 2 Pode localizar-se a nível cutâneo, tecidos moles, mama ou fígado; sendo a pele o local mais frequentemente afetado. 5 Apesar de raro, o angiossarcoma é um dos tumores mais agressivos, apresentando altas taxas de recidiva local, metastização precoce e geralmente mau prognóstico. A etiologia exata é desconhecida e a maioria ocorre espontaneamente. Em termos de prevalência é mais comum na população com mais de 60 anos e no sexo masculino (2:1). 6
Existem alguns fatores de risco associados ao desenvolvimento de angiossarcomas, nomeadamente linfedema crónico, exposição a radiação, toxinas exógenas, como cloreto de vinil, arsénio, tório, neurofibromatose tipo 1, síndroma de Maffucci e mutações em BRCA 1 ou BRCA 2. 7
Os hábitos tabágicos são também um fator de mau prognóstico e estão associados à diminuição da taxa de sobrevivência nos pacientes com angiossarcomas comparativamente aos não fumadores. 8 Esta situação poderá estar relacionada com o facto de o tabaco contribuir para a progressão e metastização devido ao seu efeito mutagénico ao nível do ciclo celular e apoptose. 9 O utente do caso clínico apresentava hábitos tabágicos, tornando-se essencial no âmbito da consulta de seguimento a promoção da cessação tabágica e estabelecer uma aliança terapêutica dinâmica com o utente.
A apresentação clínica do angiossarcoma cutâneo é muito variável, podendo apresentar-se como mácula, pápula, placa ou nódulo de coloração eritematosa, limites imprecisos e crescimento expansivo, podendo confundir-se com simples hematomas ou outras doenças infeciosas e inflamatórias (celulite, erisipela, eczema de contacto, rosácea, hemangioma, angioedema facial), dificultando muitas vezes o diagnóstico precoce. 5 A sua forma de apresentação mais comum é uma lesão semelhante a um hematoma, com tonalidade variável azulada a violácea, de bordos mal definidos, podendo adquirir um componente nodular multifocal de acordo com a evolução da neoplasia, localizando-se na face ou couro cabeludo, correspondendo a aproximadamente 50% dos angiossarcomas cutâneos primários. 5,10-11 Existem ainda mais duas formas de apresentação típica a nível cutâneo: o angiossarcoma que se desenvolve sobre áreas de linfedema crónico, conhecido como síndroma Stewart-Treves e o angiossarcoma que se desenvolve em áreas submetidas a radioterapia. 11-12
O diagnóstico é baseado na correlação clínico-patológica, assumindo a biópsia cutânea um papel fundamental. 2
O angiossarcoma cutâneo apresenta na generalidade um mau prognóstico com altas taxas de recidiva local e metastização precoce. A extensão do tumor primário, status de resseção, diferenciação histológica e presença ou não de metástases são fatores prognósticos importantes.
Tendo em conta a raridade desta neoplasia vascular não há consenso sobre as condutas terapêuticas a tomar, sendo os algoritmos de tratamento desenhados a partir de séries de casos. Em linhas gerais, o tratamento varia dependendo se a doença se encontra localizada ou metastizada. O tratamento de eleição para a doença localizada é a cirurgia radical com resseção completa. É recomendada uma resseção com margens alargadas devido à agressividade da doença. Os doentes com doença limitada deverão receber radioterapia adjuvante devido à elevada probabilidade de recorrência local. 13
Em doentes com doença avançada ou estadios mais tardios, o uso de quimioterapia com agentes citotóxicos é apropriado. 14 O tratamento de primeira linha consiste num regime terapêutico com agente único como paclitaxel, doxorubicina, bevacizumabe, sunitinib ou sorafenib. 13
O reconhecimento precoce desta patologia torna-se, assim, essencial, devendo o médico de família apresentar uma postura diligente em relação a aspetos clínicos, permitindo-se antecipar a intervenção dirigida com consequente impacto no prognóstico. O médico de família pode desempenhar um papel crucial no reconhecimento precoce desta patologia neoplásica, assim como no acompanhamento do utente, gerindo expectativas no tratamento e prognóstico.