“Se continuarem n’esta faina de deitar abaixo [itálico no original] prophetiso que, dentro de cincoenta ou sessenta anos, as condições climatericas da ilha hão de mudar; e Deus queira que não venham a soffrer as calamidades que téem cahido sobre algumas das ilhas de Cabo Verde, pois sem mattas é impossivel terem chuvas e humidade”.
Adolpho Frederico Möller
“Exploração botanica nas possessões portuguezas” Jornal de Horticultura Prática, 1885, p. 199
Já mais do que duplica, o número de anos profetizado por Möller. Mas nas ilhas de São Tomé e do Príncipe, muitos dos desafios ambientais do passado conservam-se no presente e, ao que tudo indica, adensar-se-ão no futuro.
Das grandes derrubadas do século XIX em busca de mais superfície cultivável por onde expandir as lucrativas plantações cacaueiras, à preocupante desflorestação do século XXI tendo por objetivo a expansão da contundente ocupação humana, a procura de material para construção, a produção carvoeira ou a crítica desobstrução de terrenos que viabilize propagar culturas ambientalmente depredadoras, vai um passo bastante curto que não se mede em anos. Medir-se-á antes em posturas, em interdependência pessoas/natureza, em formas de encarar e garantir a sustentabilidade.
Silvicultor responsável pelo Jardim Botânico da Universidade de Coimbra desde 1874, Adolpho Frederico Möller (1842-1920) desloca-se ao arquipélago em 1885, nomeado pelo Ministro da Marinha e Ultramar por Portaria de 24 de Janeiro, para “proceder á exploração botanica da(s) ilha(s)”. Na sua missão, com chegada a São Tomé a 24 de Maio e da qual dá pela primeira vez conta por carta expedida da roça Nova Moka a 23 de Julho,1 se incluía igualmente a avaliação da disponibilidade de áreas para plantação de quina, prospeção em que depositava grandes esperanças o diretor do Jardim Botânico, Júlio Augusto Henriques (1838- -1928), no cargo desde 1873. De resto, o próprio deslocar-se-ia também às ilhas do meio do mundo em 1903, num interesse que relacionado ou não com o expresso fascínio pelas plantas de Cinchona para extração do quinino, que ao tempo se empenhou em fazer chegar ao Ultramar, é bem patente na monografia “A Ilha de S. Tomé sob o ponto de vista historico-natural e agrícola” (Henriques, 1917), denso e pormenorizado levantamento reunindo e atualizando ao longo de dez capítulos e um catálogo, alguns dos muitos artigos que vão sendo publicados pelo Boletim da Sociedade Broteriana, por si fundada em 1880.
Mas retomem-se das páginas do Jornal de Horticultura Prática a “Exploração botanica nas possessões portuguezas”. Maravilhado com a aproximação a terra - “A bahia do Principe é encantadora. Nunca vi cousa semilhante” - descreve o emissário do Jardim Botânico um cenário que ainda hoje sobressai: “Os montes (…) estão todos cobertos de espesso arvoredo, desde o cume até á base. Os ramos das arvores tocam na água salgada (…). Toda esta ilha, vista do mar, é uma floresta pegada” (Möller, 1885, p.196).
O deslumbramento, ao qual não deixam de se emprestar matizes entre quem passa e quem permanece - observa Paulo de Magalhães no Novidades, em texto publicado a 7 de Março de 1901, ser a “persistencia da vegetação [d]os aspectos da ilha” que constituem “uma surpresa para o recemchegado e uma tortura para o residente que tenha nervos”, num quadro “bello” e “grandioso, mas (…) monotono além da medida razoavel” - é no geral partilhado por outros nomes grandes das ciências da terra e da vida. Sendo que entre aqueles que em momento ante- rior haviam ajudado a conhecer melhor o território e os seres que o habitam, destaquem-se Friedrich Welwitsch - a quem se devem, fruto da deslocação de 1853,2 as primeiras colheitas botânicas - Charles Barter e Gustav Mann - que a esse levantamento primordial acrescentariam, o primeiro em 1858 e o segundo em 1861, a descoberta de inúmeras espécies desconhecidas - Richard Greeff - de cujas campanhas desenvolvidas em 1879 e 1880 resultam os inventários de 1882 e 1884 - ou ainda, já posteriores a Möller, dois dos exploradores mobilizados pela defesa portuguesa nos anos da campanha do cacau escravo, o botânico alemão Strunk e o naturalista francês Chevalier - o primeiro conhecendo São Tomé em Maio de 1905, em representação da companhia de plantadores de Victoria;3 o segundo numa mais prolongada estadia entre 14 de Agosto e 1 de Outubro desse mesmo ano,4 singularmente marcado pelo início da missão de Joseph Burtt, enviado especial da Cadbury Brothers para aquilatar das condições dos serviçaes negros empregados nas plantações de cacau de S. Thomé e Principe e os modos de os obter em Angola, desígnio que dá nome a relatório, mas principalmente ancora uma das maiores e mais imbricadas polémicas internacionais registadas na viragem de oitocentos para novecentos, que aqui não caberia explorar.
Já na vintena de anos prévia à independência, realcem-se entre tantos outros nomes que se poderiam invocar, o de Théodore Monod - que em 1956 escalaria os Picos das ilhas de São Tomé e do Príncipe, de lá trazendo vários exemplares de raras plantas endémicas - e o de Arthur Exell - que ao serviço do British Museum esteve em São Tomé repetidamente em 1944, 1956 e 1973. De todos, sem exceção, fica devedor o conhecimento mais profundo de um lugar onde a presença imponente da natureza e a riqueza imensa da biodiversidade não podem conceber-se independentes do devir humano, ajudando por isso a compreender como se estabelecem as relações de poder e posse entre pessoas e meio envolvente.
Ainda na atualidade, ocupa o Obô uma parte significativa do País, correspondendo na sua maioria aos Parques Naturais de São Tomé e do Príncipe, não obstante as devastadoras derrubadas levadas a cabo nos períodos de maior expansão das plantações: já no ciclo do açúcar e no do café, mas em particular no do cacau, cultura à qual se adstritariam ao longo de décadas “Grandes tratos de terreno” (Burtt, 1907, p. 4). E não porque tenham faltado vozes de alerta, divulgadas em diferentes fóruns e em consecutivos tempos.
No Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa avisou Augusto Casti- lho, dez anos depois de Möller: “Não quero ser pessimista, mas acho que devo indicar a quem competir, o perigo que ha em se consentir assim a rapida e indiscriminada desarborização de S. Thomé” (Castilho, 1895, p. 784). Tão rápida e indiscriminada, quanto verificável no terreno nos anos subsequentes: “os gigantes da floresta foram derrubados”, reporta-se n’A ilha de S. Thomé (Chevalier, 1907, p. 5).
Em 1920, contratados pela Companhia da Ilha do Principe para avaliar a vasta propriedade de Água-Izé, compreendendo à data 14 dependências além da sede Praia Rei, consideram Martinho da França Pereira Coutinho e Manoel de Souza da Câmara que “Se os roceiros tivessem ponderado as judiciosas recomendações de alguns autores, abalizados, não teriam caído no exagero dos córtes rasos [itálico no original]” (Câmara & Coutinho, 1923: 11). O seu relatório, reeditado em publicação autónoma pelos Anais do Instituto Superior de Agronomia,5 reporta o estado deplorável verificado no terreno e identifica a imediata rearborização, designadamente com espécies de sombreamento que atenuassem as funestas consequências da desflorestação - com árvores de médio porte como coqueiros, bananeiras, abacateiros e eritrinas; ou de grande porte como fruta-pão, izaquente, jaqueiras e muandins vermelhos - a correção da monocultura - introduzindo e/ou desenvolvendo plantios de algodão, café, cana sacarina, chá, coqueiro, mancarra, milho, quinas ou tabaco - e, claro, o tratamento direcionado - com pulverizações e desinfestações destinadas às diferentes moléstias encontradas - como principais medidas profiláticas quando possível, terapêuticas quando necessário, a concretizar no mais curto espaço de tempo.
Em 2008, Mendes Ferrão dedica em São Tomé, ponto de partida um capítulo inteiro à fatal investida contra o “governo das sombras” (AAVV, 2008: 72-82), demonstrando como tão equivocado andou, quem defendeu a riqueza absoluta do plantio total: “cêrca de metade de ilha de S. Thomé está cultivada”, reportara no início de novecentos a Revista Portugueza Colonial e Maritima, onde também se defendia que “Um quarto do que resta no centro (…) ainda occupado por florestas, pode ainda ser plantado” e se lastimava que “o ultimo quarto (…) nunca poderá ter valor” (Chevalier, 1907, p. 5). Ao contrário, importará frisar em traço que não será jamais demasiado grosso: é justamente esse reduto de inacessibilidade, essa riqueza imensa e inexpugnável, que tem até aos dias de hoje funcionado como garante último de preservação, permitindo em 2023 a São Tomé e Príncipe continuar a constar da cada vez mais seleta lista de sequestradores de carbono.
Num país onde a tradição da exploração das madeiras radica bem longe - “quasi todos os edificios ou construcções, tanto na cidade como fóra d’ella, são feitos de madeira indigena”,6 observa outro texto da citada Revista, no qual se acrescenta possuírem “todas as roças e plantações (…) serrações de madeira de impulsão manual ou mechanica” (Strunk, 1907, p. 36) - e onde aos materiais de construção imprescindíveis se veio juntar a areia das praias, extraída ilegal e abundantemente em especial da orla,7 percebe-se sem dificuldade o desafio apresentado pela inversão de rumo. Mas num tempo e sobre uma matéria em que a palavra de ordem é mitigar, o passado torna a fazer-se presente nas páginas de “A Ilha de S. Tomé sob o ponto de vista historico-natural e agrícola”, onde há mais de um século se reconhecia como “Lutar contra o clima é que é impossível. (…) O mais que se pode fazer é atenuar a gravidade dos defeitos dominantes da atmosfera em determinada situação, sendo conhecidas as causas desses defeitos” (Henriques, 1917, p. 112).
Os impactos extremos e periódicos - como as vagas de calor, grandes tempestades, ondas gigantes ou inundações - aliados a efeitos contínuos, esses lentos e cumulativos - como o aumento do nível médio das águas do mar, a desertificação, a escassez de água e até a extinção de formas de vida - sentem-se em todo o mundo; e também, claro, nas ilhas que lhe estarão no meio, não obstante a discutibilidade da marcação do ponto 0° 00’ 00.00”.8
Em pleno século XXI, as mudanças climáticas impuseram-se enquanto realidade global incontestável e exigindo intervenção urgente, tendo como princi- pal causa identificada os gases de efeito de estufa em resultado da ação humana. Na sua condição de SIDS/PEID,9 apresenta São Tomé e Príncipe características naturais, nomeadamente climáticas e topográficas, que o tornam particularmente frágil aos impactes deste fenómeno, contra o qual já no contexto da globalização, já no contexto da vulnerabilidade, não reúne condições para fazer face por si só. Em contrapartida, alinham em seu favor nesta missão a muitos títulos quase impossível um nível de consciencialização que se vem tornando mais progressivo e se sustenta numa edificação jurídica muito consistente,10 contando para um e para outro com o envolvimento empenhado das autoridades nacionais e com o forte apoio dos parceiros internacionais.
Com uma ambiciosa carta de intenções e compromissos visando corresponder aos desafios ambientais que se lhe colocam, parte absolutamente determinante das tantas outras esferas - económicas, sociais, culturais, etc. - que não serão de somenos importância, o arquipélago chega à segunda década do ainda novo milénio bem consciente dos problemas inerentes à explosão demográfica e à sobre-exploração dos recursos naturais, elementos que convivem com uma crescente consciência ecológica, cultivada desde tenra idade e desmultiplicada em programas de sensibilização, educação e formação com esferas de intervenção coadjuvantes.
O Projeto Cumprindo a Promessa Climática em STP,11 promovido pela Direção-Geral do Ambiente e Acão Climática com o apoio técnico e financeiro do PNUD, ou a Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável em Regiões Tropicais, desenhada pela Universidade de Évora à figura do País, são disso mesmo dois bons exemplos. Conhecimento e capacitação, ambos numa base tão alargada quanto possível, com enfoques de públicos-alvo complementares - quadros técnicos, jornalistas, professores, membros de organizações governamentais ou não governamentais e outros stakeholders, aos quais se juntariam ainda crianças e jovens em idade escolar, bem como a própria Sociedade Civil no seu conjunto - representando os dois alicerces axiais destas duas propostas, para as quais coincidiram e cooperaram três níveis institucionais de maior grandeza: o eixo governamental representado pela Tutela, via DGA; o eixo das Instituições de Ensino Superior, via Universidade de Évora; e o eixo das organizações internacionais, via Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
Num contexto em que outros projetos e programas se poderiam também destacar, quando o que está em causa é uma visão que busca compatibilizar desenvolvimento económico e social, com preservação da qualidade do ambiente e equilíbrio ecológico, deverá sublinhar-se que apesar do seu enorme potencial em termos da biodiversidade, o País enfrenta atualmente grandes desafios ambientais com a forte pressão humana, a desflorestação, a perda da biodiversidade, a extração descontrolada de inertes nas zonas costeiras, a poluição marinha e costeira, a gestão de resíduos e a ocorrência de condições climáticas extremas, um dos efeitos mais visíveis desse fenómeno global que constitui a emergência climática.
O clima está a mudar e são bem visíveis ao nível nacional os impactos negativos nas comunidades: registam-se períodos de seca mais prolongados, períodos de chuva mais curtos, mais tempestades extremas, os recifes de coral estão a desaparecer em algumas regiões, é notória a elevação do nível das águas do mar, as inundações com maior impacto e o aumento da erosão costeira. Esses impactos afetam economicamente a produção energética, as atividades de pesca, a agricultura e a pecuária. A saúde humana sofre igualmente os efeitos das mudanças climáticas com o surgimento de algumas doenças e agravamento de outras. Em algumas áreas as inundações, a elevação do nível das águas do mar e o aumento da erosão costeira têm atingido níveis tão significativos, que colocam em perigo as próprias infraestruturas.
Bem ciente destes desafios e da resposta que não podem deixar de ter, o País está alinhado com as políticas internacionais definidas no domínio da proteção do Ambiente e na adaptação e mitigação dos impactos adversos das mudanças climáticas. Sendo que para fazer face aos desafios ambientais e climáticos, São Tomé e Príncipe ratificou as diversas convenções internacionais relacionadas, incluindo em 2016 o Acordo de Paris, no âmbito da Convenção Quadro das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas.
Com efeito, com a assinatura e ratificação deste importante compromisso internacional em 2 de Novembro de 2016 o País comprometeu-se, através das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC) - revistas já em 2021,12 e encontrando-se em permanente e atenta monitorização - a reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 27%, pretendendo-se desacelerar as mudanças climáticas através do aumento da matriz energética renovável em 50% até 2030. De igual forma, comprometeu-se em implementar ações que tornem São Tomé e Príncipe menos vulnerável e mais resiliente ao clima.
Além da energia e dos transportes, contemplam estas ações outras áreas igualmente enquadradas pelos compromissos nacionais assumidos no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), designadamente nos setores da agricultura, pecuária, pescas, proteção civil, água e resíduos, bem como da floresta, tópico com o qual se iniciou a exposição… e com o qual se concluirá.
Em Junho de 2023, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) renovou o estatuto da ilha do Príncipe como Reserva Mundial da Biosfera. E ainda em Junho de 2023, perante as Instituições de Ensino Superior reunidas em São Tomé no XXXII Encontro da Associação das Universidades de Língua Portuguesa, se repescaram as palavras de Möller em 1885, ao afirmar que “toda esta ilha, vista do mar, é uma floresta pegada”. Assim - o Príncipe mas também São Tomé - a(s) saibamos conservar, na escala temporal que prolongada em séculos, fez subsistir desafios ambientais identificados ontem, mantidos hoje e previsíveis amanhã.













